REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102501281048
Anderson de Sousa Jorge 1
Matheus Girão Bezerra de Oliveira Nogueira 2, 3
Caio Akira Nakamura do Nascimento 2, 3
Isaac Coelho Mitoso 2, 3
Frederico de Oliveira Patrício Nunes Campelo 2, 3
Antonio Augusto Praça Bastos 2, 3
Francisco Machado Junior 2, 3
Gustavo Carvalho Paiva 2, 3
Nathalia Arcoverde Musy 2, 3
Rodrigo Machado Landim Filho 2, 3
Maria Fernanda Farias de Oliveira 2, 3
Julia Vasconcelos Silveira 2, 3
Victor Freitas Leitão 2, 3
Francisco Eduardo Siqueira da Costa 4, 5, 6
1. Resumo
A fístula aortocava (FAC) é uma complicação rara e potencialmente fatal de aneurismas da aorta abdominal, caracterizada por comunicação entre a aorta e a veia cava inferior, que pode resultar em insuficiência cardíaca e instabilidade hemodinâmica. Apresentamos o caso de um paciente de 55 anos com diagnóstico de aneurisma de aorta abdominal e FAC, manifestado por dor intensa nos flancos, febre e instabilidade hemodinâmica. Apesar da intervenção endovascular, o quadro evoluiu com complicações graves, incluindo pneumonia associada à ventilação mecânica e endoleak tipo II, levando ao óbito. Este caso destaca a complexidade do diagnóstico e do manejo da FAC, enfatizando a importância de uma abordagem multidisciplinar e ágil para melhorar o prognóstico em pacientes críticos.
Palavras-chave: Aneurisma da Aorta Abdominal, Dissecção da Aorta Abdominal, Fístula Arteriovenosa.
2. Introdução
A fístula aortocava (FAC) é uma complicação rara e grave de aneurismas da aorta abdominal, com uma incidência inferior a 1% entre esses casos. O primeiro caso registrado de FAC foi relatado por Syme em 1831, e, em 1955, Cooley documentou com sucesso o tratamento cirúrgico dessa condição 1. A maioria das fístulas aortocavas resulta de traumas penetrantes, mas, neste caso, o aneurisma foi o fator desencadeante.
O diagnóstico precoce é essencial, embora muitas vezes seja desafiador devido à apresentação clínica pouco comum e inespecífica dos sintomas. Como uma entidade clínica importante, a FAC exige tratamento operatório urgente, precedido por um diagnóstico pré-operatório preciso para maximizar as chances de sucesso 2. Este relato visa ampliar o conhecimento sobre a abordagem diagnóstica e terapêutica da FAC, especialmente em casos críticos, contribuindo para a literatura sobre o manejo dessa complicação complexa.
3. Descrição do Caso
Histórico do Paciente e Apresentação Clínica
Paciente masculino, 55 anos, admitido na unidade de terapia intensiva com dor intensa nos flancos irradiada para as fossas ilíacas, associada a febre, vômitos, hiporexia, adinamia e sonolência há 48 horas. Apresentava taquicardia e hipotensão, indicativos de instabilidade hemodinâmica.
Achados Diagnósticos
Os exames laboratoriais iniciais mostraram elevações nas enzimas hepáticas, INR alterado e bilirrubina elevada, sugerindo disfunção hepática. A função renal estava comprometida, indicando síndrome de resposta inflamatória sistêmica. A ultrassonografia abdominal revelou um aneurisma fusiforme da aorta abdominal (extensão de 9,9 cm e largura de 6,4 cm). Uma endoscopia digestiva alta identificou esofagite erosiva grau D (Los Angeles), e a tomografia computadorizada evidenciou dissecção da aorta abdominal e FAC.
Tratamento Inicial e Intervenções
Dada a gravidade do quadro, o paciente foi intubado e submetido à terapia dialítica devido à insuficiência renal aguda. Foram administrados antibióticos de amplo espectro, além de propofol e fentanil para sedação, e noradrenalina para estabilização hemodinâmica. A intervenção endovascular para correção do aneurisma foi realizada após estabilização inicial.
Figura 1: Endoprótese instalada na aorta abdominal com o objetivo de correção do aneurisma e da FAC.
Asterisco vermelho → Saco aneurismático pré bifurcação da aorta abdominal em ilíacas, isolado pela endoprótese.
Estrela amarela → Veia cava inferior
Evolução e Complicações
No pós-cirúrgico, o paciente permaneceu instável, com endoleak tipo 2 e persistência da FAC. A equipe optou por adiar a correção venosa imediata. Durante a internação, ele desenvolveu pneumonia associada à ventilação mecânica causada por Acinetobacter baumannii multi-resistente. Apresentou dessaturação e hipotensão súbitas, além de sangramento pela traqueostomia. Uma angio-TC de tórax foi realizada, mas o quadro evoluiu para bradicardia e parada cardiorrespiratória, culminando no óbito.
4. Discussão
A fístula aortocava secundária a aneurisma de aorta abdominal é uma condição rara e desafiadora. O reconhecimento precoce e a intervenção rápida são essenciais para melhorar o prognóstico, especialmente em cenários críticos. Esse caso ilustra a complexidade e a gravidade da FAC, além da necessidade de estratégias terapêuticas bem coordenadas. A documentação e publicação desses casos promovem o compartilhamento de conhecimento, ajudando a fortalecer as práticas clínicas em situações semelhantes.
