REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7331665
Samilla Cavalcante Batista1
RESUMO
O desenvolvimento informal de moradias no País é problema longevo que carece de respostas e de políticas públicas que busquem minimizar as lacunas decorrentes do intenso processo de urbanização, a exemplo da baixa regularização dos imóveis urbanos. A presente pesquisa tem por objeto uma breve análise da Lei n. 13.865/19, que, ao promover alterações na Lei de Registro Públicos (Lei n. 6.015/73), permitiu a dispensa de habite-se a moradias de único pavimento, construídas há mais de cinco anos, em áreas ocupadas predominantemente por famílias de baixa renda. Busca-se analisar de que forma os preceitos da lei corroboram para reduzir a segregação socioespacial no espaço urbano e se a referida legislação está em consonância com os institutos da função social da propriedade urbana, funções sociais da cidade e o direito à moradia. Trata-se de pesquisa bibliográfica com o intuito de corroborar com eventuais futuros estudos sobre o tema. A alteração legislativa não possui a intenção de burlar os trâmites normativos necessários ao habite-se. É uma forma de garantir isonomia e a promoção da dignidade da pessoa humana àqueles que estão invisibilizados no processo urbanístico.
Palavras-chave: função social da propriedade; urbanização; moradia; habite-se.
ABSTRACT
The informal development of housing in the country is a long-standing problem that lacks responses and public policies that seek to minimize the gaps resulting from the intense urbanization process, such as the low regularization of urban properties. The present research has for object a brief analysis of the Law n. 13.865/19, which, by promoting changes in the Public Registration Law (Law n. 6.015/73), allowed the exemption of single-story dwellings, built more than five years ago, in areas predominantly occupied by families of low income. It seeks to analyze how the precepts of the law corroborate to reduce the socio-spatial segregation in the urban space and if the referred legislation is in line with the institutes of the social function of urban property, social functions of the city and the right to housing. This is a bibliographic research in order to corroborate with possible future studies on the subject. The legislative change is not intended to circumvent the regulatory procedures necessary for occupancy. It is a way of guaranteeing isonomy and promoting the dignity of the human person to those who are made invisible in the urban planning process.
Keywords: social function of property; urbanization; home; inhabit yourself.
1 INTRODUÇÃO
A intensa urbanização no território nacional, desde a década de 1930, é fator responsável pela crise urbana, caracterizada pela junção de diversos aspectos fáticos, como déficit habitacional, acesso informal à moradia urbana, além de impactos ambientais e outros. A crise urbanística cria um cenário excludente de urbanização, sobretudo, das camadas sociais economicamente menos favorecidas. Da mesma forma, a urbanização desenfreada, por vezes, ignora o princípio da função social da propriedade, que consta em todas as constituições federais, desde 1934.
As diretrizes para guiar o processo de desenvolvimento urbano, no entanto, somente foram possíveis com a constituição de 1988, por meio do capítulo que estabeleceu as bases jurídico-políticas iniciais para a promoção da reforma urbana. Por conseguinte, o Estatuto da Cidade, disciplinado pela Lei. 10.257/01, regulamentou os dispositivos constitucionais referentes à política urbana, ampliou as diretrizes de planejamento e gestão urbanística, além de reconhecer o “direito à cidade sustentável” no Brasil.
Apesar dos intentos da Carta Magna, do Estatuto da Cidade e de outras leis presentes no ordenamento jurídico vigente, a questão urbana ainda carece de leis que venham possibilitar maior efetividade aos mandamentos constitucionais e demais normas, a fim de desburocratizar procedimentos que, por vezes, soam como empecilhos ao desenvolvimento das cidades e, por consequência, tornam-se um entrave à coletividade, especialmente aos cidadãos com menor poder aquisitivo, que não possuem condições financeiras para arcar com custos procedimentais burocráticos.
A presente pesquisa imprime seus esforços em fazer uma breve análise dos aspectos mais relevantes da Lei n. 13.865/19, publicada no Diário Oficial da União no dia 9 de agosto de 2019. A nova legislação, originada do PLC 164/2015, aprovada em julho de 2019 no Plenário do Senado, tem como escopo primordial a dispensa do habite-se a todas moradias populares do Brasil com caráter unifamiliar, de único pavimento e construídas há mais de 5 anos.
