REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202504261457
Carlos A. B. Silva1
Resumo:
Mesmo com a queda de 53,8% dos homicídios entre 2021 e 2024, Roraima ainda convive com níveis preocupantes de violência. Esta pesquisa busca entender por que ela persiste, explorando a influência da posição geográfica do estado — com suas amplas fronteiras e intenso fluxo imigratório — na atuação das facções criminosas e na manutenção de ciclos de violência estrutural. Utilizamos uma abordagem hermenêutica que articula dados do IPEA e FBSP, reportagens jornalísticas (2018– 2024) e autores como Misse, Fanon e Zaluar. A análise foi organizada em quatro etapas complementares. Identificamos três vetores principais: a tríplice fronteira como rota para ilícitos, o uso das migrações pelo narcotráfico e os conflitos entre grupos como PCC, Comando Vermelho e Tren do Aragua. Embora os homicídios tenham caído, a insegurança permanece. Isso mostra que não bastam medidas repressivas – é preciso enfrentar as causas estruturais da violência.
Palavras-chave: Criminalidade transfronteiriça. Segurança pública. Migração venezuelana. Integração perversa. Fragilidade institucional.
Abstract:
Despite a 53.8% drop in homicides between 2021 and 2024, Roraima still experiences worrying levels of violence. This research seeks to understand why this persists, exploring the influence of the state’s geographic position — with its vast borders and intense migratory flow — on the actions of criminal gangs and the maintenance of cycles of structural violence. We used a hermeneutic approach that combines data from IPEA and FBSP, journalistic reports (2018–2024), and authors such as Misse, Fanon, and Zaluar. The analysis was organized into four complementary stages. We identified three main vectors: the triple border as a route for illicit activities, the use of migration by drug traffickers, and conflicts between groups such as the PCC, Comando Vermelho, and Tren de Aragua. Although homicides have fallen, insecurity remains. This shows that repressive measures are not enough — it is necessary to address the structural causes of violence.
Keywords: Cross-border crime. Public security. Venezuelan migration. Perverse integration. Institutional fragility
1. Introdução
Segundo o atual Mapa de Segurança Pública (Brasil, 2024), enquanto demais regiões brasileiras registram quedas nos crimes contra a vida e outras formas de violência, o extremo setentrional do território nacional experimentou uma curva ascendente nesses indicadores. Nesse quadro já preocupante, Roraima desponta com particular gravidade. Sua extensa fronteira (958 km com Venezuela e Guiana) configura um cenário único, onde atividades ilícitas como mineração irregular e tráfico de entorpecentes se movimentam com uma fluidez que rivaliza com o fluxo humano, criando desafios complexos de segurança e soberania.
Ainda assim, recentemente o estado de Roraima expressou otimismo com a significativa redução de 53,8% nos homicídios dolosos entre 2021 e 2024, que, diante dos números nacionais, representaria uma transformação positiva na segurança pública local. Seria o sucesso das estratégias implementadas contra o crime organizado e o tráfico de drogas, destacando as operações especiais e a integração entre as forças policiais. O que se quis mostrar com essa consistente queda nos números de homicídios nesses três anos (de 199 para 92 casos) é que esse acontecimento teria sido resultado de investimentos em segurança pública (Lima, 2024). Um declínio que não apenas confrontaria indicadores estatísticos nacionais, como serviria para ressignificar o cotidiano de roraimenses pela possibilidade de ofertas de ambientes menos violentos e mais seguros. São variações que repercutiriam diferencialmente numa melhor qualidade de vida da população local com a entrega de melhores indicadores de segurança pública.
Mas este é um quadro que nos impõe levantar um pressuposto: o de que em segurança pública todo número precisa ser visto com zelo, considerando que a criminalidade tem uma incrível capacidade de se adaptar. Quando se foca em uma determinada área, ela muitas vezes migra para outra (Mendes, 2014). Sendo assim, essa queda poderia estar menos ligada a uma melhora real na segurança e mais relacionada a mudanças nas formas de atuação do crime organizado, que nem sempre se reflete nos dados divulgados pela Secretaria de Estado da Segurança Pública de Roraima (SESPRR).
Foi a partir desse cenário instável e cheio de contradições que surgiu a inquietação que motivou esta pesquisa. A pergunta que nos guiou é direta e com um peso significativo: como a localização geográfica de Roraima, marcada por fronteiras expostas, imigração, facções atuando a partir dos presídios e um fluxo imigratório constante, tem influenciado os índices locais de violência?
Nosso propósito vai além da simples acumulação de estatísticas, que é compreender os mecanismos que mantêm certas dinâmicas sociais vivas, por meio da análise integrada de três fontes de informação: dados oficiais, relatos jornalísticos e percepções veiculadas pela imprensa. A ideia foi transcender a superfície dos números para refletir criticamente sobre seus significados implícitos e explícitos, para poder compreender o quanto esses dados sugerem e o que podem ocultar.
2. Violência estrutural, exclusão social e juventude marginalizada
A compreensão do fenômeno da violência em Roraima requer uma fundamentação teórica multidimensional. A presente investigação baseou-se em referenciais teóricos que possibilitaram uma interpretação aprofundada tanto da presença marcante de facções criminosas na região, quanto da persistência dos elevados índices de homicídios, feminicídios e outras manifestações de violência observadas no estado. Essa análise de processos de violência em Roraima demanda uma reflexão crítica sobre as relações de poder e os mecanismos de controle social. Nesse contexto, articulamos as contribuições de Weber (apud Aron, 2002) e Foucault (2022) de maneira complementar.
