HANSENÍASE NO ESTADO DO PARÁ: PERFIL CLÍNICO EPIDEMIOLÓGICO ANTES E DEPOIS DA COVID-19

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202408212300


Lorena Garcia da Fonseca Tavares¹; Aline Andrade Lopes²; Ingrid Moojen de Albuquerque Meira³; Thainá Thamara Machado Pinto⁴; Lucas Souza Gomes⁵; Laura Paiva Ribeiro⁶; Geovanna Cristina de Sousa Ganzer⁷; Felipe Augusto Souza Gomes⁸; Victor Felipe de Almeida Leal⁹; Saullo Freire de Castro¹⁰.


RESUMO

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa com elevada incidência em diversos países, incluindo o Brasil. No que concerne ao estado do Pará, entre 2017 e 2021 foram diagnosticados 14.339 casos de hanseníase, apesar disso é importante recordar da pandemia COVID-19 que ocorreu a partir de 2020 e impactou os serviços de saúde e os índices de notificação de hanseníase. Nesse contexto, esse trabalho visa descrever o impacto da pandemia COVID-19 no perfil clínico epidemiológico das notificações de hanseníase no estado do Pará no período de 2017 a 2023. Para tanto, foram utilizados dados secundários, coletados no site do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS/TABNET), a partir do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), referente ao registro de casos de hanseníase notificados entre os anos de 2017 e 2023 no estado do Pará, localizado na região norte do Brasil. Assim, foi verificado que o período da pandemia COVID-19 teve um impacto negativo no diagnóstico, tratamento, acompanhamento e enfrentamento à transmissão da hanseníase. A COVID-19 ressaltou as vulnerabilidades prévias, salientando a necessidade de políticas públicas que visem a hanseníase. 

Palavras-chave: Hanseníase. COVID-19. Vigilância em Saúde Pública

ABSTRACT

Leprosy is an infectious and contagious disease with high incidence in various countries, including Brazil. Regarding the state of Pará, between 2017 and 2021, 14,339 cases of leprosy were diagnosed. However, it is important to recall the COVID-19 pandemic, which began in 2020 and impacted healthcare services and the notification rates of leprosy. In this context, this work aims to describe the impact of the COVID-19 pandemic on the clinical-epidemiological profile of leprosy notifications in the state of Pará from 2017 to 2023. To this end, secondary data were used, collected from the Department of Informatics of the Unified Health System (DATASUS/TABNET), based on the Information System for Notifiable Diseases (SINAN), concerning the record of leprosy cases reported between 2017 and 2023 in the state of Pará, located in northern Brazil. It was found that the COVID-19 pandemic period had a negative impact on the diagnosis, treatment, monitoring, and management of leprosy transmission. COVID-19 highlighted pre-existing vulnerabilities, underscoring the need for public policies addressing leprosy.

Keywords: Leprosy. COVID-19. Public Health Surveillance

1. INTRODUÇÃO 

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa considerada uma das mais antigas da humanidade, tendo um caráter crônico e, mesmo com a possibilidade de cura mediante ao tratamento com a poliquimioterapia (PQT), permanece endêmica em diversas regiões do planeta, como no Brasil (JESUS et al., 2022; NIITSUMA et al., 2021). Essa enfermidade é causada pelo Mycobacterium leprae (M. leprae), uma bactéria que possui afinidade pela pele e nervos, sendo a via área superior a principal forma de disseminação por meio de indivíduos doentes não tratados e com alta carga bacilar (BRASIL, 2017; WHO, 2018).

A doença em questão apresenta diversas formas de apresentação, a interação da micobactéria com o sistema imune do indivíduo acometido é o mecanismo responsável para determinar a resposta clínica e, também, a morbidade devido a episódios de inflamação tecidual que acontece nas reações hansênicas – tipo 1 e tipo 2 (BRASIL, 2022). O diagnóstico da hanseníase é essencialmente clínico quando há suspeição da doença e a maior parte dos casos são diagnosticados na atenção primária à saúde – APS (LEITE et al., 2020; SOUSA et al., 2017).

