EXPRESSÕES DO PRECONCEITO ATRAVÉS DA ESCREVIVÊNCIA DE SI

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12668645


Vanderléia Aparecida Dionezio1


Introdução

Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida, não só dela, mas de minhas tias e de todas as mulheres da minha família. E também, já naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas as nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas Senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe? (Conceição Evaristo, 2016, p. 18)

Ao cursar o Ensino Médio, questionava-me sobre o motivo de a mulher negra e o homem negro estarem sempre à margem da sociedade. Dados estatísticos do Censo Demográfico de 2010 indicavam que as pessoas negras estavam no grupo social com as mais altas taxas de analfabetismo, de mortes violentas, nas filas para a assistência em saúde e entre os que buscam benefícios sociais para a sua sobrevivência. As explicações que os livros davam para essas desigualdades quase sempre culpabilizavam os próprios negros por suas condições degradantes de vida, e isso não me convencia.

Durante a graduação em Psicologia numa universidade pública, que alcancei já com quase quatro décadas de vida, minha curiosidade foi aguçada pelo acesso à literatura negra sobre o entendimento da branquitude, dos ideais do racismo, a militância feminista negra e outros temas importantes para a descolonização do conhecimento.

Ao cursar a disciplina de Metodologia de Investigação em Psicologia, já sabia que iria abordar o tema da negritude e a Psicologia, mas ainda não tinha um objetivo delimitado. Aspirei à temática do funcionalismo negro, do empreendedorismo negro e da relação do cabelo afro com os ideais do movimento negro, com algumas reflexões sobre as relações de gênero e raça na formação em Psicologia.

Ao deparar-me com a metodologia da escrevivência, percebi que essa proposta seria mais interessante, e, numa breve pesquisa na biblioteca da universidade, observei que este tipo de trabalho era quase ausente. O escreviver é um processo desafiante, que busca reflexões a partir da memória, atribuindo novos significados e sentidos à nossa experiência de vida. Tais reflexões poderiam dialogar com outras autoras negras, como Lélia Gonzáles, Neusa Santos Souza e Grada Kilomba, e me permitiriam buscar a construção de novos saberes e práticas psicológicas para o enfrentamento do racismo e da colonialidade no contexto social e educacional.

Ao longo da pesquisa, tive contato com a obra Epistemologias do Sul (2009), que reúne autores latinos em torno de questionamentos sobre o impacto do colonialismo e do capitalismo moderno na construção das epistemologias dominantes, algo fundamental para entender como os conceitos da psicologia relacionam-se a um projeto colonial, e como decolonizá-los.

Este trabalho foi idealizado para que minhas experiências pessoais fossem ressignificadas sob a ótica das questões étnico-raciais, de gênero e classe social, a fim de produzir potência de vida e de compreender meus próprios processos de subjetivação a partir da criação poética, através das narrativas escreviventes.

A decisão por esta temática foi influenciada pela Professora Dolores Galindo, quem me recomendou ler as obras de Conceição Evaristo, para que o meu trabalho seguisse as características de um texto que fugisse da lógica formal de uma escrita científica – e colonial. Logo, apreciei os livros intitulados Olhos d’água (2018) e Insubmissas lágrimas de mulheres (2016). O contato com essas histórias veio carregado de emoção e sensibilidade, bem como da vontade de lutar por direitos dos grupos minoritários.

Minha escolha também sofreu a influência de minha  participação num grupo de estudo voltado a discussões étnico-raciais na Faculdade de Pedagogia, denominado Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação (NEPRE), da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

No relato de minhas vivências, que ofereço a seguir, há sentimentos positivos e negativos, decorrentes dos acontecimentos lembrados, que foram necessários para minha superação do racismo e do sentimento de menos valia perante o sujeito não negro. Conforme Souza (1983, p. 18), “é necessário que a vida emocional do sujeito negro seja elaborada por ele, e um enfoque emocional no experienciar de ter sido violentada em sua identidade, com perspectivas frustradas processo de sujeição e desesperança.” Assim, pude alcançar minha potência e reescrever minha história.