Se para Weber, a concepção de estado como a entidade que detém o monopólio legítimo do uso da força física encontra na violência estatal justificativa para manter a ordem social, para Foucault, são as formas microfísicas de poder que sustentam a dominação. No cenário roraimense, estas perspectivas teóricas convergem ao revelar que, onde o Estado falha em exercer seu monopólio legítimo da força (Weber), emergem estruturas paralelas de poder que estabelecem seus próprios mecanismos de controle e disciplinamento (Foucault), manifestados na atuação territorial das facções criminosas, principalmente na cidade de Boa Vista e nas zonas fronteiriças.
O enfraquecimento das estruturas oficiais revela-se nitidamente na região limítrofe de Pacaraima, constituindo um caso emblemático do fenômeno que Bauman (2001) denominou “modernidade líquida” – circunstância social marcada pelo desmoronamento gradual das entidades estabelecidas e pela progressiva deterioração dos vínculos entre membros da comunidade. Pacaraima foi afetada por uma explosão populacional sem o correspondente desenvolvimento dos aparatos públicos fundamentais. O entrelaçamento entre a insuficiência das ações estatais e o persistente desequilíbrio nas interações sociais engendrou um cenário especialmente vulnerável, que funcionou como campo propício para a penetração e fortalecimento de redes delituosas estruturadas.
O processo imigratório em Roraima caracteriza-se por um cenário de fragilidade social onde as relações de poder se manifestam de maneira assimétrica. Neste contexto, a teoria da violência simbólica de Bourdieu (2001) oferece uma lente interpretativa fundamental para compreender como as desigualdades geradas pelo processo imigratório não apenas existem, mas foram naturalizadas e incorporadas ao cotidiano roraimense. Esta naturalização ocorre precisamente por meio de mecanismos sutis de caráter xenofóbico empregados pela população local ao se referir aos venezuelanos, mecanismos estes que, conforme apontam Mina e Lima (2018), funcionam como estratégias de distinção que estabelecem e reforçam fronteiras de diferenciação social e econômica entre os dois grupos.
A violência simbólica, vista sob esta perspectiva, manifesta-se como um fenômeno dinâmico que se adapta às transformações na relação entre migrantes e população local. O cenário atual caracteriza-se por uma forma mais sutil de resistência, que pode ser descrita como uma aceitação reservada, enquanto no início do processo imigratório as manifestações eram explicitamente hostis contra a presença venezuelana, como documentado em reportagens (G1, 2020). Essa readaptação comportamental demonstra como os processos de dominação simbólica não desaparecem simplesmente, mas se reconfiguram e se adaptam em outras formas de xenofobia, igualmente eficazes na manutenção das hierarquias sociais e da diferenciação entre grupos.
É nesse contexto de desestruturação social que a noção de violência simbólica de Bourdieu (2001) ganha relevância, pois ajuda a explicar como a desigualdade se naturaliza de forma velada. Trata-se de um tipo de dominação que não se impõe pela força física, mas por práticas institucionais e discursivas que naturalizam o não pertencimento, inclusive em políticas supostamente neutras como a Operação Acolhida2.
2.1 Fronteiras, migração e colonialidade
A obra de Frantz Fanon (2015) pareceu-nos oferecer um referencial teórico que poderia ser estendido para a análise das resistências indígenas em Roraima e dos processos de xenofobia direcionados a imigrantes. Em um estado onde 49% da população possui ascendência indígena (IBGE, 2022) e mais de 100 mil venezuelanos buscaram refúgio em Roraima (ACNUR, 2023), a perspectiva fanoniana sobre a violência como produto do colonialismo possibilita uma compreensão das intersecções entre opressão histórica e lutas por dignidade no contexto de dominação cultural e econômica.
Contudo, é preciso esclarecer que a população migrante venezuelana em Roraima apresenta grande heterogeneidade em sua composição sociodemográfica, com diversas origens sociais e características culturais distintas. Há aqueles que se deslocam por estradas até Manaus, outros que utilizam o aeroporto — seja por iniciativa própria ou por ações organizadas pela Operação Acolhida e por ONGs. Além disso, há os que permanecem nos abrigos, assim como os que conseguem inserção no mercado de trabalho, seja em Boa Vista ou no interior do estado. Entre eles, estão os indígenas Warao, que enfrentam desafios específicos relacionados à preservação de sua cultura e modo de vida tradicional em um ambiente urbano e institucionalizado3. Em Boa Vista costumavam perambular pelos semáforos em situação de mendicância. Hoje, em menor número, se espalharam por várias cidades do Brasil, levados pela Operação Acolhida.
A abordagem teórica de Fanon transcende interpretações moralizantes simplificadas, permitindo compreender os conflitos contemporâneos como manifestações de tensões históricas não resolvidas – fraturas sociais que remontam a processos coloniais e de marginalização persistentes no contexto brasileiro.
Esta perspectiva ilumina as raízes profundas da exclusão social, da xenofobia e da insuficiência estatal na região. Essa diversidade na composição do fluxo imigratório venezuelano requer abordagens diferenciadas que evitem tratamentos homogêneos, os quais tendem a invisibilizar as distintas experiências, necessidades e vulnerabilidades dos diferentes grupos de migrantes.
2.2 Entre Bauman e Fanon: teorias sociais e violência fronteiriça em Roraima
A teoria da “modernidade líquida” proposta por Bauman (2001) demonstra particular relevância analítica quando aplicada ao contexto roraimense, onde se observa uma conjugação entre mobilidade populacional extrema e fragilidade institucional crônica, evidenciada por indicadores de desenvolvimento significativamente inferiores à média nacional. Esta configuração social, caracterizada pela instabilidade não como fenômeno passageiro, mas como elemento estruturante das relações sociais, constitui ambiente propício para a atuação de organizações criminosas.
A insuficiência de planejamento e investimentos adequados para administrar fluxos migratórios acelerados produziu sobrecarga nas instituições públicas, criando condições favoráveis à atuação de grupos criminosos que estabelecem sistemas normativos paralelos nos espaços caracterizados pela ausência ou precariedade estatal.
