FEMINISMO E SUJEIÇÃO: UMA ANÁLISE SOBRE O CONTO “O CASO DE RUTE”, DE JULIA LOPES DE ALMEIDA

FEMINISM AND SUBMISSION: AN ANALYSIS OF THE STORY “THE CASE OF RUTE”, BY JULIA LOPES DE ALMEIDA

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.12688710


Débora Lopes dos Santos1
Maria de Fátima Santos Oliveira2
Maria do Socorro de Araujo Abreu3
Samara Leal Barroso4
José Wanderson Lima Torres5


Resumo

O trabalho que ora se apresenta tem como objetivo mostrar o viés que se estabelece entre o conto O caso de Rute, de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e a teoria feminina e de gênero. A presença da mulher na história, não sem razão, é marcada pela sujeição e controle masculinos. Esse aspecto é bem visível no conto em questão quando se considera que a personagem principal, depois de ser violentada sente-se impura e vê seu amor ser maculado. Talvez por isso opte por tirar a própria vida a ter que submeter o homem que ama a um casamento impuro.

Palavras-chave: Feminismo. Mulheres. Sujeição.

Abstract

The objective of the work presented here is to show the bias that is established between the story O Caso de Rute, by Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) and feminine and gender theory. The presence of women in history, not without reason, is marked by male subjection and control. This aspect is clearly visible in the story in question when it is considered that the main character, after being raped, feels impure and sees her love being tainted. Maybe that’s why she chose to throw away her own life by having to subject the man she loves to an impure marriage.

Keywords: Feminism. Women. Subjection.

1 INTRODUÇÃO

Considerando-se a produção histórica e literária brasileira, sobressai-se o domínio do discurso masculino, limitando, dessa forma, a produção escrita por mulheres. Com o tempo a produção de mulheres ganha espaço e voz no cenário das letras e assim surge a literatura feminina, porém esse novo lugar ocupado pela mulher só se revela possível em decorrência do feminismo que ao longo do tempo foi fortalecendo a ruptura de pertencer a uma categoria subjugada e oprimida.

Com os estudos literários de escrita de autoria feminina destrói-se o conceito de inferioridade deste ser, resgata a história da mulher, bem como sua condição de sujeito investigativo, além de se posicionar criticamente sobre o que os homens a seu respeito narraram. Tudo isso tornou-se possível devido a crítica feminista que possibilitou à mulher escrever sem receio de que sua narrativa fosse negligenciada e/ou depreciada.

Desse modo, neste artigo se analisa a representação do sujeito feminino à luz da teoria feminista e de gênero no conto O caso de Rute, da escritora brasileira Júlia Lopes de Almeida, republicado em 2020 pela coletânea de contos Ânsia Eterna. Em dita obra a literatura levanta questionamentos acerca da mulher do século XIX e XX.

Ao longo do tempo a mulher foi silenciada, desprovida de liberdade e vivia em função exclusiva do homem que a detinha, isto é, sua vida estava limitada ao contexto do privado, do matrimônio, do cuidado com o lar e com os filhos, além dela se exigir uma postura social adequada ao que era esperado da mulher burguesa de outrora. Nisso, vontades, desejos e sonhos femininos passavam quase que de forma invisível, sua subjetividade era totalmente menosprezada em função do sujeito masculino, detentor do poder.

Para melhor elucidar o que acima se descreve, fez-se um recorte com o conto O caso de Rute, nessa narrativa a escritora evidencia a representação de temáticas que envolvem a mulher, tais como, a violência sexual, a beleza, o medo, o suicídio, a loucura, a submissão feminina, o controle, o silenciamento, a dominação e a opressão masculina. Tudo isso ambientado em um clima de mistério e tensão, pois tem como pano de fundo um antigo casarão, melancólico e sinistro que deixa atrás de si uma atmosfera carregada de segredos e questões familiares mal resolvidas.

A protagonista Rute é representada como sendo uma moça privilegiada, tendo em vista pertencer a sociedade de classe alta, ser branca e de boa família. Assim é que Rute, desde o nascimento, tenha sido preparada para o casamento, sobretudo arranjado, como era de costume na época.

Ao longo do conto a escritora traça uma personagem educada, recatada, de bons modos, bondosa, passiva, prendada e virgem, o que implica dizer em outras palavras tratar-se da mulher idealizada, pois possuía os atributos tanto físicos quanto sociais necessários para tornar-se uma boa esposa. E entenda-se por boa esposa aquela que estava apta a servir e não só ao marido, mas também e, inclusive, a toda a família.

