REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202504282158
Carlos Alexandre Viana Passos; Nelson Gabriel Rodrigues Terebinto; Rafaella de Albuquerque Cajueiro; Raquel Farias Cyrino; Sarah de Oliveira Veiga: Orientador: Dr. Ricardo César de Hollanda Nogueira; Coorientadora: Ma. Natália de Lima Melo; Avaliadores: Dra. Adenilsa Dias de Sousa e Dr. Marco Antônio de Araújo Timóteo
RESUMO
O Folie à Deux é um transtorno psicótico raro no qual delírios são compartilhados entre duas ou mais pessoas em um relacionamento próximo. No subtipo Folie Imposée, um indivíduo dominante induz crenças delirantes em um subordinado, que as abandona ao ser separado. Este relato de caso tem como objetivo descrever e analisar a evolução clínica de uma paciente de 22 anos, diagnosticada com Folie à Deux, enfatizando a importância do diagnóstico precoce e da intervenção multidisciplinar. O estudo é descritivo e exploratório e foi conduzido com base em informações coletadas no CAPS de Fortaleza/CE, por meio de prontuários médicos, exames e revisão da literatura. A paciente apresentava delírios persecutórios compartilhados com sua mãe, que permaneceu sem tratamento, enquanto a separação e o tratamento adequado resultaram na remissão dos sintomas da paciente. Os resultados reforçam a necessidade de diagnóstico precoce, separação do influenciador, abordagem farmacológica e psicoterapêutica para o manejo eficaz do transtorno. Conclui-se que mais estudos são essenciais para melhor compreensão e aprimoramento das estratégias terapêuticas para o Folie à Deux.
Palavras-chave: Folie à Deux; Psicose compartilhada; Transtornos psicóticos; Saúde mental.
1. INTRODUÇÃO
O Folie à Deux, um tipo de transtorno psicótico compartilhado, é uma condição rara, em torno de 1,7% a 2,6% das admissões em hospitais psiquiátricos, em que um delírio é transmitido de um indivíduo primário para um secundário. Esse fenômeno ocorre, geralmente, em contextos de relações estreitas e dependentes, onde a pessoa secundária assume os delírios do indivíduo primário (Sereijo et al., 2022).
O Folie à Deux do tipo imposeé ocorre quando uma pessoa dominante, geralmente com um transtorno psicótico primário, impõe seus delírios a outra pessoa mais sugestionável, que inicialmente não teria tais crenças. Esse tipo é mais comum em relações fechadas e hierárquicas, como entre pais e filhos, cônjuges, irmãos ou cuidadores. A pessoa influenciada tende a perder os delírios ao se afastar do indivíduo dominante, sugerindo que a crença delirante era secundária e não resultado de um transtorno psicótico próprio (Lacerda et al., 2021).
A classificação de Gralnick para a Folie à deux ou transtorno psicótico induzido, organiza esse fenômeno em quatro subtipos, com base na forma como o delírio é compartilhado entre os envolvidos. O tipo folie imposée é o mais comum e ocorre quando um indivíduo dominante com delírios impõe essas crenças ao outro, geralmente mais sugestionável, que inicialmente não apresentava sintomas psicóticos (Sereijo et al., 2022).
No tipo folie simultanée, ambos os indivíduos desenvolvem os delírios ao mesmo tempo, geralmente em contextos de isolamento social ou forte ligação emocional. Já na folie communiquée, o segundo indivíduo resiste inicialmente aos delírios, mas eventualmente os adota após convívio prolongado. Por fim, a folie induite ocorre quando um indivíduo com transtorno psicótico influencia outro que já possuía sintomas psicóticos prévios, modificando ou expandindo seus delírios originais. Essa classificação ajuda a compreender as dinâmicas interpessoais envolvidas na manifestação psicótica compartilhada, sendo essencial para o diagnóstico e para o planejamento terapêutico adequado (Sereijo et al., 2022).
