GUARANTEE AND EFFICIENCY IN THE CRIMINAL PROCESS: THE PROVISIONAL EXECUTION OF THE DEPRIVATION OF LIBERTY SENTENCE BEFORE THE FINAL AND UNAPPEALABLE DECISION
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7901263
Marcela da Silva Pereira
RESUMO
Consiste num trabalho de reflexão e apresentação do sistema processual penal atual brasileiro, com o intuito de desmistificar os institutos que aparentemente é através de um preconceito são vistos de maneira distorcida e separados, de modo até, por vezes, contrários; isso através de uma construção do raciocínio processual penal, como ele teria se originado, se desenvolvido e como atualmente é visto e posto; apresentar as dúvidas, questões e cuidados existentes e que ainda existem a respeito do processo.
Palavras-chave: Eficiência; Garantismo; Devido Processo Legal; Razoável Duração do Processo; Teoria Geral do Garantismo; Processo; Processo Penal; Código de Processo Penal.
ABSTRACT
It consists of a work of reflection and presentation of the Brazilian criminal procedure system, with the intention of demystifying the institutes that seemingly and through a prejudice are seen in a distorted way and separated, sometimes even contrary; this through a construction of criminal procedural reasoning, as it would have originated, if developed and as it is currently seen and put; present the doubts, issues and care that still exist about the process.
Key words: Efficiency; Garantismo; Due Process Legal; Reasonable Duration of the Process; General Theory of Garantism; Process; Criminal proceedings; Code of Criminal Procedure.
INTRODUÇÃO
O Direito Processual Penal diferentemente do Direito Penal, que incumbe em definir os crimes e atribuir pena pela infração praticada, regulamenta o modo de demonstração da verdade sobre o fato típico e da responsabilidade criminal do averiguado; regulamenta também, o método de resolução de conflito entre o interesse de punir e a liberdade individual pela decisão judicial.
Consiste no ramo do direito que informa quando, por que e de que forma uma pessoa pode ser presa. É instrumento concreto, método de compor a lide penal que possui peculiaridades cruciais quer para o mundo jurídico quer para a sociedade.
Como define Walfredo Cunha Campos1: “O Direito Processual Penal é um complexo de princípios e normas que constituem o instrumento técnico necessário à aplicação do Direito Penal, regulamentando o exercício da jurisdição pelo Estado-juiz, por meio de processo, os institutos da ação e da defesa, além da investigação criminal pela polícia judiciária, através de procedimentos investigatórios diversos”.
Define ainda, Renato Brasileiro2: “(…) importância do processo, pois este funciona como o instrumento do qual se vale o Estado para a imposição de sanção penal ao possível autor do fato delituoso”.
Praticado o crime, surge para o Estado o poder de punir o autor da ação (jus puniendi), no entanto isso não será feito por livre arbítrio, discricionariedade do Poder Público, devendo observância ao princípio do devido processo legal, com instauração prévia de processo, assegurando o contraditório e a ampla defesa ao averiguado, podendo este exercer sua pretensão à liberdade em contrapartida da pretensão punitiva estatal.
Dessa forma, o processo penal será o instrumento para a solução da controvérsia entre o poder de punir estatal (jus puniendi) e a pretensão do indivíduo de preservar sua liberdade (jus libertatis).
O grande dilema do Processo Penal, durante anos, sempre foi conciliar suas duas faces, aparentemente contraditórias: de um lado respeito e proteção aos direitos fundamentais e do outro, a busca por um sistema criminal operante e eficiente3, combatendo impunidades. Processo Penal equilibrado sem extremos do hipergarantismo e de movimentos como o Direito Penal do Inimigo ou Direito Penal da Lei e da Ordem.
Duas facetas constitucionalmente previstas e garantidas, com hierarquias idênticas, previstas no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, em seu caput4: direito à liberdade e direito à segurança.
Diante desse dilema, no decorrer da história, diversos povos buscaram formas de sistematizar as funções basilares do processo penal, determinando como e quem exerceria a acusação, defesa e o julgamento, em processos com natureza principalmente condenatória, em que o processo penal era utilizado como instrumento de impor uma sanção ao autor da infração. Tais formas resultaram em três possíveis sistemas processuais penais: acusatório, inquisitivo e misto.
O sistema inquisitivo tem como característica a reunião das funções de julgar, acusar e defender em um mesmo órgão, sem que houvesse, com isso, ampla defesa e contraditório; um único órgão acusa, defende e julga o processo.
Outras características desse sistema que podemos mencionar são: sigilo dos atos processuais, possibilidade do juiz de agir, inclusive dando início ao processo, que será sentenciado, julgado por ele mesmo, comprometendo obviamente a imparcialidade. Não há que se falar em contraditório, geralmente o acusado permanecia encarcerado preventivamente e incomunicável.
Além disso, o juiz inquisidor é dotado de ampla iniciativa probatória, podendo produzir provas a seu livre arbítrio e de ofício, tanto no curso das investigações como durante o processo. A atividade probatória tem como objetivo a completa e ampla reconstituição dos fatos, acreditando-se na possibilidade da descoberta da verdade absoluta.
O acusado, nesse sistema, é considerado mero objeto do processo e não como sujeito de direitos, inclusive, admite-se o uso da tortura, na busca da verdade material, para obtenção de uma confissão. Em regra, o processo é escrito e sigiloso.
O processo inquisitório é incompatível com os direitos e garantias individuais, sendo violados diversos princípios e garantias penais e processuais.
Conforme preconiza Giacomolli 5: “verifica-se um ‘donismo’ processual sem precedentes, endo e extraprocessuais: o processo é meu, o promotor é meu, o estagiário é meu, o servidor é meu, o carro é meu, eu sou eu, eu e eu. Então, eu posso investigar, eu posso acusar, eu posso julgar, recorrer e executar a sanção. Nesse modelo confundem-se as funções dos agentes do Estado-julgador com os do Estado acusador e com os do Estado-investigador”.
O sistema acusatório, por sua vez, tem as funções de acusar, defender e julgar exercidas por órgãos distintos, legítimo actum trium personarum. Caracteriza-se pela igualdade entre as partes e observância ao contraditório e a ampla defesa, a presunção de não culpabilidade do acusado, que em regra, permaneceu solto durante o processo, a publicidade dos atos e a inércia do juiz, que apenas poderá agir se provocado pelas partes interessadas, com o objetivo de preservar sua imparcialidade e consequentemente a imparcialidade da decisão.
O juiz não poderá agir de ofício, chamado de ne procedat personarum, assumindo posição de passividade quanto a reconstituição dos fatos, sendo-lhe conferido poderes instrutórios, mas de iniciativa restrita ao curso do processo, em caráter excepcional, como atividade subsidiária da atuação das partes.
Esse sistema foi adotado pelo ordenamento processual penal vigente no Brasil, tendo as funções bem divididas: a função de acusar exercida pela figura do membro do Ministério Público, no caso das ações penais públicas ou ainda pelo ofendido nas ações privadas, a função de defender exercida pelo advogado do acusado, por vezes pela Defensoria Pública e, por fim, a de julgar exercida por um juiz de direito; essas funções são exercidas por órgãos distintos, autônomos e independentes entre si, sendo assegurada a igualdade das partes (paridade de armas) e a publicidade, em regra, dos atos processuais realizados durante o feito.
O acusado nesse sistema é considerado sujeito de direitos e não mero objeto do processo, sendo-lhe assegurado seus direitos, não buscando uma verdade absoluta, mas uma verdade de acordo com os elementos colhidos durante o processo – busca-se um processo com maior eficiência e menor violação dos direitos daquele que está sendo investigado.
Cabe ressaltar que nosso sistema acusatório, quanto a produção de provas, não é puro, isto porque prevê a possibilidade do juiz determinar de ofício, sem provocação das partes, providências para que se possa alcançar a verdade real dos fatos (lembre-se não se trata de verdade absoluta, mas real dos fatos, mais próxima e ao mesmo tempo fiel às provas colhidas), assim previsto no artigo 156 do Código de Processo Penal6 (vigente).
Outro exemplo de situação, dentro do processo, em que o juiz poderá agir de ofício, na decretação de medidas cautelares (sequestro de bens, prisão preventiva, etc.) – Essas situações não substituem as partes ou subtrai suas funções usurpando tanto a função de acusar como de defender, mas subsidiariamente o juiz tomará decisões de ofício, previstas previamente, visando melhor apuração dos fatos e protegendo os interesses e direitos da sociedade ou até mesmo das partes.
Em comparação aos dois modelos, acusatório e inquisitório, Ferrajoli7 em seu livro destaca que “aos dois modelos são associáveis sistemas diferentes de garantias, sejam orgânicas ou procedimentais: se o sistema acusatório favorece modelos de juiz popular e procedimentos que valorizam o contraditório como método de busca da verdade, o sistema inquisitório tende a privilegiar estruturas judiciárias burocratizadas e procedimentos fundados nos poderes instrutórios do juiz, compensados talvez pelos vínculos das provas legais e pela pluralidade dos graus de juízo (instâncias)”.
O terceiro sistema, misto ou francês, possui duas fases, a primeira, de apuração preliminar das provas de autoria e materialidade, tipicamente inquisitorial, presidida pelo magistrado, não sendo assegurados ao acusado a ampla defesa e o contraditório, instrução escrita e secreta.
A segunda fase, eminentemente acusatória, as funções de acusar, defender e julgar encontram-se devidamente separadas, exercidas por órgãos distintos, sendo garantida a ampla defesa e o contraditório ao acusado, bem como a publicidade e oralidade.
A primeira legislação processual penal, Código de Processo Criminal, foi aprovado em 29 de novembro de 1832, dando autonomia judiciária aos municípios, em que o poder era concentrado nas mãos dos juízes de paz, eleitos pela população local. O Código de Processo de 1832 foi alterado duas vezes: a lei nº 261, de 1841, alterou o código com a finalidade de aumentar os poderes de polícia e a lei nº 2.033, de 1871, conferiu poderes aos Chefes de Polícia e aos Delegados de Polícia.
Com o advento da Constituição Republicana de 1891, restou consagrada a dualidade de processos com o movimento de preparação dos códigos de processo civil e penal.
A Constituição Federal de 1934 concentrou na União a competência exclusiva para legislar em matéria processual, mantendo-se a regra nas constituições subsequentes, inclusive presente na atual Carta Magna, artigo 22, I.
O atual Código de Processo Penal foi instituído pelo Decreto nº 3.869, de 03 de outubro de 1941, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1942.
Quando o Código de Processo Penal Brasileiro de 1841 entrou em vigor o entendimento predominante era que o sistema nele aplicado era o sistema misto ou francês: fase inicial, caracterizada pelo inquérito policial entendia-se prevalecer o sistema inquisitorial; na fase posterior, iniciado o processo era possível defendia-se a predominância do sistema acusatório8.
No entanto, promulgada a Constituição da República Brasileira em 1988, que previu expressamente em seu texto a separação das funções de acusar, defender e julgar, atribuindo-as a órgãos distintos, assegurando, ainda, ao acusado o contraditório e a ampla defesa, princípios estes, inclusive expressamente previstos na Carta Magna, além da previsão do princípio da presunção de não culpabilidade; diante desse cenário passou a defender que o sistema característico do processo penal empregado no Brasil era o acusatório.
Importante ainda salientar que, como nosso sistema processual penal não é um sistema acusatório puro, tendo em vista que o Código de Processo Penal teve inspiração no modelo fascista italiano, deve-se atenção e o devido cuidado ao interpretar (fazer a releitura) a legislação infraconstitucional diante da realidade exposta pela “nova” ordem constitucional, de forma que, o sistema processual penal brasileiro não se resume às regras previstas no Código de Processo Penal, mas sim dele com devido cuidado a ordem constitucional posterior, estabelecida em 1988.
CAPÍTULO I – Evolução do pensamento do Código de Processo Penal
O processo penal brasileiro apresentou durante esses anos algumas fases ou polos metodológicos em seu processo evolutivo: a primeira fase, sincretista, praxista, imanentista, ou procedimentalista, o processo era considerado como simples meio de exercício dos direitos. A ação confundia-se com o próprio Direito subjetivo material que, uma vez lesado, poderia obter em juízo a reparação da lesão. O Direito processual não era visto como um ramo autônomo do Direito, bem como não se tinha consciência dos elementos para sua autonomia científica.
A segunda fase, autonomista, conceitual, ou processualismo, caracteriza-se pelas grandes construções científicas do Direito processual, grandes teorias processuais, especialmente sobre a natureza jurídica da ação e do processo, as condições da ação e os pressupostos processuais.