No conto, a escritora questiona os espaços permitidos à mulher, denuncia a submissão e as condições humilhantes a que as mulheres estavam submetidas, além de ressaltar que a essas mulheres negavam-lhe direitos a elas inerentes. Desta forma, na leitura em análise é nos mostrado uma personagem que beira à condição de objeto, pois anula-se enquanto sujeito ao usar da própria enunciação para confessar ao noivo um segredo do passado, muito embora dito segredo a distancie do casamento idealizado e acabe por destruir a imagem sólida e feliz da família, além de arrastá-la para um destino inglório e pouco inesperado.

Este artigo está respaldado na pesquisa bibliográfica de cunho analítico científico, pois traçou um diálogo teórico com autores que discutem especificamente a teoria feminista e de gênero como, Almeida (2020); Alves e Pitanguy (1991); Butler (2003); Heleith Saffiote (1976); Laurettis (2019); Perrot (2007); Simone de Beauvoir (1940); Scott (2019), para citar alguns.

2 O FEMINISMO NA HISTÓRIA

Nos mais variados discursos que impregnam a sociedade, muitas vozes se levantam para legitimar a desigualdade que há, e para muitos até mesmo natural, entre homens e mulheres.

Fazer um resgate da luta que acompanha as mulheres ao longo da história, requer, antes de mais nada sensibilidade e um olhar arguto, pois deve-se considerar que dita história tem o tom masculino vigente e esse é o discurso que se sobrepôs ao feminino, seja de forma explícita ou velada.

Feminismo é sinônimo de divergência, a esse respeito Garcia (2011, p. 120), esclarece que

o feminismo ao longo de sua história foi alvo de campanhas que fizeram com que a população de modo geral acredita-se que o feminismo era um inimigo a combater e não que segundo a época e a realidade de cada país existiram e coexistiram muitos tipos de feminismo com um nexo comum: lutar pelo reconhecimento de direitos e oportunidades para as mulheres e, com isso, pela igualdade de todos os seres humanos.

A presença da mulher nas suas mais diversas manifestações sociais é conquista recente, o que não significa dizer que não tenha existido anteriormente, o que aqui se põe de manifesto é que a força e a voz de muitas mulheres se tornaram invisíveis, foram depreciadas e não receberam o registro e a importância merecidos.

Alves e Pitanguy (1991) evidenciam que a existência feminina, não sem razão, é marcada pela sujeição e controle masculinos. Esse controle acontece desde a realização de tarefas domésticas até a conveniência da remuneração inferior quando equiparada ao do sexo oposto. Passa ainda pelo viés do comando moral, pois quando se põe em relevo o mesmo crime a punição é diferenciada considerando-se o binômio homem/mulher.

Precisar o nascimento do Movimento Feminista é um feito quase que impossível, mas valendo-nos de Alves e Pitanguy (1991), é possível dizer que que no século XVII, na grande América, destaca-se uma voz feminina de insubordinação, trata-se de Anne Hutchinson (1563-1645), uma religiosa que dizia terem sido “homem e mulher criados igualmente por Deus”. Essa fala lhe rendeu a expulsão da comunidade onde vivia, mas não calou seu discurso nem ao de seus simpatizantes.

Apesar do surgimento das Revoluções no século XVIII e suas ideias de liberdade, tal liberdade não alcança o gênero feminino. E com o surgimento do capitalismo a mulher passa a enfrentar modificações no seu mundo de trabalho, seja através do local, deixar a casa para enfrentar as fábricas, ou da jornada de trabalho que ultrapassavam as 12 horas diárias e ainda assim o salário não era uniforme entre homem e mulher.

Ainda considerando a luta feminina, merece destaque também a das sufragistas nos Estados Unidos e Inglaterra que exigiam o direito ao voto. Luta que durou 72 anos e de acordo com Alves e Pitanguy (1991, p. 48), se tal movimento não se confunde com o feminismo, serve para denunciar a exclusão da mulher na participação da vida pública.

Com o livro de Simone de Beauvoir, O segundo sexo (1940), passa-se a denunciar as raízes culturais da desigualdade sexual, e não natural como se queria anteriormente. Essa denúncia fundamenta e alicerça a reflexão feminista.

Além de Beauvoir, merece destaque também, Kate Millet e seu livro Política sexual (1970). Aqui procede-se a uma análise histórica das relações entre os sexos e conclui-se que o sistema patriarcal é de dominação universal.

Já Juliet Mitchell no livro A condição da mulher (1974) busca formular uma teoria que possa trazer luz aos aspectos gerais da discriminação de sexo quanto a sua especificidade nas diferentes classes socias.

