FOME ESTRUTURAL E A (IN) SEGURANÇA NO BRASIL: UMA REALIDADE CADA VEZ MAIS PRESENTE NA VIDA DAS CRIANÇAS NEGRAS, POBRES E MORADORAS NAS PERIFERIAS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7637584


Ariane Silva Carvalho[1]
Heloísa Ivone da Silva de Carvalho[2]


RESUMO

Este trabalho objetiva investigar a (in)segurança alimentar e a fome estrutural sob o olhar da interseccionalidade, problematizando as questões socioeconômicas, étnico-raciais, geracionais e territorial, no período de 2019 a 2021, problematizando as questões socioeconômicas, étnico-raciais, gênero e territorial, considerando a pandemia da COVID 19, período histórico de insegurança alimentar que tem se agravado no Brasil. A fome está ainda mais presente na vida de brasileiras e brasileiros. O recorte etário são crianças de um a seis anos de idade, a importância dos primeiros anos de vida e de ações institucionais coordenadas pelo poder público. Para alcançar os objetivos propostos, foram realizadas análises documentais as legislações e dados publicados pela UNICEF e UNESCO (2019, 2020 e 2021) e uma pesquisa bibliográfica em artigos das principais revistas no campo da saúde nutricional e segurança alimentar. É urgente políticas públicas que possam garantir o direito de cada criança a atingir o seu pleno potencial e uma agenda prioritária no campo dos direitos humanos. Para além do fato de a alimentação ser um direito básico e essencial, necessário considerar a lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN e prevê que a alimentação seja saudável, acessível, de qualidade, em quantidade suficiente e permanente. É fundamental priorizar os direitos humanos das crianças e potencializar o acesso das políticas públicas com as famílias para reverter o cenário que coloca o Brasil no mapa da fome e dar a elas ferramentas para minimizar os impactos socioeconômicos, garantir um ambiente de cuidado integral e integrado para as crianças, consequências da crise econômica na nutrição infantil que se agravou durante a pandemia. No que diz respeito aos resultados desta pesquisa, conclui-se que as crianças negras foram as maiores vítimas, sendo muitas vezes as “invisíveis” dos dados estatísticos, as mais afetadas diretamente pelo maior vírus que já existiu, a fome, a miséria e a insegurança alimentar. De acordo com os dados da UNICEF (2021), o número de crianças muito abaixo do peso aumentou 54,5% entre março de 2020 e novembro de 2021 (de 1,1% para 1,7%), índice correspondente a cerca de 324 mil (4,3%) crianças de até 5 anos incompletos. A partir desta pesquisa, reconhecemos que as crianças negras são as maiores vítimas, sendo muitas vezes as “invisíveis” dos dados estatísticos, as mais afetadas diretamente pelo maior vírus que já existiu, a fome, a miséria e a insegurança alimentar.

PALVRAS CHAVES: INSEGURANÇA ALIMENTAR, FOME ESTRUTURAL, SAÚDE NUTRICIONAL, CRIANÇAS NEGRAS.

INTRODUÇÃO

Este trabalho se propõe analisar a fome estrutural e a (in)segurança no brasil, considerando a pandemia da COVID 19, período histórico de insegurança alimentar que tem se agravado no Brasil. Nesse sentido, objetiva investigar a (in)segurança alimentar sob o olhar da interseccionalidade, problematizando as questões socioeconômicas, étnico-raciais, geracionais e territorial. O foco de pesquisa são crianças de 01 (um) a 6 (seis) anos, a partir dos impactos da (in)segurança alimentar no Brasil,nos períodos 2019 a 2021 às suas dimensões sociais, biológicas e econômicas; e a ampliação das políticas públicas eficazes a partir dos diagnósticos de insegurança alimentar na atualidade.

No final de 2020, organizações alertaram que mais de 120 milhões de pessoas poderiam ser colocadas em situação de insegurança alimentar, consequência direta da conjuntura social e econômica causada pela pandemia. Dentre os países com maior índice de fome estão Brasil, Índia e África do Sul.