Essa patologia pode ser difícil de diagnosticar, pois, inúmeras vezes, os sintomas se confundem com outros transtornos psicóticos primários, como esquizofrenia paranoide ou transtorno delirante. A distinção fundamental reside na reversibilidade dos sintomas na pessoa influenciada após a separação do indivíduo dominante (Sharma; Harshit, 2021).
A relação simbiótica entre os envolvidos desempenha um papel central no desenvolvimento e manutenção do quadro clínico. Fatores como isolamento social, vínculos familiares excessivamente dependentes e ausência de contato com outras perspectivas da realidade contribuem, significativamente, para a consolidação dos delírios (Felix et al., 2017).
A separação dos envolvidos e a introdução de tratamento psiquiátrico são estratégias essenciais para a reversão do quadro clínico. O paciente influenciado costuma apresentar melhora significativa após a interrupção do contato com o indivíduo primário, o que reforça a importância da abordagem terapêutica multidisciplinar (Sereijo et al., 2022).
Os antipsicóticos desempenham um papel essencial no controle dos sintomas delirantes, ajudando a estabilizar o estado mental do paciente. A psicoterapia, especialmente, a terapia cognitivo-comportamental, auxilia na reestruturação dos padrões de pensamento e no fortalecimento da autonomia emocional (Machado; Fragoeiro; Passos, 2018).
O suporte familiar é um elemento chave para evitar recaídas e consolidar a recuperação do paciente. Educar os familiares sobre a natureza do transtorno e orientá-los sobre estratégias para evitar a perpetuação dos delírios é uma etapa fundamental do tratamento (Machado; Fragoeiro; Passos, 2018).
Casos de Folie à Deux destacam a importância do diagnóstico precoce e da intervenção adequada, visto que a condição pode se agravar progressivamente, se não tratada. O atraso no diagnóstico pode levar a um comprometimento significativo da funcionalidade do paciente e dificultar sua reinserção social (Sharma; Harshit, 2021).
O presente relato de caso ilustra a complexidade do transtorno psicótico compartilhado e os desafios enfrentados na abordagem terapêutica. A análise detalhada da evolução clínica da paciente fornece insights importantes para o manejo de casos semelhantes.
O objetivo deste artigo é descrever, detalhadamente, o caso de uma paciente diagnosticada com Folie à Deux, do subtipo Folie imposée, abordando seu histórico clínico, diagnóstico diferencial, tratamento e evolução. Pretende-se, assim, contribuir para a ampliação do conhecimento sobre essa condição rara e enfatizar a importância do diagnóstico precoce e da intervenção multidisciplinar para um prognóstico favorável.
2. METODOLOGIA
Trata-se de um relato de caso descritivo e exploratório, baseado na análise detalhada de uma paciente diagnosticada com Folie à Deux, subtipo Folie Imposée. As informações foram obtidas a partir de registros médicos, exames complementares e revisão da literatura científica pertinente. O caso foi acompanhado em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), na cidade de Fortaleza, Ceará, onde a paciente recebeu atendimento psiquiátrico e psicológico.
Os dados utilizados foram extraídos do prontuário clínico da paciente, exames médicos e avaliações multidisciplinares, permitindo uma compreensão abrangente do quadro clínico e da evolução do tratamento. Além disso, para embasamento teórico da discussão do caso, foi utilizada a literatura científica atualizada sobre o tema.
A participação da paciente no estudo ocorreu mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em duas vias, sendo uma entregue para a paciente e outra ficando em posse dos pesquisadores. Todas as informações coletadas foram tratadas com sigilo e anonimato, garantindo a confidencialidade dos dados conforme estabelecido pela Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD).
3. RELATO DE CASO
Paciente feminina, 22 anos de idade, solteira, estudante, residente e domiciliada em Fortaleza/CE, foi encaminhada ao Centro de Atenção Psicossocial – CAPS, no dia 10/11/2023, após episódio de extrema agitação e angústia, que já vinha ocorrendo há quinze dias, onde relatou sentir-se constantemente observada e ameaçada pelos vizinhos.