Esse tipo de situação tende a se agravar quando há deslocamentos forçados, como no caso da migração venezuelana. A falta de ações públicas bem planejadas para acolher e integrar essas populações acaba intensificando fragilidades sociais que já existiam antes. Ao aproximar as ideias de Frantz Fanon — especialmente no que diz respeito às marcas profundas do colonialismo — com os pensamentos de Zygmunt Bauman sobre o enfraquecimento dos vínculos sociais, é possível entender a violência em Roraima de forma mais abrangente. Ela aparece, ao mesmo tempo, como reflexo de um histórico de exclusão social prolongada e como expressão atual da dificuldade do Estado em proteger e incluir parte significativa da população.
As contribuições desses dois autores são essenciais para esta análise, pois ajudam a mostrar como questões históricas, geográficas e institucionais se combinam na formação de cenários violentos em zonas de fronteira, onde, muitas vezes, o poder público está ausente. Quando aplicadas ao caso específico de Roraima – onde convergem fluxos migratórios venezuelanos e legados coloniais sobre as populações indígenas – estas perspectivas teóricas revelam as raízes profundas dos processos de exclusão social, xenofobia e insuficiência estatal. Mais que explicar conflitos contemporâneos, este diálogo teórico evidencia como a violência regional constitui manifestação renovada de processos históricos de marginalização.
Reconhecemos que, embora este estudo tenha considerado a significativa presença indígena em Roraima, não foi possível realizar uma análise aprofundada sobre como as dinâmicas de violência afetam especificamente essas comunidades. Essa limitação se deve, em parte, à escassez de dados desagregados e à complexidade de acesso a informações detalhadas sobre as realidades vivenciadas nos territórios indígenas.
3. Materiais e métodos4
Esta pesquisa combina análise hermenêutica e triangulação de métodos para investigar a violência em Roraima. Trabalhamos com:
- Dados quantitativos: estatísticas do IPEA, FBSP e Atlas da Violência.
- Fontes qualitativas: reportagens jornalísticas (2018-2024).
- Referencial teórico: autores como Misse, Fanon e Zaluar.
O processo analítico seguiu quatro etapas:
- Coleta e organização dos dados.
- Identificação de padrões e recorrências.
- Comparação crítica entre as fontes.
- Resultados.
A triangulação metodológica aqui empregada – articulando dados institucionais, análise de mídia e teoria crítica – revela como as aparentes reduções nos índices de violência podem mascarar transformações nas dinâmicas criminais. A divergência entre os registros oficiais e as evidências documentadas por informações de jornalistas expõe limitações estruturais nos sistemas de dados sobre criminalidade.
Esse recurso metodológico não apenas fortalece a validade dos achados, mas também permite identificar lacunas interpretativas que seriam invisíveis em uma abordagem unidimensional baseada apenas em estatísticas. Esta estratégia responde diretamente à necessidade de examinar o fenômeno da violência além dos números, verificando se a redução estatística corresponde a uma melhora efetiva nas condições de segurança ou se reflete apenas transformações na manifestação e no registro da violência estrutural que persiste no estado.
A base qualitativa desta pesquisa incluiu reportagens (2019-2024), selecionadas mediante triagem em plataformas como Google Notícias e citações de veículos de informação. Priorizaram-se artigos com evidências de atuação transnacional de facções (ex.: PCC e Tren de Aragua) combinados com dados primários (ex.: relatórios do FBSP).
O material coletado passou por uma análise de conteúdo temática (Bardin, 2010), estruturada em três eixos: (a) descrição dos atores envolvidos (facções, migrantes, comunidades indígenas, Estado); (b) estratégias de atuação territorial; e (c) consequências sociais e institucionais. Ao cruzar números oficiais com reportagens jornalísticas e teorias acadêmicas, tentamos desvendar os padrões que se repetem, os vazios nas interpretações e as diferenças entre o que as autoridades dizem e o que acontece nas ruas.
Ao longo do artigo, queremos analisar os seguintes pontos: (a) ver como a violência se manifesta em Roraima na última década; (b) ver como as facções são um agravante para este fenômeno e (c) levantar informações sobre facções através de matérias jornalísticas, tendo como argumento de fundo o referencial teórico sobre violência estrutural. Diante da variedade de dados disponíveis para o período de 10 anos, priorizamos focar nos anos de 2018 a 2023. Escolhemos esse recorte porque foi justamente nesses anos que aconteceram as maiores mudanças – tanto na violência quanto na migração e na atuação das facções. Buscou-se entender como a violência em Roraima mudou nesse período, especialmente os homicídios.
A partir daí, vieram as mais perguntas: quais são as facções que dominam o estado? Como elas agem para controlar territórios? Será que no curso desse tempo a violência se intensificou ou apenas expôs problemas que já existiam? Atinentes de que os números oficiais nem sempre contam a história completa, buscamos então comparar reportagens, relatos e outras fontes informativas (às vezes, o que falta nos dados aparece nas ruas).
Esses anos foram decisivos para Roraima: enquanto o estado se refazia de uma intervenção federal, venezuelanos cruzavam a fronteira em busca de sobrevivência e facções aproveitavam a ausência do Estado para expandir seus domínios. Foi assim que, geograficamente, colocamos Boa Vista no centro da investigação. A capital não só concentra a maior parte dos imigrantes, mas também aparece como palco principal dos conflitos entre facções e dos altos índices de homicídios, segundo dados do Atlas da Violência e do FBSP (2024).
Tal delimitação buscou garantir rigor analítico e possibilitar comparações consistentes entre estatísticas governamentais, cobertura jornalística e arcabouço teórico, visando correspondência direta com os objetivos gerais e específicos desta investigação. Por fim, cabe assinalar que certas restrições metodológicas poderão repercutir nas conclusões apresentadas. Destacamos, primeiramente, a escassez de estatísticas criminais detalhadas para Roraima, especialmente quando buscamos estratificações por idade, sexo ou bairros específicos – lacuna que prejudica análises mais granulares do fenômeno.