Ao nos propormos dialogar sobre/com a infância, destacamos a nossa concepção de uma construção histórica. O mundo da criança nem sempre existiu. Historicamente não teve separação entre o mundo infantil e o mundo adulto, estes se resumiam em apenas um.  Historicamente a criança nunca foi detentora de direitos específicos as suas individualidades, só passando a ser considerada um sujeito de direito a partir do Estatuto da Criança e Adolescente- ECRIAD no ano de 1990.

No entanto com as crianças negras a vida de 0 a 6 anos era mais difícil: negação, não-ser, “peça” temporariamente inútil, mesmo após a promulgação da Lei do Ventre Livre, que estabelecia que “estariam livres os filhos dos trabalhadores escravizados nascidos no Brasil a partir da data de sua promulgação”, declarando assim a condição livre os filhos de mulher escrava que nasceram desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daqueles filhos menores e sobre a libertação anual de escravos. A abolição oficial da escravatura pouco, ou quase nada, mudou na vida das meninas e meninos negros. Estes continuaram sendo os parias da sociedade, “cidadãos” sem voz, impedidos de usufruir a infância.

Importante indagarmos quais são as responsabilidades do estado com os primeiros anos de vida? Quais são as ações institucionais têm sido coordenadas pelo poder público? Quais são as sequelas que a pandemia da COVID trouxe, no que diz respeito a insegurança alimentar que tem se agravado no Brasil?  A fome diminuiu ou aumentou na vida de brasileiras e brasileiros?

A desnutrição entre meninos negros (pretos e pardos) foi dois pontos percentuais acima do valor observado entre meninos brancos, ampliando a diferença a partir de 2018. O ápice foi observado em 2019 (7,5%). Em 2020, o percentual foi 7,2% e, em 2021, 7,4%. O governo federal, mais preocupado com estratégias de eleição, não olha para a margem da sociedade que está sofrendo pelo descaso e deficiência de políticas públicas (AGÊNCIA BRASIL, 2022).

Para alcançar os objetivos propostos nessa pesquisa, foram realizadas análises documentais das legislações vigentes, diálogos com pesquisadores e pesquisadoras do campo da insegurança alimentar, análises de gráficos e dos dados publicados pelo Fundo das Nações Unidas para a infância -UNICEF (2020, 2021) e pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura- UNESCO (2019, 2020 e 2021) e uma pesquisa bibliográfica em artigos das principais revistas de saúde nutricional e segurança alimentar.

O UNICEF foi criado em 11 de dezembro de 1946, pela Organização das Nações Unidas (ONU), para atender, na Europa e na China, às necessidades emergenciais das crianças durante o período pós-guerra. Em 1950, o mandato do Fundo foi estendido com a finalidade de atender, em projetos de longo prazo, crianças e mulheres nos países em desenvolvimento. O UNICEF tornou-se parte permanente das Nações Unidas em 1953.

Já a UNESCO é uma agência especializada das Nações Unidas (ONU) com sede em Paris, fundada em 4 de novembro de 1946, com o objetivo com o objetivo de garantir a paz por meio da cooperação intelectual entre as nações, acompanhando o desenvolvimento mundial e auxiliando os Estados-Membros, hoje são 193 países na busca de soluções para os problemas que desafiam nossas sociedades, foi estabelecida em 1964 e seu Escritório, em Brasília, iniciou as atividades em 1972, tendo como prioridades a defesa de uma educação de qualidade para todos e a promoção do desenvolvimento humano e social.

É urgente políticas públicas que possam garantir o direito de cada criança a atingir o seu pleno potencial e uma agenda prioritária no campo dos direitos humanos. Para além do fato da alimentação ser um direito básico e essencial, necessário considerar a lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN e prevê que a alimentação seja saudável, acessível, de qualidade, em quantidade suficiente e permanente.