4.1 Epidemiologia e Incidência
A fístula aorto-cava é uma rara complicação dos aneurismas de aorta abdominal infrarrenal, podendo chegar a 4% dos casos de aneurisma roto 3. De acordo com a literatura, a incidência de fístulas aorto-cava varia de 0,22 a 6,04% de todos os aneurismas de aorta abdominal (AAA) 4.
4.2 Etiologia e Fatores de Risco
A causa mais comum de comunicação entre a aorta abdominal e o sistema venoso adjacente é a erosão do aneurisma 5. Algumas fístulas aortocava são secundárias a ferimentos penetrantes, como ferimentos por arma branca ou de fogo 6. Em casos excepcionais, traumas contusos podem resultar em fístula aorto-cava 7. As fístulas iatrogênicas também ocorrem como complicações de cirurgias de coluna ou procedimentos diagnósticos 8.
4.3 Fisiopatologia da Fístula Aortocava (FAC)
Acredita-se que o aumento da tensão nas paredes dos aneurismas provoque uma resposta inflamatória, levando à aderência à veia próxima (geralmente a veia cava inferior) e resultando na erosão das paredes e formação da fístula 9.
4.4 Manifestações Clínicas e Diagnóstico Diferencial
As manifestações típicas incluem uma massa abdominal pulsátil, frêmito e um “sopro em maquinaria”, além de insuficiência cardíaca direita e sinais de hipertensão venosa. Em raras ocasiões, pode ocorrer embolia pulmonar paradoxal (EPP) devido à migração de trombos do aneurisma para a circulação venosa 10. Outros sinais e sintomas incluem estase jugular, dispneia, derrame pleural,
hepatomegalia, ascite e hematúria 11. A apresentação clínica é influenciada pela origem, tamanho e localização da fístula, idade do paciente e comorbidades cardiopulmonares ou renais12.
4.5 Exames Complementares Exames de Imagem
- Ultrassonografia com Doppler: Essencial para avaliar a estrutura e fluxo na aorta, identificando alterações no diâmetro do aneurisma e vazamentos.
- Angiotomografia de Aorta: Auxilia no diagnóstico e planejamento cirúrgico, com alta precisão e imagens detalhadas que permitem a escolha da técnica (endovascular ou aberta) e o planejamento da cirurgia.
Biomarcadores e Exames Laboratoriais
- Não foram citados biomarcadores específicos neste contexto, mas exames laboratoriais que indicam função renal, hepática e a presença de marcadores inflamatórios podem ajudar no manejo clínico.
4.6 Manejo, Tratamento e Possíveis Complicações
O tratamento cirúrgico convencional apresenta uma mortalidade perioperatória entre
16 e 66% 13. A avaliação pré-anestésica, manejo criterioso de fluidos e controle pressórico são fundamentais para o sucesso, principalmente no fechamento da fístula, quando pode ocorrer descompensação cardíaca aguda 14.
Técnicas Endovasculares As técnicas endovasculares oferecem uma alternativa ao tratamento convencional. Segundo Antoniou et al. (2009), há uma taxa de sucesso técnico de 96% no tratamento endovascular, sem mortalidade perioperatória em 30 dias 15. Contudo, o tratamento endovascular levanta preocupações teóricas, como o risco de embolia paradoxal devido ao deslocamento de trombos e a possibilidade de vazamento pela persistência do canal fistuloso 16.
Embolia Paradoxal e Filtragem A EPP é rara, mas de alta morbidade e mortalidade, podendo ser subestimada 17. Alguns relatos sugerem o uso de filtro de veia cava temporário para evitar EPP durante o tratamento do aneurisma, mas essa prática não é amplamente documentada 18.
Endoleaks (Tipo II) O vazamento tipo II é a complicação mais comum no tratamento endovascular das fístulas aorto-cava, presente em até 22% dos casos 15. Normalmente autolimitado, ocorre devido ao fluxo retrógrado de ramos aórticos. Este tipo de vazamento pode resolver espontaneamente, mas, em alguns casos, pode exigir um segundo procedimento 19.
Tratamento Concomitante Para tratar o aneurisma e a fístula, alguns autores, como ElKassaby et al. e Silveira et al., sugerem a implantação de endoprótese tanto no lado arterial quanto no venoso. Esse tratamento concomitante se mostrou promissor, sendo mais efetivo do que o tratamento endovascular exclusivo da aorta20.
5. Conclusão
A fístula aortocava associada a aneurisma de aorta abdominal é uma condição rara e desafiadora, com alta mortalidade e complexidade diagnóstica e terapêutica. Este caso ilustra a importância do diagnóstico precoce e da intervenção ágil, especialmente em pacientes críticos, para reduzir complicações e melhorar o prognóstico. Embora as técnicas endovasculares ofereçam alternativas promissoras, o risco de endoleaks e embolia paradoxal demanda uma abordagem multidisciplinar e individualizada. O compartilhamento de relatos como este contribui para o aprimoramento das estratégias clínicas e a segurança do tratamento em situações semelhantes.
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1 Residente de Cirurgia Vascular do Hospital Geral de Fortaleza
2 Discente de Medicina da Faculdade Unichristus
3 Integrante da Liga Acadêmica de Angiologia e Cirurgia Vascular da Unichristus (LACIV)
4 Cirurgião Vascular do Hospital Geral de Fortaleza
5 Cirurgião Vascular do Instituto Doutor José Frota
6 Orientador