REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7057686
Autoras:
Waleska Santiago Maia1
Acsa Liliane Carvalho Brito Souza2
RESUMO
O abarrotamento de processos nos tribunais brasileiros motivou a inserção da ideia de precedente do common law, que tem sua formação através um intenso debate sobre a matéria até chegar a uma tese aplicável a casos semelhantes. Porém, as decisões dos tribunais pátrios eram marcadas pela ausência de fundamentação, prática que é incompatível com o sistema de precedentes. Assim, fundamentar passou a ser dever e princípio constitucional positivado no artigo 93, IX, da CF/88 que obriga a motivação das decisões, sob pena de nulidade. O CPC/2015 reafirma esta obrigação, bem como inseriu regras para corrigir erros de fundamentação e torná-la mais analítica, regulamentadas no artigo 489,§1º. Adotou também um microssistema de precedentes vinculantes, insculpido nos artigos 926 a 928, a fim de uniformizar o direito, proporcionar uma redução dos processos nos tribunais, além de efetivar princípios constitucionais. Nas revisões bibliográficas, verificou-se que a vinculação legal dos precedentes no Brasil prejudica a formação de precedentes, podendo uma decisão com pouco argumento vir a ser precedente, tornando-se deficiente e com vinculações equivocadas. Então, para uma correta formação dos precedentes, é necessário que a fundamentação da decisão que gera um precedente siga as regras do CPC/2015, buscando uma vinculação pela argumentatividade como na common law, resultando na estabilidade da interpretação e aplicação do direito e evite retrabalhos cíclicos dentro do judiciário.
Palavras-chave: Decisão; Formação do precedente; Fundamentação; Precedentes vinculantes.
ABSTRACT
The overcrowding of cases in Brazilian courts motivated the insertion of the common law precedent idea, which has its formation through an intense debate on the matter until reaching a thesis applicable to similar cases. However, the decisions of the national courts were marked by the absence of reasoning, a practice that is incompatible with the system of precedents. Thus, substantiating became a duty and constitutional principle established in article 93, IX, of CF/88, which requires the motivation of decisions, under penalty of nullity. CPC/2015 reaffirms this obligation, as well as inserting rules to correct reasoning errors and become more analytical, regulated in article 489, §1. It also adopted a microsystem of binding precedents, inscribed in articles 926 to 928, in order to standardize the law, provide a reduction in court proceedings, in addition to implementing constitutional principles. In the bibliographic reviews, it was found that the legal binding of precedents in Brazil impairs the formation of precedents, and a decision with little argument can become a precedent, becoming deficient and with wrong bindings. So, for a correct formation of precedents, it is necessary that the reasoning of the decision that generates a precedent follows the rules of the CPC/2015, seeking a link by the argumentativeness as in the common law, resulting in the stability of the interpretation and application of the law and avoiding reworks. cyclical within the judiciary.
Keywords: Binding precedents; Decision; Precedent formation; Reasoning.
INTRODUÇÃO
O expressivo aumento de demandas processuais dentro do judiciário brasileiro e o consequente abarrotamento fez com que o precedente judicial fosse incorporado, gradativamente, ao sistema jurídico pátrio mediante reformas legislativas. Todavia, a formação dos precedentes no Brasil é prejudicada pela ausência de fundamentação das decisões, uma atuação que é incompatível a um sistema de precedentes vinculantes.
A CF/88, no artigo 93, IX, instituiu, como regra, que toda decisão deve ser fundamentada, sob pena de nulidade. Porém, mesmo com a constitucionalidade da obrigação de fundamentar, o problema persiste, visto que as decisões judiciais ainda contém erros de fundamentação, sendo elas imotivadas e/ou insuficientes.
O CPC/2015, pretendendo corrigir os erros de fundamentação das decisões dos magistrados, além de reafirmar no artigo 11 o princípio constitucional da motivação como norma fundamental do processo, alterou substancialmente o conteúdo da sentença (estendendo-se para toda e qualquer decisão), regulamentada pelo artigo 489, §1º, que se não for seguido, resultará em nulidade.
Simultaneamente, o CPC/15 consolidou as reformas legislativas, incorporando um microssistema para formação de precedentes vinculantes, disposto nos arts. 926 a 928. Todavia, as decisões nos tribunais que formam os precedentes vinculantes são fundamentadas incorretamente, dando origem a precedentes deficientes.
Diante disso, o presente trabalho busca responder a seguinte pergunta: A formação de precedentes vinculantes necessita de uma fundamentação adequada sobre todos os pontos formadores da decisão que firma o precedente?
O intuito passa, então, a corrigir as fundamentações da decisão formadora do precedente. Uma correta fundamentação da decisão que forma o precedente tem capacidade de dar uniformidade ao direito, promover um bom “controle de estoque1”, bem como garantir princípios constitucionais que a tempos têm sido desconsiderados na atividade jurisdicional por parte dos magistrados.
O objetivo geral deste trabalho é analisar a relação entre a fundamentação da decisão judicial e a formação de precedentes vinculantes.
A pesquisa tem como objetivos específicos demonstrar os caminhos que se deve percorrer para que a decisão que forma o precedente seja devidamente fundamentada, bem como apresentar todos os pontos que constroem a fundamentação desta e, também, expor a importância. de se seguir as regras de fundamentação delineadas pelo CPC/2015 para correta formação do precedente.