É válido ressaltar que, após o diagnóstico, é fundamental fazer a classificação operacional da hanseníase para realizar um tratamento direcionado, sendo dividida em paucibacilar e multibacilar. Além disso, reconhecer as formas clínicas (tuberculóide, virchowiana, dimorfa, indeterminada e neurítica primária) é uma forma de avaliar a enfermidade associada aos diversos sistemas do corpo humano, bem como os riscos de uma evolução mais desfavorável com danos neurais, representando um problema de saúde pública de maior escala (BRASIL, 2022).

No que tange ao estado do Pará, no período de 2017 a 2021 foram diagnosticados 14.339 casos de hanseníase, destacando a relevância de estudos que abrangem essa temática no estado (DAMASCENO et al., 2023). No entanto, mesmo com a grande quantidade de casos diagnosticados no período, é válido recordar a pandemia COVID-19 (SARS-CoV-2) que ocorreu entre 2020-2023 e tornou o Brasil em 2020 o terceiro país com maior número de casos no mundo, o que refletiu menores índices de notificação de hanseníase entre 2020-2021 (BRASIL, 2022), possivelmente devido à redução aos serviços de diagnóstico.

Assim, estudos clínico epidemiológicos são de suma importância como facilitadores da compreensão acerca da dinâmica da enfermidade e seus fatores associados, possibilitando a criação de ferramentas e estratégias para contornar barreiras relacionadas ao diagnóstico e ao tratamento. Além disso, é possível realizar políticas públicas e desenvolver educação em saúde de maneira direcionada a fim de superar desafios relacionados ao tratamento e manejo da hanseníase.

Dessa forma, o presente estudo visa descrever o impacto da pandemia COVID-19 no perfil clínico epidemiológico das notificações de hanseníase no estado do Pará no período de 2017 a 2023.

2. MATERIAIS E MÉTODOS 

O presente estudo foi realizado com dados secundários de acesso público, obedecendo aos princípios éticos da resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), o que fundamenta a ausência de parecer do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).

Trata-se de um estudo descritivo, quantitativo e retrospectivo sobre dados secundários, coletados no site do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS/TABNET), a partir do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), referente ao registro de casos de hanseníase notificados entre os anos de 2017 e 2023 no estado do Pará (PA), localizado na região norte do Brasil. O estado do Pará está organizado em 04 macrorregiões de saúde, perfazendo um total de 144 municípios. Além disso, ressalta-se que a delimitação do período estudado visou abranger a comparação de anos com e sem influência da pandemia COVID-19.

O período estudado perpassa 2017 a 2023 e foi analisado de acordo com as variáveis: quantidade de casos notificados, frequência por macrorregião, sexo, raça, escolaridade, gestação, faixa etária, classe operacional, forma clínica da doença, quantidade de lesões, baciloscopia, episódio reacional, esquema terapêutico e quantidade de doses realizadas. As tabelas e gráficos foram aplicadas a estatística descritiva por meio de frequências absoluta e relativa, sendo processados nos programas Microsoft Office 2019, Microsoft Excel 2019 e Tab para Windows (TabWin) versão 4.14.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Na pesquisa realizada, os resultados serão apresentados por meio de gráficos, com o objetivo de destacar os dados obtidos no acompanhamento dos casos de Hanseníase no Estado do Pará entre 2017 e 2023.

Figura 1- Macrorregional de Saúde de Notificação por Ano de Notificação.

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

O Estado do Pará é dividido em quatro macrorregiões de saúde conforme a Resolução N° 140, de 09 de agosto de 2018. A macrorregião IV, que inclui Lago do Tucuruí, Carajás e Araguaia, apresentou o maior número de notificações de hanseníase, totalizando 37,76% (6.564 casos). Em seguida, a macrorregião I, composta pela Região Metropolitana I, Tocantins e Marajó I e II, teve 34,21% (5.947 casos). A macrorregião II, abrangendo a Região Metropolitana II, III e Rio Caetés, teve 14,52% (2.525 casos), enquanto a macrorregião III, que inclui o Baixo Amazonas, Tapajós e Xingu, apresentou o menor número de casos com 13,49% (2.345 casos) (BRASIL, 2018).