A referida norma viabiliza a regularização de imóveis de famílias de baixa renda sem o habite-se, que estejam em conformidade com exigências estabelecidas pela nova legislação, as quais são: casas com um pavimento (térreo), com mais de cinco anos de construção e que estejam em áreas ocupadas, preponderantemente, por populações de baixa renda. O novo texto de lei possibilita que os imóveis sejam registrados sem o habite-se até mesmo para fins de financiamento. A expectativa é que mais de 7 milhões de famílias serão beneficiadas com a lei.
Diante disso, o presente trabalho de pesquisa busca analisar os principais intentos da Lei n. 13.865/19 e de que forma a norma corrobora com o cumprimento da função social da propriedade urbana, com as funções sociais da cidade e com o direito à moradia.
Por conseguinte, sustenta-se a hipótese de que as alterações promovidas na Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/73), pela Lei n. 13.865/19, representam uma iniciativa do poder público a fim de minimizar o desenvolvimento informal de moradias no País, o que corrobora com o cumprimento da função social da propriedade, com as funções sociais da cidade e, consequentemente, com o direito à moradia.
O presente trabalho tem sua problemática investigada com base na pesquisa qualitativa, por ser esta extensamente utilizada em pesquisas jurídicas, sobretudo, por permitir processos observatórios com maior profundidade, além de possibilitar a exemplificação e contextualização da temática investigada. Quanto a seus objetivos será explicativa, pois tem como inquietação primordial identificar os fatores que corroboram com a ocorrência de um fenômeno.
O alcance dos objetivos da pesquisa é viabilizado a partir de sua organização em quatro partes, além da introdução. Precipuamente, faz-se uma breve introdução do tema, a partir de sua relevância temática e constatação de como este se manifesta na sociedade. Em seguida, aborda-se pontos essenciais acerca da função social da propriedade e o direito à moradia. O terceiro capítulo discute as mudanças legislativas advindas com a Lei n. 13.865/19, que promoveu alterações na Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/73). Por fim, a pesquisa apresenta suas considerações finais.
2 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA E O DIREITO À MORADIA
O instituto da função social da propriedade esteve presente em todas as constituições brasileiras, desde 1934. Mas foi com a constituinte de 1988 que a função social da propriedade urbana ganhou melhor elucidação quanto a seus objetivos, tendo em vista a construção de espaços urbanos mais dignos e menos desiguais. A Constituição de 1988, bem como, o Estatuto da Cidade, preconizam o princípio das funções sociais da propriedade e da cidade, em detrimento das concepções individualistas do Código Civil de 1916. “Com isso estabelecem-se as bases de um novo paradigma jurídico-político que controle o uso do solo e o desenvolvimento urbano pelo poder público e pela sociedade organizada” (FERNANDES, 2010, p.61).
O texto constitucional possibilitou um leque normativo que não se exaure nos dispositivos legais que regularmente disciplinam a função social da propriedade, quer seja ela urbana (art. 182) ou rural (art. 186). Fernandes (2010, p. 61) explica que a Lei Maior reconheceu o poder e a obrigação do poder público, especialmente dos municípios, de gerir e fiscalizar o processo de desenvolvimento urbano. As ações governamentais perpassam por iniciativas como a formulação de políticas territoriais e de uso do solo, nas quais as predileções individuais de proprietários de imóveis têm que coabitar com os interesses sociais, ambientais e outros.
A função social da propriedade está elencada na Constituição Federal no rol dos direitos e garantias individuais, art. 5º, inciso XXIII, da CF/88. O instituto, portanto, assume caráter de cláusula pétrea, e, por isso, não admite emenda constitucional para sua supressão. O princípio da função social da propriedade também é observado no título VII “Da Ordem Econômica e Financeira”, art. 170 caput e inciso III, da Constituição Federal. Dessa forma, a ordem econômica, assentada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, possui como propósito garantir a existência digna a todos, com base nos preceitos da justiça social e na observância de diversos princípios, entre os quais está a função social da propriedade.