No Brasil, a socióloga Heleith Saffiote se destaca em um trabalho pioneiro, trata-se do livro A mulher na sociedade de classes (1976). A autora aborda a condição da mulher no sistema capitalista e afirma não ser esta condição proveniente das relações econômicas, pois é visível em outras estruturas sociais.

As situações descritas acima, apesar de tidas por muitos como sendo isoladas, são precursoras do movimento feminista. Porém tal movimento ganha ênfase e destaque a partir da década de sessenta ao se compreender que a política, o sistema jurídico, a religião, a vida intelectual e artística são construções culturais. Essa nova abordagem lança por terra a crença na desigualdade natural entre os sexos e passa a entender-se que a diferença de papeis apenas máscara e legitima a posição masculina de controle e mando.

Beauvoir mais uma vez inova ao afirmar que “Não se nasce mulher”, antes tornar-se através de processos de socialização e naturalização.

Na sociedade contemporânea o movimento feminista atua sob vários eixos, mas é possível resumir sua atuação em quatro grandes frentes, quais sejam, sexualidade e violência, saúde, ideologia e formação profissional e mercado de trabalho.

Muitos teóricos buscam fundamentar-se em dados biológicos e apelam para a cultura na tentativa de promover uma valorização da função reprodutora feminina e fazem isso com tanta maestria que dita função passa a se confundir com a própria essência feminina, isso se dá porque conter sua sexualidade ainda é o caminho mais curto para inibir seu potencial.

No aspecto da saúde, Alves e Pitanguy (1991), esclarecem que o movimento feminista propõe à mulher uma reapropriação do conhecimento do corpo, tendo em vista que tal conhecimento a coloca como sujeito de sua própria sexualidade.

No que diz respeito ao tema ideologia, as autoras (1991, p. 62-63) são de opinião de que

circunscrevendo a sexualidade feminina e terminando uma posição inferiorizada para a mulher, existe todo um conjunto de ideias, de imagens, de crenças, que legitima, perpetua e reproduz a hierarquização de papeis sexuais. Mascara, dessa forma, o seu conteúdo cultural em nome de aspectos naturais que se fundamentam na biologia.

A essa demarcação de funções segue-se a desvalorização da atividade e, consequentemente, a diferenciação de níveis laborais entre a dicotomia homem/mulher.

A prática de interditar o exercício da sexualidade feminina restringe as potencialidades do desenvolvimento da mulher e a coloca em posição desigual frente ao homem.

A esse respeito Alves e Pitanguy (1991, p. 63-64) informam que essa ideologia é transmitida desde muito cedo pela família, pela escola, pelos meios de comunicação, além da religião, literatura e outros agentes socializadores. Para testificar suas falas chamam a atenção para o fato de como são retratadas as personagens nas histórias infantis, tendo em vista que as mesmas reproduzem papeis diferenciados, pois “enquanto a mulher é passiva, espera que o homem, ativo, a “salve”; é passivamente dada em casamento como prêmio, sem que se cogite de sua vontade”.

Como em todo momento de transição e transformação, e considerando-se a instabilidade dos papeis sociais-sexuais, é certo que as mulheres se veem assoberbadas pelo duplo papel que passam a cumprir, assumindo com o homem o sustento da família, mas não partilhando com ele os encargos domésticos. Cabe ressaltar também a dupla jornada de trabalho, que obriga a mulher a acumular os encargos profissionais e os de dona de casa.

No Brasil, o movimento feminista ganha força e voz a partir de 1932, momento em que a mulher alcançou o direito ao voto e esteve em alta ou baixa a depender do momento e fatores históricos pelos quais passou o país.

Para Alves e Pitanguy (1991, p. 74), não é de todo certo dizer que o movimento feminista está consolidado, muito se fez, direitos foram adquiridos e conquistas são perceptíveis no que diz respeito a mulher quando se compara o antes e o agora, porém, “o feminismo se constrói, portanto, a partir das resistências, derrotas e conquistas que compõe a História das Mulheres e se coloca como um movimento vivo, cujas lutas e estratégias estão em permanente processo de recriação”.

Fazendo uma ponte entre o movimento feminista e a obra em questão percebe-se que Rute foi tão vilipendiada no que diz respeito a ser sujeito de sua própria vida como também nos seus direitos que ela mesmo tendo sido violada e violentada não consegue se desvincular do passado e nem da culpa que a subjuga e faz com que rompa com tudo o que mais desejava, o casamento. Antes, opta pelo suicídio, isto é, prefere se ferir a ter que submeter o futuro marido a conviver com sua desonra e age assim por se sentir impura e não merecedora do seu amor.