Outra fragilidade reside na dependência parcial de material jornalístico como fonte primária. Embora as reportagens ofereçam narrativas valiosas e dados empíricos não disponíveis em canais oficiais, estão inevitavelmente sujeitas a filtros editoriais, enquadramentos seletivos e eventuais falhas na apuração dos fatos apresentados.
É importante reconhecer que a própria natureza instável das organizações criminosas analisadas — que adaptam continuamente suas estratégias e estabelecem alianças circunstanciais —, somada à falta de transparência de certos órgãos de segurança pública, cujo funcionamento permanece pouco acessível à pesquisa acadêmica, impõe desafios concretos à compreensão mais precisa das engrenagens da violência na região. Essas limitações, no entanto, não comprometeram os principais achados desta investigação.
Entendemos que essas limitações, longe de invalidar os resultados alcançados, reforçam a necessidade de manter o tema sob acompanhamento constante, sobretudo por estudos voltados à segurança pública. Ampliar a diversidade das fontes e investir na construção de um conhecimento mais enraizado na realidade local tornam-se estratégias indispensáveis para compreender as dinâmicas específicas que moldam a tríplice fronteira na sua realidade concreta.
É necessário esclarecer que, se o avanço da migração venezuelana coincidiu com o agravamento dos índices de violência em Roraima, essa simultaneidade não autoriza conclusões antecipadas de causa e efeito. Esses índices são fatores que se entrelaçam com a crise migratória, mas não decorrem necessariamente dela. Como discutido ao longo deste trabalho, a violência é um fenômeno de múltiplas causas e que está enraizado em processos históricos, desigualdades sociais e fragilidades institucionais que atravessam a região muito antes do atual contexto imigratório.
Se utilizamos fontes secundárias como corpus analítico primário, isso deveu-se a uma seleção metodológica deliberada, proposta por critérios epistemológicos e pragmáticos que nortearam o desenho investigativo desta pesquisa. Fatores estruturais como bairros, garimpos e fronteiras assediados por organizações facções transfronteiriças, bem como as complexidades éticas inerentes à abordagem de populações em situação de vulnerabilidade e fragilizadas pela imigração, sem contar os significativos obstáculos logísticos de acesso a regiões remotas de Roraima, impuseram limitações objetivas ao emprego de métodos etnográficos tradicionais. Não obstante tais restrições, procuramos implementar rigorosos procedimentos de triangulação analítica e validação cruzada das informações disponíveis, estabelecendo contrapontos sistemáticos entre diferentes repositórios documentais e perspectivas interpretativas.
Temos o entendimento de que, embora os materiais jornalísticos forneçam informações relevantes e atualizadas, há riscos de viés editorial e seleção temática, o que exige uma leitura crítica das fontes. Por isso, a triangulação com dados quantitativos (FBSP, IPEA, Atlas da Violência) e com o referencial teórico buscou justamente mitigar esse risco, construindo uma análise interpretativa que reconhece as lacunas empíricas sem desconsiderar a densidade do problema estudado.
4. Resultados
Depois de se realizar a organização dos dados, o passo seguinte foi encontrar padrões que sejam uma constante no quadro da violência em Roraima, para então ver as conexões dos indicadores criminais com as ações das facções e crescimento do fluxo imigratório. A iniciativa que propomos para esse cenário marcado por múltiplas camadas, deu-se em quatro eixos temáticos, visando alcançar as diversas dimensões que compõem este fenômeno tão complexo e em constante transformação, que é a violência em Roraima no período selecionado.
4.1 Evolução temporal da violência letal em Roraima
Houve um agravante significativo que interferiu nas estatísticas: a conturbada intervenção federal no estado em 2018, desencadeada por graves escândalos de corrupção envolvendo a então governadora Suely Campos (Costa, 2018). Este período turbulento foi marcado por profunda instabilidade institucional – numerosas greves de servidores públicos devido a constantes atrasos salariais, inúmeras denúncias de corrupção envolvendo familiares próximos da governadora e o visível colapso generalizado de serviços essenciais à população, inclusive na já fragilizada área de segurança pública. Tal complexo contexto político-administrativo coincide temporalmente com o preocupante aumento expressivo da violência em território roraimense, conforme claramente ilustra o Gráfico I apresentado anteriormente. Embora até o presente momento não existam estudos científicos aprofundados que estabeleçam correlação direta entre esses fatores multidimensionais, os dados empíricos evidenciam cabalmente que 2019 representou o incontestável ápice histórico de mortes violentas no estado, sendo posteriormente seguido por sensível inflexão estatística no ano subsequente, relativa estabilização dos indicadores em 2022 e movimento adicional consistente de decréscimo em 2023.
Gráfico I – Mortes violentas intencionais (MVI, por 100 mil hab.)5
Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 2024.
O período pós-crise em Roraima trouxe um alívio considerável nas estatísticas de crimes violentos. A Secretaria de Segurança local divulgou uma queda de cerca de 54% nos assassinatos entre 2021 e 2023, enquanto o Fórum Brasileiro de Segurança Pública registrou uma diminuição aproximada de 43% no mesmo intervalo. Essa diferença nos números não chega a surpreender especialistas – afinal, cada instituição usa métodos próprios para contar e classificar as ocorrências, algo comum no mundo das estatísticas criminais. Vale destacar que o recém-lançado Mapa da Segurança 2024 confirma essa tendência positiva: foram registrados 130 homicídios em Roraima no ano passado, aproximadamente um quarto a menos que em 2022, o que coloca o estado com uma taxa de cerca de 20 mortes para cada grupo de 100 mil moradores.
