REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7313379
João Carlos Vicente de Barros Jr1
Chimene Kuhn Nobre1
Rodrigo Jacon Jacob1
Daniele Simone Dantas da Silva1
Felipe Camacho2
Bárbara Camacho2
Fabiana Martins Vieira2
Maria Fernanda Borro Bijella3
Resumo
Os traumatismos dentários são achados relativamente comuns em casos de incidentes como acidentes de trânsito, violência, quedas e acidentes esportivos, nos quais há trauma de face. O objetivo deste trabalho é fazer um relato de caso no qual um paciente apresentava fragmento dentário, 10 anos após acidente de trânsito, encarcerado em lábio inferior. Este fragmento foi removido cirurgicamente sob anestesia local. Este caso ilustra a importância de se fazer uma checagem vigorosa das feridas intra ou extraorais, a procura de corpos estranhos, antes de se realizar a sutura, principalmente em casos de traumatismos dentários associados a feridas em tecidos moles.
Palavras-chave: corpo estranho; fragmento dentário; traumatismo dentário
Abstract
Dental trauma are common findings in case of incidents such as traffic accidents, assaults, and sports accidents, in which there is facial trauma. The aim of this paper is to report a clinical case of a patient who reported a dental fragment embedded in the inferior lip for 10 years after a traffic accident. This fragment was removed surgically under local anesthesia. This case report illustrates the importance of a thorough wound intraoral or extraoral inspection prior to suturing in cases of dental trauma associated with soft tissue wounds.
Keywords: foreign body; dental fragment; dental trauma
Introdução
O traumatismo dentoalveolar é um achado relativamente comum em intercorrências como quedas, agressões, acidentes de trânsito, esportes ou trabalho. Dentro destas etiologias, a queda é a mais comum (PEKTAS; KIRCELLI; USLU, 2007).
Os dentes mais comumente acometidos nos traumas são os incisivos centrais superiores, devido a sua projeção e posição anatômica (MUNERATO et al, 2008). Dentro das injúrias dentais, a mais comum é a fratura coronária simples, que pode envolver somente o esmalte, ou o esmalte em conjunto com a dentina (BASUTTIL, FUNG, 2007).
Lesões em tecidos moles são frequentemente associadas com os traumatismos dentários, haja vista que aproximadamente 62% destes traumas são acompanhados por lacerações em lábio, de acordo com dados da literatura (CUBUKCU et al, 2011). O principal motivo das lacerações, ou até mesmo perfurações do lábio, são os incisivos fraturados (SCHWENGBER; CARDOSO; VIEIRA, 2010). É de conhecimento que a energia do impacto, além de causar fratura dentária e lesões em tecidos vizinhos, pode também causar encarceramento de fragmentos dentários em lábios. Há relato de encarceramento em língua, porém a casuística é menor (RAO, HEGDE, 2006) e (NAGAVENI, N. B.; UMASHANKARA, 2014). Se não detectados, os fragmentos encarcerados podem levar a complicações como infecção purulenta ou fibrose, o que pode levar a uma sequela estética (NAGAVENI, UMASHANKARA, 2014). Existem relatos na literatura de fragmentos não detectados que extruíram espontaneamente com o passar do tempo (NAGAVENI, N. B.; UMASHANKARA, 2014).
Ao se realizar o atendimento de urgência, o profissional deve inspecionar cuidadosamente o local do trauma, seja através de exame clínico intra e extra oral, seja através de exames radiográficos, se for o caso (RAO, HEGDE, 2006). A associação entre lacerações e dentes fraturados ou ausentes, deve levar à suspeita de fragmento dentário encarcerado em tecido mole (RAO, HEGDE, 2006). No primeiro atendimento, ao ser detectado, o fragmento deve ser removido prontamente, para que se evitem futuras complicações (NAGAVENI, N. B.; UMASHANKARA, 2014).
Relato de caso
Paciente do sexo masculino, 34 anos de idade, compareceu à clínica odontológica da Faculdade de Odontologia da UNIRON (Porto Velho/RO) para tratamento odontológico. Durante anamnese e exame clínico inicial, o paciente relatou que sofrera acidente de moto há 10 anos atrás, cuja consequência fora a fratura coronária dos incisivos centrais, os quais foram restaurados logo após o trauma (fig 1), e ferida em lábio inferior, a qual foi suturada no atendimento inicial.
Fig 1 – Restaurações de incisivos centrais superiores
Relatou também que, desde então relata aumento de volume em lábio inferior e cicatriz (figs 2 e 3), além de sofrer com um incômodo no mesmo local da ferida, desconfiando de que houvesse fragmento dentário alojado, em decorrência do traumatismo sofrido.