3 GÊNERO

Desde os tempos mais remotos, questionamentos sobre gênero, papel da mulher e do homem permeiam a sociedade. Durante anos as mulheres foram associadas a um ser inferior ao homem e suas conquistas ignoradas. Assim, faz-se necessário compreender os estudos literários da escrita de autoria feminina, destruindo o conceito de inferioridade, resgatando a história da mulher e a condição de sujeito investigativo da sua própria história, pois mulheres e homens devem estar respaldados no mesmo direito, além de possuírem a mesma liberdade de expressão e de criação.

A literatura aborda acerca das questões de gênero através de obras literárias que servem de referência para estudo. Entende-se e diferencia-se alguns conceitos que tem se tornado cada vez mais atual, como, feminino: termo associado às meninas e às mulheres; masculino: termo associado aos meninos, homens; feminismo: movimentos sociais, políticos e filosóficos que tem como objetivo direitos iguais; feminista: pessoa que apoia e empodera outras mulheres.

Ao longo dos tempos se debate a diferença entre os sexos e a existência de um binarismo e uma heteronormatividade que aponta como “corretas e aceitas” apenas as relações heterossexuais. Assim, o termo gênero, segundo a gramática, é uma expressão classificatória que diferencia indivíduos de sexos diferentes masculino/feminino e neutro, mas pela literatura feminista é conceituado de maneira oposta ao plano biológico. Nessa discussão Butler (2003, p. 26) elenca que “nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino”.

Em algumas sociedades, em especial as de contorno patriarcal, a mulher é caracterizada como sendo, ou devendo ser, amorosa, doce, gentil e frágil enquanto o homem está vinculado à força, à razão e à agressividade. Com isso surgem novas possibilidades tanto para identificar quanto para justificar a diferença sexual existente entre os dois gêneros que são os pilares na formação da sociedade.

Segundo Laurettis (2019, p. 123) “‘diferença sexual’ é antes de mais nada a diferença entre a mulher e o homem, o feminino e o masculino”. E ainda nessa discussão Scott (2019, p. 75), elenca que o conceito de gênero referente a organização entre os sexos começou a ser usado pelas feministas americanas. E completa

Gênero é uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. Com a proliferação dos estudos sobre sexo e sexualidade, “gênero” tornou-se uma palavra particularmente útil, pois oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens.

Desse modo, gênero é um conjunto de características dos seres que possuem a mesma origem e que dependendo do contexto pode referir-se ao masculino e ao feminino, que com o passar dos anos vai se desenvolvendo como uma construção cultural e social e, com isso, o papel de sujeito ou objeto é o que vai produzir a afirmação do que é feminino e do que é masculino. Assim, gênero não é apenas um substantivo ou um conjunto de atributos, visto que surge das práticas que regulam as normas sociais. Assim, o gênero funciona sobre os corpos como uma norma regulatória, mas é induzido por outros preceitos que orientam a vida em sociedade. Para Butler (2003, p. 28)

O gênero pode também ser designado como o verdadeiro aparato de produção através do qual os sexos são estabelecidos. Assim, o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; o gênero é também o significado discursivo/cultural pelo qual a ‘natureza sexuada’ ou o ‘sexo natural’ é produzido e estabelecido como uma forma ‘pré-discursiva’ anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual a cultura age.

O termo gênero é bem variado, o que permite que seja definido e redefinido. Para Butler, gênero é uma construção a partir da cultura, sendo algo que não está acabado, estando permanentemente em construção através do tempo, compondo um fenômeno variável e contextual. Desse modo, as sociedades denominam as pessoas de homem e mulher, assinalando seus atributos simultaneamente por masculinidade e feminilidade. O gênero feminino só se constroi em oposição ao masculino e, nas diferenças, homens e mulheres se constroem juntos. Portanto, o conceito de gênero implica um conceito de relação, uma vez que o universo das mulheres está inserido no universo dos homens e vice-versa. Nessa discussão Laurettis (2019, p. 129) esclarece que

o termo “gênero” é, na verdade, a representação de uma relação, a relação de pertencer a uma classe, um grupo, uma categoria. Assim, gênero representa não um indivíduo e sim uma relação, uma relação social; em outras palavras, representa um indivíduo por meio de uma classe.

Logo, o termo gênero foi uma conquista para a causa feminista por estabelecer novas conceituações e debates referentes a questionamentos tradicionais em que não cabe mais a dominação e a submissão entre os sexos. Segundo Butler, aceitar o sexo como um dado natural e o gênero como um dado construído, determinado culturalmente, seria aceitar também que o gênero expressaria uma essência do sujeito.