Como estudante em formação, prestes a tornar-me psicóloga, perguntava-me: como a Psicologia pode contribuir para reverter o processo da invisibilidade da mulher negra oprimida pelo patriarcado? A atuação do profissional de Psicologia nos contextos sociais ou clínicos considera as relações raciais como fator de promoção da saúde mental e amenização do sofrimento psíquico?

A partir dessas indagações, o estudo foi desenvolvido como a narrativa de uma trajetória pessoal, buscando elaborar uma história de opressões, em diálogo com estudos, pesquisas interdisciplinares e os aportes psicológicos que visam à reflexão e à prática decolonial.

Segundo Almeida (2018), entre os séculos XIX e XX, o saber psicológico foi colaborativo com o “racismo científico”, um movimento político eurocêntrico que surgiu na Europa para oprimir os povos de outras culturas, com o intuito de classificar sujeitos como normais ou patológicos, promovendo a mestiçagem e limitando a cidadania dos “não aptos” para compor a ordem social.

Almeida (2018, p. 14) acrescenta que para se firmar como ciência e profissão ao longo da história da Psicologia ela foi influenciada nas ciências médicas com as teorias europeia e estadunidenses, acreditou no Mito da Democracia Racial e pactuou com as teorias eugenistas e racistas às disposições dos interesses da elite branca.

O Conselho Federal de Psicologia, no ano de 2002, publica a primeira resolução referente às relações raciais, normatizando uma práxis capaz de romper com a lógica racista. A mesma instituição inaugurou, no ano de 2017, a primeira cartilha sobre a atuação psicológica nas relações raciais. A partir daí, alguns Conselhos Regionais de Psicologia e grupos de trabalho publicaram materiais comentando esse feito:

O racismo, além de violar direitos sociais, prejudica a saúde psíquica dos indivíduos: podendo fazê-los desenvolver sintomas psicossomáticos, inibições, impedimentos (de acesso, de participação), especialmente na experiência de negritude; e/ou desenvolver uma autoimagem distorcida descolada da própria realidade e racialidade, como ocorre principalmente na experiência de branquitude. O racismo atinge a todos e a todas, provoca sofrimento psíquico e pede cura política e psíquica. (Instituto Amma Psique, 2020 apud Pinheiro, 2021, p. 110).

O tema da branquitude como posição de poder na Psicologia também é necessário para esse debate, a fim de que as lutas avancem na direção de uma sociedade mais justa e igualitária. Estudar o sujeito branco para desvelar o racismo é fundamental para a compreensão da manutenção e da legitimação das desigualdades raciais.

González (2020) afirma que o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra, em particular. Para além da discriminação de gênero, o racismo se apresenta como um sintoma na sociedade brasileira, que estereotipa a mulher negra, colocando-a nas figuras da mulata, doméstica e mãe preta.

Segundo o Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas – CREPOP (2017, p. 114), as lutas contra as opressões perpassam o processo de resistência. Com a ressignificação da identidade, os sofrimentos políticos precisam ser enfrentados psicológica e politicamente. Desse modo, para romper as barreiras sociais do racismo é necessário adotar novas estratégias e ampliar a conscientização sobre o problema. É preciso que também a Psicologia enquanto disciplina posicione-se no enfrentamento do racismo, com teorias e práticas em prol da igualdade racial e saúde psíquica de brasileiros(as), em suas diversas configurações raciais.

O Conselho Regional em Psicologia do Paraná (2016, p. 16) acrescenta que, para desconstruir o racismo, as “práticas tradicionais” de superação subjetiva devem dar espaço à superação comunitária, pois é no acolhimento e na dialogicidade que surgem os vínculos de reconhecimento de si no e pelo grupo, fundamentais à estruturação subjetiva.

De início, ao elaborar este trabalho, tive dificuldades para escrever na primeira pessoa, pois, ao longo de nossa escolarização, somos obrigados a formalizar a escrita científica seguindo normas, métodos e modelos próprios. Com a ajuda de minha orientadora e de um colega licenciado em Letras, pude redigir este capítulo, baseado no texto final de meu Trabalho de Conclusão de Curso, requisito para a graduação em Psicologia.