A terceira fase, por sua vez, instrumentista, compreende uma fase crítica. Após as inovações, ideias e teorias inovadoras, analisa-se o processo por uma perspectiva externa, levando-se em consideração seus resultados práticos.
Atualmente, sustenta-se uma nova fase, assim defendida pelo professor Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, o formalismo-valorativo, que consiste em visualizar o processo como o centro da teoria geral, equacionando direito e processo e processo e Constituição.
Carlos Álvaro de Oliveira9, com ênfase para o Processo Civil, dispõe que: “(…) o processo é visto, para além da técnica, como fenômeno cultural, produto do homem e não da natureza. Nele os valores constitucionais, principalmente o da efetividade e o da segurança, dão lugar a direitos fundamentais, com características de normas principais. A técnica passa a segundo plano, consistindo em mero meio de atingir o valor. O fim último do processo já não é mais apenas a realização do direito material, mas a concretização da justiça material, segundo as peculiaridades do caso. A lógica é argumentativa, problemática, da racionalidade prática. O juiz, mais do que ativo, deve ser cooperativo, como exigido por um modelo de democracia participativa e a nova lógica que informa a discussão judicial, ideias essas inseridas em um novo conceito, o de cidadania processual”.
Essa fase também é denominada, no âmbito do processo civil, como neoprocessualismo e neoinstitucionalismo, tendo como ideias principais a argumentação, a efetividade do processo e a segurança jurídica, experimentando o processo um viés constitucionalizado, como conquista da própria cidadania.
Com essa perspectiva, de maneira simétrica, é possível se obter um processo penal através do diálogo cooperativo, sério e voltado à realização da vontade coletiva, em que alcançar a justiça seja mais importante e tenha maior valor do que o próprio formalismo exagerado e a técnica processual. Proteção da sociedade, sem que isso implique no sacrifício injustificado da liberdade – processo penal como instrumento utilizado pelo Magistrado, sob sua análise e conclusão, visando a concretização da justiça, de modo célere e informal, em respeito aos princípios fundamentais do contraditório e da efetividade jurisdicional.
O Brasil enquanto colônia lusitana adotou por muitos anos o sistema jurídico de Portugal das Ordenações, tendo a ideia de justiça interligada e confundida com o direito canônico, tendo inclusive penas cruéis. Além disso, nesse período ainda permitia um sistema investigatório com permissão da tortura, utilizava-se de métodos torturantes quando diante de provas contra pessoa que insistia em negar sua culpa, também utilizada para extrair a confissão da pessoa que insistia em negar sua culpa e a confissão, por sua vez, mostrava-se suficiente para basilar a condenação, repetida em juízo, em lugar diverso daquele em que as torturas tivessem sido praticadas e quando as dor estivesse passado.
Apenas com a chegada da família real ao Brasil (após 1808) passou-se a editar normas “brasileiras”, as quais constituíam os alvarás e decretos, concedendo perdão e comutando as penas.
Somente após a Independência do Brasil (1822), houve a possibilidade do Brasil obter ordenamento penal e processual penal próprio. A consciência nacional inspirada pelas dificuldades sociais e econômicas e por ideais humanistas revolucionários vindo da Europa e da América do Norte.
Defendia-se a liberdade como controle desmedido do Estado sobre as condutas individuais. Frei Caneca (condenado à morte por fuzilamento por participar na Confederação do Equador em 1824) e Cipriano Barata (jornalista defendeu a emancipação brasileira e real autonomia após independência) acreditaram na concepção de liberdade que entendia a lei como o único limitador das ações individuais, do agir humano.
A Constituição Brasileira de 1824 outorgada por D.Pedro I previu em seu texto direitos civis e políticos, que apesar de seu viés liberal quanto aos direitos individuais, previa expressamente as possibilidades de restrição à liberdade. Apresentava, também, em seu texto o princípio da legalidade: “nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei” (art.179, 1º) e ainda: “que nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública”. Esse texto constitucional destinava se aos poucos brancos e mestiços que eram eleitores. Os escravos e os alforriados como não eram considerados cidadãos permaneciam excluídos das novas disposições.
O texto constitucional de 1824 aboliu açoites, torturas, marcas de ferro quente e outras penas cruéis, sendo mantida a pena de morte. Recomendou que as cadeias deveriam ser limpas, seguras e arejadas. A escravidão era matéria encarregada pelo direito civil por se tratar de propriedade patrimonial, já que os escravos não eram considerados cidadãos.
As Ordenações Filipinas permaneceram vigentes, no que não contrariasse os ideais constitucionais até vir a ser editado o Código Processo Criminal em 1832, cuja elaboração constava expressamente determinada pelo texto constitucional.
Diante do tenebroso cenário em que se encontrava o sistema penal brasileiro – prisões em situações desumanas, os crimes não estavam previamente definidos, com suas penas fixadas pela livre escolha do magistrado, podendo, inclusive, às normas proibitivas de condutas serem editadas por autoridades administrativas ou judiciais – em 1930 editou-se o Código Criminal e em 1932 o Código de Processo Criminal de Primeira Instância (primeiro código de processo penal brasileiro).
O Código de Processo Criminal de Primeira Instância, com viés liberal, oferecia garantias de defesa aos acusados, atribuiu funções importantes aos juízes, previa além dos juízes de direito, juízes de paz que exerciam atribuições policiais e eram eleitos.
Na mesma esteira que o Código Criminal, o Código de Processo Criminal distinguia os procedimentos a serem utilizados para os crimes públicos e para os particulares; os crimes públicos seguindo por ação penal promovida pelo promotor público ou por qualquer cidadão (quando cabível a ação penal popular10), entre eles estavam incluídos os crimes políticos, enquanto os crimes particulares ofereciam a vítima a possibilidade de promover a ação penal – o homicídio era considerado crime particular por ofender a segurança individual.
O Código de Processo Criminal foi alterado em 1841, editada a Lei 261: a reforma subtraiu dos juízes de paz as atribuições de investigar e transferiu aos chefes de Polícia e seus delegados. O aparato policial repressivo foi medida que se fortaleceu de maneira reacionária e centralizadora.
Insatisfeitos, liberais reivindicam tal reforma, resultando em nova alteração legislativa com o advento da lei 2.033, em 1871 que criou o instrumento com “nomen iuris” inquérito policial, nomenclatura ainda utilizada nos dias atuais para documentar as investigações de crime e de autoria realizadas pela Polícia. A atividade de investigação realizada pela autoridade policial no inquérito policial consiste em auxílio à autoridade judiciária ou ao promotor posteriormente, sendo produzida a prova fundamentadora da propositura da ação penal. Com isso, acreditava-se que seria possível a separação entre as funções da polícia e da judicatura.
No ápice da Segunda Guerra Mundial (1839-1945), com o advento da Constituição de 1937, unificando-se a legislação processual penal com a Carta de 1934, surgiu o Código de Processo Penal, Decreto Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941, criado por Getúlio Vargas durante o período do Estado Novo no Brasil e tinha como princípio a culpabilidade, priorizando-se a segurança pública.
Sua redação original reforçava os poderes dos agentes policiais e a ampliação da liberdade probatória do juiz. O interrogatório consistia em meio de prova e não como meio de defesa; ao dar sua versão dos fatos, esta servia como prova contra ele e se o acusado permanecesse em silêncio era considerado culpado. A redação original, entretanto, trouxe características de preceitos fascistas.
A Constituição Federal de 1988, que redemocratizou o país, atribuiu ao Ministério Público a exclusiva titularidade da ação penal pública, instrumento utilizado pelo “parquet” para postular ao Estado aplicação de sanção em virtude da violação do preceito primário do crime, ou seja, diante do cometimento de infração penal. A ação penal tem como finalidade a aplicação da lei, ou seja, é o direito de provocar o poder judiciário para a aplicação do direito posto.
O novo texto constitucional (1988), instituiu um sistema de amplas garantias individuais, enquanto que o Código de Processo Penal pautava-se pelo princípio da culpabilidade e da periculosidade do agente, a começar pela afirmação da situação jurídica de quem ainda não tiver reconhecida a sua responsabilidade penal por sentença condenatória transitado em julgado: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”(art.5º, LIVV, CF).
A nova ordem passou a exigir um novo olhar ao procedimento penal, de que este não fosse mais tratado como mero instrumento da aplicação da lei penal, mas que além disso, se transformasse em instrumento de garantia do indivíduo perante o Estado.
Esse devido processo penal constitucional, visa a uma justiça penal pautada na igualdade efetiva entre os litigantes. Ao Estado deve interessar tanto a absolvição do inocente quanto a condenação do culpado, bem ao Ministério Público, considerado como instituição independente, titular da ação penal pública, deverá defender a ordem jurídica e não simplesmente ter uma função acusatória, atuando com imparcialidade, nos interesses da coletividade, da sociedade.
CAPÍTULO II – Garantismo, em que consiste?
Para melhor entendermos a evolução do pensamento processualista penal, em relação ao direito de punir do Estado, a investigação, acusação e a busca pelo justo, punir o culpado na medida da sua culpabilidade, evitando-se a impunidade, estudaremos neste trabalho duas ideias norteadoras, entre elas, o Modelo Garantista.
O garantismo penal, no Brasil, assumiu uma roupagem de teoria baseada na defesa da impunidade e manobras de abrandamento na punição. Essa ideia, no entanto, é precipitada e não encontra qualquer respaldo na teoria sustentada e estudada por Luigi Ferrajoli. O garantismo penal não deverá ser visto como única solução, ou ainda, como a melhor, mas também não seria prudente ignorá-lo, desprezá-lo.
O modelo garantista clássico, em sua grande parte, consiste no fruto da tradição jurídica do iluminismo, tendo como princípios norteadores a legalidade estrita, a materialidade e a lesividade dos delitos, a responsabilidade pessoal, o contraditório entre as partes e a presunção de inocência.
No século XVIII existiram muitos pensamentos, com características distintas, como as doutrinas dos direitos naturais, das teorias contratualistas, da filosofia racionalista e empirista, das doutrinas políticas da separação dos poderes, do positivismo jurídico, bem como das concepções utilitárias do direito e da pena. No entanto essas concepções não apresentaram propostas exclusivamente liberais, sustentando métodos penais autoritários e antigarantistas, como as da prevenção especial ou as da defesa social, com objetivo de garantir máxima segurança. Como exemplo, temos a Escola Clássica italiana de Cesare de Beccaria e Francesco Carrara.
Na democracia observa-se necessária a implantação de regras prévias e claras quanto a violação da liberdade dos indivíduos e seus direitos fundamentais. A liberdade, principalmente, sempre ocupou posição centralidade, sendo possível sua restrição, violação somente em hipóteses pontuais, previamente previstas, não podendo, ainda, ser por mera deliberação da autoridade, sendo exigida sua fundamentação.
Nesse contexto, o garantismo veio como ideia de reconstrução das regras no âmbito penal, inclusive, Ferrajoli considera direitos e garantias fundamentais como “a lei do mais fraco”, por não haver paridade de condições entre os envolvidos. Mediante regras prévias e claras, é possível controlar em parte esse desnível no funcionamento do sistema penal, para que este não alcance apenas um dos lados, deixando, inclusive aqueles mais fracos e vulneráveis sem sua atenção. Para isso, é necessário limitar os envolvidos, para que se obtenha um resultado democrático, o que, do contrário, será desequilibrado, pendente a lei do mais forte.
Ferrajoli11 tinha como pretensão construir uma “teoria geral do Garantismo”, abordando em sua obra Direito e Razão uma linha de raciocínio. Na base de seu pensamento, o autor identifica três aspectos de uma crise profunda e crescente existente no Direito atual.
A primeira crise é a chamada “crise da legalidade”, consistente no valor vinculante das regras elaboradas pelos titulares dos poderes públicos, as quais expressam ausência ou ineficácia dos instrumentos de controle, tendo como resultado imediato a ilegalidade do poder. Como exemplo dessa situação, encontrada em diversos Estados pelo mundo, podemos mencionar a existência de uma espécie de Estado paralelo que funciona baseado na corrupção estendendo por todas as áreas (política, economia, administração pública etc.).
A segunda crise se instala diante da modificação do papel do Estado e suas estruturas perante a sociedade. Antes o Estado Liberal restringia-se a uma atuação negativa, devendo proteger a individualidade e a liberdade do indivíduo. No Estado de Direito Social exige-se uma atuação positiva, atuante do Estado, resultando um excesso de legislação, provocado pelos mais diversos setores sociais com leis cada vez mais específicas, parecendo meros atos administrativos. Há dificuldade para a consolidação de um sistema de garantias de modo eficiente como as ideias expostas com o liberalismo.