Entre 2017 e 2023, foram registradas 17.381 notificações de hanseníase. Observou-se um aumento contínuo no número de casos antes da pandemia, com 3.361 casos em 2017, 3.427 em 2018 e 3.504 em 2019, representando aumentos de 1,9% e 2,2% ano a ano, respectivamente. No entanto, em 2020, ano de disseminação da pandemia de SARS-CoV-2 no Brasil, houve uma redução significativa de 37,95% nas notificações, com apenas 2.174 casos registrados. Essa tendência de diminuição continuou em 2021, 2022 e 2023, com uma média de 1.772 casos nos anos subsequentes à pandemia, comparada à média de 3.430 casos nos anos anteriores.

A hanseníase é uma enfermidade infectocontagiosa desafiadora associada a populações carentes e negligenciadas, revelando a disparidade socioeconômica e o acesso à saúde no Brasil. No estado do Pará, a elevada incidência de casos e a desigualdade na sua distribuição sublinham a complexidade e a gravidade da hanseníase, revelando a importância de sua interação com fatores determinantes de saúde, infraestrutura e recursos disponíveis (RIBEIRO, SILVA & OLIVEIRA, 2018). Ademais, a diminuição dos casos a partir de 2020 demonstra a fragilidade e o impacto de como um evento global – pandemia COVID-19 – pode interferir nos sistemas de notificação de saúde, promovendo um déficit na detecção e no tratamento de doenças, seja por redução de incidência ou por subnotificação (PERNAMBUCO et al., 2022).  

Esse momento de calamidade pública mundial promoveu uma realocação de recursos materiais e esforços humanos, prejudicando a notificação, consultas na atenção básica de saúde, internações eletivas e acesso à saúde de maneira geral (PERNAMBUCO et al., 2022). É válido ressaltar que durante a pandemia houve uma priorização dos casos de COVID-19, reduzindo a avaliação de contatos domiciliares/sociais e busca ativa de hanseníase na comunidade, o que pode ocasionar um aumento futuro na taxa de detecção (LOPES et al., 2022).

Figura 2- Sexo por Ano de Notificação

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

Acerca da variável sexo, observou-se que as notificações de hanseníase foram predominantemente mais altas entre os homens, representando 63,51% (11.189 casos) do total. Em contraste, as notificações para o sexo feminino corresponderam a 36,48% (6.427 casos) do total. Isso pode refletir a maior exposição de homens em ambiente de risco, seja por suas profissões ou atividades que envolvem contato frequente com locais ou indivíduos infectados. Além disso, a diferença pode refletir aspectos relacionados ao comportamento de saúde, autocuidado e acesso ao tratamento (DAMASCENO et al., 2023; PERNAMBUCO et al., 2022).  

Figura 3- Raça por Ano de Notificação

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

A análise da variável raça revelou que a maioria das notificações de hanseníase ocorreu entre pessoas identificadas como pardas, representando 73,92% (13.022 casos) do total. A seguir, os casos foram mais frequentes entre pessoas identificadas como pretas (12,48%, ou 2.199 casos) e brancas (10,80%, ou 1.904 casos). As categorias amarela e indígena tiveram uma menor proporção de casos, com 0,76% (134 casos) e 0,30% (54 casos), respectivamente. Além disso, 1,72% (303 casos) foram classificados como ignorados ou deixados em branco, impedindo a avaliação completa conforme a variável raça. 

O predomínio da raça parda é consonante com estudos anteriores e reflete um grupo étnico com menor status socioeconômico, maiores desigualdades, condições de vida inadequadas e outros determinantes que aumentam o risco de proliferação de doenças infectocontagiosas (DAMASCENO et al., 2023; LOPES et al., 2021). A menor proporção de casos entre pessoas identificadas como pretas e brancas, bem como a baixa representação nas categorias amarela e indígena, pode ser influenciada por vários fatores, incluindo diferenças na distribuição populacional, subnotificação e possíveis barreiras na coleta de dados.