Segundo relatos de familiares presentes na consulta (pai e tia da paciente), essa paranoia foi progressivamente intensificada pela convivência com sua mãe, que compartilhava das mesmas crenças delirantes. Durante a anamnese, identificou-se que a paciente não possuía histórico psiquiátrico prévio, mas que, nos últimos meses, havia se isolado completamente do convívio social, deixando de frequentar a faculdade e evitando contato com qualquer pessoa além de sua mãe.
Durante a avaliação inicial, demonstrava forte convicção em suas crenças persecutórias, reforçando as alegações da mãe, de 48 anos, que teve o diagnóstico de esquizofrenia paranoide, em 2022. Apresentava estado de alerta exacerbado, discurso desorganizado, sinais de ansiedade severa, sudorese, tensão muscular e evitava contato visual. Não fazia uso de substâncias químicas, não apresentava comorbidades médicas relevantes. Não foram identificadas alterações neurológicas ou sinais de comprometimento cognitivo grave.
A relação entre a paciente e sua mãe era de extrema dependência emocional, onde ambas reforçavam mutuamente suas crenças e adotavam comportamentos defensivos em conjunto, como evitar janelas abertas, realizar verificações constantes de segurança na casa e restringir sua alimentação a produtos industrializados lacrados, pois desenvolveram uma crença inabalável de que estavam sendo perseguidas por vizinhos que planejavam envenená-las. Essa relação simbiótica foi um dos principais fatores que contribuíram para a perpetuação do quadro clínico.
Diante dos sintomas apresentados, foi realizado um diagnóstico diferencial com esquizofrenia paranoide, transtorno delirante e transtorno de personalidade paranoide. No entanto, a associação dos sintomas com a influência da mãe, indicava o transtorno psicótico compartilhado.
O diagnóstico de Folie à Deux, subtipo Folie imposée, foi confirmado com base nos critérios do DSM-5: um delírio se desenvolve em uma pessoa que tem um relacionamento próximo com outra pessoa que já tem um delírio; o delírio tem o mesmo conteúdo do da pessoa que já tem o mesmo; a perturbação não é melhor explicada por outro transtorno psicótico ou por um transtorno de humor; e a perturbação não é causada por efeitos fisiológicos de uma substância ou por uma condição médica geral (American Psychiatric Association, DSM-5-TR, 2023).
A primeira medida adotada foi a separação da paciente e sua mãe, recomendando a internação psiquiátrica da paciente para monitoramento e intervenção intensiva. A mãe permaneceu sob acompanhamento ambulatorial.
Foi iniciado tratamento com antipsicóticos atípicos (risperidona 2 mg/dia) para reduzir os sintomas delirantes. Além disso, foram introduzidos ansiolíticos com o intuito de controlar a agitação psicomotora e insônia. A paciente participou de sessões de terapia cognitivo-comportamental (TCC) para reestruturação cognitiva, identificação de distorções de pensamentos e estímulo à autonomia emocional e social.
Nas primeiras semanas de tratamento, manteve as crenças delirantes, demonstrando resistência ao tratamento. No entanto, com a continuidade da medicação e psicoterapia, começou a questionar suas ideias persecutórias e apresentou melhora na organização do pensamento.
Com o distanciamento da mãe, houve redução progressiva dos sintomas, sugestionando o diagnóstico de Folie à Deux (Folie imposée). A mãe, por sua vez, manteve os delírios e recusou tratamento psiquiátrico, o que já vem sendo resistente ao tratamento da patologia de esquizofrenia paranoide há 3 anos, reforçando a hipótese de que ela era a fonte primária dos sintomas.
Após dois meses, passou a aceitar melhor o tratamento e demonstrou maior insight sobre sua condição. A terapia ocupacional foi introduzida para promover maior independência e reintegração social. Os familiares foram orientados sobre a natureza do transtorno de Folie à Deux, subtipo Folie imposée, e a importância do suporte emocional e social na recuperação da paciente. Recomendou-se evitar contato excessivo com a mãe até que esta aceitasse tratamento.
Após três meses de internação, apresentou melhora significativa e recebeu alta dia 10/02/2024, para acompanhamento ambulatorial. O uso da risperidona foi mantido em dose reduzida (1 mg/dia) e as sessões de TCC continuaram semanalmente.