Não obstante, a segurança alimentar e nutricional consiste em considerar/garantir o direito de todas as pessoas, ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Por isso, é essencial que o problema da saúde alimentar e nutricional, provoque intervenções multidimensionais que abordem as várias causas da desnutrição de modo intersetorial e que ofereçam uma resposta coordenada em várias dimensões. É preciso que as políticas públicas se voltem para a fome estrutural, especialmente neste momento tão crítico no que diz respeito as políticas públicas efetivas nos últimos quatro anos.

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA: DIÁLOGOS COM PESQUISADORES E PESQUISADORAS NO CAMPO DA SAÚDE E NUTRIÇÃO

Para Albuquerque e Filho (2006), o processo de escravização no Brasil foi muito mais do que um sistema econômico, ele modelou uma sociedade com condutas favoráveis a desigualdades sociais e raciais. Cada indivíduo foi ocupando seu espaço, existia quem mandava e quem obedecia. As pessoas escravizadas eram o grupo mais oprimido da sociedade brasileira, eles não tinham nenhum direito, não podiam firmar contratos, possuir bens materiais e nem testemunhar contra casos de maus tratos. Na atualidade o racismo tem se reinventado e ao falar de insegurança alimentar é importante refletirmos que a fome tem cor e território e são as crianças pretas as mais afetadas, sendo que maioria delas está em lares são chefiados por mulheres pretas. Consideramos que a insegurança alimentar também tem gênero.

Na tentativa de compreender essa interseccionalidade, Almeida (2018) traz a distinção entre preconceito, racismo e discriminação, vez que esses termos são compreendidos por algumas pessoas e grupos como sinônimos. Assim, preconceito deve ser entendido com a construção e definição de conceito sobre determinada pessoa ou grupo, estabelecida por fatores históricos e sociais. Racismo “é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios, a depender ao grupo racial ao qual pertençam” (ALMEIDA, 2018: 25). E discriminação é dar tratamento diferenciado em razão da raça.

Nesse sentido, a desigualdade racial encontra-se institucionalizado no imaginário nacional brasileiro, porque os estudos a respeito da desigualdade racial foram utilizados para justificar a inferioridade negra, não fazendo críticas sobre a condição do negro na sociedade. O racismo, como relação de poder e sustentação de privilégios, produz subjetividades e pode gerar sofrimento psíquico, afetando inclusive as crianças.

Em 2004 o Brasil  tendo como base, o Departamento Americano de Agricultura a escala capaz de medir diretamente a insegurança alimentar domiciliar, a partir das escalas de Radimer/Cornell 4,5 e do Projeto Comunitário de Identificação de Fome Infantil (CCHIP) 6, denominada U.S. Household Food Security Survey Measure (HFSSM), criou a  Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), com o intuito de medir  a percepção da insegurança alimentar e da fome em nível domiciliar, tendo como base a dificuldade de acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente; e o efeito dos programas e das políticas públicas em nível populacional (Poblacion, Ana et al).

 A Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS 2006) utilizando como base o EBIA realizou uma pesquisa  com o objetivo de obter informações referente as  pessoas em processo de crescimento, sendo a nutrição um fator fundamental para seu desenvolvimento, é importante trazer que a segurança alimentar em crianças até os cinco anos de idade é de extrema importância ,sendo responsável pelo desenvolvimento emocional, social, cognitivo e linguístico.

Perante o exposto é imprescindível garantir às crianças acesso regular e permanente a uma alimentação saudável e nutritiva, pois a ausência da mesma refletirá causando comprometimento no crescimento físico, mental e social. “A questão da alimentação, da fome e da má nutrição não pode ser olhada exclusivamente em sua dimensão econômica (acesso à renda), alimentar (disponibilidade de alimentos) ou biológica (estado nutricional)’’(Valente, FLS, 2003, pg 53).