A terceira crise, se dá no cenário em que questões internas como questões militares, envolvendo política monetária e políticas sociais ultrapassam suas fronteiras, dependendo tanto de questões internas como de externas, às vezes até mais das externas, havendo um enfraquecimento do Estado Nacional com o deslocamento da soberania. Em consequência, há também um enfraquecimento do constitucionalismo, devida a falta de suporte teórico em Direito Internacional para disciplinar a inserção desses novos espaços decisórios externos no sistema das fontes de Direito.
No raciocínio de Ferrajoli, o problema se encontra em uma crise de legalidade que essas três crises apresentam, quanto à vinculação de todos às normas legais, podendo ainda, colocar em colapso a própria Democracia, sua ausência ocasiona a ilegalidade do poder e até formas neoabsolutistas de exercício do poder público sem limites e controles, governado por interesses fortes e ocultos, dentro de nossos regulamentos.
Luigi Ferrajoli, em seu livro Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal prevê dez axiomas, os quais se estabelecem como espécie de arquitetura do direito penal democrático, são como vetores de racionalidade para a construção da justificação do direito penal, servindo ainda para sua própria limitação, tendo em vista que para o autor os espaços de poder punitivo que não se fundamentam no território de racionalidade extrapolam os limites democráticos de intervenção penal. O devido processo legal, contraditório, ampla defesa, princípio acusatório são partes dessa estrutura que sustenta o funcionamento do sistema penal, em que o garantismo demonstra como deverão funcionar e o que representam as normas preestabelecidas em relação a uma compreensão democrática do regime das liberdades.
Os dez axiomas apresentados por Ferrajoli12 são: 1) o princípio da retributividade ou da consequencialidade em relação ao delito consubstanciado na regra nulla poena sine crimine, que determina que não deve haver pena sem crime anterior que a justifique; 2) o princípio da legalidade, nos sentidos lato e estrito, expresso na regra nullum crime sine lege, isto é, não há crime sem lei anterior que o defina; 3) o princípio da necessidade ou economia do direito penal, manifestado pelo comando nulla lex (poenalis) sine necessitate e indicativo de que o direito penal constitui a ultima ratio do ordenamento jurídico; 4) o princípio da lesividade ou da ofensividade do evento (nulla necessitas sine injuria), condicionando a atuação do direito penal à existência de lesão ou perigo de lesão a um bem juridicamente tutelado; 5) o princípio da materialidade ou exterioridade da ação (nulla injuria sine actione), que exige a existência de ação ou omissão penalmente relevantes para a repressão da conduta; 6) o princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal (nulla actio sine culpa), ou seja, não há responsabilização sem comprovação de culpa ou dolo; 7) o princípio da judiscionariedade no sentido lato e no sentido estrito (nulla actio sine judicio), designando que não há aplicação de pena senão pela autoridade competente; 8) o princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação (nullum judicio sine acusatione), apresentando-se como expressão do princípio da obrigatoriedade da ação penal; 9) o princípio do ônus da prova ou da verificação (nulla accusatione sine probatione), isto é, a acusação tem o ônus de provar a responsabilidade do acusado que goza do estado de inocência até que o contrário seja provado; e 10) o princípio do contraditório ou da defesa ou da falseabilidade (nulla probatio sine defensione) indicativo do direito que o réu tem de ter ciência da acusação e de sobre ela se manifestar por todos os meios de prova admitidos em direito.
O princípio da jurisdicionalidade no sentido lato e no sentido estrito, princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação, princípio do ônus da prova ou da verificação e princípio do contraditório ou da defesa ou da falseabilidade referem-se ao processo, mais especificamente sobre como e quando julgar.
O princípio da jurisdicionalidade consiste na obrigatoriedade de sujeição à jurisdição; em seu sentido lato pressupõe a ideia de juízo como exigência do direito material, de modo que não haverá pena, crime, lei penal, ofensa, ação e culpa sem que exista um processo. Por sua vez, em sentido estrito, conjuga acusação, prova e defesa ao processo, a sua existência, não sendo possível existir um processo sem esses elementos, demonstrando a importância de um direito processual penal. Nesse contexto, é possível equiparar o princípio da jurisdicionalidade ao princípio do devido processo legal.
O segundo princípio acima citado, princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação, remete-se a necessidade de separação das funções dentro do processo, funções postulatórias e judicantes, para que se possa preservar a imparcialidade da decisão final, não concentrando ambas funções de julgar e acusar em um indivíduo, o que traduz um dos pilares do devido processo legal, a garantia do juiz natural.
Por fim, o princípio do ônus da prova ou da verificação e o princípio do contraditório ou da defesa ou da falseabilidade, intrinsecamente ligados, sendo por meio do processo a possibilidade do acusado exercer seu direito de defesa contra a acusação apresentada em seu desfavor.
A teoria garantista propõe, ainda, basicamente, uma revisão da teoria da validade, apontando a diferença existente entre validade material e validade formal; a superação da perspectiva meramente formal da democracia, sujeição do juiz aos aspectos formais e substanciais da lei e o desenvolvimento de uma visão crítica do Direito.
Ferrajoli apresenta três acepções para o termo garantismo: a primeira acepção tem ele como um modelo normativo de direito com base no princípio da estrita legalidade e inovador ao criar um sistema negativo de proteção do Direito, com o objetivo de obstar o excesso de poder do Estado. A segunda define o garantismo como teoria explicativa dos conceitos de validade, vigência e efetividade da norma jurídica, a partir de seus aspectos formais e materiais, frisando a separação entre o “ser” e o “dever ser”. A terceira, por sua vez, é o garantismo como filosofia política que distingue direito e moral, validade e justiça, o ponto de vista externo e ético-político e o ponto de vista interno ou jurídico na valoração do ordenamento.
Dessa forma, podemos compreender a teoria geral do garantismo como uma teoria fundamentada na proteção da dignidade da pessoa humana e de seus direitos e garantias fundamentais através de instrumentos capazes de limitar o poder estatal. Apresenta-se como consectário da teoria garantista penal que defendia uma posição central da pessoa e um caráter instrumental do Estado, propondo modelo de Estado de Direito em que seria possível medir o grau de legitimidade do Estado. Intimamente ligado ao conceito de dignidade da pessoa humana e demais direitos e garantias fundamentais, bem como a ideia de democracia, o garantismo pretende a proteção desses institutos com a sujeição formal e material das práticas jurídicas (desde a elaboração da norma até sua aplicação e sanção) aos preceitos da Magna Carta, caracterizando-se um Estado de Direito Constitucional, com absoluta compatibilidade entre normas infraconstitucionais e os preceitos constitucionais, com base no respeito à dignidade da pessoa humana.
Os reflexos do Garantismo se fazem presentes na atividade jurisdicional e na hermenêutica. Na atividade jurisdicional é perceptível a mudança do papel exercido pelo juiz dentro do sistema, sendo a jurisdição função que dará ao cidadão a garantia que norma incompatível com o sistema, tanto materialmente, como formalmente, não produzirá efeitos; como consequência, evidenciará a ilegitimidade do poder responsável por colocá-la no sistema, isto porque, nessa nova sistemática, o juiz não estará mais vinculado apenas à lei, devendo obediência cega e estritamente a ela, deverá vincular-se à Constituição, característica própria do Estado Constitucional de Direito, tendo em vista as normas constitucionais espelham os valores fundamentais da sociedade expostos sob o título de direitos fundamentais.
A mudança fundamental que se dá é a alteração da concepção do Estado de Direito com a passagem para um Estado Constitucional de Direito, assim como o Garantismo não mais entendido equivocadamente como simples proteção dos direitos de liberdade em relação ao Estado; assim entendida, remetia-se a uma função jurisdicional típica do liberalismo baseada na separação dos poderes. A concepção moderna de Garantismo representa uma forma de identificar a Democracia constitucional própria do Estado Constitucional de Direito.
CAPÍTULO III – Eficiência no Processo Penal
O princípio da eficiência, consagrado pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo, caput, dispõe que: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte (…)”.
Esse princípio abrange a atividade da Administração Pública direta e indireta de qualquer dos poderes federativos, devendo estes poderes exercer suas atividades com observância aos princípios acima mencionados, atendendo a finalidade da Administração Pública, qual seja, o interesse da coletividade, tendo transparência e concretude em seus atos administrativos.
Diante dos anseios da coletividade, da população, diversas mudanças tanto na legislação constitucional, como na legislação supraconstitucional e infraconstitucional foram realizadas, buscando-se alcançar a eficiência na prestação dos serviços públicos. Como exemplo temos o princípio da duração razoável do processo, como direito fundamental (art. 5º, LXXVIII, da CF), no âmbito do Poder Judiciário, servindo de parâmetro para uma resolução da questão judicializada em tempo oportuno, sendo importante frisar que o prazo em um processo poderá fadá-lo ao seu insucesso, ineficiência ou até mesmo medida além da necessária ao caso, sendo injusta; é um fator determinante às partes, uma vez que direitos, garantias, o bem juridicamente tutelado corre o risco de perecer ou se tornar irrelevante.
Para um processo adequadamente instruído e desenrolado, o princípio da eficiência torna-se um importante alicerce, sendo indispensável ao Estado Democrático e Social, uma vez que este é executor e fomentador da prestação de serviços, visando os interesses essenciais da coletividade.
Os agentes públicos deverão agir com transparência, de forma eficaz, evitando burocracias (o que deu margem a um modelo gerencial), sempre buscando prestar seus serviços com maior qualidade possível, com atenção e prevenção dos desperdícios de recursos e tempo, em busca de maior rendimento, com maior eficiência na gestão da coisa pública. Dessa forma, percebe-se que a eficiência é, ao mesmo tempo, princípio e finalidade, bem como requisito de eficácia dos atos administrativos.
A origem do princípio da eficiência, no Brasil, se deu na reforma administrativa, iniciada em 1995 no primeiro governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, com tendências evidentemente neoliberais. Buscou-se nesse governo a descentralização estatal, com parcerias firmadas com a iniciativa privada, originando as PPP – Parcerias Público-Privadas, criação das agências reguladoras; houve maior atenção a competência e a eficiência da Administração Pública, através da “Administração
Pública Gerencial”, que tinha como foco os servidores públicos e os resultados por eles apresentados, avaliados através da produtividade, recebiam premiações pelo desempenho sob a forma de gratificações inseridas na remuneração.
Dessa forma, é possível dizer que a eficiência da Administração Pública será alcançada quando atendidos os interesses da coletividade, os interesses públicos, sendo as atividades públicas realizadas atendendo-se os critérios de economicidade e utilidade pública, sempre em atenção ao princípio da legalidade.
Conforme entende José Afonso da Silva13: “eficiência não é um conceito jurídico, mas econômico; não qualifica normas; qualifica atividades. Numa ideia muito geral, eficiência significa fazer acontecer com racionalidade, o que implica medir os custos que a satisfação das necessidades públicas importam em relação ao grau de utilidade alcançado. Assim, o princípio da eficiência introduzido no art. 37 da Constituição orienta a atividade administrativa no sentido de conseguir os melhores resultados com os meios escassos de que se dispõe e a menor custo. Portanto, o princípio da eficiência administrativa tem como conteúdo a relação meios e resultados”.
Nesse sentido, eficiência do serviço público, atendendo as necessidades da sociedade, através do desempenho de atividades regulares e qualificadas, configura-se garantia da execução e proteção do princípio, bem como de estarem devidamente adequados os atos estatais à legislação vigente, visando a melhor e mais eficaz solução ao administrado.
Para que se alcance a eficiência no serviço público necessário será necessário o empenho pessoal e esforço máximo dos agentes públicos, garantindo a execução de suas atribuições da melhor maneira. Não obstante, também se percebe necessário que a Administração Pública, em suas diversas funções, seja bem consolidada em estrutura, organização e disciplina, podendo produzir atos processuais com economia, dos quais será exigido o menor desperdício de dinheiro público, com rendimento funcional, perfeição e presteza na execução dos serviços públicos, o que revelará eficiência na gestão, nos atos.
Importante salientar que o princípio da eficiência não significa rapidez no alcance da finalidade, mas para verificação do atendimento do mandamento constitucional, esse princípio deve ser analisado conjuntamente com o princípio da razoabilidade, certificando-se que os meios empregados justificam seus fins, se há adequação. Assim, ao buscar a eficiência não poderá com isso anular ou ignorar outros mandamentos constitucionais, não poderá o princípio da eficiência diminuir o alcance hermenêutico e jurídico de outras normas de igual ou inferior valor. Em respeito ao princípio da eficiência, deve-se respeito aos demais princípios, de igual hierarquia, também previstos no texto constitucional, como o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF), finalidade básica da Administração Pública no Estado Democrático de Direito.