Gráfico II – Taxa de homicídios Roraima vs. média nacional6
Mas essa aparente melhoria nos indicadores estaduais perde força quando contextualizada no cenário nacional. Conforme evidencia o Gráfico II, elaborado a partir do Atlas da Violência 2024, persiste uma distância expressiva entre os índices roraimenses e a média brasileira de homicídios. Se a despeito do recuo na letalidade, outros indicadores de violência permanecem estáveis ou apresentaram crescimento significativo, como mostram os dados de 2023, no Quadro I.
Quadro I: Panorama da Violência em Roraima (2023)
Taxa por 100 mil mulheres
Fonte: Dados extraídos do Mapa da Segurança Pública 2024 (ano-base 2023), Ministério da Justiça e Segurança Pública.
A posição de prevalência de Roraima no contexto nacional da violência se projeta com mais destaque quando se observa o ranking das capitais mais violentas do Brasil, como demonstra a Tabela I. A posição de Boa Vista diante de dez capitais com maiores taxas de homicídios reforça a gravidade da situação da violência no estado.
Tabela I – Capitais mais violentas do Brasil
Fonte: ESTADÃO, 2024.
Outro fato a se considerar é que a imigração é um fenômeno importante para a análise aqui proposta, inclusive damos destaque à situação demográfica de Pacaraima, a porta de entrada de imigrantes. A pequena cidade fronteiriça experimentou um crescimento populacional vertiginoso sem a correspondente ampliação da infraestrutura urbana, como foi demonstrado na Tabela II.
Tabela II – Evolução demográfica de Pacaraima e seus impactos sobre a infraestrutura urbana (2015–2024)5
Fonte: Ramalho e Rufino, 2024; IBGE; ACNUR.
Esse crescimento desordenado, somado à pressão sobre os serviços públicos, contribui, sem dúvida, para um ambiente de vulnerabilidade social que, em muitos casos, se reflete nos índices de violência. No Gráfico III, o fator imigratório deve ser visto como uma das variantes, considerando que outras geram inflexões, como a expansão do garimpo até 2022 (ver Valfré, 2024).
Pode ser por isso que a análise da evolução histórica dos homicídios na última década mostrou variações expressivas, exatamente por ser uma realidade multifacetada, com períodos de ascensão seguidos por quedas abruptas, conforme apresenta o Gráfico III:
Gráfico III – Taxa de homicídios por 100 mil habitantes (2009 a 2020)
Como a violência apresenta-se de forma multifacetada, faz-se necessário ir para além dos homicídios e ver outras camadas deste fenômeno. Segundo o FBSP (2023), desaparecimentos (ver Quadro I abaixo), por exemplo, aumentaram 19%, enquanto a violência doméstica subiu 23%, concentrando-se prioritariamente nas regiões periféricas da capital, com a violência letal também se agravando nessas regiões (IPEA, 2023).
Esse desencontro entre a queda dos homicídios e a persistência de outros crimes, somado à desigualdade espacial na distribuição da violência, sugere que estamos diante de uma mudança nas estratégias e dinâmicas do crime, mais do que de uma redução real dos conflitos — como aponta o Quadro I.
Quadro II: Contradições na Segurança Pública de Roraima: Discrepância entre Dados Oficiais e Realidade Observada (2021-2023)
Fonte: Elaborado pelo autor com base em dados de FBSP (2023), SENASP (2023), IPEA (2023) e Carmo; Ágatha; Silva (2023).
Ao deslocarmos o olhar para além das estatísticas de homicídios, percebemos que o cenário da violência em Roraima é bem mais intricado do que os números isolados podem sugerir. Embora as mortes tenham diminuído, os registros de desaparecimentos cresceram 19%, a violência doméstica teve um salto de 23% e os roubos continuaram em patamar elevado, sem variações significativas. No centro de Boa Vista, onde os índices de homicídio são mais baixos, o que se nota não é a pacificação desses territórios, mas uma redistribuição da violência. Ela muda de forma, de alvo, de espaço — mas permanece presente. Como evidencia o Quadro I, a letalidade diminuiu, mas outras formas de agressão e insegurança continuaram a marcar o cotidiano, de maneira menos evidente, porém igualmente grave.
4.2 Facções criminosas e disputas territoriais
Um fenômeno mais recente foi a chegada de facções estrangeiras, em que a mais expressiva é o Tren de Aragua, cuja chegada coincide com a intensificação do fluxo migratório venezuelano. Esta nova configuração criminal contribuiu para o pico de violência observado naquele ano, como evidencia o Quadro II.
QUADRO III – Facções atuantes em Roraima
Fonte: Quadro elaborado pelos autores com base nos dados FBSP, 2023.
O Quadro II revela como se distribuem territorialmente os principais grupos criminosos em atuação no estado. O Primeiro Comando da Capital (PCC) aparece com força predominante, exercendo controle consolidado sobre seis municípios — Amajari, Boa Vista, Mucajaí, Normandia, Rorainópolis e Uiramutã — e expandindo sua presença para áreas onde ainda enfrenta disputas. O Comando Vermelho, por sua vez, se mostra como força rival, embora com menor capacidade de domínio territorial. Sua atuação é fragmentada, mas significativa, especialmente em quatro municípios considerados estratégicos na lógica regional de ocupação e influência. Grupos estrangeiros provenientes da Venezuela – Tren do Aragua, Tren de Guayana e Sindicato – concentram suas operações principalmente na capital e em zonas fronteiriças como Pacaraima, estabelecendo alianças táticas ou confrontos pelo controle de rotas comerciais ilícitas. Esta configuração espacial demonstra como a localização fronteiriça diferenciada de Roraima tem atraído organizações criminosas transfronteiriças, intensificando disputas territoriais e contribuindo diretamente para os elevados índices de violência documentados no estado, como representa o Gráfico IV.
Gráfico IV – Presença de facções criminosas em Roraima
Fonte: FBSP, 2023.