Diante do risco de recaída, foi estabelecido um plano de contingência para identificar sinais precoces de retorno dos delírios. Sugeriu-se que a paciente não residisse novamente com a mãe, sem supervisão psiquiátrica.
Seis meses após a alta, a paciente estava estabilizada, retomou estudos universitários e expandiu sua rede social. Apesar do medo residual de recaída, demonstrava maior independência emocional e criticidade sobre suas experiências anteriores.
Atualmente, após um ano de tratamento, apresenta excelente evolução clínica, mantém adesão medicamentosa, ainda com risperidona 1mg/dia e participa de acompanhamento psicológico mensal. Os delírios não retornaram e sua qualidade de vida melhorou significativamente.
4. DISCUSSÃO
A compreensão da patologia Folie à Deux é fundamental para a psiquiatria, pois envolve a complexa interação entre fatores psicológicos, sociais e neurobiológicos na transmissão de delírios entre indivíduos com um vínculo estreito. Tal condição desafia a prática clínica, tanto no diagnóstico quanto no manejo terapêutico, exigindo uma abordagem multidisciplinar que considere a dinâmica relacional dos envolvidos (Sereijo et al., 2022).
A partir da análise de sua definição, epidemiologia, etiologia, fisiopatologia, manifestações clínicas, diagnóstico, tratamento e prognóstico, esta discussão visa aprofundar o conhecimento sobre o transtorno e destacar a importância da intervenção precoce para um desfecho favorável.
Definição
O Folie à Deux, conhecido como um tipo de transtorno delirante ou “loucura a dois”, é uma condição psiquiátrica em que um delírio é transmitido de uma pessoa para outra. Geralmente, ocorre entre indivíduos com um vínculo muito próximo, como casais, irmãos ou familiares que vivem juntos. O delírio se origina em um indivíduo primário, chamado de “indutor”, que possui um transtorno psicótico estabelecido e é, posteriormente, compartilhado por um segundo indivíduo, o “receptor” que, inicialmente, não apresentava sintomas psicóticos. Esse transtorno pode variar em gravidade e persistência, dependendo do grau de influência entre as pessoas envolvidas (Sharma; Harshit, 2021).
A dinâmica do transtorno, normalmente, envolve uma relação de dependência emocional, onde o receptor do delírio tem dificuldades em questionar a realidade imposta pelo indutor. O contato contínuo e a forte conexão entre os envolvidos favorecem a aceitação da crença delirante, muitas vezes, sem resistência crítica. Esse delírio compartilhado pode abranger temas persecutórios, místicos ou grandiosos, refletindo a psicopatologia do indivíduo primário (Silva; Caetano, 2019). No caso relatado, a paciente e sua mãe apresentavam crenças delirantes similares, evidenciando a influência de um indivíduo primário sobre o secundário.
Epidemiologia e Etiologia
O Folie à Deux é considerado um transtorno psiquiátrico mais comum em indivíduos que vivem em isolamento social e que possuem um forte vínculo emocional ou dependente, como casais, irmãos e familiares próximos. Estudos de caso indicam que o transtorno ocorre com maior frequência em mulheres do que em homens, especialmente em relações de longo prazo em que um parceiro exerce domínio psicológico sobre o outro (Felix et al., 2017).
A determinação da incidência e prevalência de Folie à Deux é um desafio, pois os dados disponíveis são limitados. Entretanto, estima-se representar uma margem de 1,7% a 2,6% das internações psiquiátricas. Esse índice pode estar subestimado, devido à frequente subnotificação e ao diagnóstico pouco reconhecido na prática clínica. Alguns psiquiatras, inclusive, concentram-se no tratamento do paciente primário sem perceber que os delírios são compartilhados com outra pessoa próxima. Então, alguns pesquisadores argumentam que essa condição pode ser mais comum do que tradicionalmente se presume (Lacerda et al., 2021).