Antônio Scarance Fernandes14 entende que a concepção de eficiência no processo penal dependerá da finalidade que seja atribuída, dessa forma, se a finalidade do processo for pela obtenção de um resultado justo, legitimando-se pela adequação processual, será eficiente aquele que respeitar o devido processo legal, assegurando às partes o exercício de seus direitos, com proteção das garantias constitucionalmente previstas; se a finalidade for assegurar a defesa do acusado, deverão ser assegurados os meios ao acusado para o exercício desse direito, tendo um processo penal eficiente; ou se ainda, a finalidade consistir em permitir aos órgãos de persecução penal a apuração da verdade e a punição dos agentes – exercício do jus puniendi, será devidamente eficiente o processo que através de seus meios, adequados, de acordo com o sistema constitucional, alcançou a verdade e a apuração da autoria e materialidade.
Nesse sentido, importante desfazer dos preconceitos existentes quanto ao processo penal: o primeiro, já comentado no capítulo anterior, garantismo como sinônimo de impunidade; consiste em falácia ao achar que o garantismo apenas pretende proteger as liberdades individuais, os direitos fundamentais, sendo maior peso a apenas um lado, o que seria causa de impunidades. Dessa mesma forma, a segunda falácia consiste em identificar um processo penal como eficaz aquele rápido e que sempre pune, rígido, sem olhar o indivíduo como pessoa de direitos.
Desmistificando esse segundo pensamento, será eficiente o processo penal que possibilitar idênticas oportunidades à acusação e à defesa para defenderem seus interesses, direitos e posições jurídicas, em respeito a paridade das armas, de modo que os julgamentos sejam legitimados devido ao uso de procedimentos adequados. O importante papel de balança na consecução do devido processo penal, conferindo equilíbrio,será sempre o juiz, que ficará responsável pela fiscalização bilateral dos demais sujeitos processuais primários ou principais (acusação e defesa).
O devido processo penal, em um prisma de Estado Democrático e Social de Direito e Estado de Direito Constitucional, será efetivo, ao buscar a paz social com a preservação da dignidade da pessoa humana, princípio este máximo é vetor axiológico-hermenêutico, tanto do direito processual penal, como de todo o ordenamento e ciência jurídica. Assim, conclui-se que, no processo penal, eficácia, efetividade e eficiência possuem íntima e ligação, sendo inclusive confundidas, uma vez que com o devido processo legal deve-se buscar a proteção da dignidade da pessoa humana, visando sua efetividade; ao passo que em obediência ao devido processo legal, o processo terá sua eficácia garantida.
Sendo assim, sinônimo de processo penal efetivo, eficaz e eficiente não é apenas celeridade, visando solução rápida do problema, em desrespeito aos demais preceitos constitucionais e às garantias do acusado (e da acusação). Muito embora a duração razoável do processo e a eficiência tenham uma íntima relação, à eficiência deverá atentar-se para não comprometer conquistas constitucionais inerentes aos direitos individuais aplicáveis ao processo penal com suas medidas, seus meios, sob pena de abalar os fundamentos do devido processo penal.
Para melhor entendermos, o devido processo legal está previsto no artigo 5º, LIV da Constituição Federal de 1988 15 e consiste em garantia individual imposta ao Estado que para perseguir o sujeito, com a finalidade que a infração à lei seja punida, deverá seguir fielmente o procedimento previsto pela própria lei, sem que possa modificá-lo ou abreviá-lo (chamado de due processo of law).
Dessa forma, apenas após um processo penal em que foram garantidos os direitos e garantias individuais do acusado o Estado-juiz poderá impor a ele a sanção previamente cominada em lei, privando-lhe a liberdade ou retirando seus bens patrimoniais.
Além do respeito aos aspectos formais do processo, importante também, para devida observância ao devido processo penal, seu aspecto substancial, ou seja, o procedimento deverá ser justo, garantindo de maneira efetiva o exercício pelo acusado do contraditório e da ampla defesa (chamado de substantive due process of law).
Com o substantive due process of law assegura-se que não será editada norma processual desarrazoada, que piore a situação do acusado, capaz de comprometer o contraditório e a ampla defesa, criando obstáculos insuperáveis à defesa tanto técnica como a autodefesa. Assim, podemos concluir que o processo penal eficiente e devido processo penal são ideias sinônimas, uma vez que seus conceitos possuem elementos comuns a eles.
Outro princípio que também integra a ideia de processo penal eficiente é o princípio da duração razoável do processo; um processo incessante, perpétuo, sem limite temporal pode trazer insegurança jurídica, insegurança social, podendo ainda, ser injusto dada sua demora, sendo desnecessária até mesmo a sanção final, devido o constrangimento e a dor causado por sua demora.
Por outro lado, um processo que tem como obrigação ser rápido demais, poderá colocar em risco a qualidade de seu trabalho, podendo ser tanto injusto, devido aos critérios superficiais estabelecidos, como poderá trazer impunidade, diante de critérios mais rígidos, não haver tempo hábil para uma conclusão e investigação com devida qualidade. Nesse contexto, o Direito Processual Penal necessita de tempo para a efetivação da instrumentalidade, concretude dos direitos e garantias da sociedade, mas deverá ser breve, de forma que não transforme o processo em pena.
A Constituição Federal de 1988, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, acrescentou ao artigo 5º deste códex, o inciso LXXVIII o qual dispõe que: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Essa determinação constitucional é fruto de um direito internacional público, da pós Segunda Guerra Mundial e ainda, pode ser entendido como derivação ao Princípio do Estado de Direito.
Nesse dispositivo temos a duração razoável do processo e a celeridade na tramitação do processo, duas ideias que remetem ao conceito de processo eficiente e de devido processo legal. No entanto, a pergunta que paira é: para um processo ser eficiente, com os meios que garantam sua celeridade e realizado em razoável duração, quanto tempo e como deve ser entendido isso?
Para início de conversa, podemos destacar um grande problema existente em todos os ordenamentos, não só pátrio como do mundo todo: a aceleração do tempo. À medida que o tempo passa, a sociedade simultaneamente busca por respostas imediatas, a sociedade não quer esperar pelo processo e quer a visibilidade de uma imediata punição, fazendo surgir, como Aury Lopes Jr.16 denomina em sua obra, “Estado de Urgência”, sendo consequência natural da incerteza epistemológica. O processo, por sua vez, não acompanha esse ritmo fugaz das informações, indagações e novidades com respostas simultâneas.
Por esse motivo, o Direito Penal e Processual Penal deverão ter tratamento de “última ratio”, devendo ser o último instrumento de punição ao indivíduo, demorando o tempo ideal, razoável para a investigação do ocorrido, implicação de responsabilidade ao verdadeiro ocasionador da ofensa ao bem jurídico, de maneira que isso demore tanto a ponto de configurar-se pena, diante do constrangimento e prejuízo que lhe causou a demora; da mesma forma poderá ser às vítimas e suas famílias, configurando impunidade e injustiça.
Conforme defendem Aury Lopes Jr. e Henrique Badaró17: “(…) no processo penal, o tempo é o verdadeiro significante da punição, não só na pena privativa de liberdade, mas também na prisão cautelar e, principalmente, no simples fato de estar sendo processado”. O processo deve ser concluído em tempo hábil, razoável, evitando-se maior sofrimento tanto à aquele submetido ao processo com sua liberdade e privacidade em constante violação, efeito imediato daquele que é processo, bem como àqueles que esperam uma resposta do ordenamento, do poder estatal diante da violação de um bem jurídico pertencente – para ambos os lados há intenso sofrimento.
Com atenção, destacamos que o Código de Processo Penal de 1941 reflete, na maioria dos seus artigos, a realidade da época, ou seja, incumbia-se ao Direito Penal e Processual Penal a responsabilidade de combater a criminalidade de forma, célere, eficaz e segura, não dando importância e relevância às garantias individuais, tendo em vista que o parâmetro usado era o “homem médio” o qual não se imagina em situação de conflito com o Estado.
Percebe-se que nessa época a concepção de eficiência, de um processo eficiente, era diversa daquela proposta pela Constituição em 1988. A concepção de eficiência do Código de Processo Penal, à época da sua edição, continha três aspectos básicos: eficácia, economia ou otimização e qualidade (satisfatoriedade) na prestação dos serviços públicos. Promulgada a Constituição Federal de 1988, está prevista a “celeridade”, remetendo a ideia de eficiência ou ao menos parte dessa concepção, podendo ser interpretada no sentido de uma prestação jurisdicional devida, sem prejuízos às garantias previstas pelo texto constitucional e realizada com presteza.
A Emenda Constitucional nº 45 de 2004, além trazer ao ordenamento o direito de ser julgado, em um prazo razoável, trouxe também a sanção administrativa para o magistrado que retardar o curso do processo e der causa à demora. No artigo 93, inciso II, alínea “e”, da Constituição Federal de 1988 prevê que: “não será promovido o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal, não podendo devolvê-los ao cartório sem o devido despacho ou decisão”. Prevista, também, sanção aos juízes e promotores de justiça responsáveis pelo retardamento do processo no Código de Processo penal nos artigos 801 e 802; de forma que é possível verificar que os agentes públicos têm a responsabilidade de realizar um trabalho, exercer suas funções públicas, no caso o processo, a investigação, o desenrolar de um fato ilícito com futuro apontamento de autoria e comprovação da materialidade, de maneira que melhor atenda aos interesses da coletividade, condizente com o Estado Democrático de Direito, em que um processo eficiente não é mais sinônimo de celeridade, rapidez e punição a todo custo, mas de celeridade conjugada com respeito à pessoa humana, aos seus preceitos constitucionais mínimos, sendo esta pessoa vítima ou até mesmo o próprio acusado, a balança não deve tombar apenas para um lado.
CAPÍTULO IV – Eficiência e Garantismo na prática atual.
Atualmente é evidente a busca pela eficiência na prestação dos serviços públicos, em especial quanto à atuação do Poder Judiciário, na busca pela Justiça, sem o desamparo dos direitos individuais. Com a edição da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, medidas foram tomadas com o objetivo de tornar a prestação jurisdicional mais célere e eficiente.
Entre as medidas podemos elencar, a título de exemplificação: previsão da atividade jurisdicional como ininterrupta com a vedação de férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau que funcionarão nos dias em que não houver expediente forense em regime de plantão permanente (art. 93, XII, da CF), promoção dos Magistrados por merecimento à aferição de sua produtividade e presteza no exercício da jurisdição, magistrados que não respeitarem os prazos processuais, causando injustificado atraso na conclusão do processo, não serão promovidos (art. 93, II, c, da CF), possibilidade de edição de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal (art. 103-A da CF), previsão de que os processos judiciais e administrativos deverão ter uma razoável duração (art. 5º, LXXVIII, da CF), entre outras.
Sobre a questão, existem posições extremadas e conciliadoras.
Uma primeira corrente defende que as garantias do acusado devem ter total primazia em relação à atividade persecutória estatal, configurando o que tem sido denominado de garantismo hiperbólico monocular18.
Em sentido contrário, entendem pela possibilidade e até necessidade em sacrificar essas garantias em prol da segurança da sociedade, representada pela celeridade e eficiência do processo penal.
Os conciliadores, por sua vez, entendem e defendem ser possível resolver tal questão através do caminho da conciliação, sendo plenamente possível a compatibilização entre os ideais de proteção das garantias do acusado e o desenvolvimento célere e eficiente do processo, conjugando, dessa forma, as duas correntes acima.
Evidente e, como tudo na vida, os extremismos, o excesso nunca foi algo que trouxe bons frutos, seja em qualquer questão da vida, da sociedade, em tudo. Dessa forma, dúvidas não há quanto a necessidade de se alcançar um equilíbrio entre esses dois ideais, seja pelo fato de que seria inconcebível a retomada de um processo do tipo inquisitivo, em que o acusado era mero objeto do processo, não era visto como sujeito de direitos, tendo como seu único direito o de ser processado, tendo em vista que o pensamento que prevalecia nesse sistema era que a justiça que tarda, como justiça, não pode ser reconhecida.
Diante desses argumentos questiona-se quais os reais reflexos que o exercício das garantias fundamentais do acusado tem sobre a eficiência e a celeridade do processo penal? Qual influência o exercício do direito à defesa técnica efetiva, como imperativo de um modelo de processo penal garantístico, exerce na consecução de um processo penal célere e eficiente?
A Lei nº 10.792/2003 instituiu verdadeiro reforço ao direito à defesa, com o fortalecimento do contraditório, de maneira específica e, de modo mais genérico, a ampla defesa. Dentre os institutos disciplinados pela lei estão a execução penal, o interrogatório e o direito à defesa efetiva.