O gráfico ilustra a dominância numérica do PCC no cenário criminal roraimense, com presença consolidada em nove municípios, superando significativamente o Comando Vermelho, que figura como segundo grupo mais influente na região. Ainda que se destaque o aparecimento no cenário da violência em Roraima de facções estrangeiras (Tren do Aragua, Tren de Guayana e Sindicato), cuja atuação, embora mais limitada geograficamente, representa um fenômeno crescente nas dinâmicas criminais transfronteiriças7. Isso gera um cenário decorrente da posição geográfica estratégica de Roraima, que tem fomentado a expansão de complexas redes criminosas, estabelecendo um mosaico de domínios e zonas de confronto que impactam diretamente os indicadores de violência registrados no estado.
4.3 Fluxo migratório e impacto na segurança pública
A Tabela III mostrou a evolução da imigração venezuelana entre 2017 e 2023, com variações significativas no período. Quando comparada com o Quadro III, verificou-se uma correspondência temporal entre os anos de maior ingresso migratório e os relatos de fortalecimento do grupo Tren do Aragua em Boa Vista.
Tabela III – Imigração venezuelana por ano
Fonte: Valor Econômico, 2023.
4.4 Fragilidade institucional e expansão criminal
Por fim, identificou-se uma relação entre a fragilidade institucional do estado e a expansão dos grupos criminosos, sintetizada no Quadro III.
Quadro IV – Fragilidade institucional x ação das facções.
Fonte: elaborado pelos autores
O levantamento do IPEA (2023) evidencia que jovens envolvidos em episódios de criminalidade violenta provêm majoritariamente de territórios marcados pela exclusão social, precariedade ocupacional e interrupção educacional, preferencialmente da zona oeste de Boa Vista, que é uma região com fraca presença do estado em termos de segurança pública. Esse cenário reflete aquilo que Zaluar (2004) denominou de “integração perversa” — um processo em que grupos criminosos assumem o papel de redes de pertencimento e subsistência justamente onde as instituições falham ou se mostram ausentes. Trata-se de uma forma distorcida de inserção social, que emerge na intersecção entre abandono estatal e desigualdade estrutural.
A violência, nesse contexto, não é uniforme nem unidimensional: ela se desenha a partir da sobreposição de fatores geopolíticos, demográficos e institucionais que se combinam de maneira desigual no território.
A seguir, retomamos os principais achados à luz do referencial teórico, buscando compreender o que eles revelam sobre a lógica contemporânea da violência em Roraima — e o que exigem em termos de resposta pública.
5. Discussão: violência estrutural, fronteira e fragmentação institucional
Os dados observados até aqui mostram que a violência em Roraima não pode ser reduzida a uma contagem de casos ou a oscilações estatísticas. Trata-se de um fenômeno com raízes profundas, sustentado por desigualdades históricas, falhas na presença estatal e transformações nas formas de ocupação do território por atores armados.
Neste ponto, retomamos esses achados a partir do arcabouço teórico que fundamenta esta análise, começando pela fronteira — não como linha divisória, mas como espaço vulnerável, aberto a disputas e ausências.
5.1 A fronteira como zona de vulnerabilidade estrutural
A tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana tornou-se, nos últimos anos, uma região de fluxo intenso — de pessoas, mercadorias e, também, de práticas ilegais. A baixa densidade institucional, somada à fragilidade no controle imigratório e à ausência de políticas de integração regional, transformou esse território em área fértil para o avanço de economias ilícitas. Essa realidade pode ser relacionada à noção de “zonas de exceção”, em que o Estado atua de maneira esporádica, seletiva ou mesmo ausente — como já apontaram Foucault (2022) e Zaluar (2004).
As informações reunidas ao longo do estudo, tanto nos gráficos quanto nas análises locais, reforçam que essa região fronteiriça não é apenas um ponto de travessia, mas um território de disputa e comando. Facções transnacionais operam ali com capacidade de organizar redes, recrutar e impor dinâmicas violentas que impactam diretamente os indicadores de criminalidade na região.
5.2 Migração, exclusão e vínculos frágeis
A partir de 2018, o avanço dos fluxos migratórios vindos da Venezuela coincidiu com o fortalecimento de facções transnacionais em Roraima, como o Tren do Aragua. Embora não se possa afirmar que esses dois movimentos estejam ligados por uma relação causal direta, o cruzamento entre ambos ocorreu justamente onde o Estado já se mostrava frágil ou ausente. Nessas brechas institucionais, migrantes em situação de vulnerabilidade e grupos criminosos passaram a dividir o mesmo território, ainda que por razões e dinâmicas distintas — mas com impactos que, em alguma medida, se cruzam.
É verdade que o crescimento da migração e a expansão das facções se deram no mesmo período. No entanto, essa simultaneidade não autoriza generalizações fáceis: operar no mesmo tempo e espaço não significa, por si só, que um fenômeno decorra do outro. A hipótese trabalhada aqui é que ambos respondem, em alguma medida, à mesma vulnerabilidade estrutural do Estado na zona de fronteira.
Essa dinâmica encontra eco na teoria de Zygmunt Bauman (2001), ao abordar a modernidade líquida e a erosão dos vínculos sociais. Em contextos de mobilidade extrema e colapso institucional, o pertencimento oferecido pelas facções surge como alternativa à ausência do Estado.
5.3 Facções, periferia e “integração perversa”
Os dados geográficos e demográficos evidenciam que os bairros periféricos de Boa Vista e os municípios da faixa de fronteira concentram os maiores índices de vulnerabilidade social e violência letal. Não é coincidência que nesses mesmos espaços se observe a presença mais marcante das facções criminosas.
A atuação desses grupos vai além da lógica armada: eles constroem redes de pertencimento simbólico, impõem normas locais e ocupam as lacunas deixadas pelo Estado. Nesses territórios, o crime não se apresenta apenas como ameaça, mas como referência de ordem e sobrevivência para parte da população — especialmente os jovens expostos à exclusão educacional, à informalidade e à ausência de alternativas.