Quando se trata da função social da propriedade urbana, esta é cumprida quando atende às exigências de gerenciamento e estruturação da cidade, conforme o plano diretor do município (art. 182, § 2º, da CF). O adequado aproveitamento do solo urbano é disciplinado pelo art. 182, § 4º, da Constituição Federal, e pelo Estatuto da Cidade. A correta utilização do solo urbano é requisito indispensável ao cumprimento da função social da propriedade. Para o imóvel subutilizado ou não utilizado, sanções progressivas são impostas pelo poder público, quais sejam: parcelamento ou edificação compulsórios, imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo e desapropriação com pagamento por meio de títulos da dívida pública, com prazo de resgate de até dez anos, conforme disposto no art. 182, § 4º, incisos I, II e III, da Carta Magna.
O texto constitucional determina que a política de desenvolvimento urbano seja desenvolvida, precipuamente, pelo poder público municipal (art. 182, CF). Dias (2012, p. 109) argumenta, no entanto, que não se pode desprezar o fato de que a responsabilidade do ente municipal para a implementação de políticas públicas de desenvolvimento urbano deve coadunar-se às diretrizes federais para o desenvolvimento urbano, as quais tratam do saneamento básico, dos transportes urbanos e da habitação (art. 21, XX).
A União, em razão de sua competência para tratar de assuntos de âmbito federal, há que produzir normas e diretrizes gerais para a política de desenvolvimento urbano nacional, diretrizes essas que os entes municipais haverá de obedecer e considerar, quando da criação de suas leis orgânicas e da produção de seus planos diretores e demais normas urbanísticas. (DIAS, 2012, p. 109).
A função social da propriedade também está disciplinada no art. 186, da CF, que dispõe sobre a propriedade rural – a qual não é objeto de análise desta presente pesquisa –, e em outros dispositivos espraiados do texto constitucional, mesmo que de forma implícita. Como exemplo disso, é possível observar a função social da propriedade como um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, uma vez que tal instituído está atrelado à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF), um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Sobre isso, Fernandes (2010, p. 59) afirma: “a propriedade urbana é explicitamente reconhecida como direito fundamental desde que cumpra funções sociais, que são aquelas determinadas pelos planos diretores municipais e outras leis urbanísticas e ambientais”.
Nesse sentido, o poder público está legitimado, por meio de leis e diversos instrumentos jurídicos, urbanísticos e financeiros, a determinar medidas que corroborem com o desenvolvimento das cidades e da sociedade de forma geral, ponderando interesses individuais e coletivos quanto à utilização do solo urbano. Em vista disso, em que pese o caráter individual da propriedade seja importante para fins de titularidade do imóvel e fomento para a economia, não deve se sobrepor aos anseios coletivos.Destarte, conforme explanado alhures, a fim de se alcançar o cumprimento da função social, a finalidade coletiva deve se sobrepor aos interesses individuais, até mesmo em observância ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, do qual decorre a possibilidade de desapropriação – única forma supressiva de intervenção do Estado na propriedade.
Em 1911, o francês León Duguit, ao se pronunciar na Faculdade de Direito de Buenos Aires sobre o princípio da função social da propriedade, propôs “a tese de que cada vez mais a propriedade deixa de ser um direito subjetivo e passa a ser uma função social do possuidor da riqueza” (MATTOS NETO, 2018, p. 39).
Em relação à função social da propriedade urbana, destaca-se que o próprio Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/01) disciplina normas de ordem pública e interesse social que legitimam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança, bem-estar da sociedade e meio ambiente (cap. I, art. 1º, parágrafo único). Por conseguinte, afirma que “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana […]” (art. 2º, Lei n. 10.257/01).
Rodrigues (2004, p.13) afirma que “a cidade real, nas grandes aglomerações urbanas, deixa de ser ficção, com o reconhecimento da legitimidade da ocupação de terras para moradia, a possibilidade de legalização jurídica das áreas/imóveis ocupados com a finalidade de morar”. Com isso, busca-se assegurar a permanência das famílias nas áreas ocupadas, desde que os moradores não estejam em situação de perigo ou haja violação ao cumprimento da função social da cidade.
A proteção à moradia também está disciplinada na Constituição Federal de 1988, nas diretrizes da política urbana definidas pelo Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001), que inclui a função social da cidade. Não menos importante, a habitação está inserida no rol dos direitos sociais (art. 6º, CF). Sua efetivação, tal qual o instituto da função social da propriedade, está atrelada intrinsecamente à dignidade da pessoa humana. A moradia, portanto, é um direito que não pode ser negligenciado, sendo reconhecida, inclusive, como direito humano pela Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948).