É importante dizer que a alimentação precisa ser saudável e garantida as famílias das crianças que não, além de ser fundamental para o desenvolvimento da primeira infância, é imprescindível para o ser humano ao longo de toda a sua vida, contribuindo também para a formação e ação do sistema imunológico, responsável pela defesa do corpo contra doenças, inclusive na prevenção de doenças tais como anemia, distúrbios metabólicos, hipertensão, entre outras.

Diante da grande notoriedade da alimentação saudável, se faz necessário lembrar que este é um direito, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos: Artigo XXV-1. “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança.” (ONU, 1948), estando integralmente ligado à dignidade inerente à pessoa humana e é indispensável para a realização de outros direitos humanos consagrados na Carta de Direitos Humanos.

Siliprandi (2004) traz que mulheres e crianças são as mais atingidas em relação à fome e desnutrição, segundo ele tal vulnerabilidade está associada a identidade de gênero e a invisibilidade do trabalho das mulheres no campo da alimentação e no modo como a economia capitalista se assenta sobre o trabalho não pago realizado pelas mulheres. Um estudo realizado em 2012, encontrou maior insegurança alimentar entre famílias, com menos escolaridade e chefiado por mulheres.

Os referidos autores e autoras propuseram um marco conceitual de segurança alimentar e nutricional em que os determinantes macrossocioeconômicos, regionais, locais (estes, no âmbito da comunidade) e domiciliares se relacionam de forma hierárquica. Cada nível dessa hierarquia afeta o próximo e tem como referência o acesso a uma alimentação adequada em nível domiciliar, favorecida por um contexto sem restrição financeira (Kepple e Corrêa, (2011, pg.99, grifos nosso).

As diferenças na insegurança alimentar considerando o contexto geracional que aponta as crianças como as mais afetadas, foram muito mais fortes entre as famílias com mães solteiras e sem o hábito de alimentar-se em família, comparadas a famílias com mães casadas e que apresentavam esse hábito em sua rotina (Moffitt (2018).

Dados apresentados no Relatório 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança: avanços e desafios para meninos e meninas do Brasil, indicam que é necessário um esforço intersetorial – envolvendo saúde, educação, assistência social, entre outras áreas – para localizar cada um, entender as causas da exclusão escolar e tomar medidas necessárias para a matrícula e a permanência na escola. Mas estar na sala de aula não é o suficiente, é preciso aprender. Milhões de crianças e adolescentes estão sendo deixados para trás.

A FOME NO BRASIL TEM HORA? UM DIÁLOGO COM OS DADOS DO UNICEF E DA UNESCO

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), combater a má nutrição, em todas as suas formas, é um dos maiores desafios globais de saúde, num cenário em que quase uma em cada três pessoas sofre com pelo menos uma forma de desnutrição: aguda, crônica, por deficiência de vitaminas e minerais, sobrepeso ou obesidade ou, ainda, por doenças crônicas não transmissíveis relacionadas à dieta. Em conformidade com IBGE (2019), No que tange ao diagnóstico socioeconômico, as pessoas de cor ou raça preta ou parda representavam 57,7 milhões de pessoas da força de trabalho do país. Ou seja, 25,2% a mais quando comparada à população de cor ou raça branca na força de trabalho, de total 46,1 milhões (IBGE, 2019).

Infelizmente a fome tem sido vivenciada pelas crianças de 1 a 6 anos e suas respectivas famílias, considerando a pandemia da COVID 19, atingiu principalmente pobre, preta e de periferia. São urgentes políticas públicas que possam garantir o direito de cada criança a atingir o seu pleno potencial e uma agenda prioritária no campo dos direitos humanos. Para além do fato da alimentação ser um direito básico e essencial, necessário considerar a lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN e prevê que a alimentação seja saudável, acessível, de qualidade, em quantidade suficiente e permanente.

Tais dados indicam que, apesar dos avanços realizados a partir do idealizado na Declaração Educação para Todos (UNESCO, 1990), muitos são os desafios para que se efetive o ideário do direito à educação para todos. Além da garantia do acesso e da permanência, a aprendizagem é uma dimensão a ser perseguida.