A metodologia aplicada a este trabalho terá natureza qualitativa, onde analisa-se a origem dos precedentes e como é sua formação em sua forma tradicional com objetivo de identificar uma melhor formação desse sistema no Brasil, buscando como resultado gerar conhecimento para a aplicação prática da teoria de precedentes, envolvendo interesses sociais. Será utilizado, também, o método dedutivo, que corresponde a extração discursiva do conhecimento a partir de premissas gerais para a específica, ou seja, da teoria tradicional dos precedentes para que alcance uma correta e efetiva formação nos tribunais superiores, bem como do método dialético, que corresponde à apreensão discursiva do conhecimento a partir da análise do sistema common law e da identificação dos elementos do precedente vinculante, procedendo de modo crítico, ponderando-se as divergências entre o precedente tradicional e o precedente brasileiro até o alcance da síntese, que é a fundamentação da decisão que forma o precedente. As técnicas aplicadas para o desenvolvimento deste trabalho tem como base em aprofundado estudo de documentos, como artigos científicos, revistas jurídicas e revisões doutrinárias, além da análise legislativa sobre o dever da fundamentação nas decisões.
1. A FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO NO DIREITO BRASILEIRO
A primeira legislação brasileira que introduziu regras acerca da fundamentação para formação de atos decisórios foi o Decreto nº 737 de 1850, expresso no artigo 232.
No ano de 1939 foi criado o primeiro Código de Processo Civil Brasileiro e, no inciso I, do artigo 280, regulamentou-se a fundamentação como um dos critérios formadores da sentença.
Em 1973 entrou em vigor outro Código de Processo, que manteve os mesmos critérios acerca da fundamentação do código anterior, reproduzido no inciso II do artigo 458, sendo um dos requisitos essenciais da sentença.
Apesar de toda essa regulamentação da fundamentação pelos legisladores, os magistrados deixavam de fundamentar suas decisões pela ausência de constitucionalidade da norma.
Com a promulgação da CF/88, instituiu-se, no artigo 93, inciso IX, o dever de fundamentar as decisões judiciais sob pena de nulidade, elevando-se a fundamentação ao patamar de norma e princípio constitucional.
Diante disso, com a vigência do CPC/2015, o conteúdo das decisões foi reformulado, estabelecendo um rol – previsto no artigo 489, §1º – a ser seguido para que uma decisão seja considerada fundamentada; uma verdadeira inovação que busca a efetividade de princípios constitucionais do processo que por muito são ignorados, assim disposto:
Art. 489. […]
§1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. (BRASIL, 2015)
Com essas novas regras, “não se entendeu pertinente criar um rol ou um manual de como se fundamentar, mas delinearam-se pontos em que não se considerará a decisão como fundamentada.” (LEMOS, 2017, p. 2).
1.1 A motivação da decisão como diretriz constitucional
A CF/88 tornou a fundamentação uma garantia fundamental aos jurisdicionados e um dever aos magistrados, delimitando a forma de atuação, impedindo decisões fundadas em opiniões próprias, construídas sob condutas autoritárias e abusivas.
A motivação das decisões é um princípio constitucional sedimentado no artigo 93, IX, resultante da garantia do devido processo legal, previsto no artigo 5º, LIV. A fundamentação está vinculada à decisão, porque fundamentar justifica o que foi decidido, ou seja, são os argumentos que explicam os motivos que levaram o juízo a decidir daquela maneira.
Nesta seara, a fundamentação em seu aspecto constitucional, se trata de vincular o magistrado a motivar, expondo ali os argumentos que motivaram sua decisão, para que venha ser justa e legítima. Deste modo, é possível proporcionar uma jurisdição criativa e racional, baseada na interpretação do direito como um todo.
Portanto, expor as motivações consiste em discriminar na decisão as razões que convenceram o operador do direito a escolher uma alegação em detrimento da outra, qual prova é circunstancial para o deslinde do processo e qual deve ser afastada, em outras palavras, tornar evidente o que embasou a construção da decisão.
A fundamentação das decisões é fator importante para um Estado Democrático de Direito. Nas palavras de Didier Júnior (2016, p. 322), a exigência da motivação tem dupla função: Endoprocessual e Extraprocessual. A primeira é referente ao diálogo da fundamentação com as partes do processo. Já a segunda trata do diálogo da fundamentação com a sociedade para que esta possa exercer o controle jurisdicional.
1.2 A fundamentação como diálogo com as partes
No aspecto da função endoprocessual, a fundamentação possibilita que os litigantes tomem ciência das razões que instruíram o convencimento do julgador e possam controlar a decisão através dos recursos adequados. (DIDIER JÚNIOR, 2016, p. 322)
A fundamentação é resultado do que se conhece. Só é possível fundamentar com o exaurimento da fase de conhecimento, onde o juiz recebe e tem a ciência dos fatos e fundamentos ali expostos pelas partes, permitindo que produzam provas para validarem suas alegações.
Nesse raciocínio, “há a necessidade de que o conhecimento esteja atrelado à fundamentação, sem o qual não se terá o aspecto de autoridade do próprio argumento, o que transforma aquela informação, através de sua devida explicação, em uma verdade, em uma certeza a ser defendida” (LEMOS, 2017, p. 2).
A necessidade de conhecer é condição essencial para a construção decisória, pois se trata do convencimento do juiz que, por sua vez, deve se valer do exaurimento argumentativo para que as partes tenham a oportunidade de influenciar na decisão, onde será verificada em seu conteúdo, especificamente na fundamentação, a razão do que foi decidido. Ou seja, fundamentar é responder aos argumentos das partes; um diálogo processual necessário para formação da decisão.
Dessa maneira, não havendo o exaurimento dos argumentos das partes, consequentemente a participação destas no processo é anulada, deixando de haver um diálogo, sobrepondo-se a arbitrariedade, assim resultando em uma fundamentação com resposta imotivada ou insuficiente, prejudicando a decisão e ofendendo o princípio do contraditório.
1.3 A fundamentação como diálogo com a sociedade
A luz da função extraprocessual, “a fundamentação permite a fiscalização da decisão pela via difusa da democracia participativa, desempenhada pelo povo, em nome do qual a sentença é proferida” (DIDIER JÚNIOR, 2016, p. 322). Uma garantia conferida pelo princípio constitucional da publicidade das decisões.