Essa realidade dialoga diretamente com o conceito de “integração perversa”, cunhado por Alba Zaluar (2004), para descrever a inserção de sujeitos em redes que, embora violentas, oferecem estrutura, identidade e função social. Ao invés de serem integrados pela via da cidadania, muitos acabam absorvidos por circuitos que produzem pertencimento a partir da violência e do medo.
A reprodução dessa dinâmica é sustentada por condições históricas: urbanização desordenada, ausência de políticas públicas consistentes e falhas sucessivas no sistema educacional e prisional. Nesse cenário, a facção deixa de ser apenas um agente do crime — e passa a operar como um ator social informal, que disputa legitimidade no cotidiano dos territórios marginalizados.
5.4 A ilusão da queda: homicídios e a mudança na dinâmica criminal
Os dados mais recentes apontam uma redução nos homicídios em Roraima, especialmente entre 2021 e 2023. Em números absolutos, trata-se de uma queda expressiva. No entanto, quando se ampliam os indicadores e se observa o comportamento de outros crimes — como desaparecimentos, feminicídios, roubos e violência doméstica — a narrativa se torna mais complexa.
Embora possa se dizer que a hegemonia das facções pode ter diminuído em sua letalidade (Gil, 2021), a presença delas permanece ativa, operando de forma cada vez mais difusa e sofisticada. Em vez do confronto aberto, vê-se o avanço de dinâmicas de controle territorial silencioso, coerção comunitária e gestão paralela de conflitos. Michel Misse (2006), ao discutir o conceito de “sujeição criminal”, oferece uma lente adequada para essa leitura. Para ele, o crime se torna um elemento estruturante da identidade em contextos em que a exclusão social é persistente e os canais legítimos de ascensão estão bloqueados. Nesse cenário, a diminuição dos homicídios não equivale a uma redução da violência, mas sim a uma mudança em sua forma de expressão.
Essa sutileza é fundamental para compreender por que os dados quantitativos, isoladamente, não dão conta da realidade. O crime organizado pode diminuir o número de mortes visíveis e, ainda assim, expandir sua influência sobre comunidades inteiras, seja por aliciamento de jovens, seja pelo domínio de economias paralelas ou pela imposição de normas extralegais.
5.5 A crise do sistema prisional e o poder paralelo
Uma parte fundamental da engrenagem que sustenta a violência em Roraima — e em boa parte do país — está dentro dos muros das prisões. Em vez de funcionarem como espaços de ressocialização, muitas unidades prisionais se tornaram ambientes de comando e reorganização das facções, com influência direta sobre os territórios externos.
Os dados apresentados no Quadro II mostram que organizações como o PCC e o Comando Vermelho não apenas atuam nas ruas, mas também mantêm estruturas internas de controle dentro das penitenciárias. Lá dentro, impõem regras próprias, controlam alas inteiras, organizam julgamentos internos e recrutam novos integrantes, especialmente entre jovens em prisão provisória ou pouco escolarizados. A precariedade das condições carcerárias, somada à falta de presença estatal efetiva, abre espaço para o fortalecimento desses grupos, que passam a funcionar como instâncias de pertencimento, disciplina e proteção — ainda que baseadas na violência. O sistema, nesse sentido, deixa de ser uma instância de controle do crime e passa a operar como extensão funcional das facções, inclusive aproveitando-se da crise imigratória para expandir suas ações para dentro da Venezuela (Perez, 2023).
Frantz Fanon (2015) já apontava que, em contextos coloniais e pós-coloniais, o uso da violência não é apenas uma reação ao sistema, mas também uma linguagem de poder e sobrevivência. Dentro das prisões de Roraima, a violência se naturaliza como mecanismo de organização, reforçando a lógica de exclusão que marcou o percurso desses indivíduos desde muito antes do encarceramento.
Reformar esse sistema exige mais do que investimentos em infraestrutura: demanda uma revisão profunda da política penal, da gestão prisional e das estratégias de reinserção social. Enquanto a prisão continuar operando como um elo de fortalecimento do crime organizado, qualquer tentativa de enfrentamento da violência será, no máximo, paliativa.
6. Conclusão
Nossa pesquisa revelou que a violência estrutural em regiões fronteiriças transcende as manifestações visíveis de conflitos entre facções ou desafios migratórios. A análise dos dados demonstrou que a vulnerabilidade institucional, quando combinada com desigualdades históricas, cria um mecanismo sistemático de exclusão que se perpetua através de gerações. Este processo manifesta-se com particular intensidade em Roraima, onde três fatores se interconectam de maneira única: a porosidade fronteiriça, a fragilidade das redes de proteção social e a disputa territorial entre grupos criminosos transnacionais.
A triangulação metodológica empregada neste estudo comprovou que os ciclos de violência seguem padrões previsíveis quando analisados à luz das teorias de Misse sobre sujeição criminal e de Zaluar sobre integração perversa. O recrutamento de jovens por organizações criminosas não representa apenas uma falha pontual de segurança pública, mas evidencia um colapso sistêmico das instituições socializadoras tradicionais.
Este estudo quis contribuir para o avanço teórico ao mostrar como a violência em regiões fronteiriças opera como mecanismo de controle social paralelo, preenchendo lacunas deixadas pela ausência estatal. A abordagem analítica que aqui se desenvolveu teve a intenção de estabelecer novas bases para compreender como fatores geopolíticos, migratórios e criminais se entrelaçam em territórios limítrofes, criando realidades específicas que demandam intervenções contextualizadas. Esses territórios, atravessados por fluxos de pessoas, mercadorias e ilegalidades, exigem respostas igualmente complexas — que considerem suas especificidades históricas, sociais e institucionais.