Figura 4- Escolaridade por Ano de Notificação

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

Sobre os casos de hanseníase de acordo com o nível de escolaridade, a análise revelou que a maior parte dos pacientes possui baixo nível educacional. A maioria dos casos está entre aqueles com 1ª a 4ª série incompleta do ensino fundamental, representando 23,07% (4.065 casos). Seguem-se os pacientes com 5ª a 8ª série incompleta do ensino fundamental, com 17,98% (3.169 casos), e com ensino médio completo, com 12,95% (2.283 casos). Outros níveis de escolaridade apresentaram menores percentuais, como analfabetos (9,15%, ou 1.612 casos), ensino médio incompleto (7,30%, ou 1.287 casos), e ensino fundamental completo (5,52%, ou 973 casos). Os níveis mais altos de escolaridade, como ensino superior completo e incompleto, apresentaram a menor porcentagem de casos, com 2,69% (475 casos) e 1,20% (229 casos), respectivamente. Além disso, 12,65% (2.229 casos) foram classificados como escolaridade ignorada ou deixada em branco.

A predominância de casos entre pessoas com menor escolaridade também pode refletir desigualdades socioeconômicas e o impacto da educação na prevenção e no tratamento da hanseníase, além de estar mais associado com incapacidades provocadas pela doença (JESUS et al., 2023; NETO et al., 2021). Esses resultados sugerem a necessidade de políticas públicas e programas que abordem a educação em saúde e a conscientização em populações com baixo nível educacional.

Figura 5– Gestante por Ano de Notificação

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

Dos casos notificados, 94 mulheres gestantes foram analisadas. A distribuição dos casos por trimestre da gestação foi a seguinte: 27 mulheres estavam no 1º trimestre, 36 no 2º trimestre e 16 no 3º trimestre. Além disso, 15 casos tinham a idade gestacional ignorada. A distribuição da hanseníase em diferentes trimestres da gestação pode ter implicações na gravidez, uma vez que no período gestacional há uma supressão imunológica principalmente a partir do 3º trimestre, gerando maior risco de progressão da doença. Apesar disso, em todos os trimestres é necessário acompanhamento pré-natal de alto risco com avaliação de crescimento do feto e complicações decorrentes do tratamento PQT (AMORIM et al., 2022). 

Figura 6– Faixa Etária por Ano de Notificação

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

Já os casos de hanseníase por faixa etária revelaram que a maior prevalência está concentrada a partir dos 30 anos. A faixa etária de 30 a 39 anos apresenta a maior porcentagem de casos, com 18,96% (3.340 casos), seguida pela faixa de 40 a 49 anos, com 18,57% (3.272 casos). Esses resultados indicam a necessidade de direcionar estratégias de prevenção e tratamento para adultos de meia idade, os quais são a faixa etária economicamente ativa e mais afetada.

Por outro lado, as faixas etárias extremas mostram uma prevalência muito menor. Crianças menores de 5 anos têm a menor prevalência, com apenas 0,16% (29 casos), possivelmente pelo fato de as crianças não conseguirem se expressar de maneira precisa durante o exame físico (OLIVEIRA, MARINUS & MONTEIRO 2020). Além disso, a faixa etária acima de 80 anos também apresenta baixa prevalência. Altas taxas de hanseníase em menores de 15 anos indicam maior exposição precoce ao bacilo e persistência da transmissão ativa da doença, revelando endemicidade. Apesar do declínio das taxas a partir de 60 anos, a prevalência em idosos até 79 anos ainda é elevada, provavelmente por um déficit do sistema imunológico e exposição prolongada aos contatos ativos (ROCHA, NOBRE & GARCIA, 2020; SILVA et al., 2020).