Lemos (2017, p. 14) esclarece que a fundamentação tem uma função social pelo fato servir como parâmetro comportamental, conduta sobre a qual a sociedade, através da fundamentação, entende a maneira como ou não agir.
No raciocínio de Didier Júnior (2016, p. 324), compõem a fundamentação de uma decisão, a racionalidade e a controlabilidade. Quanto à racionalidade, trata-se da elaboração de um discurso justificado a partir de normas racionais comumente aceitas na realidade de tempo e lugar em que se situa. Já na controlabilidade, é preciso que a fundamentação seja compreensível, pública e acessível, para que haja o controle interno, externo e difuso.
Dessa maneira, as decisões também precisam dialogar com a sociedade (função extraprocessual) e posta a controlabilidade desta, para que seja avaliada a racionalidade do que foi decidido e, assim, seja legitimada aos cidadãos.
1.4 A fundamentação como elemento da decisão
“A fundamentação é a base de toda decisão, não seria um simples favor processual, tampouco social, mas condição de validade do próprio ato decisório, sem o qual não há a própria decisão.” (LEMOS, 2017, p. 3)
No CPC de 73 já se via a fundamentação como requisito estrutural de uma sentença, mas sem haver previsão constitucional. A promulgação da CF/88 tratou de incumbir o dever de fundamentar as decisões para coibir arbitrariedades, limitando a atuação dos magistrados.
O CPC/2015, não só tratou a fundamentação como elemento essencial, mas propôs uma fundamentação mais analítica, em que juízes passam a ser verdadeiros intérpretes e aplicadores do direito. Um rol de regras que visam melhorar os pronunciamentos dos magistrados, demonstrando requisitos que levam à nulidade da decisão.
Apesar disso, indaga Lemos (2017, p. 5):
(…) precisaríamos de uma norma para regulamentar o que é uma fundamentação? Como vimos, o dever de fundamentar nasce com o próprio dever de decidir, e, posteriormente, a norma constitucional já prevê especificadamente tal ponto, bem como a norma processual. Contudo, é triste verificar e constatar que sim, infelizmente precisamos. Uma série de acomodações e poucas respostas às argumentações das partes ou respostas judiciais genéricas, sem análise pormenorizada das demandas, processual e materialmente, proporcionam a necessidade dessa regulamentação de uma teoria de fundamentação de decisão judicial.
Nesse entendimento, a fundamentação da decisão é a ferramenta que se utiliza para que a resposta estatal esteja de acordo com o que se espera da atividade jurisdicional; é submeter o magistrado à obrigação de refletir sobre a matéria que lhe foi incumbida a julgamento para proferi-la de forma justa e completa.
Portanto, o fundamento de uma decisão é o caminho pelo qual o próprio ato consolida-se, solidifica-se, motivo pelo qual o dever da fundamentação não pode ser tergiversado, nem relativizado. (LEMOS, 2017, p. 3)
2. O PRECEDENTE JUDICIAL
Os precedentes judiciais são decisões que se prestam de referência para instruir os jurisdicionados e os magistrados. “Entretanto, é importante esclarecer que o ato de decidir, por si só, não é o que forma o precedente, mas o caminho que se levou para chegar à convicção da decisão.” (LEMOS, 2015, p.79)
2.1 A base teórica do precedente judicial e a necessidade de julgar casos idênticos
Os precedentes vinculantes têm origem em países do sistema Common Law2 e “tem como base o direito consuetudinário e as decisões tomadas pelas Cortes possuem caráter supralegal” (WAGNER; LEMOS, 2018, p. 2), ou seja, os precedentes vinculantes são considerados fontes primárias do Direito.
No common law, surge a doutrina do stare decisis, derivado da expressão stare decisis et non quieta movere, que traduzida significa: respeitar o que foi decidido e não mexer no que foi estabelecido. Essa doutrina “acredita implementar qualidade e segurança na prestação do serviço de justiça e, por decorrência, melhorar o convívio social.” (PORTO, 2005, p. 9)
Nas palavras de Porto (2005, p. 25), a ideia central do stare decisis “é a de dar estabilidade ao direito, provendo que a jurisprudência nas mesmas questões legais será, em regra, seguida pela mesma corte e por qualquer outra de hierarquia inferior, em qualquer caso futuro que apresente fatos e direito idênticos”.
Esse sistema compreende em minimizar divergências interpretativas jurisprudenciais internas dos tribunais, proporcionando às normas jurídicas maior previsibilidade para melhor aplicação do direito e, consequentemente, melhor prestação jurisdicional, mediante uma rápida fixação da tese jurídica e julgamento isonômico, utilizados para solucionar casos idênticos.
Os precedentes judiciais nascem do debate intenso conciliado à interpretação. Posteriormente, analisa-se sua aplicabilidade ao caso concreto, para que não ocorram distorções e consequente afastamento da regra. Com isso, pode-se dizer que o precedente é “resultado da densificação de normas estabelecidas a partir da compreensão de um caso e suas circunstâncias fáticas e jurídicas” (ZANETI, 2014, p. 293).