Fig 2 – Aumento de volume em lábio inferior, lado esquerdo
Fig 3 – Cicatriz em lábio inferior, lado esquerdo
Durante a consulta inicial, após o exame de palpação, realizou-se exame radiográfico para se visualizar o corpo estranho. Para tal, utilizou-se um filme radiográfico periapical, posicionado em fundo de vestíbulo, de tal modo que o feixe de radiação passasse na suposta localização do fragmento dentário. A incidência radiográfica foi realizada com uma kilovoltagem menor do que as utilizadas para radiografias periapicais convencionais.
Após a revelação do filme, evidenciou-se uma imagem radiográfica radiolúcida, sugestiva de esmalte dentário, confirmando a presença de corpo estranho encapsulado no lábio inferior (fig 4).
Fig 4 – Radiografia periapical realizada para localização de corpo estranho
Com todos os dados clínicos e radiográficos reunidos, decidiu-se pela remoção do corpo estranho com anestesia local. O paciente negou qualquer histórico de alergias ou doenças de base.
No dia da cirurgia, utilizou-se bochecho prévio com digluconato de clorexidina a 0,12% e anestesia infiltrativa mentoniana, lado esquerdo, em conjunto com anestesia infiltrativa local, em lábio inferior esquerdo. O anestésico utilizado foi a articaína a 2% com epinefrina 1:200.000. Com o auxílio de uma lâmina 15, uma incisão horizontal foi realizada em mucosa labial inferior, lado esquerdo, de aproximadamente 1,5 cm, com consequente divulsão por planos com uma pinça hemostática (figs 5 e 6) O fragmento encontrava-se em plano superficial e foi identificado facilmente, encoberto por cápsula fibrosa. Ato contínuo, após a sua remoção, realizou-se hemostasia e sutura de mucosa com fio nylon 5-0.
Fig 5– Remoção de corpo estranho em lábio inferior
Fig 6– Remoção de corpo estranho em lábio inferior
O corpo estranho era compatível com um pedaço de esmalte dentário, de aproximadamente 1 cm, de incisivo central superior (fig 7).
Fig 7 – Fragmento dentário compatível com borda incisal
de incisivo superior, de aproximadamente 1 cm.
O paciente foi orientado quanto aos cuidados pós-operatórios e medicado com anti-inflamatório (Nimesulida 100 mg, de 12/12 horas, por 3 dias) e analgésico (Dipirona 500 mg, de 6/6 horas) em caso de dor, tendo evoluído sem intercorrências no pós-operatório imediato.
Discussão
No que diz respeito a trauma de face, os traumatismos dentoalveolares englobam a maioria dos casos atendidos (MUNERATO et al, 2008). As fraturas coronárias de dentes superiores anteriores são responsáveis por 92% de todos os traumatismos dentoalveolares da dentição permanente (ALTUNDASAR, E.; DEMIRALP, 2013).
Paciente vítimas de trauma, em geral são atendidos em unidades de emergência, onde é realizado o protocolo de suporte de vida, que engloba manutenção de vias aéreas, estabilização de coluna cervical, ressuscitação cardiovascular e verificação de órgãos vitais, o que pode protelar, ou às vezes, tornar despercebidas as lesões em cavidade bucal (PEKTAS; KIRCELLI; USLU, 2007).
Os fragmentos dentários encarcerados dentro de feridas em tecido mole podem causar deiscência de sutura, feridas supurativas. fibrose ou podem encapsular e, se presos em lábio inferior, devido às contrações musculares do músculo orbicular da boca, podem migrar para as mais variadas direções (PEKTAS; KIRCELLI; USLU, 2007) e (SCHWENGBER; CARDOSO; VIEIRA, 2010). Além dessas complicações, pode haver também o risco de aspiração ou ingestão do fragmento (CUBUKCU et al, 2011).
Isto exposto, torna-se mister, no atendimento inicial ao paciente traumatizado, o exame extra e intraoral, compreendendo lábios, língua, gengiva, mucosa jugal e palato (Pasini, S. et al, 2006). O edema e sangramento podem atrapalhar o exame clínico, portanto as feridas presentes devem ser cuidadosamente inspecionadas, irrigadas e, se for o caso, inspecionadas com ajuda de instrumentais, tipo cureta de Lucas (CUBUKCU et al, 2011). Deve-se atentar sempre para a procura de dentes ou fragmentos dentários, nos casos em que haja dentes avulsionados e/ou fraturados, em conjunto com feridas em tecido mole (PEKTAS; KIRCELLI; USLU, 2007), (RAO, HEGDE, 2006) e (PASINI, S. et al, 2006). Para auxiliar na procura de fragmentos em tecidos moles, pode ser de grande valia o uso de exames radiográficos (Rao, Hegde, 2006), (MUNERATO et al, 2008), (NAGAVENI, UMASHANKARA, 2014), (PEKTAS; KIRCELLI; USLU, 2007) e (SCHWENGBER; CARDOSO; VIEIRA, 2010). No caso de uso de radiografias periapicais, recomenda-se o uso de ¼ da dose de exposição usual para uma radiografia periapical (CUBUKCU et al, 2011).