No contexto internacional, a moradia, como mencionado, é considerado um direito humano e fundamental em vários instrumentos de proteção (acordos e tratados) dos quais o Brasil é signatário, a exemplo do Protocolo de San Salvador (Sistema Interamericano de Proteção Internacional dos Direitos Humanos) e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), monitorado pelo Comitê da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Segundo Santos et al. (2016, p. 225) “a legislação protetiva à moradia experimentou, assim, um grande avanço, demandando soluções que desafiem o poder público a priorizá-la na alocação de seu orçamento”.
A seguir, essa pesquisa tratará sobre o habite-se e as mudanças legislativas que dispensaram esse documento a moradias populares no Brasil, corroborando, assim, com o cumprimento da função social da propriedade urbana, à medida que favoreceu a regularização de imóveis a famílias de baixa renda.
3 DISPENSA DE HABITE-SE NA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS
O habite-se é a nomenclatura usual para o termo técnico auto de conclusão de obra. Trata-se de uma certidão expedida pela prefeitura a qual atesta que o imóvel, seja casa ou prédio residencial ou comercial, está legalmente apto a ser habitado e que foi construído ou reformado em conformidade às exigências normativas estabelecidas pelo município, especialmente o Código de Obras.
O habite-se, então, é o resultado dos trâmites legais e procedimentais que possibilitam a escritura de imóveis a pessoas físicas ou jurídicas. O procedimento inicia-se com o requerimento do proprietário (pessoa física ou jurídica) perante o órgão municipal competente, o qual deve providenciar vistoria ao local onde está situado o imóvel. O intuito da inspeção in loco é averiguar se a construção erguida condiz com o projeto inicialmente aprovado.
Os trâmites procedimentais incorporam outras peculiaridades, a depender das regras estabelecidas por cada município, o que denota certa variação para a concessão do habite-se. Em alguns locais, a obra não é vistoriada por engenheiro designado pela prefeitura e o auto de conclusão de obra é emitido apenas com base na declaração escrita do engenheiro civil responsável pela obra, o qual atesta que o empreendimento está concluso.
Nas grandes cidades, no entanto, muitas construções são erguidas de forma irregular, sem o projeto de um engenheiro ou arquiteto e sem que a prefeitura tenha conhecimento da obra, sobretudo, em bairros periféricos. Embora o auto de conclusão de obra seja, por diversas vezes, negligenciado na prática, este sempre foi indispensável a qualquer empreendimento, até a vigência da Lei n. 13.865/19.
A averbação e expedição do habite-se atesta, portanto, que o imóvel está em consonância com os trâmites legais junto à prefeitura, de acordo com as exigências regulamentadas por cada cidade ou município, principalmente com o Código de Obras e o Plano Diretor. A institucionalização do habite-se ocorre, sobretudo, em âmbito municipal. Na esfera federal há breves referências ao habite-se, a exemplo do art. 237-A da Lei n. 6.015/73, mas a legislação não dispõe sobre procedimentos técnicos normativos (SUMI et al. 2020, p. 129).
O habite-se, no entanto, mostra-se mais efetivo quando se trata de grandes construções, especialmente empreendimentos condominiais e comerciais. A licença é requisito indispensável à entrega de qualquer imóvel, com ressalva à flexibilidade trazida pela Lei n. 13.865/19. Sem o auto de conclusão da obra não há a instalação de condomínio, pois, caso haja, será irregular, tampouco é possível se obter a individualização da matrícula do bem perante o cartório de registro de imóveis competente e, por conseguinte, não é possível fazer o repasse das chaves. A ausência da licença para prédios residenciais ou comerciais implica na impossibilidade de constituição de condomínio e, consequentemente, na criação de convenção condominial, bem como impede o rateio entre os proprietários das unidades, com o intuito de estabelecer direitos e deveres. Assim, a construtora, antes da entrega do imóvel, deve cumprir vários requisitos para que possa solicitar o habite-se, a exemplo da documentação que demonstre regularidade junto à concessionária de energia e companhia de água.
Da mesma forma, é indispensável a obtenção do Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB). O documento certifica que a obra erguida está em consonância com os padrões de segurança estabelecidos, como condições contra incêndio que possuem prazo de revalidação determinado.