Porto (2005, p.9) menciona os motivos elencados pela doutrina norte-americana (também do sistema common law) para a utilização dos precedentes vinculantes:
Primeiro, em decidindo as demandas, os juízos devem dirimir questões de direito. Na mesma jurisdição, o direito deve dar a mesma resposta para as mesmas questões legais. Para desenvolver o direito uniformemente e através do sistema judicial, as Cortes devem respeitar as resoluções hierarquicamente superiores. Trata-se, pois, do prestígio ao valor ‘segurança jurídica’. (b) Em segundo lugar, justiça imparcial e previsível significa que casos semelhantes serão decididos da mesma forma, independentemente das partes envolvidas, numa homenagem ao princípio da isonomia. (c) Em terceiro lugar, se na prática fosse de outra forma, isto é, não fossem as decisões judiciais previsíveis, o planejamento nas demandas iniciais seria de difícil concepção. (d) Em quarto lugar, stare decisis representa opiniões razoáveis, consistentes e impessoais, a qual incrementa a credibilidade do poder judicante junto a sociedade. (e) Em quinto lugar, além de servir para unificar o direito, serve para estreitar a imparcialidade e previsibilidade da justiça, facilitando o planejamento dos particulares, em face do padrão pré-fixado de comportamento judicial.
Esses argumentos refletem a importância de se julgar casos idênticos da mesma forma como já foi decidido na Corte Superior daquele lugar. O impacto que isso pode acarretar no judiciário brasileiro com a adoção de um sistema de precedentes é extremamente benéfico.
O CPC/15, ao introduzir um sistema de formação de precedentes vinculantes, amplia os efeitos de uma decisão, com pensamento em aspectos maiores e afastando a visão judiciária de julgamentos individualizados, refletindo como regra aplicável a casos análogos. Essa visão processual tem como propósito o julgamento baseado no “treat like cases alike”, o que significa julgar menos processos, e a decisão desses utiliza-se como base para outras demandas semelhantes. (LEMOS, 2017, pág. 7)
2.2 Os elementos do precedente judicial
O precedente tem sua formação na fundamentação de uma decisão, mas não toda ela. O primeiro – e mais importante – elemento do precedente é a ratio decidendi ou razões de decidir. Ela é composta pelos fundamentos fáticos (controvérsia) e jurídicos (motivação da decisão).
A ratio decidendi, na doutrina, é definida como princípio do direito sobre o qual o julgador se vale da tese jurídica para decidir o caso concreto. Lemos (2015, p. 80) afirma que, para fins de um precedente, a ratio decidendi só pode ser considerada no que foi efetivamente discutido para a formação da fundamentação daquela decisão.
Por sua vez, o obter dictum – que significa dito para morrer – complementa a fundamentação, porém, sem relevância para o precedente. Sua importância é consubstanciada em apenas construir um curso decisório por meio da argumentação jurídica, ou seja, se trata de uma fundamentação acessória que o juízo utiliza de raciocínio para motivação da ratio decidendi.
Nas definições de Soares (2014, p. 12):
O obter dictum engloba as matérias argumentadas e decididas no curso do processo de maneira periférica. Nele não se instala o que foi decisivo para a solução da questão posta em juízo. O obter dictum é considerado quando muito elemento persuasivo e confirmador da decisão proferida, mas não o ponto que a fez existir.
Formado um precedente, é fundamental que seja realizada a identificação da ratio decidendi, papel esse desempenhado por um julgador que proferirá uma decisão baseada no precedente formado.
Segundo Soares (2014, p. 14-15), as teorias de identificação são: a) Teoria de Wambangh; b) Teoria de Oliphant; c) Teoria de Goodhart. Todavia nenhuma das três técnicas é unicamente efetiva, exigindo-se sensibilidade do juízo, além da utilização de uma técnica para sua correta aplicação do precedente no ato decisório.
Dessas teorias, “a forma mais abrangente de identificação do precedente seria a conjunção da Teoria de Goodhart, que permite delinear os fatos de forma pormenorizada, com a Teoria de Wambaurg, que usa o caminho inverso dos argumentos para verificar se a decisão seria diferente.” (LEMOS, 2015, p.82)
Ultrapassada a fase de identificação da ratio decidendi, para que um precedente venha a ser ou não utilizado em casos análogos, deve ser submetido a técnicas de aplicação e de superação, denominadas distinguishing e overruling.
O distinguishing compreende o afastamento do precedente. “Para a sua utilização será necessário adentrar na ratio decidendi do precedente e vislumbrar que os fatos fundamentais do primeiro julgamento não coincidem com os fatos fundamentais daquele que será julgado. E assim, por não fazerem parte da mesma categoria, não se torna obrigatória a mesma resposta judicial” (SOARES, 2014, p. 19).
Já o overruling consiste na superação do precedente. Significa dizer que a regra contida no precedente não tem mais aplicabilidade, perdendo sua força vinculante. “É a overruling, que possibilita ao magistrado adotar nova orientação jurisprudencial quando aquela não mais representar a melhor medida de justiça.” (PORTO, 2005, p. 14)
2.3 A formação do precedente judicial no Brasil
O sistema jurídico brasileiro é enraizado na cultura civil law3 que, por sua vez, não tem costume de utilizar precedentes. Com a introdução do sistema de precedentes, iniciou-se, então, de acordo com a doutrina, uma commonlawlização4 do sistema, o que explica um atual formato híbrido no judiciário brasileiro (common law e civil law).
Nesse cenário, “o CPC/2015 aparece como um consolidador das reformas anteriores para tentar instaurar o stare decisis no direito brasileiro” (PEIXOTO, 2015, p. 333), desenvolvendo um microssistema de precedentes vinculantes, que está inserido no Livro III, Capítulo I e normatizado nos arts. 926 a 928, delineando regras para a correta formação dos precedentes.
Nas palavras de Lemos (2017, p. 7):
“A visão do novel ordenamento sobre essa problemática nasce na necessidade de um sistema de formação de precedentes vinculantes, ainda que não seja para todos os casos ou todas as decisões, mas na criação de um rol de decisões que serão formadas para vincular casos vindouros que guardem a identidade fática material.”