A fome voltou a crescer e é um dos problemas mais graves do Brasil. De acordo com dados recentes divulgados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), três em cada dez famílias brasileiras enfrentam restrição no acesso à alimentação, um direito básico de todo cidadão.

Segundo a UNICEF (2022) a crise global da fome está levando uma criança à desnutrição grave a cada minuto em 15 países. Antes da cúpula do G7, o UNICEF pede US$ 1,2 bilhão para atender às necessidades urgentes de 8 milhões de crianças em risco de morte por desnutrição aguda grave. Desnutrição aguda grave, quando crianças são muito magras para sua altura, é a forma mais visível e letal de desnutrição. O sistema imunológico enfraquecido aumenta o risco de morte entre crianças menores de 5 anos em até 11 vezes em comparação com crianças bem nutridas.

Segundo Cotta e Machado (2013) no Brasil, observa-se dificuldade no acesso regular e permanente aos alimentos por uma parcela significativa da população, condição associada principalmente à renda insuficiente. Dessa maneira, programas que investem na melhoria de aspectos socioeconômicos e ambientais relacionados à agricultura e à saúde têm relação com a tendência global de redução da prevalência de desnutrição, especialmente em famílias com menor nível socioeconômico.

Mais da metade de todas as pessoas enfrentando a fome (418 milhões) vive na Ásia; mais de um terço (282 milhões) na África; e uma proporção menor (60 milhões) na América Latina e no Caribe. Mas o aumento mais acentuado da fome foi na África, onde a prevalência estimada, em 21% da população, é mais do que o dobro de qualquer outra região. Considerando o objetivo da nossa pesquisa destacamos o continente africano registrou o aumento mais significativo. Nesse sentido, estamos vivenciando um momento crítico para o mundo, que precisa de ações urgentes para uma reversão até 2030.

Desde o início do ano, a escalada da crise alimentar global levou 260 mil crianças a mais ou uma criança a cada 60 segundos à desnutrição aguda grave em 15 países que sofrem o impacto da crise, inclusive no Chifre da África e no Sahel Central. Esse aumento na desnutrição aguda grave soma-se aos níveis existentes de desnutrição infantil que, segundo alerta do UNICEF (2020) constituem um “potencial barril de pólvora” que precisa de um olhar sensível e de ações/programas do estado para avanços nas políticas públicas para as infâncias no Brasil

Em meados da década de 2010, a fome havia começado a aumentar, destruindo as esperanças de um declínio irreversível. Perturbadoramente, em 2020 a fome disparou em termos absolutos e proporcionais, ultrapassando o crescimento populacional: estima-se que cerca de 9,9% de todas as pessoas tenham sido afetadas no ano passado, ante 8,4% em 2019.Houve um agravamento dramático da fome mundial em 2020, as Nações Unidas disseram hoje – muito provavelmente relacionado às consequências da Covid-19. Embora o impacto da pandemia ainda não tenha sido totalmente mapeado, um relatório de várias agências estima que cerca de um décimo da população global, até 811 milhões de pessoas enfrentaram a fome no ano passado. O número sugere que será necessário um tremendo esforço para o mundo honrar sua promessa de acabar com a fome até 2030.

É necessário considerar que a situação se agravou ainda mais nesse ano de 2022 com o aumento dos preços dos alimentos impulsionado pela guerra na Ucrânia, a seca persistente devido às mudanças climáticas em alguns países, às vezes combinadas com conflitos, e o impacto econômico contínuo da covid-19 continuam a aumentar a insegurança alimentar e nutricional das crianças em todo o mundo, resultando em níveis catastróficos de desnutrição grave em crianças menores de cinco anos.

Em resposta, o UNICEF está intensificando seus esforços nos quinze países mais afetados. Afeganistão, Burkina Faso, Chade, Etiópia, Haiti, Iêmen, Madagascar, Mali, Níger, Nigéria, Quênia, República Democrática do Congo, Somália, Sudão e Sudão do Sul serão incluídos em um plano de aceleração para ajudar a evitar uma explosão de mortes na infância e mitigar os danos a longo prazo da desnutrição aguda grave. (UNICEF, 2022).