Entre as limitações enfrentadas por esta pesquisa, reconhece-se a ausência de entrevistas com moradores de periferias, migrantes e agentes públicos. Por diferentes razões — logísticas, éticas e de segurança —, a escuta direta dessas vozes ficou para um momento posterior. Ainda assim, é preciso enfatizar que esse tipo de abordagem — mais etnográfica, mais próxima do cotidiano e das experiências vividas — será indispensável para aprofundar o entendimento sobre os impactos locais da violência. É por meio delas que se acessam dimensões que os números não alcançam, e que permanecem à margem dos discursos oficiais.
O conjunto de evidências aqui reunido sugeriu que a violência em Roraima não deve ser lida como um problema pontual ou episódico, passível de solução unicamente pela via repressiva. A ideia foi mostrar a manifestação de fraturas sociais profundas, alimentadas por desigualdade, ausência do Estado e disputas por legitimidade em territórios frágeis. Enfrentar esse cenário implicou reconhecer que, por trás das estatísticas, há trajetórias humanas marcadas por exclusão — e que qualquer política pública que pretenda ser eficaz precisa dialogar tanto com a segurança pública quanto com a inclusão social.
Assim, a proposta analítica desenvolvida ao longo deste artigo abre caminhos para outras leituras possíveis, mais afinadas das formas pelas quais fatores geopolíticos, movimentos migratórios e redes criminosas se articulam em territórios de fronteira. Esses territórios, atravessados por fluxos de pessoas, mercadorias e ilegalidades, exigem respostas igualmente complexas — que considerem suas especificidades históricas, sociais e institucionais.
Diante deste cenário complexo e multifacetado, torna-se imperativo propor intervenções que superem a lógica puramente repressiva e abordem as causas fundamentais do problema. As recomendações a seguir foram formuladas considerando tanto as especificidades do contexto roraimense quanto a necessidade de articulação entre diferentes instâncias governamentais nacionais e internacionais.
7. Recomendações
A situação de segurança pública em Roraima apresenta particularidades que demandam soluções que vão além do policiamento tradicional. Com base em informações jornalísticas e análise de documentos oficiais, podemos apontar alguns caminhos promissores.
As zonas de fronteira, especialmente Pacaraima, sofrem com a falta de presença estatal efetiva. Como observou Galvão (2023), áreas com infraestrutura precária tendem a se tornar terreno fértil para atividades ilícitas. Mais que destacamentos policiais, essas regiões precisam de investimentos em serviços básicos e oportunidades econômicas – embora seja difícil atrair tais investimentos justamente pela percepção de insegurança, criando um ciclo vicioso difícil de romper.
A migração venezuelana introduziu novos elementos a este cenário já complexo. As atuais políticas de acolhimento têm méritos, mas falham ao não criar pontes efetivas para a integração de longo prazo. Um exemplo concreto: profissionais qualificados enfrentam barreiras quase intransponíveis para validar suas credenciais, como reconhecimento de diplomas.
Um problema persistente na elaboração de políticas eficazes é a confiabilidade das estatísticas criminais. As inconsistências entre dados do estado, da União e de organizações independentes dificultam até mesmo diagnósticos básicos. A implementação de sistemas de georreferenciamento poderia ajudar, mas enfrenta resistências institucionais e limitações técnicas consideráveis.
O sistema prisional merece atenção especial. A Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, conhecida por rebeliões violentas como a de 2017, exemplifica como prisões superlotadas e mal administradas acabam fortalecendo as próprias organizações que deveriam combater. Reformas nessa área demandam recursos expressivos e, principalmente, vontade política – ambos frequentemente escassos.
Quanto à dimensão internacional, existem precedentes positivos em outras fronteiras brasileiras que poderiam ser adaptados para a realidade local. A operação conjunta Brasil-Colômbia na região do Trapézio Amazônico demonstrou que, apesar das diferenças políticas, cooperações técnicas focadas são possíveis.
Não há soluções simples ou rápidas para os problemas de segurança de Roraima. Talvez o maior desafio seja manter continuidade nas políticas públicas, frequentemente interrompidas a cada ciclo eleitoral, impedindo que iniciativas promissoras alcancem plena maturidade.
2A Operação Acolhida é uma força-tarefa humanitária executada pelo Governo Federal brasileiro desde 2018, em resposta ao fluxo migratório venezuelano em Roraima. Embora tenha caráter humanitário, estudos apontam que suas práticas de ordenamento, documentação e abrigamento também funcionam como mecanismos de controle e categorização social que podem reforçar dinâmicas de exclusão, mesmo quando a intenção declarada é de inclusão (ver Vasconcelos et al.,2022).
3Figueira; Figueiredo,2020.
4Nota metodológica: a realização de entrevistas ou observação direta foi considerada durante o planejamento da pesquisa. Contudo, a combinação entre fatores de risco à integridade dos participantes e do pesquisador, somada à falta de apoio institucional para um trabalho de campo seguro, levou à decisão metodológica de priorizar fontes secundárias trianguladas com base teórica sólida.
5O gráfico mostra a evolução das mortes violentas intencionais (homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte, entre outros) no estado de Roraima. Nota-se um pico em 2019, seguido por uma redução significativa em 2020 e estabilização nos anos seguintes.
6O gráfico compara a taxa de homicídios de Roraima com a média nacional brasileira ao longo de nove anos. Fica evidente que, mesmo com oscilações, Roraima manteve-se sistematicamente acima da média nacional, destacando sua condição crítica no panorama da violência letal no país.
7A Família do Norte – FDN, antes com presença persistente em Roraima, parece estar em vias de desaparecimento, confira em Veja (2021), que destaca apenas 04 membros em presídios de Roraima; também SAMPI (2024) menciona a operação Dog Head, cuja objetivo foi desmantelar a FDN; suas ações incluíram Boa Vista.
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