Inicialmente, “o CPC/2015, no caput do artigo 926, traz a determinação de uniformização, estabilidade e coerência da jurisprudência que, quando dominante, deverá ser consubstanciada em enunciados de súmula, nos termos do parágrafo 1º.” (PINHO; RODRIGUES, 2016, p. 14)
“Seu parágrafo 2º estabelece que os enunciados de súmula não podem se dissociar das circunstâncias fáticas inerentes às causas que lhes serviram de base.” (PINHO; RODRIGUES, 2016, p. 14)
A formação dos precedentes no Brasil, via de regra, se dá nos tribunais superiores pelo seu alcance e impacto em todo o território nacional. Contudo, o CPC/2015 também atribuiu aos Tribunais de segundo grau a função prioritária de formar precedentes judiciais, com aplicação do precedente limitado à extensão territorial daquele tribunal. (LEMOS, 2015)
Os sistemas formadores de precedentes conferidos pelo CPC/15 aos Tribunais de segundo grau para formação de precedentes vinculantes, conforme artigo 927, são o Incidente de Assunção de Competência e a Resolução de Resolução de Demandas Repetitivas (inciso III).
O artigo 927 é completado por outros sistemas de formação de precedente, sendo eles: as decisões do Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado de constitucionalidade (I); os enunciados de súmula vinculante (II); os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional (IV) e a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados (V).
O artigo 928 dispõe que só é considerado julgamento em casos repetitivos a decisão proferida em: I – incidente de resolução de demandas repetitivas; II – recursos especial e extraordinário repetitivos. O parágrafo único deste mesmo dispositivo assegura que os objetos deste julgamento são as questões de direito material ou processual.
Cada instituto que compõe o sistema de precedentes vinculantes possui similaridade na mudança procedimental para formar o precedente, ressalvadas suas peculiaridades (LEMOS, 2017, p. 9).
É inegável que o Brasil ainda caminha na construção de um sistema de precedentes condizente com os pressupostos do common law (PEIXOTO, 2015, p. 333). Peixoto (2015, 335) alerta que é importante entender que não haverá, no Brasil, “um sistema de precedentes inglês ou norte-americano. O que será desenvolvido é uma teoria nacional dos precedentes, adaptada ao regime jurídico particular do direito pátrio e à sua forma de pensar.”
Mas, até que ponto o precedente pode ser adaptado? Independentemente se vai ser um sistema tradicional ou nacional, os precedentes possuem características que não podem ser ignoradas. Nesse ponto, o sistema de precedentes adotado pelo CPC/2015 incorre numa complicação: a vinculatividade, que decorre de lei ao invés da argumentação como acontece nos países do common law.
No Brasil, o precedente já nasce precedente. Em contrapartida, no common law o precedente não torna-se precedente imediatamente; só é considerado de fato um precedente vinculante quando os operadores do direito utilizam regularmente aquela decisão para fundamentar seus argumentos e teses.
E qual o impacto disso em um sistema de precedentes? Wagner e Lemos (2018, p. 10) argumentam que, “a consequência disso é a existência de decisões que, apesar do caráter vinculante, não possuem, em sua ratio decidendi, resposta suficiente para todas as teses que serão levantadas pelas partes nos casos análogos.”
Nesse prisma, compreende-se que, se a ratio decidendi é ausente de resposta, a fundamentação da decisão não é de toda correta, o que nos remete a problemática deste trabalho: A formação de precedentes vinculantes necessita de uma fundamentação adequada sobre todos os pontos formadores da decisão que firma o precedente? A resposta é sim, conforme todos os argumentos expostos alhures. Cada ponto que será apresentado a seguir tem relevância e importa para o completo exaurimento cognitivo da decisão formadora do precedente.
3. A IMPORTÂNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO NA DECISÃO FORMADORA DO PRECEDENTE JUDICIAL
A formação do precedente está consubstanciada na fundamentação; ela é determinante no momento de formar um precedente, tendo em vista que dela são extraídos princípios, criadas normas gerais do direito ou resulta a interpretação mais coerente da lei, com capacidade de transcender a casos vindouros com força vinculativa vertical e horizontal.
É extremamente importante que um precedente tenha uma fundamentação adequada, para garantir que não venha a ser deficiente, implique em vinculações equivocadas e seja de fácil superação.
Sem a observação da correta fundamentação, não será atingido o propósito que se pretendia com a inserção dos precedentes, que é dar uniformidade ao direito, promover o controle de estoque e a efetivação de princípios processuais constitucionais, como o da segurança jurídica e isonomia. Assim, formar-se-ão precedentes, mas ineficazes.
Diante disso, quais os pontos que o magistrado deve observar na decisão para que seja devidamente fundamentada? Nesse aspecto, leciona Lemos (2017, p. 10):
Somente com uma decisão que enfrentou todos os pontos, visões, argumentos e questões possíveis sobre a matéria controversa em julgamento que se consegue a autoridade da vinculação do precedente. Apesar de a lei, mediante o art. 927, impor a vinculação do precedente, esse deve, para alcançar o seu grau de argumentação e utilidade processual, conter uma autoridade de seu próprio argumento, com exaurimento cognitivo material, abrangendo todas as hipóteses legais ali previstas, com ênfase nas suscitadas pelas partes. Esse ônus argumentativo do precedente é o que lhe concede a autoridade de sua utilização, além, evidentemente, da vinculação prevista no próprio texto legal.
Portanto, um precedente corretamente fundamentado, não será facilmente afastado ou superado pelas técnicas de distinguishing e overruling, e não implique em retrabalhos cíclicos no judiciário.
3.1 A necessidade de um julgamento colegiado e com debates
Os tribunais superiores são os “guardiões” da Constituição; o julgamento emanado por este colegiado insere autoridade no que é decidido, pelo seu posto hierárquico no sistema judiciário.