O transtorno é mais frequentemente diagnosticado em adultos de meia-idade ou idosos, possivelmente devido ao longo tempo de exposição a um ambiente psicologicamente influente. No entanto, pode ocorrer em qualquer faixa etária, incluindo crianças e adolescentes que convivem com um indutor psicótico. A comorbidade com outros transtornos mentais, como transtorno delirante, esquizofrenia e transtornos de personalidade, é comum, especialmente no indivíduo primário (Mouchet; Gourevich; Lôo, 2021).
Epidemiologicamente, a doença é mais prevalente em relações familiares ou conjugais, como observado entre a paciente e sua mãe. O isolamento social e a intensa dependência emocional foram fatores determinantes para a manutenção do quadro (Machado; Cantilino; Petribu, 2015).
A etiologia do Folie à Deux é multifatorial, envolvendo uma interação complexa entre fatores psicológicos, biológicos e sociais. A predisposição para o transtorno pode estar relacionada a traços de personalidade dependente, baixa autoestima e alta sugestionabilidade do indivíduo receptor. Pessoas emocionalmente vulneráveis, com dificuldades de julgamento crítico e histórico de trauma ou negligência, tendem a ser mais suscetíveis à aceitação de crenças delirantes. Além disso, indivíduos com laços de extrema proximidade e dependência emocional do indutor apresentam maior risco de desenvolver o transtorno, pois tendem a internalizar suas ideias sem questionamento (Felix et al., 2017).
Há evidências de que fatores genéticos desempenham um papel importante, uma vez que transtornos psicóticos possuem um forte componente hereditário. O ambiente também tem um impacto significativo: situações de isolamento social, estresse crônico e relações interpessoais disfuncionais são fatores que favorecem o desenvolvimento do transtorno, facilitando a aceitação e manutenção das crenças delirantes compartilhadas (Machado; Fragoeiro; Passos, 2018).
Fisiopatologia
A fisiopatologia do Folie à Deux ainda não é completamente compreendida, mas envolve fatores psicológicos, neurobiológicos e sociais. Acredita-se que a transmissão do delírio ocorra devido à forte influência emocional entre os indivíduos envolvidos, sendo um reflexo de um processo de sugestibilidade e identificação intensa. O indutor, geralmente uma pessoa com um transtorno psicótico preexistente, projeta suas crenças delirantes no receptor, que, por sua vez, absorve essas ideias sem questionamento crítico. Esse fenômeno pode estar relacionado a déficits na função cognitiva e no julgamento da realidade, facilitados por um ambiente de isolamento social e forte dependência emocional (Martínez et al., 2020).
Do ponto de vista neurobiológico, estudos sugerem que o Folie à Deux pode estar associado a alterações nos circuitos neurais envolvidos na percepção da realidade, especialmente no sistema dopaminérgico, que está relacionado à formação de delírios em transtornos psicóticos. O excesso de atividade dopaminérgica em regiões, como o córtex pré-frontal e o sistema límbico, pode contribuir para a construção e manutenção de crenças delirantes. Além disso, o receptor do delírio pode ter uma predisposição genética ou vulnerabilidade psiquiátrica subjacente, como um histórico de transtornos mentais na família, o que aumenta a sua susceptibilidade ao transtorno (Lacerda et al., 2021).
Classificação
De acordo com a Classificação Internacional de Doenças 10 (CID-10), Folie à Deux é classificado como transtorno psicótico induzido ou compartilhado (F24) e, no CID-11, será como transtornos delirantes (6A24) (Organização Mundial da Saúde, 1993, 2019).
Com base no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV e IV-TR (DSM), folie à deux estava classificado no capítulo de transtornos psicóticos como transtorno psicótico compartilhado (297.3). No entanto, no DSM-5 e DSM-5TR, o diagnóstico de Folie à Deux foi removido como uma categoria específica. Agora, casos que antes seriam classificados como Transtorno Psicótico Compartilhado são diagnosticados dentro de outras categorias mais amplas, como Transtorno Delirante ou Esquizofrenia, dependendo dos sintomas da pessoa afetada (American Psychiatric Association, 1995, 2002, 2014, 2023).