Quanto à execução penal, alterações importantes foram: a necessidade de prévia manifestação do Ministério Público e da defesa, sobre o requerimento de inclusão do preso em regime disciplinar diferenciado (artigo 54, § 2º); exigência de manifestação do membro do Ministério Público e da defesa antes da decisão judicial relativa à progressão de regime prisional, livramento condicional, indulto e comutação de pena.
Em relação ao interrogatório judicial, maior alvo das reformas trazidas pela referida lei, possível notar uma preocupação com o aumento da proteção dos direitos e garantias fundamentais do acusado: direito à defesa técnica (artigo 185 caput, do Código de Processo Penal), direito à entrevista reservada (artigo 185, § 2º, do Código de Processo Penal), direito ao silêncio (artigo 186 do Código de Processo Penal), entre outras medidas; houve ainda, o estímulo ao contraditório entre as partes (direito de repergunta das partes, disposto no artigo 188 do Código de Processo Penal; e, ainda, reforçando um processo penal mais garantista, com maior proteção aos direitos individuais (trazidas pela lei nº 10.792/200) do que o original (de 1941), previu a exigibilidade de defesa técnica efetiva nos termos do parágrafo único, artigo 261 do Código de Processo Penal.
Conforme é possível observar, as medidas trazidas pela lei nº 10.792/2003 destinam-se ao reforço das garantias fundamentais do acusado, o que trouxe inúmeras discussões acerca do perigo em estar dando primazia aos direitos e garantias fundamentais do acusado em detrimento da eficiência e da celeridade do processo penal.
No HC 94.016-1/SP (STF, Relator Celso de Mello), em que se questionava a possibilidade de qualquer dos litisconsortes penais passivos formular perguntas, em sede de interrogatório judicial, aos demais corréus, sobretudo quando as defesas de tais acusados se mostrarem colidentes. O acórdão analisou, ainda, a aplicabilidade da Súmula nº 691 do Supremo Tribunal Federal19.
No curso do interrogatório judicial, o juiz de primeira instância proibiu a realização de reperguntas ao réu interrogado por parte dos defensores dos demais corréus. A defesa dos corréus, diante dessa decisão, entendendo estarem sofrendo cerceamento de defesa, impetraram habeas corpus com pedido de liminar perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) pedindo pela suspensão do processo até o final do julgamento do referido “writ”. A liminar foi indeferida com o fundamento de não ser o réu reconhecido como testemunha, o que não o obriga a responder sequer às perguntas formuladas pelo magistrado, inclusive suscitou o Relator pela aplicação da Súmula nº 691 do Supremo Tribunal Federal.
Manifestando-se sobre a questão, em sede de habeas corpus, o Supremo Tribunal Federal entendeu pela não aplicação da Súmula nº 691, alegando ser afastado o enunciado em hipóteses que a decisão questionada apresenta divergência com a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal ou ainda, em situações configuradoras de abuso de poder ou de manifesta ilegalidade.
Concernente à alegação de cerceamento de defesa, o Supremo Tribunal Federal20, nessa ocasião, acolheu o pedido da defesa fundamentando sua decisão com os seguintes argumentos: a relevância de se qualificar o interrogatório judicial como um expressivo meio de defesa do acusado conduz ao reconhecimento de que a possibilidade de o réu coparticipar, ativamente, do interrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos traduz projeção concretizadora da própria garantia constitucional da plenitude de defesa, cuja integridade há de ser preservada por juízes e
Em complemento a esse pensamento, o Supremo Tribunal Federal21 entendeu ainda, pela anulação do processo, a partir dos interrogatórios judiciais dos demais corréus, “determinando a realização de novos interrogatórios, assegurada, desde já, ao paciente em questão, mediante regular e prévia intimação de seu advogado”, “a oportunidade de participação no interrogatório dos demais corréus”.
Nesse contexto, é inevitável pensar na eficiência e na celeridade do processo penal em desconformidade com a proteção dos direitos fundamentais do acusado. A decisão do Supremo Tribunal Federal mostrou-se acertada ao considerar cerceamento de defesa a proibição de participação ativa dos advogados de corréus em interrogatório judicial. Tanto a Lei nº 10.792/2003 prevê, expressamente, essa possibilidade, como também, realizada uma interpretação conforme a Constituição seria possível concluir no sentido de que a defesa técnica efetiva é essencial em todas as fases do processo.
No entanto, importante destacar que a solução tomada se mostrou desarrazoada. A anulação de todo o processo em razão de ter ocorrido vício em um ato processual não parece ser a decisão mais adequada, sobretudo quando se toma como parâmetro o equilíbrio entre a tutela dos direitos e garantias fundamentais do acusado e a eficiência e efetividade do processo. Constatado o vício, questiona-se se a medida mais razoável não teria sido a repetição do ato viciado, abrindo-se nova oportunidade para sanar o vício, com o aproveitamento de todos os atos praticados regularmente. Importante lembrar que pelo princípio da causalidade ou sequencialidade, a nulidade de um ato poderá implicar também a nulidade dos atos que o sucedem, desde exista uma relação de acessoriedade, dependência de um ato ao outro. Para a aplicação desse princípio, importante se revela verificar se o ato atingido pela nulidade estendeu seus vícios aos atos subsequentes, devendo o juiz ou até mesmo o tribunal que declarou pela ineficácia do ato nulo determinar expressamente os demais atos que deverão ser renovados ou retificados, delimitando a extensão dos efeitos da decretação da nulidade.
No caso em comento, não foi aplicada tal prudência; o Supremo Tribunal Federal, apenas estendeu os efeitos da nulidade levada a efeito no interrogatório judicial para o restante do processo, sem ao menos elencar os efeitos desse vício para os demais atos processuais. Decisões precipitadas, com fundamentação insuficiente ou até mesmo inexistente, sem ainda a devida prudência a prática, o efetivo desenrolar do instrumento, levando em consideração apenas uma das garantias constitucionais, trazem atualmente na sociedade a falsa percepção que o exercício dos direitos e garantias fundamentais do acusado, em especial o exercício do direito à defesa técnica efetiva, é o maior responsável pela demora no curso do processo penal.
Importante ressaltar que, a exemplo desse julgado queremos demonstrar a possibilidade da compatibilidade entre eficiência e garantismo no processo penal vigente, uma vez que, como no caso exposto, deverá o magistrado proteger os direitos e garantias constitucionais, fundamentais do indivíduo, inclusive proporcionando a ele possibilidade de se defender da acusação que lhe é direcionada, observada a ampla defesa e o contraditório; concomitantemente deverá o magistrado ser guardião da ordem e da paz social, sempre em busca da justiça e evitando a impunidade. É importante que o magistrado tenha claro que não se trata apenas de perseguição ao infrator, mostrando que o sistema é efetivo, como no Direito Penal do Inimigo, pautado apenas na confiança do cidadão na norma e também não deverá ser hipergarantismo, de modo a enfraquecer o instrumento de persecução penal, a ponto de gerar o sentimento de impunidade e ineficiência pela sociedade, o que causaria o desejo de justiça com as próprias mãos.
Além dessa problemática, importante ressaltar que a razoável duração de um processo no Brasil está intrinsecamente associada à realidade do nosso sistema judicial, caracterizado por pilhas de processos, aumentadas diariamente não só pela ausência de efetividade, como também pelas más condições de trabalho típicas, sobretudo, das menores e mais afastadas comarcas brasileiras, tudo isso ainda, devido a tradicional burocracia e da falência dos serviços públicos no Brasil, não sendo apenas um princípio, ainda que constitucional, suficiente para sanar todas as mazelas existentes em nosso Poder Judiciário.
Essa questão, do equilíbrio entre um processo célere e a proteção das garantias do acusado, é muito discutida pelo Supremo Tribunal Federal, outra situação que podemos mencionar, o tribunal superior concluiu em julgamento de questão de ordem em recurso extraordinário, que se discutia o alcance da suspensão processual prevista pelo art. 1.035, § 5º, do Código de Processo Civil/201522 e os seus efeitos sobre os processos penais cuja matéria tenha sido objeto de repercussão geral reconhecida pela Corte. Questionava-se a possibilidade de suspensão do prazo prescricional da pretensão punitiva de crimes ou contravenções penais objeto das ações penais, enquanto não julgado o recurso extraordinário paradigma.
Alegou que a interpretação conforme a Constituição Federal do artigo 116, inciso I, do Código Penal 23 se funda nos preceitos da unidade e da concordância prática das normas constitucionais. Percebe-se que a legislação ao prever a suspensão dos processos sem instituir, simultaneamente, também a suspensão dos prazos prescricionais, pode, com isso, criar o risco de fundar um sistema processual que enfraquece a eficácia normativa e a aplicabilidade imediata de princípios constitucionais.
Além disso, o sobrestamento de processo criminal, sem a possibilidade de suspensão do prazo prescricional, por falta de previsão legal, impede o exercício da pretensão punitiva pelo membro do Ministério Público, o que poderá gerar certo desequilíbrio entre as partes, ferindo a prerrogativa institucional desse membro, bem como o postulado da paridade de armas, violando os princípios do contraditório e do devido processo legal.
Afirmou, ainda, que o princípio da proporcionalidade opera tanto na esfera de proteção contra excessos estatais quanto na proibição de proteção deficiente. Dessa forma, o sobrestamento de processos penais determinado em razão da adoção da sistemática da repercussão geral não abrangerá inquéritos policiais ou procedimentos investigatórios conduzidos pelo Ministério Público. O § 5º do artigo 1.035 do CPC prevê apenas a possibilidade de suspensão dos processos pendentes que versarem sobre a questão debatida e tramitarem no território nacional, não ostentando os mencionados expedientes de investigação a natureza jurídica de processo, mas sim de procedimento.
Inclusive salientou que o sobrestamento de processos penais determinado em razão da adoção da sistemática da repercussão geral não deverá abranger ações penais em que haja réu preso provisoriamente, isto porque mostra-se inadmissível, sob pena de ampliação injustificada do período de restrição do direito de liberdade do acusado, que a segregação processual perdura enquanto estiver suspenso o curso da marcha processual e do prazo prescricional concernente às infrações penais cogitadas.
Outra medida apontada como possível, em qualquer caso de sobrestamento de ação penal determinado com fundamento no artigo 1.035, § 5º, do Código de Processo Civil, o juízo originário, em aplicação analógica do disposto no artigo 92, “caput”, do Código de Processo Penal24, poderá autorizar, no curso da suspensão, a produção de provas de natureza urgente.
Nesse entendimento, foram vencidos os votos dos ministros Edson Fachin e Marco Aurélio. O ministro Edson Fachin rejeitou a questão de ordem por entender ser necessária lei em sentido formal para que o fenômeno da suspensão seja reconhecido como causa interruptiva da prescrição.
Por sua vez, o ministro Marco Aurélio entendeu pela inconstitucionalidade do artigo 1.035, § 5º, do Código de Processo Civil por afrontar o artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal25 (acesso à justiça). Além disso, reputou não ser o referido dispositivo aplicável ao processo-crime por serem incompatíveis, devendo levar em conta o disposto no artigo 3º do Código de Processo Penal26.
Outro exemplo de como nossos tribunais tem entendido em relação a proteção das garantias fundamentais do acusado em equilíbrio com a eficácia de um processo penal, em 2018 a 2ª turma do STF acolheu o pedido feito em Habeas Corpus coletivo, HC 143641 / SP, impetrado em favor de todas as presas provisórias do país que sejam gestantes ou mães de crianças e deficientes sob sua guarda, garantindo com essa decisão, a Corte, a conversão da prisão provisória em domiciliar.
Como argumentos o Relator, o Ministro Ricardo Lewandowski alegou que o Estado brasileiro não é capaz de garantir estrutura mínima de cuidado pré-natal e para maternidade às mulheres que sequer estão presas, “nós estamos transferindo a pena da mãe para a criança, inocente. Me lembro da sentença de Tiradentes, as penas passaram a seus descendentes“.
O Ministro ainda narrou uma série de situações que as mulheres presas provisoriamente cotidianamente enfrentam, como partos em solitária sem nenhuma assistência médica ou parturiente algemada, a completa ausência de cuidado pré-natal, com transmissão de doenças aos filhos, falta de escolta para levar a gestante a consultas médicas, abusos no ambiente hospitalar: “A manutenção de crianças em celas. Brasileirinhos em celas! Tudo de forma absolutamente incompatíveis com os avanços civilizatórios que se espera tenham sido concretizados no século XXI“.