Mediante esse contexto dos quinze países, o UNICEF estima que pelo menos 40 milhões de crianças sofrem de insegurança nutricional grave, o que significa que não estão recebendo a dieta diversificada mínima necessária para crescer e se desenvolver na primeira infância. Além disso, 21 milhões de crianças sofrem de insegurança alimentar grave, o que significa que não têm acesso a alimentos suficientes para atender às necessidades alimentares mínimas, deixando-as em alto risco de desnutrição aguda grave.

 No que diz respeito ao Brasil, em 2021, 25,6% dos nossos recursos vieram de nossas alianças corporativas; 34,8%, de nossa sede em Nova Iorque e dos Comitês Nacionais para o UNICEF; 37,2%, de doações individuais; e 2,4% de outras organizações. A África registrou o aumento mais significativo. É um momento crítico para o mundo, que precisa de ações urgentes para uma reversão até 2030.

Para Monteiro (2009) o combate à má nutrição está entre os maiores desafios de saúde e precisa ser norteado conforme a realidade de cada região. Estudos que avaliem o estado nutricional são imprescindíveis para embasar intervenções, principalmente em crianças. O número total de crianças projetadas que sofre desnutrição aguda grave de janeiro a junho do ano 2022 foi estimado em 7.674.098 e 7.934.357, respectivamente, um aumento de 260.259 crianças a mais. Como resultado da crise alimentar global, o UNICEF também estima que o custo do tratamento da desnutrição infantil aguda já aumentou cerca de 16%, impulsionado em grande parte pelos aumentos no preço dos produtos nutricionais essenciais e suas matérias-primas.

FOME DE QUÊ? A [IN] VISIBILIDADE DAS CRIANÇAS NAS POLÍTICAS DE INSEGURANÇA ALIMENTAR: O QUE NOS DIZEM OS DADOS ESTATÍSTICOS?

GRÁFICO 1

Na análise do gráfico 1 do Mapa da Fome do Brasil, observa-se que a insegurança alimentar tem se agravado no Brasil, no período de 2014 a 2021, sendo que a fome está ainda mais presente na vida dos brasileiros em 2022. Segundo dados do novo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, apenas 4 entre 10 famílias conseguem acesso pleno à alimentação no país, seis de cada dez domicílios cujos responsáveis se identificavam como pretos ou pardos viviam em algum grau de insegurança alimentar, enquanto nos domicílios cujos responsáveis eram de raça/cor de pele branca autorreferida, mais de 50% tinham segurança alimentar garantida.

GRÁFICO 2

O gráfico 2 apresenta os dados do inquérito de segurança alimentar dos 2004 a 2022. Ao indagarmos porque a fome no Brasil aumentou nesses últimos 17 anos, problematizamos por que hoje temos 33 milhões de pessoas que não tem o que comer? Nesse contexto, é importante apresentar esses dados e contextualizar com as crianças que vivem numa sociedade que, por mais que não se queira ver racializada, mantém uma série de ações e atividades que denotam que este marcador é utilizado para definir lugares e espaços. É possível verificarmos, que a partir do contexto da pandemia da COVID-19, a insegurança alimentar moderada está presente em 15, 02% nos lares, enquanto a grave em 15,05%. Quem chefia a maioria desses domicílios? É a família branca ou negra (pretos e pardos)?

GRÁFICO 3

Os dados apresentados acima (gráfico 3) de raça/cor das crianças pequenininhas têm como característica a heteroidentificação; esse procedimento é “naturalizado”, o que faz parecer normal que a declaração de cor e/ou raça de crianças seja definida por seus pais, mães ou outros adultos por elas responsáveis, criando o imaginário de que crianças assim serão “preservadas” do debate acerca das relações raciais ROSEMBERG (1996); ROCHA, 2007). Em nossa sociedade racializada, a cor se transforma em raça em situações sociais como as que qualificam o negro como feio, ou brincadeiras com posições e hierarquias sociais (CORRÊA, 2017).