Citarei alguns aspectos deste estilo de escrita que escolhi para o desenvolvimento do texto, a escrevivência é um recurso metodológico utilizado principalmente nas Ciências Humanas e na Psicologia Social. Luciana Barossi (2017, p. 33) salienta que a noção de escrevivência age como instância ética, estética e poética, pois visibiliza uma mudança de perspectiva por meio do processo criativo. Além disso, utiliza o recurso da autobiografia, que consiste na reflexão e ressignificação a partir das experiências de vida. “A pesquisa autobiográfica consiste em pensar o biográfico enquanto material de pesquisa, causando ressignificação subjetiva às experiências vividas a partir da reestruturação, reinterpretação e reflexão” (Delory-Momberger apud Reder, 2022, p. 17).

Através da escrevivência, revelou-se para mim o protagonismo das mulheres negras, que dialoga com o mote das desigualdades e dos preconceitos raciais e de gênero. “É acreditar que toda pessoa tem algo para compartilhar, e que, ao registrar ou publicar, promove sentidos, reconhecimentos e uma compreensão de vida livre e ampla, essencial para que se conheça e se respeite uma sociedade tão diversa” (Duarte; Nunes, 2020, p. 15). Esse lugar de fala no espaço acadêmico e um posicionamento político buscando a reflexão crítica/filosófica sobre as consequências da opressão contribuíram para que eu ultrapassasse os limites impostos pela lógica colonial, em busca da mudança social da realidade das mulheres negras.

Como apontam Soares e Machado (2017, p. 206), “temos um sujeito que, ao falar de si, fala dos outros e, ao falar dos outros, fala de si”. Assim, a escrevivência como recurso metodológico de escrita possibilitou, por meio de minha experiência, visibilizar narrativas que diziam respeito também à experiência coletiva de mulheres negras. 

Este estilo autoral de trabalho foi significativo para mim. Espero que também tenha sentido para a coletividade na luta a favor dos direitos humanos e pelo combate a todas as formas de opressões.

A escrita do sujeito reprimido tem a representatividade de outros indivíduos na mesma posição, compondo outras narrativas plurais e diversificadas e que constituem a literatura negra brasileira. Souza (1983, p. 49) afirma:

Não podemos aceitar que a História do Negro no Brasil, presentemente, seja entendida apenas através dos estudos etnográficos, sociológicos. Devemos fazer a nossa História, buscando nós mesmos, jogando nosso inconsciente, nossas frustrações, nossos complexos, estudando-os, não os enganando. 

Este texto está estruturado em partes. A parte acima oferece uma breve apresentação da ideia de criação de uma pesquisa voltada para a escrita de nós mesmas como recurso metodológico, a partir da temática das relações de gênero e raça. A seguir, discorro sobre minhas vivências, abordando fatos relevantes e buscando nestas memórias desafios pertinentes à temática do racismo e do sexismo. Na sequência, realizo uma análise destas memórias escreviventes, articulando-as com a pesquisa bibliográfica, especialmente no que se refere às interseccionalidades de gênero, raça e classe, discutindo as relações étnico-raciais no âmbito psicológico, em oposição à lógica decolonial.

10.1 Identidade, memórias e os desafios para uma relação justa de poder

Compartilho as minhas vivências relacionadas ao debate das relações raciais e de gênero, partindo dos significados que atualmente pude construir sobre exclusão nos contextos sociais, valendo-me da escrevivência como método de produção de memórias e sentidos.

Meu nome é Vanderléia Aparecida Dionezio. Nasci no dia 28 de março de 1984, em uma modesta cidade chamada Paranatinga, que está situada no centro-sul no estado de Mato Grosso. Paranatinga é considerado o maior município em extensão no estado do Mato Grosso, com uma economia baseada na pecuária/agronegócio, e está localizado a aproximadamente 400 km de distância da capital Cuiabá.

Possuo um irmão gêmeo, que se chama Vanderlei. Os nossos nomes foram escolhidos pelo meu pai, que tinha o intuito de homenagear o seu irmão, que faleceu ainda na infância. A minha mãe teve cinco gravidezes, a segunda e a última gestações foram gemelares. A primogênita foi a óbito quando era bebê, em decorrência de uma complicação viral. E, em seguida, eu e meu irmão nascemos, e, adiante, os demais, “para completar o time” com cinco meninos e eu como a única filha.