Em outros trechos do voto do ministro: “Há um descumprimento sistemático de regras constitucionais, convencionais e legais referentes aos direitos das presas e de seus filhos. Por isso, não restam dúvidas de que “cabe ao Tribunal exercer função típica de racionalizar a concretização da ordem jurídico-penal de modo a minimizar o quadro de violações a direitos humanos que vem se evidenciando, na linha do que já se decidiu na ADPF 347, bem assim em respeito aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no plano internacional relativos à proteção dos direitos humanos e às recomendações que foram feitas ao País.”
Conforme o ministro, para evitar a arbitrariedade judicial e a sistemática de supressão de direitos, a melhor saída consiste em conceder a ordem, estabelecendo alguns parâmetros a serem observados, não havendo maiores dificuldades, pelos juízes.
Nesse sentido, Lewandowski concedeu a ordem para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar, sem prejuízo da aplicação concomitantemente das medidas diversas da prisão, previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal, de modo que, todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças (conceito do artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente) sob sua guarda, relacionadas neste processo pelo Departamento Penitenciário Nacional e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionais, que deverão ser justificadas, devidamente fundamentadas pelos juízes entenderem por denegar o benefício, caso contrário deverá ser comunicada à Suprema Corte.
Explicou ainda que não se trata de “salvo-conduto perpétuo”; a ordem foi assim concedida, de ofício, estendendo a todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional. O ministro José Antônio Dias Toffoli, na ocasião desse julgamento, acompanhou o relator pela concessão da ordem, concedendo, inclusive, a ordem de ofício para as demais situações no território nacional.
O ministro Gilmar Mendes também seguiu o relator, sugerindo que fosse incluído o benefício às mães que têm sob seus cuidados filhos maiores de 12 anos com alguma deficiência.
Celso de Mello categoricamente afirmou que o voto do relator entrará para os anais da história da Corte: “É um voto brilhante e histórico porque vai representar um marco significativo na evolução do tratamento que esta Corte tem dispensado aos direitos fundamentais das pessoas. Este processo trata de um gravíssimo drama humano.”
Vencido o voto do ministro Edson Fachin, defendeu não ser possível reconhecer o pedido do Habeas Corpus, pois “a forma de avaliar o melhor interesse não é uma medida que comporta avaliação geral e abstrata. Apenas caso a caso o melhor interesse da criança pode ser avaliado”, e reconhecendo apenas a ordem quanto a adequada interpretação condicionante a substituição da prisão preventiva por domiciliar analisando caso a caso.
Outra hipótese ainda, de relevância elencar, o julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade 43 e 44 em que o Supremo Tribunal Federal admitiu a execução provisória da pena, tendo como um dos pedidos da ação a modulação dos efeitos da decisão para que fosse permitida essa forma de execução.
Para os requerentes, o fato do Supremo modificar a orientação anteriormente adotada – vedada prisão decorrente de condenação não transitada em julgado – o que entendiam retroagir o entendimento aos fatos cometidos antes de proferida a decisão, o que infringiria os princípios da segurança jurídica, da boa-fé e da confiança dos jurisdicionados, além do desrespeito com o preceito constitucional da irretroatividade da lei penal, o que neste ponto a jurisprudência penal mais grave deve obediência à limitação temporal imposta pela lei penal.
A pretensão não foi atendida pelo tribunal, considerando-se que não se trata de norma penal, mas sim de norma processual penal, de forma que sujeita a incidência imediata de acordo com o princípio elencado no artigo 2º do Código de Processo Penal27 tempus regit actum.
Ademais, não entendeu se tratar de decisão contrária ao princípio da segurança jurídica, nem à boa-fé, ou ainda a confiança dos jurisdicionados, por se tratar de julgamento em que o tribunal modificar o entendimento a respeito de direito material, sobre atos praticados pelos jurisdicionados, passando a considerar ilícito o que antes havia concluído ser lícito. Fora julgada a admissibilidade de, finda as instâncias ordinárias, poderia iniciar, imediatamente, o cumprimento da pena.
Considerar que a retroatividade da decisão caracterizaria quebra da segurança jurídica ou contrariedade da boa-fé conduz a três possíveis absurdos: o primeiro, de não poder ser modificada a perspectiva de alguém que cometesse um crime apostando que poderia permanecer impune indefinidamente; o segundo, de considerar titular de boa-fé um criminoso que aposta na ineficiência do sistema penal; e, por fim, o terceiro, de considerar que a segurança jurídica pode se prestar a guarnecer manobras como essa.
O Ministro Luís Roberto Barroso frisou ainda que “a modulação dos efeitos temporais de uma decisão do STF pressupõe a ponderação entre o dispositivo constitucional violado e os valores segurança jurídica, proteção da confiança legítima e da boa-fé do administrado. Não há como sustentar, contudo, que a segurança jurídica dos réus foi violada porque, se tivessem sabido que seriam presos após decisão de segundo grau, não teriam cometido seus ilícitos ou teriam se defendido no processo de forma diversa. Tampouco se pode afirmar que a afronta a esses princípios estaria no fato de que o réu tinha depositado sua confiança na inefetividade do sistema penal à época em que escolheu se apropriar do dinheiro público, matar, roubar ou e que, portanto, tem direito a que tal sistema permaneça inefetivo”.
Esses foram alguns casos, dentre muitos outros, em que o Poder Judiciário tem que ponderar valores para se obter um processo justo, com celeridade e proteção à pessoa; processo que traga segurança e paz social na mesma medida que traz segurança jurídica, segurança à sociedade tanto que seus direitos e garantias não serão violados nem pelo próprio sistema processual, nem por seus semelhantes.
Possível ainda perceber que a Suprema Corte não possui entendimento consolidado e evidentemente apenas para um lado, mais eficiência, no sentido de celeridade ou mais garantistas, no sentido de proteção dos direitos fundamentais, mas sim, busca pelo equilíbrio na maioria das vezes, tentando a todo tempo acompanhar as mudanças sociais não tomando devido cuidado para que as conquistas de muitos anos não sejam perdidas por suas decisões e de seus colegas.
A título de curiosidade, de acordo com o Ministério da Justiça, os principais problemas enfrentados pelo Poder Judiciário brasileiro são os números excessivos de processos (só em 2012, segundo o relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, havia 92 milhões de processos tramitando em território nacional, o que daria, aproximadamente, um processo por dois habitantes), a morosidade do sistema e a falta de acesso à Justiça, sobretudo pelas camadas mais baixas da população. O Atlas de Acesso à Justiça, organizado pelo Ministério da Justiça, demonstrou que em 2014 havia no Brasil 17 mil magistrados, 12,5 mil integrantes do Ministério Público, 774 mil advogados, 700 mil servidores do Judiciário e apenas 6 mil defensores públicos.
Durante audiência pública para debater a eficiência do primeiro grau de jurisdição, organizada pelo CNJ, foi possível concluir tal situação, revelando uma imensa disparidade de números, mormente quando se trata da Defensoria Pública, órgão destinado à defesa dos direitos daqueles que não dispõem de recursos financeiros para custear os serviços de um advogado.
No âmbito do processo penal, a tão almejada celeridade por muitas vezes se depara em uma situação extremamente paradoxal, em que o réu, pessoa pobre, marginalizada e excluída da sociedade, percebe-se que o processo tem um desenrolar tecnicamente rápido, para punir o indivíduo que com uma arma em punho subtraiu algum bem material, patrimonial. No entanto, deparamos com situações em que poderosos empresários, políticos corruptos, configurando-se com réus, acusados de superfaturar obras e desviar milhões dos cofres públicos, na maioria das vezes percebemos que o processo se arrasta com os passos lentos típicos dos acordos de interesses, reforçados por uma infindável avalanche de recursos nos Tribunais e muitas vezes alcançadas regalias que sequer foram aplicadas em momento anterior aos menos desfavorecidos.
Vale lembrar que no sistema judicial brasileiro um processo demora, em média, 10 anos, o que definitivamente não é um tempo razoável. Porém, o que se percebe é que no Brasil, na maioria das vezes, o processo é findo rapidamente dependendo da existência do interesse de alguém, seja para condenar ou para absolver.
CAPÍTULO V – Execução Provisória da Pena
No julgamento do habeas corpus 84.078/MG, o Supremo Tribunal Federal entendeu pela impossibilidade da execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, admitindo o encarceramento apenas se verificada a necessidade de que isso ocorresse em razão de prisão cautelar (prisão preventiva). Nessa decisão, entendeu o tribunal que, para além do princípio da presunção de inocência, “A ampla defesa, não se pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso, a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão”.
Na ocasião do habeas corpus 126.292/SP a Suprema Corte mudou seu posicionamento, que veio a ser ratificado, posteriormente, em 2016 no julgamento das Ações Diretas de Constitucionalidade 43 e 44.
No Habeas Corpus 126.292, modificando orientação antes firmada, o STF considerou possível o início da execução da pena após o recurso de segundo grau. Com esse novo entendimento, considerou-se que a prisão após a apreciação de recurso pela segunda instância não desobedece a postulados constitucionais, nem mesmo ao da presunção de inocência, isto porque, nessa fase processual, o agente teve plena oportunidade de se defender por meio do devido processo legal desde a primeira instância.
Sendo julgada a apelação e estabelecida a condenação (situação que gera inclusive a suspensão dos direitos políticos em virtude das disposições da Lei Complementar nº 135/2010), encontra-se exaurida a possibilidade de discutir matérias de fato e a prova, tendo inclusive a inversão da presunção.
Não é possível, após o pronunciamento do órgão colegiado, que o princípio da presunção de inocência seja utilizado como instrumento para obstar indefinidamente a execução penal. Ressalta-se, ainda, que eventual vício ou entendimento equivocado na decisão de segunda instância poderá ser perfeitamente corrigido por meio de medidas cautelares e até mesmo pelo próprio habeas corpus, expedientes aptos a fazer cessar eventual constrangimento ilegal.
O tema voltou à pauta do tribunal por meio das ADC 43 e 44, nas quais se pretendia a declaração de constitucionalidade do art. 283 do CPP, segundo o qual “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Pretendia-se, com isso, evitar os efeitos da decisão tomada no habeas corpus já citado, ou seja, que a prisão se tornasse possível após o julgamento de recursos em segunda instância.
O voto condutor da maioria foi do ministro Edson Fachin, que sustentou que a Constituição Federal não tem o condão de outorgar uma terceira ou quarta chance para a revisão de uma decisão com a qual o réu não se conforma e considera injusta. Para o ministro, o acesso individual às instâncias extraordinárias visa propiciar ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça o papel de uniformizadores da interpretação das normas constitucionais e do direito infraconstitucional.
O STF ainda, conferiu ao artigo 283 do Código de Processo Penal28 interpretação conforme para afastar a que entendia que o dispositivo legal obstaria o início da execução da pena, assim que esgotadas as instâncias ordinárias.
Outro argumento contra a execução provisória era de que sem o trânsito em julgado a execução da pena infringir o disposto no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal de 198829, contrariando postulados de direito penal garantista. A Corte entendeu ainda, nessa ocasião que, a presunção de inocência tem sentido dinâmico, modificando-se conforme se avança a marcha processual. Dessa forma, se no início do processo a presunção pende efetivamente para a inocência, uma vez proferido julgamento em recurso de segunda instância essa presunção passa a ser de não culpa, pois, nessa altura, encerrou-se a análise de questões fáticas e probatórias. Dessa forma, se considerado pelo tribunal (TJ/TRF) que tenham sido bem provados o fato e suas circunstâncias, os recursos constitucionais não abordarão esses aspectos, pois estarão subordinados aos limites que lhe são impostos constitucional e legalmente.
Além disso, deve-se refletir a respeito do conceito de trânsito em julgado no processo penal, que o Código de Processo Penal não estabelece expressamente seu conteúdo e que não poderia ser tomado de empréstimo pelo Código de Processo Civil, por não parecer compatível.
O conceito de trânsito em julgado no processo penal não está relacionado ao esgotamento de todos os recursos, mas ao esgotamento da análise fática e probatória, como também podemos observar em outros países igualmente democráticos e que possuem cortes constitucionais, sendo seus recursos dotados de efeitos rescisórios e nos quais é inconcebível que um condenado em segunda instância aguarde o pronunciamento de cortes superiores para então começar a cumprir sua pena.