Por fim, a literatura e, mais especificamente, a leitura feminista não é neutra, pois a crítica feminista possibilita a interpretação de narrativas ficcionais que se organizam sob configurações de gênero, que estabelece também o enredo e a construção dos personagens. Logo, nenhum escritor está livre de representar construções relacionadas ao gênero pois este não pode ser ignorado em uma obra.

4 ANÁLISE: PONTOS DISCURSIVOS

Para fazer a análise do conto O caso de Rute optou-se por revisitar as teorias feministas e de gênero e, desta forma, compreender o aporte que tais teorias oferecem ao estudo em questão.

Neste conto, a jovem Rute depois de ter sido violentada entra em conflito existencial e vê transmutado o conceito que tinha sobre amor.

O conto tem início com a personagem sendo entregue em matrimônio, fica noiva do homem que ama. Esse ajuste matrimonial é feito pela avó que acreditava que Rute já estava em tempo de se casar, como mostra Almeida (2020, p. 27) no trecho abaixo:

Pode abraçar sua noiva! Disse com bambaleaduras na papeira flácida a palavrosa baronesa Montenegro ao Eduardo Jordão, apontando a neta, que se destacava na penumbra da sala como um lírio alvíssimo irrompido dentre os florões grosseiros da alcatifa.

Outro fato que pode ser observado é a questão da idade da personagem, sua família acreditava que Rute aos 23 anos já estava passando da hora de casar-se, isso porque o que vigorava na época era que as jovens costumavam casar muito cedo para evitar ficaram mal faladas. Considerando-se a sociedade na qual a personagem estava inserida, é possível entrever que o destino da mulher era o casamento, porém para tornar-se apta ao matrimônio a mulher deveria possuir certos requisitos que ressaltariam as características de uma boa esposa, como por exemplo, ser bondosa, instruída e dotada de inteligência, além de pertencer a uma família nobre. Essas eram algumas das características determinantes para ter um bom marido. A esse respeito veja-se o que diz Almeida (2020, p. 27):

– Oh! Minha senhora…

– Não lhe faço favor. Além disso, Rute está com vinte e três anos; parece-me ser já tempo de se casar. Há de ser uma excelente esposa: é bondosa, regularmente instruída, nada temos poupado com a sua educação; e se não aparece e não brilha muito na sociedade é pelo seu excesso de pudor. Eu às vezes cismo que esta minha neta é pura demais para viver na terra.

Outro aspecto que merece atenção é o fator beleza. A esse respeito, Perrot (2007) esclarece que a beleza é um capital na troca amorosa ou na conquista matrimonial. Neste particular, o homem é o detentor da sedução e a mulher, passiva, objeto de sedução.

Rute ter apenas beleza não bastaria, precisaria ainda ser virgem para casar-se. Sobre a virgindade, Perrot (2007) evidencia que era cantada, cobiçada, vigiada e para muitos, até mesmo uma obsessão. Assim, preservar e proteger a virgindade da jovem solteira era uma obrigação familiar, além de uma dívida social.

Considerando-se o dito acima, pode-se verificar que o aspecto da virgindade é de importância capital, portanto, a mulher deveria manter-se virgem até o casamento. E embora esse costume tenha sido reiterado nas mais diversas sociedades, ainda hoje se mantém em alguns países, muitas vezes por motivos religiosos.

Atualmente, uma parte da população ainda se mantem firme no “costume” ou “tradição” do sexo só após o casamento. E não fugindo a regra, a virgindade, dentro do conto em estudo, é vista como algo que não poderia ser violada como bem conta Almeida (2020, p. 28), pois a partir dessa violação a mulher perderia sua essência, seu valor:

Às vezes penso que ela fez voto de castidade, tal é o seu recato; desengano-me lembrando-me de quanto é moderada na religião e de que o seu bom senso se revela em tudo! O que tenho a dizer-lhe, portanto, é isto: afirmo-lhe que Rute o adora e que não há alma mais cândida, nem espírito mais virginal que o seu. Aí a deixo por alguns minutos; se é o respeito por mim que lhe tolhe as palavras, concedo-lhe plena liberdade.

Perrot (2007) é de opinião de que uma vez que a mulher é deflorada, principalmente se desse ato participaram muitos homens, esta não encontrará quem a queira como esposa e, na falta de um marido, vê-se condenada a uma vida de prostituição. Isso se deu com muitas mulheres que viveram no século XIX. Tal fato depõe a favor do engessamento da sociedade patriarcal, pois nesta a mulher teria que se manter intocada sexualmente até a chegada do possível pretendente para que ele pudesse usufruir de sua maior virtude.