Ressalta-se que após a expedição do habite-se, o imóvel será submetido à vistoria por agente da prefeitura. Caso constate-se alguma irregularidade, o auto de conclusão de obra poderá ser indeferido até que as pendências sejam sanadas. As medidas se fazem necessárias uma vez que a licença tem por objetivo atestar que a construção foi erguida em conformidade com a legislação vigente e, com isso, certificar habitação segura aos ocupantes do imóvel.
A ausência do habite-se influencia diretamente na regularidade da documentação e na matrícula do imóvel, inclusive na alienação do bem, pois sem a licença este estará irregular junto ao município, o que impactará diretamente no seu valor de mercado, ou seja, na sua comercialização. Por conseguinte, a inexistência de habite-se é impedimento à concessão de financiamento bancário pelo futuro adquirente.
A Lei n 13.865/19, objeto de análise desta pesquisa, é fruto do PLC 164/2015. A nova legislação foi sancionada em 8 de agosto de 2019 e publicada no dia subsequente no Diário Oficial da União, data em que passou a vigorar, 9 de agosto de 2019. A nova norma em comento altera a Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/73), com o intuito de dispensar o habite-se na averbação de construção residencial urbana unifamiliar, de um único pavimento, com construção concluída há mais de cinco anos, em área ocupada predominantemente por população de baixa renda.A legislação não se delonga em diversos dispositivos legais. Pelo contrário, é composta de apenas dois artigos: o primeiro refere-se à alteração na Lei de Registros Públicos e o segundo vincula a vigência da norma à data de sua publicação. O objetivo da norma foi acrescer o art. 247-A na Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, ipsis litteris a seguir:
“Art. 247-A. É dispensado o habite-se expedido pela prefeitura municipal para a averbação de construção residencial urbana unifamiliar de um só pavimento finalizada há mais de 5 (cinco) anos em área ocupada predominantemente por população de baixa renda, inclusive para o fim de registro ou averbação decorrente de financiamento à moradia.”
A Lei 6.015/1973 criou diversos tipos de Registros para a publicidade jurídica de fatos ou situações jurídicas de naturezas diversas. Nesse sentido, existem diferentes tipos de registradores, cada qual com atribuições e competências dissemelhantes.
Antes das alterações promovidas pela Lei n. 13.865/19, a Lei de Registros Públicos era silente quanto à dispensa de habite-se em casos singulares, como o proposto pela nova legislação. O capítulo VIII “Da Averbação e do Cancelamento” restringe-se apenas às formas de cancelamento e averbações na matrícula do imóvel. Não se pode desprezar o fato de que a Lei n. 6.015 é do ano de 1973, momento em que o crescimento urbano informal começou a expandir-se de forma mais acelerada.
Concomitantemente a isso, Fernandes (2010, p. 59) salienta que o desenvolvimento urbano informal ganhou maior proporção a partir da década de 1970, sendo resultado, dentre outros fatores, da natureza elitista e tecnocrática do planejamento urbano implementado em vários municípios. Então, não se poderia prever com exatidão, ainda naquela época, que o crescimento dos grandes centros urbanos brasileiros chegaria à dimensão dos dias atuais. Isso torna a Lei de Registros Públicos parcialmente anacrônica, pois se deixou ultrapassar pelo desenvolvimento contínuo das cidades e da sociedade em que se aplica, fato que justifica as alterações advindas com a Lei n. 13.865/19.
Observa-se que a nova legislação presta-se a auxiliar os governos municipais no enfrentamento das questões urbanas e sociais, no tocante à escrituração de moradias irregulares de famílias de baixa renda que, por estarem em situação de vulnerabilidade econômica, não possuem condições financeiras de arcar com os custos dos procedimentos junto à prefeitura e aos cartórios de registros públicos.
Quando regularizado, o imóvel passa a ter maior valor de mercado, o que corrobora com o crescimento ordenado das cidades e com o desenvolvimento social e econômico de forma ampla. Ao facilitar a escritura de imóveis a moradores de baixa renda, a Lei n. 13.865/19 corrobora com a inserção urbana dessas famílias, ao minimizar, ao menos em parte, a segregação socioespacial em que se encontram. Fernandes (2010, p. 56) considera que a ausência de medidas governamentais viáveis, bem como, a natureza elitista e tecnocrática da limitada intervenção governamental, foi um dos fatores primordiais que impulsionaram a natureza excludente do processo de desenvolvimento fundiário urbano do País.