Manifestações clínicas
As manifestações clínicas do Folie à Deux envolvem, principalmente, a presença de delírios compartilhados entre duas pessoas com um vínculo emocional próximo. O conteúdo dos delírios pode variar, mas geralmente envolve temas persecutórios, místicos, grandiosos ou paranoides. O indutor (ou indivíduo primário) tem um transtorno psicótico estabelecido e acredita firmemente no delírio, enquanto o receptor (ou indivíduo secundário) adota essas crenças sem resistência, mesmo sem evidências concretas. Em alguns casos, o receptor pode demonstrar um comportamento ainda mais extremo do que o próprio indutor, reforçando e perpetuando o delírio dentro da relação (Sereijo et al., 2022).
Além dos delírios, o receptor pode apresentar alterações no comportamento, emoções e cognição. Ele pode desenvolver medo intenso, ansiedade, irritabilidade ou isolamento social, devido à crença delirante compartilhada. O pensamento crítico e o contato com a realidade ficam prejudicados, levando a atitudes irracionais, como evitar determinadas pessoas ou situações que, supostamente, representariam uma ameaça. Em casos mais graves, podem ocorrer comportamentos violentos, especialmente se o delírio envolver perseguição ou conspiração. Há registros de situações em que tanto o indutor quanto o receptor cometeram atos criminosos, como agressões ou até mesmo homicídios, motivados pelo delírio compartilhado (Tavares; Lemes; Souza, 2022).
A progressão do quadro depende da relação entre os envolvidos e do contexto em que vivem. O receptor pode desenvolver dependência emocional extrema do indutor, o que dificulta a ruptura do vínculo e perpetua o delírio. No entanto, diferentemente do indutor, o receptor, geralmente, não tem um transtorno psicótico primário e pode apresentar melhora significativa quando afastado da influência do indutor (Silva; Caetano, 2019).
As manifestações clínicas variam, mas no subtipo Folie imposée, como no caso em apreço, a pessoa secundária não desenvolve delírios de forma autônoma, mas apenas absorve aqueles do indivíduo primário (Martínez et al., 2020). A paciente demonstrou esse padrão ao reforçar as alegações delirantes da mãe sem questioná-las.
Diagnóstico
O diagnóstico do Folie à Deux é um desafio clínico, pois envolve a avaliação de duas pessoas com sintomas psicóticos inter-relacionados. O primeiro passo é identificar a presença de um delírio compartilhado, no qual um indivíduo (o indutor) tem um transtorno delirante primário e transmite suas crenças a outro indivíduo (o receptor), que inicialmente não apresentava psicose (Mouchet; Gourevich; Lôo, 2021).
O diagnóstico é baseado na observação clínica, entrevistas psiquiátricas e no histórico detalhado dos envolvidos, incluindo o grau de vínculo entre eles e o contexto social em que vivem. Muitas vezes, o transtorno é detectado quando terceiros, como familiares ou autoridades, percebem comportamentos estranhos ou perigosos na dupla afetada (Sharma; Harshit, 2021).
Para diferenciar o Folie à Deux de outros transtornos psiquiátricos, é essencial excluir condições, como esquizofrenia, transtorno delirante primário no receptor e transtornos relacionados ao uso de substâncias. O DSM-5 não reconhece mais o Folie à Deux como uma categoria diagnóstica isolada e os indivíduos afetados são diagnosticados separadamente dentro do espectro dos transtornos delirantes ou outros transtornos psicóticos. A separação temporária dos envolvidos pode ser uma ferramenta diagnóstica valiosa: se o receptor apresentar melhora significativa ao se distanciar do indutor, isso sugere um transtorno delirante compartilhado, em vez de uma psicose primária independente (Sereijo et al., 2022).
Exames laboratoriais e de neuroimagem podem ser solicitados para descartar causas orgânicas de sintomas psicóticos, como doenças neurológicas, infecções ou alterações metabólicas. Além disso, testes neuropsicológicos podem ser úteis para avaliar déficits cognitivos no receptor, especialmente, em casos de longa duração (Felix et al., 2017).