Figura 7- Classe Operacional de Diagnóstico por Ano de Notificação

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

Sobre a classe operacional, os casos de hanseníase revelaram que a grande maioria dos casos notificados são classificados como multibacilares (MB), representando 80,93% (14.258 casos) do total. Em contraste, apenas 19,05% (3.357 casos) foram classificados como paucibacilares (PB). Houve apenas um caso cuja classificação não foi registrada. A maior quantidade de multibacilares é associada com a alta carga bacilar dessa classe e alto grau de incapacidade física (GIF), reações hansênicas e, consequentemente, maior estigma social (SILVA et al., 2020). Apesar da queda acentuada dos casos multibacilares, mesmo com a pandemia, os casos paucibacilares mantiveram-se com certa estabilidade.

Figura 8- Forma Clínica Notificada por Ano de Notificação

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

Em relação à forma clínica dos diagnósticos de hanseníase revelou que a mais notificada foi a dimorfa, representando 55% (9.689 casos) dos casos totais. A forma virchowiana foi a segunda mais comum, com 18,02% (3.176 casos), seguida pela forma indeterminada com 11,87% (2.092 casos). A forma tuberculóide foi a menos frequente, com 9,04% (1.593 casos). Além disso, 3,82% (674 casos) tiveram a forma não classificada e 2,22% (392 casos) foram ignorados ou deixados em branco. A maior apresentação das formas dimorfa e virchowiana sugerem casos com alta carga bacilar, maior gravidade e associação com maior GIF (JESUS et al., 2023), o que preconiza estratégias de tratamento mais intensivas e eficazes na população estudada.

Figura 9– Baciloscopia Notificada por Ano de Notificação

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

Desde o início da pandemia de SARS-CoV-2, foi observado um déficit significativo nas notificações de hanseníase. A partir de 2020, a inserção dos resultados de baciloscopia no sistema de notificações foi inadequada, resultando na falta de classificação dos exames como negativos ou positivos. Como consequência, a análise da proporção entre resultados positivos e negativos é baseada exclusivamente nos dados dos anos anteriores (2017, 2018 e 2019). Este déficit no registro de dados pode comprometer a capacidade de monitorar e controlar efetivamente os casos de hanseníase, já que a ausência de dados recentes impede uma avaliação precisa da mesma. Além disso, a interrupção na coleta e no registro dos dados pode refletir a sobrecarga dos sistemas de saúde devido à pandemia e as mudanças nos protocolos de gestão em saúde.

Figura 10- Tipo de Episódio Reacional por Ano de Notificação

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

De acordo com os dados sobre episódios reacionais da hanseníase, a maioria dos pacientes (68,40%, ou 12.051 casos) não apresentou reações. Entre os pacientes com reações, 10,88% (1.918 casos) tiveram reações do tipo 1, enquanto 3,15% (556 casos) apresentaram reações do tipo 2. Além disso, 1,18% (208 casos) apresentaram ambas as reações tipo 1 e tipo 2 simultaneamente. A proporção de casos com dados não preenchidos foi de 16,36% (2.883 casos). A predominância de pacientes sem episódios reacionais é um dado positivo, pois infere-se que a maior parte dos casos pode ser manejada sem complicações reacionais graves.

Quanto aos pacientes que apresentaram episódios reacionais tipo 1 e 2, estudos indicam associação desses episódios com a forma MB e, consequentemente, mais intercorrências ao longo da doença e GIF (LOPES et al., 2021). Uma forma de conter essas consequências é aliar a prevenção por meio da educação em saúde e o tratamento adequado com PQT, visando estabelecer a cura desses pacientes.

Figura 11- Esquema Terapêutico Notificado por Ano de Notificação

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

A análise dos esquemas terapêuticos utilizados no tratamento da hanseníase revelou que a poliquimioterapia para MB com 12 doses foi a mais prescrita, representando 80,11% (14.113 casos) dos tratamentos notificados. Em seguida, a poliquimioterapia para PB com 6 doses foi utilizada em 18,78% (3.310 casos). Além disso, 0,9% (176 casos) dos pacientes foram tratados com esquemas de terapia substitutiva. Houve também 17 casos em que o esquema terapêutico não foi notificado. Observou-se uma diminuição significativa de 38,12% nos esquemas terapêuticos notificados em 2020 em comparação com 2019 e os anos subsequentes. 