A questão fundamental da nova legislação é que a dispensa do habite-se destina-se apenas a casas populares e famílias de baixa renda, construídas há mais de cinco anos. O recorte econômico de quem será beneficiado com o novo texto da lei pode ser observado como uma forma de efetivação legal do direito à moradia, além de ser uma tentativa de minimizar as lacunas históricas do processo de urbanização apontadas alhures.
O critério temporal estabelecido pela legislação (moradias construídas há mais de cinco anos) pode ser considerado como meio de barrar intentos fraudulentos de favorecimento da norma àqueles que não se inserem nos critérios exigidos por lei, uma vez que casas a serem construídas, dentro dos parâmetros legais de um pavimento, não são objeto de dispensa de habite-se. Ademais, esse marco temporal revela que a ausência de regulamentação de moradias é um problema antigo e que, caso não houvesse a mudança legislativa, estender-se-ia por longos anos e inflamaria ainda mais a questão de moradias irregulares no Brasil. A expectativa é que mais de sete milhões de famílias sejam beneficiadas com a lei.
A Lei n. 13.865/19, que acresceu o art. 247-A à Lei de Registro Público, também contempla moradias populares que precisam ser regularizadas para fins de financiamentos. Como mencionado alhures, a falta de habite-se reflete na regularidade da documentação e na matrícula do imóvel, inclusive na alienação e financiamento da propriedade. A ausência de registro junto ao cartório de imóveis, mais que impactos legais, ocasiona perdas financeiras, à medida que o imóvel a ser comercializado, caso esteja irregular, possui cotação abaixo do valor de mercado. Ademais, a inexistência de habite-se é impedimento à concessão de financiamento bancário.
Por conseguinte, os preceitos da função social da propriedade, alicerçados no art. 170, III, da CF, condicionam tal princípio à existência digna de todos e à atividade econômica. Dessa forma, ao dispensar o habite-se a moradias de famílias de baixa renda, inclusive para fins de financiamento bancário, a legislação em comento corrobora com o cumprimento da função social da propriedade no tocante às disposições constitucionais da ordem econômica e financeira, que também preconiza em seu art. 170, inciso VII, a redução das desigualdades regionais e sociais.
O Estatuto da Cidade evidencia que a cidade é desigualmente construída, e aponta uma nova perspectiva para o planejamento urbano ao regulamentar instrumentos à aplicação de normas urbanísticas. “Embora possa ser considerado um novo paradigma para o planejamento e a gestão urbana, o paradigma dominante é ainda o do planejamento estático, setorial, burocratizado” (RODRIGUES, 2004, p. 13). É justamente essa burocracia que a Lei n. 13.865/19 busca desmantelar, ao flexibilizar a Lei de Registros Públicos, em atendimento aos anseios da população mais carente, ao possibilitar trâmites legais mais acessíveis àqueles que mais precisam e, com isso, garantir o direito à cidade.
Outra peculiaridade da legislação é que ela contempla “área ocupada predominantemente por população de baixa renda”. O termo “predominantemente” pode ser observado de duas formas. A primeira e a mais notória delas é que a lei destina-se a atender, sobretudo, localidades em situação de vulnerabilidade social e econômica. A segunda interpretação perceptível é que o termo “predominantemente” foi empregado, pelo legislador, de forma a não restringir totalmente as áreas a serem beneficiadas, pois é sabido que o crescimento das cidades propiciou bolsões de pobrezas inclusive nos bairros considerados nobres. Tratam-se de enclaves desenvolvimentistas, onde coexistem no mesmo espaço duas realidades: a rica e a pobre. Geralmente, são áreas valorizadas com grandes edificações localizadas nos grandes centros urbanos, mas que ainda reservam recinto a moradias antigas, que não retratam a esmagadora realidade local.