A observação do comportamento do receptor após a separação do indutor é um dos critérios mais importantes para o diagnóstico definitivo. Se os sintomas delirantes desaparecerem ou reduzirem significativamente, reforça-se a hipótese de um delírio induzido. Essa abordagem diagnóstica permite uma melhor definição do quadro e um planejamento terapêutico mais eficaz. O diagnóstico do transtorno exige uma avaliação minuciosa (Mouchet; Gourevich; Lôo, 2021). A regressão dos sintomas da paciente, após a separação de sua mãe, confirmou o diagnóstico de Folie à Deux, do subtipo Folie imposée.
Tratamento
O tratamento principal envolve a separação do indivíduo secundário do primário, o que foi fundamental no caso em questão. Essa medida foi essencial para que iniciasse a reconstrução de sua autonomia cognitiva e emocional. O uso de antipsicóticos, como a risperidona, é uma estratégia eficaz para reduzir sintomas delirantes e restaurar a organização do pensamento (Tavares; Lemes; Souza, 2022).
A psicoterapia, particularmente a terapia cognitivo-comportamental (TCC), desempenha um papel fundamental na reestruturação cognitiva (Felix et al., 2017). A paciente foi submetida a esse tipo de abordagem para questionar e modificar seus padrões de pensamentos delirantes.
Estudos sugerem que a psicoeducação familiar é essencial no manejo de transtornos psicóticos compartilhados, pois auxilia na criação de um ambiente mais estável e reduz o risco de recaídas (Sereijo et al., 2022). No presente caso, essa abordagem foi aplicada para minimizar o impacto negativo da influência materna persistente.
A adesão ao tratamento em transtornos psicóticos pode ser desafiadora, especialmente, quando há resistência inicial à intervenção terapêutica. Pesquisas indicam que a separação do indivíduo influenciador, aliada ao suporte terapêutico contínuo, facilita a aceitação do tratamento (Sharma; Harshit, 2021).
A literatura aponta que pacientes submetidos a internações prolongadas tendem a apresentar maior insight sobre sua condição, um fenômeno evidente no caso relatado, após três meses de tratamento intensivo. Esse período foi importante para consolidar sua compreensão da patologia e aceitar o plano terapêutico (Tavares; Lemes; Souza, 2022).
No subtipo folie imposée, a internação é indicada, principalmente, quando há risco à integridade física do paciente ou de terceiros, presença de delírios com potencial de conduzir a comportamentos perigosos, recusa de tratamento ambulatorial ou quando a separação do paciente dominante se faz necessária para interromper a indução delirante. A internação, também, pode ser recomendada para avaliação diagnóstica mais precisa e início de tratamento farmacológico. Por outro lado, a internação pode ser contraindicada quando não há risco iminente, os sintomas são leves, o vínculo com o indivíduo indutor já foi rompido de forma eficaz no ambiente domiciliar ou quando existe adesão adequada ao tratamento ambulatorial e suporte psicossocial consistente.
A reintegração social progressiva é um dos principais indicadores de recuperação em transtornos psicóticos. Estudos demonstram que o retorno a atividades cotidianas reduz a vulnerabilidade a recaídas (Silva; Caetano, 2019). Seis meses após a alta, a paciente retomou seus estudos e interações sociais, reforçando a eficácia do tratamento.
O monitoramento contínuo é fundamental para evitar recaídas, pois indivíduos com histórico de transtorno psicótico compartilhado podem apresentar recorrências. No caso apresentado, medidas preventivas foram implementadas para identificar sinais precoces de descompensação (Silva; Caetano, 2019). Após um ano de acompanhamento, a paciente permanece estável e sem sintomas psicóticos, um achado consistente com pesquisas que indicam bom prognóstico quando há adesão ao tratamento e suporte adequado.
A importância do diagnóstico precoce e do manejo adequado do Folie à Deux é amplamente documentada na literatura. A abordagem utilizada no presente estudo reforça a necessidade de identificação e intervenção precoces para otimizar os resultados clínicos (Sereijo et al., 2022).