O homem via na quebra da virgindade um prêmio muito cobiçado que servia para inflar seu ego, porém, em contrapartida, o mesmo não era possível atestar do lado feminina, pois nem sempre era ela quem escolhia, já que o casamento se assemelhava, e ainda se assemelha, apena a um negócio. No que diz respeito ao conto, a personagem ao ser violentada pelo padrasto, portanto sem que nesse ato tivesse qualquer poder de escolha, tem sua virtude rompida, deixando assim de carregar a pureza que gostaria de oferecer ao seu amado.

De acordo com Almeida (2020, p. 30-31), é possível verificar a vergonha de Rute ao revelar ao seu amado o abuso que sofreu e, portanto, que não é mais pura. Percebe-se na sua fala, além da vergonha, a impossibilidade de ser feliz, pois vê comprometido o futuro com o homem que ama em decorrência da violação. Ao fazer a narrativa ela usa um tom de voz baixo, querendo com isso esconder sua vergonha e insiste em pedir ao amado que nada revela sobre o ocorrido:

– Rute… balbuciou Eduardo.

Mas a moça interrompeu-o com um gesto e disse-lhe logo, com voz segura e firme:

– Minha avó mentiu-lhe.

O noivo recuou, num movimento de surpresa; foi ela quem se aproximou dele, com esforço arrogante e doloroso, deslumbrando-o com o fulgor dos seus olhos belíssimos, bafejando-lhe as faces com o seu hálito ardente.

– Eu não sou pura! Amo-o muito para o enganar. Eu não sou pura!

Eduardo, lívido, com latejos nas fontes e palpitações desordenadas no coração, amparou-se a uma antiga poltrona, velha relíquia de D. Pedro I, e olhou espantado para a noiva, como se olhasse para uma louca. Ela, firme na sua resolução, muito chegada a ele, e a meia voz, para que a não ouvissem lá dentro, ia dizendo tudo:

Foi há oito anos, aqui, nesta mesma sala… Meu padrasto era um homem bonito, forte; eu uma criança inocente… Dominava-me; a sua vontade era logo a minha. Ninguém sabe! oh! não fale! não fale, pelo amor de Deus! Escute, escute só; é segredo para toda a gente… No fim de quatro meses de uma vida de luxúria infernal, ele morreu, e foi ainda aqui, nesta sala.

Almeida (2020, p. 31), retrata bem na personagem o excesso de sentimentos por Eduardo, e movida por esse excesso de amor é que o isenta da responsabilidade do acordo matrimonial, deixando claro que ele não era obrigado a assumir o fardo que ela representava. Desta forma, Rute o desobriga do casamento, pois acreditava não ser mais digna de Eduardo, perdera o que tinha de mais valor, sua virgindade:

– É isto a minha vida. Cedi sem amor, pela violência; mas cedi. Dou-lhe a liberdade de restituir a sua palavra à minha família. Rute falara baixo, precipitando as palavras, toda curvada para Eduardo, que lhe sentia o aroma dos cabelos e o calor da febre. Em um último esforço, a moça fez-lhe sinal que saísse e ele obedeceu, curvando-se diante dela, sem lhe tocar na mão.

Nesse trecho a autora deixa bem claro a subserviência da mulher, seja através das palavras que utilizou a personagem, seja pelo seu tom de voz baixo empregado por Rute ou ainda pelo corpo curvado, sem contar com a atitude de Eduardo nada cavalheira que nem sequer tocou-lhe a mão na despedida.

Para Butler (2003), gênero é uma construção a partir da cultura, sendo algo que não está acabado, antes é um processo em construção que se alonga através dos tempos, compondo assim um fenômeno variável e contextual.

Desse modo, as sociedades denominam as pessoas de homem e mulher, assinalando seus atributos simultaneamente por masculinidade e feminilidade. E no contexto do conto O Caso de Rute isso é verificável não só pelo fato da personagem ser mulher, mas também por ter mantido relações sexuais antes do casamento, mesmo sem o seu consentimento. Esse mesmo fato, quando considerado pelo viés masculino, nada pesa, pelo contrário é visto como sendo extremamente normal, a sociedade não cobra ou exige do homem que o mesmo se mantenha casto até o casamento.