Meus pais possuem matrimônio religioso e união civil há trinta e cinco anos, núcleo de família tradicional e costumes da igreja católica. O contorno da minha vida teve um panorama diferente do deles: a minha família é do tipo monoparental, com três filhos e de religião de matriz africana. Por esse motivo, constantemente ainda sofremos com a intolerância religiosa.

Meu pai se chama Ilto Dionezio, é professor efetivo aposentado e lecionou História e Geografia na Educação Básica de nível estadual desde a fundação do município, em 17 de dezembro de 1979. Atualmente com setenta e sete anos de idade e com uma trajetória de vida incrível, destacou-se, na época, como um homem negro estudado ocupando cargo de servidor público.

Durante o meu desenvolvimento, senti a ausência dele no vínculo de pai e filha. Como ele trabalhava nos três turnos na escola em que dava aulas, não restava tempo para a família.

Recordo-me das poucas vezes que ficava em casa, irritadiço com as “traquinagens da molecada”. Ele nos castigava para que ficássemos comportados e para que não o desconcentrássemos de seus afazeres profissionais.

A minha mãe, Andrelina Francisca Dionezio, atuava diretamente em nossa educação informal. Porém, ela possuía uma personalidade forte e impaciente. Ser dona de casa, cuidar de seis crianças pequenas, dedicar-se ao esposo e não ter tempo para cuidar de si é muito desgastante. Ela tem uma cor de pele menos retinta que a nossa, mas não era branca. Esse termo “cor parda”, em nossa certidão de nascimento, me intrigava. 

Me lembro de uma cena com a minha mãe, ao me arrumar para ir à escola, quanto aos cuidados dos meus cabelos, higienizados com produtos para cabelo liso. O momento do desembarace era tenso, “hora do puxe e repuxo do pente”, e finalizava com tranças para mantê-los comportados. Eu às vezes repito essa mesma ação inconscientemente, ao pentear as madeixas da minha filha mais nova. Atualmente, o mercado disponibiliza uma infinidade de produtos para o tratamento do cabelo crespo e cacheado. Então, neste contexto, a questão do trato do cabelo étnico merece ser analisada.

Na vida adulta, passei pelo processo de transição capilar, que consiste em cortar a parte lisa do cabelo e deixá-los crescer ao natural. Foi uma libertação, pois aqueles produtos químicos tinham um cheiro forte. Aquelas escovas com o ar quente do secador machucam o couro cabeludo e as orelhas quase assavam nesse processo do alisamento do cabelo crespo. Sem contar que a economia é certa quando assumi os meus cabelos naturais e que isso vai muito além da estética: ocorreu a autoaceitação, a minha identificação com a minha descendência africana e a desestigmatização fenotípica.  

Pelo que me vem à memória, até em torno dos quatro anos de idade moramos numa casa simples no centro da cidade e, depois, aos seis anos, fomos morar numa chácara de 1,5 alqueires. Havia muito espaço para as brincadeiras infantis com os irmãos, primos e as crianças da vizinhança. Nessa época, deu-se meu ingresso na educação formal. No período matutino, comecei a frequentar a turma da pré-escola, o conhecido “prezinho”, numa unidade municipal do bairro juntamente com mais dois irmãos e mais dois primos. A nossa inesquecível professora se chamava Lindaura, uma senhora branca, alta, cabelos pretos, curtos e que usava um par de óculos de grau com uma armação arredondada. Ela ainda vive, e já deve estar com os seus oitenta e cinco anos de idade. Tenho certeza de que há muitos relatos de vida que merecem ser ouvidos na posição de mulher e professora na década de 1990. Durante o período vespertino, ficávamos em casa. Lembro-me de que precisávamos contribuir nas atividades domésticas, fazermos as tarefas da escola e, no tempo que restava, eu gostava de frequentar a casa de minha avó materna. Ali era a extensão do meu lazer, com mais brincadeiras, além de poder jogar conversa fora com os parentes.

No colégio, juntamente com as outras crianças da comunidade, nas brincadeiras, as de pele mais clara apelidavam um ou outro com o tom de pele mais escuro de “carvão”,

“tição”, “neguinho”, “cabelo de bombril”, “palha de aço”, “beiçola”, “nariz de tomada”, “macaco” e outros nomes pejorativos. Isso me entristecia. Eu ficava cada vez mais retraída em sala de aula. Na oitava série, eu só respondia à chamada dos professores, e mesmo assim eu quase fui reprovada na disciplina de Educação Física, pois o professor alegou que não me ouvia ao responder a presença. Eu não gostava de frequentar essas aulas, pois o corpo ficava mais evidente e, com o sobrepeso, aumentava o deboche dos colegas.