Na citação de Zaneti Jr. (2014, p. 3), os precedentes são uma teoria para Cortes Supremas por dois motivos: (1) Serem Cortes de vértice e delas depender a uniformidade da interpretação do direito; (2) Devem ser vinculadas aos próprios precedentes do ponto de vista do ônus argumentativo para afastar a aplicação de um precedente ou superar um precedente antigo na aplicação atual.
Esse colegiado deve incentivar debates sobre a matéria, o voto de cada magistrado tem que ser enfrentado pelos demais, permitindo uma controvérsia sobre o caso com deliberações entre si, colocando-se disponíveis para ouvirem e serem convencidos. As Cortes devem atuar como instituição em uma ideia de cooperação na busca de um consenso e afastar a prática de votos individuais, como ocorre nos Tribunais Superiores pátrios. Quando as razões da decisão são fundadas no entendimento do colegiado (oposto do entendimento de um único julgador), isso colabora para uma melhor formação e identificação da Ratio Decidendi.
Entretanto, o julgamento colegiado por si só não é suficiente; é necessário um diálogo entre as partes, pelo princípio do contraditório. Nesse paradigma, por se tratar de formação de precedente, não basta um contraditório simples com participação apenas das partes do processo, é preciso de um poder argumentativo maior.
Diante dessa necessidade, o CPC/2015 adotou o contraditório ampliado, “com a possibilidade de manifestação do Ministério Público e intervenção do amicus curiae, ou até a realização de audiência pública, com a chamada da sociedade para delimitar e explanar sobre a matéria” (LEMOS, 2017, p. 11).
Cada um destes contribui positivamente para o debate. Nesse sentido:
A intervenção do Ministério Público é essencial para o julgamento, diante de sua função de fiscal da norma jurídica, legalmente amparado, para posicionar-se sobre a questão de direito controversa. A participação do amicus curiae, evidentemente, não é para defender qualquer das partes, somente concede a sua opinião, o seu parecer sobre o assunto, para uma visão mais ampla e técnica de todos os aspectos possíveis para uma melhor decisão. A possibilidade de uma audiência pública demonstra uma abertura à sociedade, com um procedimento com fácil acesso, com ampla discussão, concedendo a palavra a pessoas com expertise na matéria, mas que não teriam como atuar perante o processo em si, atuando como amicus curiae. Esses debates visam ampliar visões das mais variadas possibilidades dos afetados, dos possíveis autores ou réus, peritos, estudiosos, pessoas comuns. (LEMOS, 2017, p. 11-12)
Destaca-se que o CPC/2015 instituiu a realização de audiências públicas como uma faculdade ao magistrado, o que é lamentável no ponto de vista de formação de um precedente, tendo a ciência de que quanto maiores os debates e os argumentos, mais correta será uma decisão, mais correto será um precedente.
Na pesquisa de Wagner e Lemos (2018, p. 16), observou-se a discrepância entre a quantidade de audiências públicas realizadas e o número de decisões vinculantes já existentes. Desde o surgimento da Repercussão Geral (EC. nº 45/2004), o Supremo Tribunal Federal realizou 23 audiências públicas. O que surpreende é que o número de teses firmadas em sede de Repercussão Geral no STF é de 355.
Isso deixa claro que a sociedade não tem acesso em julgamentos de decisões vinculativas, sem participação no que tem sido construído de normas jurídicas; um exagerado silogismo e arbitrariedade que compõem uma barreira separadora entre direito e sociedade, precisando urgentemente ser quebrada.
Há de se mencionar que, a primeira audiência pública, desde a vigência do CPC/2015, ocorreu em 8 de maio de 2017, realizada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais em sede de IRDR. Os Desembargadores destacaram a ferramenta como efetiva à cooperação entre as partes e às instituições no processo e contribuem para se chegar à resposta tecnicamente mais correta. Lamentaram, ainda, a audiência pública não ser prevista antes, visto que “cada um dos expositores trouxe um elemento importantíssimo para o nosso raciocínio jurídico. Todos aqui participaram com um contributo que, mais do que limitar-se ao aspecto jurídico, concretiza o exercício de cidadania”. (WAGNER; LEMOS, 2018, p. 16-17).
Diante disso, ainda que a utilização de audiências públicas não seja requisito legal à formação do precedente, merece destaque o artigo 1º, parágrafo único da CF/88, com a redação de que todo poder emana do povo. Portanto, mesmo sem obrigatoriedade legal dessa ferramenta, os precedentes devem ser formados democraticamente.
3.2 A importância do enfrentamento de todas as teses jurídicas contrárias
Um julgamento que irá formar um precedente não pode ser realizado rapidamente. Porém, utilizando o STF como exemplo, é seguido o caminho inverso de como deve ser esse julgamento. De forma demonstrativa, só no ano de 2021 a Corte Suprema proferiu 15.417 decisões colegiadas, sem mencionar as monocráticas, que ultrapassam 80 mil decisões.
Dentro desse quantitativo, levando em consideração que o referente ano teve 252 dias úteis, o número médio de sessões colegiadas por dia foi de 61. Hipoteticamente, se em todos os dias fossem realizadas sessões colegiadas (desconsiderando qualquer situação adversa), não é possível construir precedentes nesse ritmo acelerado de proferir decisões, tendo em vista a necessidade de análise pormenorizada e enfrentamento de todos os argumentos das partes.
Isso se justifica pelo fato dos Tribunais Superiores atuarem como Cortes de Justiça, julgando demasiadamente casos idênticos sem a atenção para formar precedentes ao invés de atuarem como Cortes Supremas, limitando o número de casos que são apreciados e julgados, assim como ocorre em países do common law.
Em termos de precedente, deve-se proceder uma análise pormenorizada de tudo o que foi argumentado para a instrução do que será decidido, com tempo adequado e suficiente, enfrentando todas as teses contrárias, ou seja, cada ponto não pode ser ausente de resposta, é uma decisão que indispensavelmente deve ser completa.