Esse declínio observado a partir de 2020 pode ser associado à pandemia que é capaz de ter afetado a coleta dos dados e, também, a continuidade do tratamento. Ademais, a escolha terapêutica se baseia na classe operacional, compreendendo a alta por cura em MB 12 doses mensais e em PB 6 doses mensais (TAVARES et al., 2021). A alta quantidade de casos de PQT para MB com 12 doses reforça a necessidade de um tratamento mais intensivo para esses casos no intuito de evitar casos mais graves e complicações (LOPES et al., 2021).

Figura 12– Número de Doses para Paucibacilares por Ano de Notificação

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

Entre os pacientes paucibacilares, a administração da PQT variou significativamente. A maioria dos pacientes (49,33%, ou 3.806 casos) recebeu menos de 6 doses do tratamento, enquanto 33,84% (2.611 casos) completaram as 6 doses recomendadas. Além disso, 4,53% (350 casos) receberam mais de 6 doses. Notou-se também que 40 pacientes não receberam nenhuma dose e 11,76% (908 casos) não notificaram a quantidade de doses administradas. O número de doses inferior ao preconizado pelo Ministério da Saúde, além taxa de interrupção evidência, também, o considerável abandono de tratamento existente por diversos motivos como a duração do regime terapêutico e os efeitos colaterais dos fármacos; vulnerabilidade socioeconômica; compreensão da doença, e a interação do indivíduo com os profissionais de saúde (LIMA et al., 2024).

Comparando os três anos anteriores à pandemia com os anos subsequentes, a média de notificações de doses para pacientes PB foi de 1.393 antes da pandemia e caiu para 884 após o início da pandemia. Esses dados corroboram com a dificuldade de enfrentamento à Hanseníase durante a pandemia, como o distanciamento social, a diminuição dos atendimentos nas APS, fez com que pacientes tivessem os seus tratamentos adiados ou até cancelados, aumentando, assim a taxa de transmissão (SILVA et al., 2021), principalmente aos pacientes que necessitam de dose supervisionada.

Figura 13- Número de Doses para Multibacilares por Ano de Notificação

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

Entre os pacientes multibacilares, a maioria recebeu menos de 12 doses de PQT, representando 46,29% (8.156 casos). Um número significativo completou as 12 doses recomendadas, enquanto 1,89% (334 casos) recebeu entre 13 e 23 doses. Menos de 1% dos pacientes receberam 24 doses ou mais. Notou-se que 5,38% (948 casos) não receberam nenhuma dose. Nesse sentido, comparando com outros estudos, foi observado que que o abandono é predominante na forma clínica MB e os motivos de interrupção e abandono do tratamento por fatores como o tempo de duração da terapia, a não aceitação da doença, o preconceito e estigmas, as reações adversas, a dificuldade de liberação do trabalho e o medo da demissão (DE GOUVÊA et al., 2020). 

A análise temporal revela uma redução substancial na média de notificações de doses, caindo de 3.479 nos três anos anteriores à pandemia para 1.794 após o início da pandemia. Portanto, após analisar este cenário, observa-se que a pandemia intensificou os desafios e vulnerabilidades anteriores no combate à hanseníase. É válido ressaltar os dados ignorados ou não preenchidos, pois limitam a compreensão completa da dinâmica da enfermidade no estado e se tornam um embate no desenvolvimento de pesquisas e, posteriormente, políticas públicas eficazes.  

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A hanseníase e a COVID-19 representam dois desafios significativos para a saúde pública do estado e do país, cada um com diferentes impactos, mas com pontos de convergência. A hanseníase continua afetando populações negligenciadas, exigindo políticas públicas que visem principalmente o diagnóstico e o tratamento precoce, além da reabilitação. Já a COVID-19, uma pandemia, testou a capacidade do sistema de saúde em responder às emergências sanitária.