No saguão da escola tinha uns murais para a exposição dos trabalhos desenvolvidos pelo alunado. O meu irmão gêmeo fixou umas piadas e algumas advinhas num papel sulfite em branco. Tinha uma que me deixou curiosa: “o que é o que é que Deus falou quando fez o segundo negro?” A resposta seria: “mais um passou do ponto”. Atualmente, na minha reflexão, esse fato era tratado com uma “cortina de fumaça” pela instituição, de modo que continua necessário discutir as relações raciais em todos os espaços sociais.

Ainda no ambiente escolar, lembro-me de um episódio ocorrido envolvendo o meu irmão mais novo na disciplina de geografia. Com a didática maçante, “o mano” se entretia com as brincadeiras imaginárias e, por conta disso, o professauro sugeriu aos meus pais que procurassem um psicólogo.

Percebi que dentro do núcleo familiar havia uma diferença no tratamento das pessoas devido à cor de pele: os primos mais claros eram tratados com mais carinho e atenção. De início, meus avós eram contrários à união de meus genitores pelo fato de meu pai ser negro.  

Não foi somente nas relações familiares e na escola que percebi a presença do racismo, houve um fato ocorrido na igreja durante um ensaio catequético. Lembro-me de que as crianças brancas não queriam pegar na mão dos colegas negros para uma apresentação, no domingo, na celebração religiosa da Primeira Comunhão. Por volta dos anos 1998, a comunidade católica ouviu burburinhos por conta da chegada de um padre negro, mostrando que, independentemente do nível de escolaridade e da posição social, a raça sobressai-se como fator de classificação e discriminação do indivíduo.

Na fase da adolescência, dos onze até os dezoito anos, muitas mudanças físicas, psicológicas e sociais foram marcadas com novas descobertas de senso de mundo e contrariedades. No período escolar, era um tabu falar sobre a sexualidade. Recordo-me da primeira menstruação: soube do seu significado nos livros de ciências. As meninas da escola tinham a curiosidade de saber, das colegas, se já eram moças, sobre namoro, lazer e preferências do outro através dos caderninhos de perguntas e respostas que circulavam de mesa em mesa, conhecidos como “caderno de enquete”, famosos até os anos 2000 e que ficaram em desuso a partir da disseminação do recurso tecnológico.

Os casos de abuso sexual eram pouco divulgados. No início da adolescência, lembrome de que fui assediada por um parente próximo. Não comentei com ninguém por vergonha. Culpava-me pelo fato ocorrido. A partir disso, passei a evitá-lo e sentia certo medo dos homens. Atualmente, converso sobre sexualidade, inclusive sobre todas as formas de violência, com as crianças, para a construção de uma maior consciência sobre essas questões.

Nesse período, surgiram muitas paixonites agudas pelos rapazes da escola e da vizinhança. Como eu gostava de assistir novelas da TV Globo, com a atenção voltada para o galã. Pelo processo da transferência, explicado pela psicanálise de Freud, eu me apaixonava constantemente pelos homens que se assemelhavam ao ator da telenovela. Ainda tenho nas lembranças e no coração um amor secreto por um rapaz loiro, olhos verdes, esguio e de estatura mediana que morava na última casa da quadra do lado esquerdo da minha casa. Quem diria que o meu futuro esposo seria um homem mestiço, bastante criativo e outros adjetivos admiráveis, e que em seguida eu me encontraria viúva e com o compromisso de prover para duas crianças?

Com uma personalidade introvertida, eu gostava de me expressar por meio da escrita num pequeno diário, de conversar sozinha ou com a natureza num local de área verde aos fundos da chácara que desembocava num tímido riacho. Mais à frente havia o Rio Paranatinga, que servia de encontro de lazer, com o banho de rio juntamente com a pescaria, mas que hoje se encontra quase morto devido à contaminação, o desmatamento ciliar e a seca de suas águas.  