O relato em apreço destaca a relevância de uma abordagem multidisciplinar, associando farmacoterapia, psicoterapia e suporte social, para garantir a recuperação e minimizar riscos de recaída. O reconhecimento da influência de dinâmicas familiares na gênese e perpetuação de transtornos psicóticos compartilhados é essencial para a formulação de estratégias terapêuticas eficazes, reforçando a necessidade de um acompanhamento clínico atento e direcionado (Machado; Fragoeiro; Passos, 2018).
A experiência adquirida no acompanhamento deste caso permitiu uma análise aprofundada dos princípios abordados na disciplina de Saúde Mental da graduação em Medicina dos pesquisadores. O estudo do Folie à Deux, especialmente o subtipo Folie Imposée, reforça a importância do entendimento sobre transtornos psicóticos, sua fisiopatologia, diagnóstico precoce e manejo clínico.
Destaca-se a necessidade de uma abordagem interdisciplinar, conforme ensinado na formação médica, integrando psiquiatria, psicoterapia e suporte social para otimizar a recuperação da paciente (Silva; Caetano, 2019). A ênfase no diagnóstico precoce, na compreensão da dinâmica familiar e tratamento adequado, foi essencial para a prevenção de recaídas no caso relatado.
Prognóstico
O prognóstico de folie à deux varia conforme a duração da exposição ao delírio compartilhado, o grau de dependência entre os indivíduos afetados e a aceitação do tratamento. Em muitos casos, o afastamento do indivíduo secundário do primário leva à remissão espontânea dos sintomas, principalmente, quando não há transtornos psicóticos subjacentes. No entanto, se o vínculo entre os envolvidos for muito forte, a resistência à separação pode dificultar a recuperação, exigindo um acompanhamento psiquiátrico prolongado, incluindo o uso de antipsicóticos para controle dos sintomas (Tavares; Lemes; Souza, 2022).
A resposta ao tratamento também influencia diretamente o prognóstico. A combinação de psicoterapia com o uso de antipsicóticos pode ser indicada quando os delírios persistem, há sofrimento psíquico significativo ou os sintomas psicóticos são intensos, associados a agitação, insônia ou risco de comportamento agressivo. A terapia cognitivo-comportamental ajuda o paciente secundário a reconhecer e questionar crenças delirantes, favorecendo sua reintegração social e emocional. Entretanto, se o indivíduo primário não for tratado ou continuar a influenciar o secundário, há um risco significativo de recaídas e perpetuação do quadro clínico (Silva; Caetano, 2019).
A longo prazo, indivíduos que recebem suporte familiar e profissional adequado, geralmente, apresentam uma recuperação satisfatória, retomando suas atividades normais sem sintomas psicóticos. Por outro lado, casos não diagnosticados ou tratados indevidamente podem levar à cronificação do transtorno no paciente secundário, que pode desenvolver um quadro psicótico independente. Assim, a detecção precoce, o afastamento terapêutico e o acompanhamento contínuo são essenciais para um desfecho favorável (Felix et al., 2017).
5. CONCLUSÃO
O Folie à Deux, especialmente o subtipo Folie imposée, é uma patologia psiquiátrica rara e desafiadora. Seu diagnóstico precoce é essencial para evitar complicações a longo prazo e garantir um prognóstico mais favorável. O caso em apreço demonstra a importância da identificação rápida e do manejo adequado dessa condição.
A separação do indivíduo influenciado da influenciadora foi fundamental para a recuperação da paciente, reforçando a eficácia dessa estratégia terapêutica. Além disso, o suporte farmacológico e psicoterapêutico se mostrou indispensável para a estabilização do quadro.
A necessidade de mais estudos atualizados sobre o Folie à Deux é evidente, visto que sua fisiopatologia e estratégias terapêuticas ainda não estão completamente esclarecidas. Casos, como o da paciente em questão, fornecem insights valiosos para aprimorar as abordagens diagnósticas e terapêuticas.
O presente relato destaca a relevância de uma abordagem multidisciplinar no tratamento do Folie à Deux, enfatizando a importância do suporte familiar e da continuidade do acompanhamento psiquiátrico para prevenir recaídas e promover uma recuperação adequada.
REFERÊNCIAS
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