Eduardo por ser homem e por estar inserido em uma sociedade patriarcal, na qual a mulher deveria manter-se casta para o seu marido, não lidou bem com o fato de sua Rute já ter sido de outro e esse sentimento acaba por atormentá-lo. Como que em rodamoinhos, os pensamentos de Eduardo o arrastavam em espirais oscilantes, ora “eu a amo”, ora “ninguém sabe”, o que evidencia o fato de Eduardo não saber lidar com a situação. Pese ainda o receio do personagem ao pensar no que a sociedade falaria ao saber que ele havia casado com uma mulher “impura”.

Almeida (2020, pp. 31-32), evidencia bem o dilema vivenciado por Eduardo quanto a perdoar ou não Rute e atrever-se a se casar com ela, mas também temia não conseguir esquecer o que lhe aconteceu. No trecho abaixo é possível notar o desespero do personagem mediante ao que acabara de descobrir, apesar de amar Rute, o seu lado de homem “traído” não o deixava pensar:

O outro está morto há oito anos… ninguém sabe, só ela e eu… Está morto, mas vejo-o diante de mim; sinto-o no meu peito, sobre os meus ombros, debaixo de meus pés, nele tropeço, com ele me abraço em uma luta que não venço nunca! Ninguém sabe… mas por ser ignorada será menor a culpa? Dizem todos que Rute é puríssima! Assim o creem. Deverei contentar-me com essa credulidade? Bastará mais tarde, para a minha ventura, saber que toda a gente me imagina feliz? O meu amigo Daniel é felicíssimo, exatamente por ignorar o que os outros sabem. Se a mulher dele tivesse tido a coragem de Rute, amá-la-ia ele da mesma maneira? Se a minha noiva não me tivesse dito nada, não seria o morto quem se levantasse da sepultura e me viesse relatar barbaramente as suas horas de volúpia, que me fazem tremer de horror!

É notável, pelo discurso de Eduardo, que a sociedade também poderia julgar Rute, e ele estava preocupado tanto em manter sua postura de homem, que não aceitava a falta de pureza de sua amada, como na postura de não abandoná-la. Em seu discurso há uma contradição entre sentimento versus sociedade, como se ele tivesse que escolher apenas um dos lados e ao escolher Rute ele estaria indo contra a sociedade, contra a sua honra de homem de apenas casar-se com uma mulher virgem como bem esclarece Almeida (2020, p. 32):

Daí, quem sabe? Amo-o muito para o enganar... parece-me que lhe ouvi isto! Se eu pudesse esquecê-la! Não devo adorá-la assim! É uma mulher desonrada. A pudica açucena de envergonhar sensitivas é uma mulher desonrada… E eu amo-a! Que hei de fazer, agora? Abandoná-la… não seria digno nem generoso… Ela e eu! e que nos importam os outros, tendo toda a mágoa em nós dois só?! Antes todos os outros soubessem… Não! Que será preferível – ser desgraçado guardando uma aparência digna, ou…? Não! em certos casos ainda há alguma felicidade em ser desgraçado… Ela ama-me… eu amo-a… ele morreu há oito anos… já nem lhe falam sequer no nome… Ninguém sabe! ninguém sabe… só ela e eu!

Conhecedora da circunstância na qual se encontrava, Rute não entendia como Eduardo tinha aceitado casar-se com ela e para desobrigá-lo, ela em uma atitude de grande angústia pensou em tirar a vida. Almeida (2020, p. 33), deixa claro que própria Rute não aceitava submeter Eduardo a sua “impureza”, não concebia a ideia de ter que aprisioná-lo a um casamento indigno, razão pela qual a obrigou a revelar a verdade ao amado, na tentativa de fazê-lo desistir:

Entraria no lar como uma ovelha batida. O perdão que o noivo não teria ele compreendido a enormidade do seu sacrifício? Seria cego? seria surdo?… dono de um coração impenetrável e de uma consciência muda? As suas mãos estariam só tão afeitas a carícias que não procurassem estrangulá-la no terrível instante em que ela lhe dissera – eu não sou pura? Talvez que, então, Eduardo a repelisse, a deixasse isolada no seu leito de núpcias, e fugindo para a noite livre fosse chorar lá fora o sonho da sua mocidade… Sim, a sua noite de núpcias seria uma noite de inferno. […] Rute pensou em matar-se.