Ante o exposto, a análise da redação da nova legislação mostra que seu intento primordial é minorar mazelas históricas da segregação urbana, especialmente daqueles indivíduos que estão em desvantagem econômica, social e espacial. Ressalta-se que o advento da Lei n. 13.865/19 não sana todas as mazelas existentes quanto ao desenvolvimento informal das moradias no País, mas é uma tentativa de reduzir o campo das desigualdades e cumprir os mandamentos constitucionais e atinentes ao Estatuto da Cidade, além outras normas presentes no ordenamento jurídico.
A questão urbanística ainda carece de outras legislações com respostas a questões urbanísticas que perduram décadas, mesmo porque o poder público é agente fundamental na implementação de instrumentos de planejamento. Nesse sentido, os entes federativos – União, Estados e Municípios – devem aglutinar esforços, ou seja, em prol da aplicação de medidas, legais ou executivas, concernentes a sanar ou, pelo menos, minimizar o impasse das moradias irregulares no País, além de outros problemas de ordem urbanística.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei n. 13.865/19 acresceu o art. 247-A à Lei de Registro Público (Lei n. 6.015/73) com o objetivo de dispensar o habite-se a moradias de único pavimento construídas há mais de cinco anos, em áreas predominantemente de baixa renda. A nova legislação facilita a escritura do imóvel a moradores economicamente hipossuficientes.
Diante disso, considera-se que o advento da legislação é um passo importante na redução do desenvolvimento informal de moradias no País, que, segundo o Senado, beneficiará sete milhões de famílias. Observa-se que a legislação é uma norma importante na tentativa de minorar a segregação socioespacial do espaço urbano.
Ao flexibilizar a Lei de Registros Públicos, a Lei n. 13.865/19 atende famílias de baixa renda que, talvez, nunca teriam a oportunidade de legalizar seu imóvel e, até mesmo, vendê-lo por preço compatível com valor de mercado, uma vez que os custos operacionais e a burocracia imposta pelos órgãos públicos à regulamentação é, por diversas vezes, um entrave à consolidação ao direito à moradia e ao desenvolvimento econômico das cidades.
A alteração não é uma brecha legislativa com a intenção de burlar os trâmites normativos necessários ao habite-se. É uma forma de garantir isonomia e a promoção da dignidade da pessoa humana àqueles que, por vezes, estão invisíveis no processo urbanístico, por estarem em condição de hipossuficiência. Prova disso, é que a legislação contempla apenas uma única espécie de imóvel, qual seja: residência urbana unifamiliar, de apenas um pavimento. Dessa forma, não é isonômico a exigência do habite-se, nas mesmas condições, às grandes edificações, como edifícios condominiais, e às construções concluídas há mais de cinco anos, nos termos da legislação em comento.
O lapso temporal aponta que a construção de pavimento térreo, especificada pela legislação, dificilmente trará riscos à população que a circunda, uma vez que esta deve ter o tempo mínimo de finalização de, pelo menos, cinco anos. A nova legislação, então, está em consonância com o princípio da função social da propriedade urbana e funções sociais da cidade, à medida que destina seus esforços aos anseios da coletividade e a diminuir as desigualdades sociais no tocante à informalidade das habitações, o que, consequentemente, é uma forma de concretização do direito à moradia.
No mesmo sentido, a legislação responde alguns anseios sociais que refletem a efetivação de fundamentos da República Federativa do Brasil de promover, entre tantos objetivos, o desenvolvimento nacional; construir uma sociedade livre, justa e solidária; e reduzir as desigualdades sociais e regionais.
A presente pesquisa não esgota a questão abordada. A temática ainda demanda discussões mais profundas, até mesmo em decorrência da recente vigência da lei. A análise, no entanto, dos propósitos primordiais da lei foi atingida. Resta agora mensurar a efetividade de sua aplicabilidade prática em posterior estudo.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Lei n. 6.015, de 31 de dez. de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Brasília, DF, dez. 1973.
BRASIL. Lei n. 13.865, de 8 de ago. de 2019. Dispõe sobre a alteração na Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), para dispensa de habite-se. Brasília, DF, ago. 2019.
ASSEMBLEIA GERAL DA ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, 1948.
CNM. Nova lei dispensa exigência de habite-se para moradia de baixa renda. Disponível em: <https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/nova-lei-dispensa-exigencia-de-habite-se-para-moradia-de-baixa-renda>. Acesso em: 12 de ago. 2019.