No ensinamento de Lemos (2017, p.12):
Encerrada a instrução daquele rito procedimental, evidentemente, quando for realizado o julgamento, seja no voto do relator ou dos demais membros do colegiado, as manifestações desses terceiros acima mencionados devem ser levadas em consideração, não de maneira seletiva, mas com a análise de todos os pontos ou questões levantadas por qualquer dos intervenientes. A construção instrutória para esse julgamento visa a ampliar o âmbito material, almejando atingir todas as possibilidades e teses jurídicas, exaurindo toda a cognição possível, para ensejar a necessidade de resposta sobre cada um desses fundamentos, aplicados ou não.
Portanto, ainda que os Tribunais tenham que apresentar uma resposta estatal célere, decorrente do crescente volume de demandas, a formação do precedente não pode estar submetida a este crivo. Enfrentar todas as teses contrárias faz parte da correta formação do precedente e o não cumprimento desse requisito, mesmo que venha a existir por força legal, implica em ser só mais uma decisão, sem capacidade de auxiliar os juízes na hora de fundamentar casos com a mesma similitude.
Só é viável formar um precedente enfrentando todas as teses contrárias que foram estabelecidas no contraditório ampliado, pois, densificada a matéria com o exaurimento argumentativo. Desta se fixará uma tese apta a formar ou modificar um precedente.
A resposta a todos os pontos manifestados é imprescindível ao entendimento do caminho da construção decisória; a indicação dos argumentos considerados e rejeitados, o que podemos chamar até de obiter dictum, têm vital importância para o entendimento do que decidiu, da maneira sobre a qual os argumentos que serão vencedores tiveram esse êxito e, sobretudo, em qual prisma foram considerados. (LEMOS, 2017, p. 12)
3.3 A fundamentação como base para a construção da ratio decidendi do precedente judicial
Risoto (2011, p. 275) define que “a fundamentação exerce um papel fundamental na teoria dos precedentes, pois é através dela que se assegura a vinculação dos precedentes, assim como demais fontes normativas”.
No que tange às funções Endo e Extraprocessual da fundamentação das decisões, nos precedentes é seguida a mesma diretriz: de um lado, exerce uma função endoprocessual, destinada às partes em litígio; por outro lado, a fundamentação desempenha uma função extraprocessual, como regra ou princípio (ratio decidendi), destinado a influenciar a jurisprudência sucessiva, sobretudo se for respeitável e dotado de certo grau de racionalidade. (RISOTO, 2011, p. 278)
A Suprema Corte no Brasil atualmente julga pela conclusão em vez da fundamentação, o que prejudica a construção de uma ratio decidendi. Os ministros proferem votos individuais sem que antes haja uma deliberação interna sobre o caso. O procedimento de julgamento é realizado em sessão única, que se inicia com a sustentação oral; posteriormente, os votos dos magistrados são expostos e, ao fim, estes são somados para que se chegue a uma decisão final.
Esse modo de proceder um julgamento implica em fundamentações insuficientes, tornando o precedente deficiente por não restar claro a ratio decidendi. Frisa-se também que os Ministros fundamentam os precedentes com base nas próprias decisões anteriores com a utilização de termos genéricos e amplos, sem que haja uma individualização do caso-precedente e uma correlação da ratio das citações invocadas para fundamentar. Para chegar a uma ratio decidendi, a fundamentação deve estar delimitada àquela tese a ser firmada sem que haja termos vagos para a correta vinculação dos precedentes.
Nos países do common law, realiza-se uma audiência preliminar entre os magistrados para que argumentem e busquem colegiadamente um entendimento sobre o caso paradigma, momento em que analisam os fatos e fundamentos jurídicos do caso concreto, buscando no passado respostas para que possam decidir pensando no futuro, de forma a auxiliar os operadores do direito na resolução de casos análogos. Nesse sistema, uma única decisão é tomada pela Corte.
A regulamentação de uma fundamentação mais analítica da decisão pelo CPC/2015 é, sem dúvida, a prudência de que, se uma decisão comum é importante, a decisão que forma um precedente terá importância maior ainda. Lemos (2017, p. 13) acentua que a fundamentação na formação do precedente “ganha uma relevância ainda maior, dado o impacto que tal decisão afetará outras demandas com matérias e ratio decidendi idênticas, merecendo, portanto, uma fundamentação pormenorizada.”
Ensina Lemos (2017, p. 10):
No julgamento da decisão que forma o precedente, todos os incisos do art. 489, §1º devem ser considerados, desde o enfrentamento analítico para as citações legais, pormenorizando cada ponto de relação entre o que se discute naquele ou naqueles processos que formam o precedente vinculante e a interpretação daquele ponto normativo que será utilizado para basear o que se decidirá; também há de se concentrar em delinear especificadamente todos os pontos processuais e materiais em que se utilizam, porventura, conceitos jurídicos indeterminados, algo necessário em qualquer decisão, mas que ganha importância ainda maior nesse ponto, pelo fato de que essa decisão deve ser detalhada em seus aspectos, argumentos, fundamentos e caminhos decisórios, não possibilitando que nada permaneça com dúvidas ou indeterminações; e, evidentemente, não é concebível que se faça uma decisão que valeria para fundamentar qualquer outra, tamanha é a importância desse momento, dessa decisão.
Didier Júnior (2016, p. 460) pondera que, além da motivação ser um dever constitucional, os órgãos jurisdicionais, principalmente os tribunais superiores, devem ser zelosos ao elaborar a fundamentação de seus pronunciamentos, em virtude da regra insculpida nos § 1º e 2º do artigo 489 do CPC/2015, pois é assim que será extraída uma regra geral a ser observada em outras situações.