Nas relações familiares, intensificavam-se as discussões com os meus pais e com os irmãos sobre a diferença na educação de meninos e de meninas. Por exemplo, como diziam os meus pais, o “serviço de mulher” era de minha responsabilidade: as tarefas domésticas rotineiras, cuidar dos irmãos mais novos e preparar as refeições. Tarefas que eu considerava muito chatas! Eu desejava fazer as mesmas atividades que os meus irmãos, o manejar da agricultura familiar, as brincadeiras com carrinhos e futebol, as atividades que exigiam força e competição – essas eram as que mais me interessavam. Nessas atividades, eu me sentia semelhante ao grupo masculino e, assim, recebia os elogios de meu pai, que, por sua vez, sempre deu mais atenção aos meus irmãos do que a mim. Ao menos era isso que eu percebia.

Iniciando o Ensino Médio, conheci a graciosa “Marilucia”, uma colega de turma também negra, mas com uma autoestima mais elevada que a minha, e que rebatia na mesma moeda as ofensas recebidas dos outros. Esse comportamento antagônico ao meu me enaltecia. A nossa camaradagem adolescente se transformou numa sólida amizade de 23 anos e em um convite de apadrinhamento. Vem-me à memória um fato ocorrido em sala de aula, com um valentão que tinha o hábito de destilar a sua crueldade adolescente nas meninas e nos colegas de cor. Pasme: ele também era negro. Uma vez, ele foi mexer com a Marilucia, proferindo comentários racistas. Ela, toda segura, o reprimiu e o colocou em seu lugar, com um discurso empoderado e maduro. Aquela cena funcionou como um choque de realidade para mim, uma espécie de“descolonização do eu”, e, mais tarde, um impulso para a militância em Psicologia no que tange à questão étnico-racial e de gênero.

Ingressei na universidade pública em 2014, através das cotas afirmativas, com 30 anos de idade, e tive que conciliar a dedicação do estudo com as responsabilidades do trabalho e com o cuidado com a família. Ao longo deste percurso passei por muitos obstáculos financeiros, emocionais e de relacionamentos (o casamento, a maternidade, a viuvez) que influenciaram o meu rendimento acadêmico.

Desde o primeiro semestre da faculdade de Psicologia, percebi que ela foi constituída por uma epistemologia eurocêntrica, reforçando o discurso heteronormativo nas relações. Um espaço interativo com a diversidade, desconstruir e reconstruir conceitos não eram abordados nas discussões em salas de aula e nem constava na matriz curricular do curso no período da minha graduação.

No curso, conheci algumas abordagens e atuações psicológicas nos diferentes espaços sociais. Durante a disciplina do estágio supervisionado específico ao contexto socioeducativo, participei do grupo de estudos e pesquisas em psicologia e educação de Mato Grosso com a Professora Jane Cotrin. Percebi as diferentes posturas dos docentes e acadêmicos em considerar as diferenças (raciais, de gênero, de classe e outras interseccionalidades) no processo psicológico.

Finalizando a graduação, participei de estudos sobre o feminismo negro, uma vivência num quilombo e conheci outros movimentos dentro e fora da universidade, como, por exemplo, o coletivo de estudantes negros da Psicologia – Kilombo Cassangue. Com a nova parametrização curricular, foi incluída a disciplina obrigatória “Relações Raciais”, o que viabiliza debates inclusivos na universidade.

Nesse período, frequentando o espaço acadêmico, percebi que esses espaços de trocas de experiências entre os pares e as redes de apoio são relevantes para o acolhimento do sujeito. Como egressa da faculdade de Psicologia, esse movimento do feminismo negro permite uma prática promissora, inclusiva e democrática no processo psicológico.

Em seguida à contextualização e exposição de minha narrativa singular, busco refletir sobre o sentido coletivo destas memórias, tecendo fatos históricos, ideológicos e políticos em defesa de direitos das mulheres negras e da formação de uma consciência crítica.

10.2 Análise escrevivente do racismo e do preconceito de classe

Em minha memória, ficaram marcados três aspectos relevantes que cabem ser discutidos: 1) o racismo institucional; 2) os direitos negados das mulheres negras e 3) as diferenças de classes intrínsecas à sociedade capitalista.