COSANPA. Procedimento para licenciamento de instalações prediais. Disponível em: <https://www.cosanpa.pa.gov.br/wp-content/uploads/2020/11/REQUERIMENTO-DE-VIABILIDADE-ATUAL.pdf>. Acesso em: 07 de nov. 2022.
DIAS, Daniella Maria dos Santos. Planejamento e ordenamento territorial no sistema jurídico brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. p 107-115, 2012.
FERNANDES, Edesio. O Estatuto da Cidade e a ordem jurídico-urbanística. Pulic Completa, p. 55-70, 31 nov. 2010.
JUSBRASIL. O que é habite-se? Entenda a importância desse documento para a conclusão de qualquer empreendimento imobiliário. Disponível em: <https://ivanmercadante.jusbrasil.com.br/artigos/159853722/o-que-e-habite-se>. Acesso em: 12 de ago. 2019.
MATTOS NETO, Antonio José. Curso de Direito Agroambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2018.
RODRIGUES, Arlete Moysés. Estatuto da Cidade: função social da cidade e da propriedade. Alguns aspectos sobre população urbana e espaço. Cadernos Metrópole, n.12, p. 9-25, 2º sem. 2004.
SANTOS, A. M. S. P.; MEDEIROS, M. G. P.; LUFT, R. M. Direito à moradia: um direito social em construção no brasil – a experiência do aluguel social no rio de janeiro. Planejamento e políticas públicas | ppp | n. 46 | jan./jun. 2016.
SENADO. Nova lei permite regularização de imóvel sem habite-se a famílias pobres. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/08/09/nova-lei-permite-regularizacao-de-imovel-sem-habite-se-a-familias-pobres>. Acesso em: 12 de ago. 2019.SUMI, C. M.., Moretini, Érika ., Teixeira , P. P. ., Scatena , T. P., & Lucredi, V. R. . (2020). A porosidade dos novos mecanismos de regularização: a territorialização do Habite-se em Ribeirão Preto. Indisciplinar, 6(1), 120–139. Disponível em: <https://doi.org/10.35699/2525-3263.2020.26248>. Acesso em: 07 de nov. 2022.
1Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Pará. Pós-graduanda em Direito Processual Civil (Centro Universitário UniDomBosco). Advogada e jornalista. E-mail: samilla.cbatista@clara
2SENADO. Nova lei permite regularização de imóvel sem habite-se a famílias pobres. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/08/09/nova-lei-permite-regularizacao-de-imovel-sem-habite-se-a-familias-pobres>. Acesso em: 12 de ago. 2019.
3Proposta de emenda à Constituição (PEC) n° 80, apresentada em 21 de maio de 2019, pretende alterar os artigos 182 e 186 da Constituição Federal, que tratam da função social da propriedade urbana e rural, respectivamente.
4A ONU possui Relatoria Especial destinada ao Direito à Moradia, e sua função é examinar, monitorar, aconselhar e relatar a situação do direito à moradia no mundo, promover assistência a governos e a cooperação para garantir melhores condições de moradia e estimular o diálogo com os outros órgãos da ONU e organizações internacionais com o mesmo fim
5No caso da Companhia de Saneamento do Pará (COSANPA), após a execução das ligações definitivas de abastecimento de água e de coleta de esgoto sanitário, a Diretoria de Expansão e Tecnologia (DET) emite a Declaração de Habite-se, onde a Companhia atesta a ligação de suas instalações à concessionária, encerrando o processo na COSANPA. COSANPA. Procedimento para licenciamento de instalações prediais. Disponível em: <https://www.cosanpa.pa.gov.br/wp-content/uploads/2020/11/REQUERIMENTO-DE-VIABILIDADE-ATUAL.pdf>. Acesso em: 07 de nov. 2022.
6JUSBRASIL. O que é habite-se? Entenda a importância desse documento para a conclusão de qualquer empreendimento imobiliário. Disponível em: <https://ivanmercadante.jusbrasil.com.br/artigos/159853722/o-que-e-habite-se>. Acesso em: 12 de ago. 2019.
7SENADO. Nova lei permite regularização de imóvel sem habite-se a famílias pobres. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/08/09/nova-lei-permite-regularizacao-de-imovel-sem-habite-se-a-familias-pobres>. Acesso em: 12 de ago. 2019.