Obstar a execução imediata da pena, fazendo obrigatório o esgotamento dos recursos ordinários e os constitucionais impõe diversos efeitos deletérios, entre eles, a incentivo a seletividade penal, pois, diante da realidade social vivida no Brasil, é perceptível que não são todos que dispõem de condições financeiras para suportar os custos de um processo até tribunais superiores; haveria incentivo a proliferação de recursos especiais e extraordinários com intuito meramente protelatório, que afundariam os tribunais superiores e que na maior parte das vezes não surtiam nenhum efeito a não ser mesmo adiar a execução da pena; agravamento do descrédito que a sociedade nutre pelo sistema penal, pois veem-se réus autores de crimes muitas vezes gravíssimos permanecerem soltos por anos e anos, estendendo demasiadamente o lapso entre a prática do crime e o cumprimento da pena.
Não há, portanto, ofensa a princípios garantistas, que, aliás, não veiculam apenas proibições de intervenção excessiva, mas expressam também postulados de proteção para que se evite a insuficiência da tutela de bens jurídicos, exatamente o que se verifica no adiamento indefinido do cumprimento da pena por agentes que sofreram condenação cujo mérito não poderá mais ser modificado. Noutras palavras: garantismo não pode ser sinônimo de excessos, nem ocasionando a impunidade, nem insegurança social.
Mesmo diante de tal decisão e tais argumentos, o TJ/PR, em duas recentes decisões, no habeas corpus 1.645.500 e habeas corpus 1.661.123, não seguiu o recente entendimento do Supremo Tribunal Federal e relativizou a possibilidade de execução provisória da pena após decisão de 2º grau.
Nos casos analisados por esse tribunal paranaense, a sentença condenatória previa expressamente a condição do trânsito em julgado para o início do cumprimento da pena; dessa forma, na hipótese da sentença condenatória determinar a expedição de mandado de prisão e guia de recolhimento para a execução da pena após o trânsito em julgado do processo e que, sendo possível recurso aos Tribunais Superiores, será inviável a execução provisória, sob pena de constrangimento ilegal.
Em 2011, no Recurso Extraordinário com Agravo 964.246, em plenário virtual, por maioria, os ministros reafirmaram a jurisprudência no sentido de que é possível a execução provisória do acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, mesmo que estejam pendentes recursos aos tribunais superiores.
Como a decisão ocorreu em recurso com repercussão geral reconhecida, a tese definida pelo Supremo passaria a ser aplicada nos processos em curso nas demais instâncias. Nesse julgamento, com relatoria de Teori Zavascki, ficaram vencidos os ministros José Antônio Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello. A ministra Rosa Weber não se manifestou.
O Ministro Teori defendeu que, a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não-culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual.
No entanto, apesar da orientação para as demais instâncias, a própria Corte passou a conceder habeas corpus contra a execução antecipada da pena. Ocorre que, o entendimento dos ministros se modificou, no sentido que, Teori Zavascki, que entendia pela prisão após condenação em segunda instância, foi substituído pelo ministro Alexandre de Moraes, que votou no mesmo sentido. Entretanto, o ministro Gilmar Mendes apresentou novo entendimento acerca do tema.
Atualmente, em caso emblemático o Supremo Tribunal Federal rejeitou por 6 votos a 5 o pedido de habeas corpus preventivo da defesa autorizando a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva; nesse julgamento ponderou-se a efetividade (quanto ao número excessivo de recursos e manobras utilizadas pela defesa, podendo ocorrer a prescrição como o que ocorre costumeiramente em casos de condenados que podem arcar com os custos de um sistema processual penal recursal – princípio da igualdade e da celeridade) e o garantismo (princípio da presunção de inocência).
O relator do caso, ministro Edson Fachin, foi o primeiro a votar. Em seu voto entendeu pela denegação da ordem do habeas corpus preventivo solicitado pela defesa de Lula que pedia pela impossibilidade, até o esgotamento dos recursos em todas as instâncias da Justiça, da prisão do ex-presidente, condenado em janeiro a 12 anos e 1 mês de reclusão pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), de segunda instância.
Fachin argumentou ainda, dizendo que o Supremo Tribunal Federal deveria avaliar se a decisão do Superior Tribunal de Justiça, que, em março, negou um primeiro pedido do petista para evitar a prisão, configurava ato com ilegalidade ou abuso de poder. Entendeu que não, já que a decisão se baseou no entendimento, até o momento majoritário no próprio Supremo, que permite a execução da pena de prisão após a condenação em segunda instância: “O STJ, ao chancelar a determinação emanada do TRF-4 se limitou a proferir decisão compatível com a jurisprudência desta Suprema Corte e. por expressa imposição legal, deve manter-se íntegra e estável e coerente”.
O ministro ainda não descartou a possibilidade de eventual mudança no atual entendimento do Supremo, adotado desde 2016, que entende pela possibilidade da prisão após a condenação em segunda instância; entretanto, até que essa mudança venha a ocorrer, o atual entendimento deve ser respeitado: “Ressalto que, em meu ver, até tal ocorrência, não é cabível reputar como ilegal ou abusivo um pronunciamento jurisdicional que se coadune com o entendimento até então prevalente”
Por sua vez, o ministro Gilmar Mendes, votou favoravelmente ao pedido de habeas corpus preventivo, defendendo que a pena deverá ser cumprida após a confirmação da condenação em “terceira instância”, ou seja, no Superior Tribunal de Justiça e não após decisão de segunda instância.
Em 2016, em julgamento sobre o tema, Gilmar Mendes votou entendendo pela possibilidade da prisão após decisão de segunda instância. Explicou ter mudado seu entendimento tendo em vista tal posição ter sido adotada de forma automática independentemente da natureza do crime, de sua gravidade ou do quantum da pena a ser cumprida, acrescentou ainda que: “Sempre dissemos que a prisão seria possibilidade jurídica, não obrigação”.
A título de exemplo, o ministro citou alguns casos de pessoas presas após a segunda instância, mas que posteriormente foram soltos por absolvição ou prescrição do processo nas instâncias superiores. “Os réus cumpriram penas indevidamente e foram presas ilegalmente”.
Gilmar Mendes, acrescentou ainda que o atual entendimento resultou “numa brutal injustiça, num sistema que por si é injusto”, “As prisões automáticas, elas empoderam um estamento que já está por demais empoderado, o estamento dos delegados, dos promotores, dos juízes”.
Em entendimento contrário ao pedido da defesa de Lula, o ministro Alexandre de Moraes acompanhou o voto de Edson Fachin, argumentando não ver ilegalidade ou abuso na decisão do Superior Tribunal de Justiça que entendeu pela prisão após a condenação de segunda instância, em respeito e baseando-se no entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal.
Assim disse o Ministro: “Esse ato foi baseado integralmente no posicionamento atual, majoritário, desta Suprema Corte. Mais que isso, nesses quase 30 anos de Constituição, há um posicionamento tradicional desta Corte”.
Acrescentou que a declaração é referência ao fato de que a prisão após segunda instância foi permitida pela Corte Suprema durante 23 anos desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, vindo a ser proibida no período que compreende os anos de 2009 e 2016. Ainda segundo o ministro, dos 34 ministros que passaram pelo Supremo Tribunal Federal desde 1988, 24 (71%) foram favoráveis à prisão após segunda instância.
Informou ainda em seu voto que, nos sete anos em que o Supremo Tribunal Federal impediu a execução provisória da pena, não houve aumento exponencial no sistema prisional no país, pelo fato de 41% do total de quase 710 mil presos serem provisórios, encarcerados antes de uma condenação.
Nas palavras do ministro: “Não houve perda em relação ao sistema penitenciário, mas houve vantagens, houve uma grande alteração no sistema de combate à corrupção” – isto devido à falta de punição dos condenados, em razão da demora no processo até o trânsito em julgado, o que leva muitos casos à prescrição, com a consequente extinção da punibilidade.
Rechaçou ainda o argumento quanto à insegurança de uma decisão de primeiro e segundo grau; o que, não se pode presumir que os juízes de primeira e segunda instância cometeram erros, a fim de impedir a execução da pena após a condenação. Ressaltou que é nesses tribunais que se conclui a análise sobre as provas e fatos no processo, tendo, inclusive, esses magistrados o contato direito com o corpo probatório.
O voto do Ministro Luís Roberto Barroso, favorável pela possibilidade da execução da pena após decisão de segundo grau, criticou a demora no processo penal do Brasil, que leva muitos casos à prescrição e, com isso, à impunidade: “Se tornou muitíssimo mais fácil prender um menino com 100 gramas de maconha do que prender um agente público ou um agente privado que desviou 10, 20, 50 milhões.
Esta é a realidade do sistema penal brasileiro: ele é feito para prender menino pobre e não consegue prender essas pessoas que desviam por corrupção e outros delitos milhões de dinheiros, que matam as pessoas”.
Também negou sua intenção em adotar uma posição punitivista, mas defendeu o devido processo legal, afirmando não se tratar de algo eterno, que não tem fim e o garantismo não significa impunidade, que ninguém nunca será punido, não importando o que tenha feito.
Ainda trouxe um dado muito importante em seu voto, informando que, entre 2009 e 2016, de 25.707 recursos contra condenações apresentados ao Supremo Tribunal Federal, somente 9 (0,035%) resultaram em absolvição do condenado. No Superior Tribunal de Justiça, de 68.944 recursos contra condenações, somente 1,64% resultaram em absolvição ou saída do regime fechado.
Por fim, Rosa Weber, reforçou o argumento do Ministro Edson Fachin, dizendo que não teria como considerar ilegal a decisão do Superior Tribunal de Justiça, que negou um primeiro pedido de Lula para evitar a prisão, por ter seguido entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal, sobre a possibilidade de iniciar o cumprimento da pena após condenação em segunda instância: “Não tenho como reputar ilegal, abusivo ou teratológico acórdão que, forte nessa compreensão do STF, rejeita a ordem de HC, independentemente da minha posição pessoal quanto ao tema de fundo”. Defendeu, ainda, em seu voto a importância da coerência das decisões judiciais e do respeito às deliberações coletivas de um tribunal colegiado; o entendimento de uma Corte constitucional não pode passar por “rupturas bruscas”. Em 2016, por maioria de 6 votos a 5, o plenário do Supremo Tribunal Federal permitiu a prisão após condenação em segunda instância. Desde então, explicou Rosa Weber que, muito embora tenha ficado vencida por votar contra, Rosa Weber tem decidido individualmente em favor da execução provisória, em respeito à decisão do colegiado: “A colegialidade como método decisório, pelo qual o decidir se dá em conjunto, impõe aos integrantes do grupo procedimento decisório distinto daquele a que submetido o juiz singular. Por funcionar como colegiado, a decisão não se detém no raciocínio de um único juiz. […] Vozes individuais vão cedendo em favor de uma voz institucional”.
O ministro Luiz Fux, também entendeu em desfavor do pedido da defesa. Justificou seu voto dizendo que o princípio da presunção de inocência perde sua força quando se prova a culpa da pessoa numa condenação na Justiça: “A presunção de inocência, ela cessa a partir do momento em que, através de decisão judicial, se considera o paciente culpado. Um acordão condenatório, que não é ilegal, que não é injusto, assenta de forma inequívoca a culpa do réu”.
Também seguiu a posição do relator, Edson Fachin, de que a decisão do Superior Tribunal de Justiça que negou o pedido de liberdade de Lula, e contestado pela defesa, não incorreu em qualquer ilegalidade: “Ilegalidade não se revelou e injustiça também não, porque seguiu o entendimento do STF. A jurisprudência do tribunal tem que ser íntegra, estável. Não mudou o direito, não houve nada de novo”.
De acordo com o ministro, a regra constitucional que dispõe que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória não se refere à prisão: “Esse dispositivo, ele não tem nada a ver com a prisão, absolutamente nada a ver com a prisão. Na Constituição Federal, ela trata dos direitos e garantias da prisão. Esse dispositivo não tem a menor vinculação com a execução provisória de segunda instância”.
Asseverou em seu voto que a interpretação literal dessa parte da Constituição pode levar à insatisfação das pessoas com o sistema de Justiça: “Levadas às últimas consequências, essa regra e essa interpretação literal, ela só tem um resultado: levar o Judiciário a níveis alarmantes de insatisfação perante os destinatários das nossas decisões”.
Em relação à decisão tomada pela Corte em 2016 que permitiu que a prisão após segunda instância tenha “legitimidade democrática”, por corresponder à aprovação da sociedade: “O Supremo fixou tese jurídica de que presunção de inocência não inibe a execução provisória da pena. Essa interpretação passou a ser aplicada em todo o território nacional, como também passou a usufruir de legitimidade democrática das decisões judiciais”.
Ainda completou alegando que quando temos em pauta questões morais, razões de ordem pública, torna-se necessário saber o que a sociedade pensa a respeito – a ideia do magistrado sempre em comunicação com a sociedade, por também ser parte desta.