A decisão de um precedente que segue todos esses requisitos será indiscutivelmente bem fundamentada, ocasião que se terá uma tese jurídica ou interpretação de uma norma aplicável aos casos semelhantes, originada dos expressos fundamentos majoritariamente acolhidos na decisão colegiada, sendo estas a ratio decidendi da fundamentação, ou seja, os fundamentos determinantes da decisão.
Portanto, a vinculação legal do precedente não desprende a necessidade de uma decisão dotada de fundamentos, com o dever de exaurimento argumentativo, para que só assim possa ter uma ratio decidendi e venha de fato ser um precedente com todos os seus pressupostos essenciais, além da correta vinculação de futuros processos.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No Brasil, o excessivo acúmulo de ações no judiciário é uma realidade que se arrasta por um bom tempo. Vê-se que o judiciário busca uma intensa aplicabilidade do princípio da celeridade e da razoável duração do processo; um esforço fracassado diante da brutal massificação de demandas que sobrecarregam juízes. Somam-se a isto julgamentos com fundamentações imotivadas e insuficientes, e que por muitas vezes não guardam a similaridade das decisões hierarquicamente superiores ou de mesma hierarquia.
Certamente, é uma árdua tarefa conciliar quantidade e qualidade frente à aglomeração de processos e mais processos, havendo a necessidade de cumprir o tempo razoável de resposta aos jurisdicionados. A adoção do precedente judicial é, sobremaneira, ferramenta ideal para solucionar este problema no judiciário brasileiro, mas é uma cultura a ser desenvolvida nos tribunais.
A questão é que, se o CPC/2015 precisou regulamentar regras para pôr fim às práticas dos magistrados em exarar decisões com fundamentações ausentes de motivação ou insuficientes de respostas aos argumentos das partes com uma cartilha de como deve fundamentar sob pena de nulidade, é evidente que a formação dos precedentes pelo microssistema passaria por problemas de fundamentação, implicando na deficiência dos precedentes.
Nesse ponto, quando um precedente é deficiente, este pode ser facilmente afastado ou superado pelas técnicas de Distinguishing e do Overruling, deixando de ser útil ou aplicando um novo entendimento sobre aquela matéria. Porém, isso se torna um impasse cíclico ocasionado por fundamentações que não são completas, implicando em retrabalhos no judiciário. Recursos são interpostos aos montes pela instabilidade do que se decide e fracassa a ideia de um controle de estoque de demandas por conta de precedentes ruins.
É necessária a correção da atuação dos magistrados nos tribunais superiores enquanto formadores de precedentes. As regras de fundamentação existem e devem ser seguidas na formação do precedente; cada ponto deve essencialmente ser atendido, sempre observando as regras do artigo 489, §1º junto ao microssistema de precedentes vinculantes adotado pelo CPC/2015.
Essa fundamentação deve buscar a motivação baseada nos argumentos normativos interligadamente ao que foi debatido no processo, externando as razões que levaram à decisão, com racionalidade, alcançando um alto grau de autoridade, com um conteúdo capaz de ser universalizado e que transcenda as partes daquele processo como regra aplicável aos casos semelhantes.
Deve se considerar também a participação da sociedade na construção do que virá a ser regra jurídica, aplicando um contraditório ampliado para que, assim, produza um resultado decisório coerente, com racionalidade e lógica, uma decisão afetada pelos cidadãos ganha legitimidade. A formação de norma abstrata com a participação social democratiza o processo.
Ainda que seja construído um sistema nacional adaptado de formação de precedentes, é importante uma maior aproximação ao common law. Os pressupostos tradicionais do precedente, no que tange à uma intensa argumentatividade, precisam ser seguidos nos tribunais brasileiros, mesmo em um sistema que vincula o precedente por lei.
Diante disso, é possível construir bons precedentes seguindo as recomendações positivadas no CPC/2015, diminuindo os retrabalhos e, assim, dando início a um efetivo controle de estoque. Deve-se buscar uma vinculação pela argumentação, de forma a consolidar as regras do stare decisis no direito brasileiro, para estabilidade e uniformidade da interpretação e aplicação do direito nas decisões, ainda que o código regule uma vinculação legal dos precedentes judiciais.
1 O abarrotamento de processos nos tribunais brasileiros foi motivo para desenvolver, além do sistema formador de precedentes, o chamado “controle de estoque”, mecanismo esse que dificulta o acesso às Cortes Superiores, impedindo o seguimento de recursos que não guardam conformidade com as decisões dos tribunais, como se observa nos artigos 332, 496, §4º e 932.
2 O sistema Common Law surgiu na Inglaterra por volta de 1060 e foi desenvolvido em diferentes períodos. É conhecido também como direito inglês ou anglo-saxão. Entretanto, foi nos meados do século XIX que houve o primeiro julgamento com decisão vinculante para aplicação a casos semelhantes. Isso ocorreu nos casos de Beamish v. Beamish em 1861, especificamente no caso London Street Tranways v. London County Council, quando a Câmara dos Lordes conferiu a vinculatividade das suas próprias decisões.
3 A civil law tem origem na família romano-germanica, onde as decisões apenas estabilizam a lide inter partes com referência comportamental em casos futuros. Aqui, os precedentes estão em um modo ortodoxico, em que as decisões dos tribunais possuem hierarquia abaixo da lei, ou seja, não se considera como fonte primária do direito.
4 A jurisprudência passa a ser considerada como fonte do direito.
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1Graduanda do Curso de Direito da Universidade de Rondônia – UNIRON.
E-mail: waleskamaiaa@gmail.com
2Professora Orientadora do Curso de Direito da Universidade de Rondônia – UNIRON.
E-mail: acsa.souza@uniron.edu.br