Acerca das considerações do período da pandemia do SARS-CoV-2 (COVID-19) no diagnóstico, tratamento, acompanhamento e enfrentamento à transmissão da hanseníase, foi observado que a pandemia teve um significativo impacto reduzindo a quantidade de notificações da hanseníase. Isso ocorreu, principalmente, devido a vulnerabilidade anterior já enfrentada no estado em conjunto com o distanciamento social estabelecido nacionalmente, o que resultou em dificuldades de visitas domiciliares dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), cancelamentos de atendimentos na APS, impossibilitando, assim, o acompanhamento correto dos pacientes. Além disso, a alimentação do sistema de notificações de doenças foi limitada, deixando obscuro a realidade no estado do Pará.

Dessa forma, a sobreposição das duas enfermidades ressalta a importância da continuidade do cuidado, principalmente em condições de cronicidade como na hanseníase, mesmo em tempos de crise como a pandemia. A interrupção do acesso aos serviços de saúde devido a priorização da COVID-19 afetou a dignidade da vida humana, restringindo pessoas a terem o diagnóstico e tratamento precoces na hanseníase, salientando a necessidade de políticas públicas que garantam a continuidade do cuidado.

Assim, diante desse cenário, é importante que o sistema de saúde no país e no estado do Pará esteja preparado para enfrentar a coexistência de situações emergenciais como uma pandemia e as demais comorbidades preexistentes, com estratégias de resposta rápida e eficaz.

 REFERÊNCIAS

AMORIM, G. M.; MAESTRI, T.;OPPITZ, A.; LEYE, M.; MERINI, F. L., & VIGNATTI, L. J.  (2022). Hanseníase virchowiana e eritema nodoso hansênico em gestante de 34 semanas sem diagnóstico prévio. Revista De Medicina, v.101, n.1, e-170709.

BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará (SESPA). Comissão de Intergestores Bipartite do Sistema Único de Saúde do Estado do Pará. Belém, 09 de agosto de 2018.

BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Guia prático sobre a hanseníase [recurso eletrônico] / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. – Brasília: Ministério da Saúde, 2017.

BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis. Saúde Brasil 2020/2021: uma análise da situação de saúde diante da pandemia de covid-19, doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 [recurso eletrônico] / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças Crônicas Não Transmissíveis–Brasília: Ministério da Saúde, 2022.

DAMASCENO, P.R.; GOMES, V.A.S., SOUZA, A.J.S; SILVEIRA, M.C.; LAET, A.L.; SANTOS, G.N.V. Perfil clínico-epidemiológico de pessoas com hanseníase no estado do Pará entre os anos de 2017-2021. Rev Enferm Contemp. 2023;12:e4905.

DE GOUVÊA, A. R.; MARTINS, J. M.; MARTINS, J. M.; POSCLAN, C.; ALMEIDA DIAS, T. A.; PINTO NETO, J. M.; FREITAS RONDINA, G. P. de; ZIGNANI PIMENTEL, P. C. O.; LOZANO, A. W. Interrupção e abandono no tratamento da hanseníase / Interruption and abandonment in the treatment of leprosy. Brazilian Journal of Health Review, [S. l.], v. 3, n. 4, p. 10591–10603, 2020. DOI: 10.34119/bjhrv3n4-273. Disponível em: https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BJHR/article/view/15141. Acesso em: 29 jul. 2024.

JESUS, I. L. R. DE . et al.. Hanseníase e vulnerabilidade: uma revisão de escopo. Ciência & Saúde Coletiva, v. 28, n. 1, p. 143–154, jan. 2023.

LEITE, T. R. C.; SILVA, I. G. B.l; LANZA, F. M.; MAIA, E. R.; LOPES, M. S. V.; CAVALCANTE, E.G.R. Ações de controle da hanseníase na atenção primária à saúde: uma revisão integrativa. VITTALLE – Revista de Ciências da Saúde, [S. l.], v. 32, n. 3, p. 175–186, 2020.

LIMA, . S. V. .; RODRIGUES, . N.; DALUIA CALEGARI, . C. Caracterização dos pacientes sobre o abandono ao tratamento da hanseníase e suas causas: revisão integrativa. REVISTA SAÚDE MULTIDISCIPLINAR, [S. l.], v. 16, n. 1, 2024. DOI: 10.53740/rsm.v16i1.789. Disponível em: http://revistas.famp.edu.br/revistasaudemultidisciplinar/article/view/789. Acesso em: 29 jul. 2024.