GRÁFICO 4

GRÁFICO 5

Infelizmente a fome tem sido vivenciada pelas crianças de um a seis anos e suas respectivas famílias, considerando a pandemia da COVID 19, atingiu principalmente pobre, preta e de periferia. Ao analisar os dados estatísticos do gráfico 4 e 5, percebe-se a urgência de políticas públicas que possam garantir o direito de cada criança a atingir o seu pleno potencial e uma agenda prioritária no campo dos direitos humanos. Para além do fato da alimentação ser um direito básico e essencial, necessário considerar a lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN e prevê que a alimentação seja saudável, acessível, de qualidade, em quantidade suficiente e permanente.

A QUE RESULTADOS CHEGAMOS?

As crianças negras são as maiores vítimas, sendo muitas vezes as “invisíveis” dos dados estatísticos, as mais afetadas diretamente pelo maior vírus que já existiu, a fome, a miséria e a insegurança alimentar. Essas negações de direitos impactaram, principalmente, crianças e famílias negras, pobres e localizadas em regiões periféricas.

A GUISA DA CONCLUSÃO

É fundamental priorizar os direitos humanos das crianças e potencializar o acesso das políticas públicas com as famílias em situação de pobreza para reverter o cenário que coloca o Brasil no mapa da fome e dar a elas ferramentas para minimizar os impactos socioeconômicos, garantir um ambiente de cuidado integral e integrado para as crianças, consequências da crise econômica na nutrição infantil que se agravou durante a pandemia. Kramer (1995) nos aponta que a inserção social diversa da criança impõe diferentes concepções de infância. Assim, é impossível universalizar este conceito. “Sendo essa inserção social diversa, é impróprio ou inadequado supor a existência de uma população infantil homogênea, ao invés de se perceber diferentes populações infantis com processos desiguais de socialização.” (Op. cit., p.15).

No que diz respeito aos resultados desta pesquisa, conclui-se que as crianças negras foram as maiores vítimas, sendo muitas vezes as “invisíveis” dos dados estatísticos, as mais afetadas diretamente pelo maior vírus que já existiu, a fome, a miséria e a insegurança alimentar. Essas negações de direitos impactaram, principalmente, crianças e famílias negras, pobres e localizadas em regiões periféricas. De acordo com os dados do UNICEF (2021), o número de crianças muito abaixo do peso aumentou 54,5% entre março de 2020 e novembro de 2021 (de 1,1% para 1,7%), índice correspondente a cerca de 324 mil (4,3%) crianças de até 5 anos incompletos.

Por fim, assim como Akotirene (2019), acreditamos que a interseccionalidade é a autoridade intelectual de um povo que historicamente foi silenciado e a branquitude utilizou o discurso como poderoso mecanismo de dominação, sendo necessário entendermos as relações de raça, gênero, classe social e território a partir dos olhares de intelectuais pretos. Precisamos lutar diariamente e ocuparmos todos os espaços para conseguirmos os avanços nas políticas de (in) segurança alimentar no Brasil, sobretudo para as crianças de 1 a 6 anos.

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[1] Bolsista de mestrado da CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisa Nupgasc, orientanda da Dra Rita de Cassia Duarte Lima, compõe o colegiado do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), representante estudantil no colegiado da Saúde Coletiva. PPGSC-Ufes, Espírito Santo, Brasil

[2] Orientanda da professora Dra Vânia Carvalho Araújo do PPGE. Integrante do Grupo de Pesquisa IESC. Compõe o colegiado do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) e a Comissão de Políticas Afirmativas do PPGE/UFES. Pesquisadora do Grupo “Hannah Arendt e a filosofia política contemporânea da Universidade Federal de Londrina. PPGE-Ufes, Espírito Santo, Brasil