Rute, por ser considerada pela família e pelo seu amado como uma mulher pura, não estava de toda satisfeita em submeter-se a um casamento de mentiras junto ao seu amor. Na narrativa, Almeida (2020, p. 34) deixa entrever que seu amor por Eduardo era maior que tudo e por isso queria poupá-lo do fardo que era viver ao lado de uma mulher que não o merecia, tinha sido violada e não possuía os traços de pureza, da castidade, fatores imprescindíveis para um casamento feliz. E isso a faz deixar de sonhar:

De luto em casa. Ramos e coroas virginais entravam a todo o instante. Quem saberia explicar a morte de Rute? foram achá-la estendida na cama, já toda fria. Agora estava entre as duas janelas, na grande sala sombria, espalhando sobre o fumo da peça as suas rendas brancas e o seu fino véu de noiva. Parecia sonhar com o desejado esposo, que ali estava a seu lado, pálido e mudo.

É perceptível pela citação acima que a personagem, por não conseguir carregar a sua “impureza” e por ter sido de outro homem, não conseguiu seguir em frente, mesmo Eduardo a “perdoando”. Ela preferiu se sacrificar e deixá-lo livre para casar-se com outra. Num esforço de libertar Eduardo da sua sina de um casamento infeliz ao lado de uma mulher que não o merecia, Rute tira a própria vida e assim mata seus sonhos e os de Eduardo de terem uma vida juntos. Rute leva para o jazigo o seu segredo e o segredo de sua família.

5 CONCLUSÃO

Pelos aspectos aqui verificados, pode-se dizer que os estudos sobre o feminismo e gênero são extremamente importantes no que diz desrespeito às transformações que vem acontecendo ao longo dos anos nas mais diversas sociedades. Através de um olhar crítico sobre feminismo e gênero, pode-se observar as grandes e diversificadas transformações que as mulheres vivenciaram e ainda vivenciam.

Fazendo-se um comparativo entre a época do conto e a contemporaneidade, é possível desmistificar e desvelar que a mulher, atualmente, pode sim contar com outros e novos pareceres, que através das lutas femininas novas possibilidades se descortinam e novos horizontes se revelam para além do que as linhas literárias sugerem.

Na visão de Michelle Perrot (2007), o ser feminino era visto como um alguém carente, fraco. E através de estudos como este pode-se perceber a importância dada ao sexo e que, atualmente, diverge completamente de épocas passadas. Para isso basta  nos reportarmos aos acontecimentos da Idade Média, aqui se considerava que os sexos eram variedades de um mesmo gênero, impossível dizer o mesmo nos dias atuais.

Ao falar de sexo, virgindade e sexualidade das mulheres, Perrot (2007) considera como sendo objeto de profundo recalque, pois não é possível desvincular dos grandes tabus que essas temáticas estão inseridas, por isso muitas feministas hesitavam em abordar questões sexuais.

É por meio da visão de Alves e Pittanguy (1991) que nos deparamos com um repensar os tabus e as proibições sexuais que giram em torno do corpo da mulher, como foi verificado no conto O caso de Rute (2020). Os conflitos retratados na obra envolvem a “honra” da mulher, associado à virgindade e a castidade, a passividade sexual, a carga de tabus e preconceitos, que são socializadores da sexualidade feminina.

E por fim, os movimentos feministas trouxeram à tona as questões políticas da mulher por meio de inúmeras conquistas que foram alcançadas como o direito ao voto, a liberdade sobre o próprio corpo e a maternidade.

REFERÊNCIAS

AMLEIDA, Júlia Lopes de. Ânsia eterna. 2º ed. rev. Brasília: Senado Federal, 2020. 191 p. (Coleção escritoras do Brasil).

ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jaquecline. O que é feminismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Vol.1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

BUTLER, Judite. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.

GARCIA, Carla Cristina. Breve história do feminismo. São Paulo: Claridade, 2011.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento Feminista Conceitos Fundamentais. In: LAURETTIS, Teresa. A tecnologia de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019. Páginas (123- 161).

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento Feminista Conceitos Fundamentais. In: SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019. Páginas (49-83).

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Trad. Angela Correia. São Paulo: Contexto, 2007.


1 Graduada em Licenciatura Plena em Letras Português pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI; Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Piauí. E-mail: deborahhlopeez@gmail.com
2 Graduada em Licenciatura Plena em Letras Português pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI; Mestranda em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Piauí. E-mail: fatimaever@hotmail.com
3 Graduada em Letras Espanhol pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI; Mestranda em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Piauí. Professora efetiva da rede estadual do Piauí. E-mail: mariasosabreu@gmail.com
4 Graduada em Letras Português pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI; Mestranda em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Piauí; Professora efetiva da rede estadual do Tocantins. E-mail: samaraleal173@gmail.com
5Doutorado em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil (2012);
Professor Titular da Universidade Estadual do Piauí, Brasil. E-mail: josewanderson@ccm.uespi.br