LOPES, F. DE C. et al.. Hanseníase no contexto da Estratégia Saúde da Família em cenário endêmico do Maranhão: prevalência e fatores associados. Ciência & Saúde Coletiva, v. 26, n. 5, p. 1805–1816, maio de 2021.

LOPES J.; SILVA,I.; LEAL, M.; RIBEIRO, A.; LEITÃO, J.; SOUSA, A.; NEVES, S.Subdiagnóstico de Hanseníase no Brasil durante a Pandemia da Covid-19. 2022. Revista Eletrônica Acervo Médico, v. 20, p. e 11172, 4 nov. 2022.

VICENTE NETO, B. F. .; SILVA, E. R. da; GEHA, Y. F.; SANTOS, J. N. G. dos; MOTA, J. V. F. .; PEREIRA, W. M. M. Leprosy in the State of Pará: spatial and temporal patterns made visible by the analysis of epidemiological indicators from 2004 to 2018 . Research, Society and Development, [S. l.], v. 10, n. 11, p. e245101119699, 2021. DOI: 10.33448/rsd-v10i11.19699.

NIITSUMA, E. N. A. et al. Fatores associados ao adoecimento por hanseníase em contatos: revisão sistemática e metanálise. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 24, p. e 210039, 2021.

OLIVEIRA, J. D. C. P. DE .; MARINUS, M. W. DE L. C.; MONTEIRO, E. M. L. M.. Practices in the healthcare of children and adolescents with leprosy: the discourse of professionals. Revista Gaúcha de Enfermagem, v. 41, p. e20190412, 2020.

PERNAMBUCO, M.L.; RUELA, G.A.; SANTOS, I.N., BOMFIM, R.F.HIKICHI, S.E., LIRA, J.L.M.; BARROS, E.A.S.; MORAIS, C.S.; PAGNOSSA, J.. Hanseníase no Brasil: ainda mais negligenciada em tempos de pandemia do COVID–19?. Revista de Saúde Pública do Paraná [Internet]. 31 mar.2022; 5(1):2-8. 

RIBEIRO, M.D.A; SILVA, J.C.A, OLIVEIRA, S.B. Estudo epidemiológico da hanseníase no Brasil: reflexão sobre as metas de eliminação. Rev Panam Salud Pública. 2018;42:e42. https://doi.org/10.26633/ RPSP.2018.42

ROCHA, M. C. N.; NOBRE, M. L.; GARCIA, L. P.. Características epidemiológicas da hanseníase nos idosos e comparação com outros grupos etários, Brasil (2016-2018). Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 9, p. e00048019, 2020.

SILVA, M.D.P., OLIVEIRA, P.T., QUEIROZ, A.A.R; ALVARENGA, W.A. Hanseníase no Brasil: uma revisão integrativa sobre as características sociodemográficas e clínicas. Res. Soc. Dev. 2020;9(11):e82491110745.

SILVA,J. M. S.; DO  NASCIMENTO,D. C.; MOURA, J. C. V.; DE ALMEIDA, V. R. S.; FREITAS, M. Y. G. S.; DOS SANTOS, S. D.; MELO, A. M.S.; SILVA, D. A. C.; DIAS, J. S.; DA SILVA, I. R. S. Atenção às pessoas com hanseníase frente a pandemia da covid-19: uma revisão narrativa. Revista Eletrônica Acervo Saúde, v. 13, n. 2, p. e6124, 22 fev. 2021.

SOUZA,G.S;  SILVA,  R.L.F;  XAVIER,  M.B.  Hanseníase  e  Atenção  Primária  à  Saúde:  uma  avaliação  de estrutura do programa. Saúde debate 2017;41(112): 230-242.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. Guidelines for the diagnosis, treatment and prevention of leprosy [Internet]. Geneva: WHO; 2018. Disponível em: https://apps.who.int/iris/ handle/10665/274127