O ministro José Antônio Dias Toffoli, adotando a mesma solução proposta por Gilmar Mendes, sendo favorável ao pedido da defesa, entende que a prisão somente poderá ser permitida após confirmação da condenação pelo Superior Tribunal de Justiça.
Dessa forma, a pena apenas poderia ser cumprida após o trânsito em julgado, o que, para o ministro, compreende o esgotamento de todos os recursos possíveis nas quatro instâncias da Justiça.
Reconheceu, entretanto, que como essa fase pode demorar muito para chegar e que os recursos a própria Corte não são possíveis para todos os condenados, a execução deveria aguardar a decisão do Superior Tribunal de Justiça: “O STJ não é somente aquele que uniformiza a legislação federal, mas a jurisprudência dos tribunais de justiça e dos tribunais regionais federais”.
Exemplificou, ainda, hipótese em que a pena poderia ser cumprida de imediato somente: em condenação proferida por tribunal de júri (em que um grupo de pessoas escolhidas dentre a população decide considerar, diante dos fatos e provas, alguém culpado).
O ministro defendeu que o caso em comento não deveria, necessariamente, seguir o entendimento firmado em 2016: “Entendo que não há vinculação deste plenário nem a efeito vinculante nem a repercussão geral. O tema vindo ao plenário maior, entendo pela possibilidade de se reabrir o imbróglio e enfrentarmos a questão de fundo”.
Nesse mesmo sentido, votou o Ministro Ricardo Lewandowski, entendendo contra a prisão até o esgotamento de todos os recursos possíveis na Justiça. Concentrou sua manifestação na defesa do princípio da presunção de inocência e argumentou que esse princípio se encerra somente após o chamado trânsito em julgado: “Significa essa expressão que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Quer dizer que a pessoa se mantém livre, salvo naquelas situações extraordinárias, em que o magistrado de forma fundamentada decrete a prisão”. Sustentou o ministro que a prisão é sempre uma exceção e a liberdade, a regra, não sendo possível, seja a qualquer pretexto, mitigar essa relevantíssima garantia instituída em favor não só de uma pessoa, não só do paciente, mas de todas as pessoas, sob pena é irreparável retrocesso institucional. Outro voto favorável à defesa, o ministro Marco Aurélio Mello também defendeu que a prisão só pode ocorrer ao final do processo, com base na regra constitucional que prevê que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado: “Não abre esse preceito campo a controvérsias semânticas. Não posso ver na cláusula um sentido ambíguo” ou ainda algo que só tenha no Brasil – uma “jabuticaba”.
Eventual demora no julgamento final não justifica, para o ministro, a relativização da presunção de inocência; a Justiça deverá se tornar mais rápida para julgar os casos, de modo que o Estado se aparelha para entregar a prestação jurisdicional a tempo e modo, mas não se pode articular com uma deficiência para simplesmente dizer se que, aí, é possível inverter-se a ordem natural do processo-crime. A deficiência pelo Estado, revelando certo emperramento da máquina judiciária, quanto a entrega final da prestação jurisdicional, não pode levar ao menosprezo que se contém em termos de garantia na Constituição Federal.
Ademais, atentou para o risco que se expõe ao permitir a prisão após condenação e em segunda instância vir esse indivíduo ser solto mediante uma absolvição: “Ninguém devolve à pessoa, ao homem, a liberdade perdida”. Outro ministro que votou favoravelmente ao pedido da defesa foi Celso de Mello, pretendendo evitar a prisão até o trânsito em julgado da condenação. Defendeu seu entendimento sob a tese que a execução da pena somente poderia ocorrer após o trânsito em julgado da condenação, tendo em vista que a presunção de inocência impede que, antes do trânsito em julgado, seja antecipado o juízo de culpabilidade pelo Estado.
Quando a existência de grande quantidade de recursos possíveis para postergar o final do processo, o ministro não discorda, no entanto, entende que sua redução compete ao Poder Legislativo.
Ressaltou a diferença da prisão cautelar e a prisão definitiva, por cumprimento de pena, uma vez que, antes da condenação, ao Judiciário é possível decretar prisões provisórias, possível em caso de risco de novos crimes, fuga ou prejuízo às investigações; perfeitamente possível a convivência entre a prisão cautelar e a garantia do estado de inocência. A prisão cautelar não tem por fundamento juízo de culpabilidade. A prisão cautelar não busca infligir punição, não tem qualquer ideia de sanção. Constitui instrumento em benefício da instrução penal.
Por fim, a Presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia votou contrária ao pedido da defesa, entendendo pela possibilidade de cumprimento da pena após decisão de segundo grau. Lembrou que desde 2009 já defendia a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância e não mudou seu entendimento. Conforme entendimento da ministra, não há ruptura ou afronta ao princípio da não culpabilidade penal diante do início de cumprimento da pena, determinada após o término da fase de provas, que se extingue exatamente após o duplo grau de jurisdição.
Inclusive permanecem em vigor todas as possibilidades de rever a pena por meio dos recursos possíveis de serem apresentados às instâncias superiores, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal.
Dessa forma, a última orientação da Suprema Corte é pela possibilidade do cumprimento da pena após decisão de segundo grau, devendo dar celeridade ao processo, sem que isso prejudique as garantias fundamentais do indivíduo, o que concretamente, estatisticamente (como mencionado no voto do ministro Alexandre de Moraes) não tem fundamento em prejuízos concretos possíveis de serem experimentados diante de tal entendimento pelo acusado; apenas se vê uma maior efetividade a lei sem hipergarantismos.
CONCLUSÃO
A grande e complicada tarefa dos seres humanos sempre foi a convivência em sociedade, como poder lidar com o próximo, com seu jeito, temperamento, caráter, diferenças sem que um interfira no mínimo existencial do outro.
Diversas teorias foram elaboradas, assim como o Estado se formou, se concretizou, teorias e mais teorias visando sempre a melhor forma de se relacionar e entender ao próximo.
Leis, regras, autoridades, estruturas, ciências foram descobertas, elaboradas, o tempo passa, as dificuldades aumentam e o homem tem sempre que inovar, tentar acompanhar essa dinamicidade.
Com o direito do Estado de punir o autor de conduta ilícita não foi diferente. Durante anos e anos buscou-se a melhor forma de dar efetividade às normas editadas, de forma que não fossem “meras folhas de papel” como já dizia Lassale, nenhum governante quer se deparar com normas sem efetividade, sem credibilidade, da mesma forma que não quer esse sentimento perante seus órgãos.
A História nos ensina que num primeiro momento visava-se maior efetividade às atividades estatais em detrimento das garantias e direitos do indivíduo, utilizando-se de instrumento violador dessas premissas, onde o acusado era visto apenas como objeto do processo, tenho como seu único direito ser processado, podendo, inclusive ser utilizada a força, a tortura para se obter confissões.
Esse período é caracterizado também por suas penas cruéis, de morte, enforcamento, crucificação, com expresso intuito de servir como “exemplo” aos demais cidadãos. A estrutura não era organizada, havendo a primazia da arbitrariedade e livre arbítrio das decisões, com poder concentrado nas mãos de uma única pessoa.
Outro sistema também presente em nossas histórias, preocupado com o indivíduo, suas garantias e combater os abusos estatais, tinha o acusado como sujeito de direitos, sendo garantido a ele a ampla defesa e o contraditório durante o processo. As penas não mais cruéis e proporcionais, observando-se a razoabilidade.
Com estrutura mais bem organizada, era possível obter decisões imparciais, uma vez que é assegurada a neutralidade do julgador.
Ainda, menciona-se um terceiro sistema composto de duas fases: a primeira menos garantista, sem contraditório e ampla defesa e a segunda com observância a esses preceitos.
No sistema processual brasileiro, em sua origem, a mentalidade do legislador era voltada a eficiência do processo, como célere, rápido e eficaz, de acordo com os ditames e pensamentos da época, no entanto, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, esse pensamento mudou.
A Constituição de 1988 trouxe em seu texto a ideia de um Estado Democrático de Direito, em que não apenas protege o indivíduo dos abusos estatais, mas acima de tudo, exige dessa autoridade uma ação, uma atuação ativa, protegendo e colocando em prática os direitos por ela elencados como fundamentais.
Além disso, a Emenda Constitucional 45 de 2004 consolidou a ideia de um processo penal equilibrado entre garantidor de direitos fundamentais e um processo penal eficaz, célere, inclusive prevendo como princípios fundamentais a celeridade, a duração razoável do processo e a eficiência.
Ao analisar os dispositivos processuais penais, a interpretação destes conforme a Constituição e as teorias do garantismo e da eficiência no processo penal, chegaremos à clara conclusão de que tudo se complementa, nada se subtrai.
O maior erro dos homens é a utopia da verdade absoluta, achar que apenas se encontra a verdade, o melhor sentido das coisas através de extremismos, devendo tudo ter dois lados dos quais apenas um é o certo. Tanto aqueles que defendem por um processo eficiente, como os que defendem um processo garantista, buscam a mesma coisa: justiça.
Ampla Defesa, Contraditório, Eficiência, Duração Razoável do Processo, Não-Culpabilidade, entre outros preceitos constitucionalmente previstos não foram assim criados para beneficiar um “lado”, serve para todos, inclusive para a sociedade num todo.
A partir do momento que a humanidade parar de pensar em lados, extremismos e verdades absolutas, pensarem com amor ao próximo, empatia e tolerância, o bom senso sempre será a palavra de ordem e a justiça, um conceito não tão vago. O equilíbrio é a chave de tudo!
1CAMPOS, Walfredo Cunha.Curso Completo de Processo Penal. Salvador: JusPODIVM, 2018.
2LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Volume único. 6ª Edição; Salvador: Juspodivm. p.37.
3Conforme os ensinamentos de Antônio Scarance Fernandes, eficiência “de forma ampla, sendo afastada, contudo, a ideia de eficiência medida pelo número de condenações. Será eficiente o procedimento que, em tempo razoável, permita atingir um resultado justo, seja possibilitando aos órgãos da persecução penal agir para fazer atuar o direito punitivo, seja assegurando ao acusado as garantias do processo legal” (Sigilo no Processo Penal: eficiência e garantismo. Coordenação Antônio Scarance Fernandes, José Raul Gavião de Almeida, Maurício Zanoide de Moraes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008; p.10).
4Art.5º, CF/88: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes(…)
5Giacomolli,Nereu José. O Devido Processo Penal. 3ª Ed. 2016, São Paulo: Atlas, 2016. p. 90.
6Art. 156, CPP. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício (…)
7FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; p.452-453.
8Nesse sentido: LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Volume único. 6ª Edição; Salvador: Juspodivm, 2018. p. 41.
9OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. In Repro nº 137, São Paulo: RT, 2006.
10Quando o crime era público, qualquer cidadão, que não fosse vítima, poderia promover a ação penal, assim chamada, à época, de ação penal popular; a qual não mais existe nos dias atuais. Vale destacar que, atualmente o crime de responsabilidade cometido pelo Presidente da república ou por ministro (art. 14 da Lei 1.079/50) que deverá ser feito perante a Câmara dos Deputados, consiste em única hipótese de ação penal que poderá ser proposta por qualquer cidadão.
11FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
12FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; p. 74-75.
13SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2007; pag.65).
14FERNANDES, Antonio Scarance. O equilíbrio entre a eficiência e o garantismo e o crime organizado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, a. 16, n. 70, p. 229-268. jan./fev. 2008; pag. 24).
15Art.5º, LIV, CF: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
16LOPES JR., Aury. (Des)Velando o Risco e o Tempo no Processo Penal. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (org). A qualidade do tempo: para além das aparências históricas, p. 165.
17LOPES JR., Aury; BADARÓ, Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável.
18FISCHER, Douglas. O que é garantismo penal (integral)? In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (Org.). Garantismo penal integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e a aplicação do modelo garantista no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 34.
19Sumula 691, STF: Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.
20Disponível no site do STF, 2011.Tribunais, sob pena de arbitrária denegação, pelo Poder Judiciário, dessa importantíssima franquia constitucional.
21Disponível no site do STF, 2011.
22art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo. § 5o Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional.
23art. 116 – Antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre: I – enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime;
24Art. 92, CPP. Se a decisão sobre a existência da infração depender da solução de controvérsia, que o juiz repute séria e fundada, sobre o estado civil das pessoas, o curso da ação penal ficará suspenso até que no juízo cível seja a controvérsia dirimida por sentença passada em julgado, sem prejuízo, entretanto, da inquirição das testemunhas e de outras provas de natureza urgente.
25Art. 5º, XXXV, CF – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
26Art. 3º, CPP.A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.
27Art. 2o, CPP. A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.
28Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.
29Art. 5º, LVII, CF – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
BIBLIOGRAFIA
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