Ressalta-se a importância de, além da inspeção criteriosa a procura de fragmentos dentários e outros corpos estranhos nas feridas em tecido mole, a degermação das feridas, elevação de suas bordas, remoção de fragmentos encontrados, irrigação copiosa da ferida com soro fisiológico, sutura por planos anatômicos e uma radiografia pós-operatória, para se descartar qualquer fragmento remanescente (RAO, HEGDE, 2006). O profissional deve ter em mente que as feridas devem ser bem inspecionadas, pois corpos estranhos como por exemplo farpas de madeira e fragmentos de pano não são detectáveis radiograficamente (RAO, HEGDE, 2006).
O presente trabalho relata um caso no qual o fragmento dentário ficou alojado em lábio inferior por 10 anos, por não ter sido percebido durante o atendimento inicial pós-trauma. Há na literatura relatos de fragmentos presos em tecido mole, mais comumente lábio inferior, por 15 dias (SCHWENGBER; CARDOSO; VIEIRA, 2010), 1 mês (ALTUNDASAR, E.; DEMIRALP, 2013), 6 semanas (MUNERATO et al, 2008), 8 meses (RAO, HEGDE, 2006) e até 3 anos (BASUTTIL, FUNG, 2007). Ele foi removido pelo fato de causar incômodo à palpação. Não havia infecção crônica. Clinicamente percebia-se fibrose, com aumento de volume, em lábio inferior. Se o fragmento dentário tivesse sido detectado e removido no atendimento inicial do trauma, haveria até a possibilidade de se aproveitar o próprio fragmento na reconstrução anatômica do dente, através do uso de resina, como previamente relatado na literatura por autores como (BASUTTIL, FUNG, 2007), (SCHWENGBER; CARDOSO; VIEIRA, 2010) e (PASINI, S. et al, 2006).
Conclusão
Os traumatismos dentoalveolares são comuns na ocorrência de trauma de face e não se deve negligenciá-los, pois fragmentos dentários e até mesmo dentes avulsionados podem ficar encarcerados em tecidos moles, sendo o lábio inferior o principal local de encarceramento. É de suma importância que se faça a inspeção intra e extraoral à procura de feridas. Na ocorrência destas, o profissional precisa realizar criteriosa inspeção dentro da ferida, degermação e lavagem com soro, além de sutura por planos. A combinação de fratura dentária e ferida em tecido mole deve levar o profissional a desconfiar de fragmentos dentários alojados dentro destas feridas. Qualquer fragmento dentário ou outro tipo de corpo estranho deve ser removido, sob pena de se desenvolver localmente infecção, deiscência de sutura ou fibrose. Os exames de imagens são úteis para a detecção da maioria dos corpos estranhos e devem ser utilizados sempre que possível.
Bibliografia
ALTUNDASAR, E.; DEMIRALP, B. The importance of soft tissue examination in post-traumatic decision-making: A case report Aust Endod J v. 39, p. 35–38, 2013.
BASUTTIL, N. A.; FUNG, D. E. Tooth fragment reattachment after retrieval from the lower lip – a case report. Dental Traumatology, v. 23, p. 177–180, 2007.
CUBUKCU, C.E. et al. Delayed removal of a primary incisor embedded in the upper lip after dental trauma: a case report about the importance of soft tissue examination. Dental Traumatology, v. 27, p. 314–317, 2011.
MUNERATO, M. C. et al. Tooth fragments lodged in the lower lip after traumatic dental injury: a case report. Dental Traumatology, v. 24, p. 487–489, 2008.
NAGAVENI, N. B.; UMASHANKARA, K. V. Tooth fragment embedded in the lower lip for 10 months following dentoalveolar trauma: A case report with literature review Burns & Trauma, v. 2, 2014.
PASINI, S. et al. Surgical removal and immediate reattachment of coronal fragment embedded in lip Dental Traumatology v. 22, p. 165–168, 2006.
PEKTAS, Z. O.; KIRCELLI B. H.; USLU, H. Displacement of tooth fragments to the lower lip: a report of a case presenting an immediate diagnostic approach. Dental Traumatology, v. 23, p. 376–379, 2007.
RAO, D.; HEGDE, S. Spontaneous eruption of an occult incisor fragment from the lip after eight months: Report of a case J Clin Pediatr Dent, v.26, p. 195–198, 2006.
SCHWENGBER, G. F.; CARDOSO, M.; VIEIRA, R.S. Bonding of fractured permanent central incisor crown following radiographic localization of the tooth fragment in the lower lip: a case report. Dental Traumatology, v. 26, p. 434–437, 2010.
1Professor (a)do curso de Odontologia da UNIRON – Porto Velho/RO
2Discente do curso de Odontologia da UNIRON – Porto Velho/RO
3Coordenadora do curso de Odontologia da UNIRON – Porto Velho/RO