Segundo Holanda (1995), a sociedade rural colonial era um grupo fechado onde um homem dominava, as leis não entravam e os senhores tinham domínio irrestrito sobre os seus “súditos”. Existiram várias formas de atrocidades e maldades contra o negro, que eram escancaradas e vistas como “naturais” naquela época, com o apagamento da identidade e justificativas para a subalternidade presentes no discurso colonial sobre as minorias sociais. 

Gonzáles (2020, p. 27) afirma que o racismo no Brasil é uma construção ideológica e um conjunto de práticas que passaram por processo de perpetuação e reforço após a abolição da escravatura em benefício de determinados interesses. Com a lógica da escravidão negra, muitas vidas de mulheres, homens, idosos e crianças foram ceifadas no percurso do tráfico negreiro para as terras brasileiras, por diversos motivos, como o adoecimento na constituição física, no aspecto psicológico, pelo suicídio, pela crueldade dos brancos, pela falta de alimentação, pelo ambiente insalubre. As mulheres eram abusadas sexualmente e muitas revoltas culminaram em mortes dos revoltosos por meio das severas punições. Segundo Souza (1983, p. 32), “dessa forma, nega-se a agência dos sujeitos negros, restrita, obviamente, a um contexto social e econômico de privação de liberdade e coisificação do negro”.

Retomo uma de minhas escrevivências:

No colégio, juntamente com as outras crianças da comunidade, nas brincadeiras, as de pele mais clara apelidavam um ou outro com o tom de pele mais escuro de “carvão”, “tição”, “neguinho”, “cabelo de bombril”, “palha de aço”, “beiçola”, “nariz de tomada”, “macaco” e outros nomes pejorativos.  

Na convivência escolar, esses apelidos tendem a diminuir o outro, atacando suas características físicas e configurando-se como uma forma de racismo cotidiano. As falas ofensivas tendem a classificar a outra/o outro numa posição de inferiores – não humanos. “O que revela uma dialética colonial na qual o sujeito branco se apresenta como a autoridade absoluta, o senhor, enquanto o sujeito negro é forçado à subordinação (Kilomba, 2019, p. 116).

Pinheiro (2021, p. 87) relata que a identidade do sujeito negro envolve relações políticas e econômicas, promovendo exclusão, segregação, silenciamento, expropriação e violentação dos seus direitos sociais. Desde tenra idade, o sujeito já vivencia essa repulsa e pode produzir efeitos negativos sobre as subjetividades do povo preto.

Me lembro de uma cena com a minha mãe, ao me arrumar para ir à escola, quanto aos cuidados dos meus cabelos, higienizados com produtos para cabelo liso. O momento do desembarace era tenso, “hora do puxe e repuxo do pente”, e finalizava com tranças para mantê-los comportados.

A preocupação em manter os cabelos alinhados para que eu não sofresse críticas na escola era em parte decorrente do fato de que, naquela época, a indústria farmacêutica e cosmética ainda não tinham investido em produtos cosméticos para a população negra. González (2010) menciona que, no jogo das relações raciais brasileiras, a textura do cabelo é um indicador do pertencimento etnorracial. Nesse sentido, no processo de desqualificação social de pessoas negras, existe uma certa pressão sobre mulheres e homens para que “controlem” os cabelos crespos e volumosos.

Aquelas escovas com o ar quente do secador machucam o couro cabeludo e as orelhas quase assavam nesse processo do alisamento do cabelo crespo.  

Ainda no assunto das características fenotípicas da raça negra, o cabelo tem destaque na fisionomia do indivíduo, além da cor da pele, e possui importante conotação social segregadora. “A lógica implantada de forma sorrateira se atualiza: o branco como parâmetro, e o negro como aquele que deve negar sua identidade e se branquear” (Pinheiro, 2021, p. 78).

Meu pai se chama Ilto Dionezio, é professor efetivo aposentado e lecionou História e Geografia na Educação Básica de nível estadual desde a fundação do município, em 17 de dezembro de 1979. Atualmente com setenta e sete anos de idade e com uma trajetória de vida incrível, destacou-se, na época, como um homem negro estudado ocupando cargo de servidor público.

Nesta narrativa fica claro que um indivíduo negro, ao tentar ascender socialmente através da intelectualidade, ainda sofre os reflexos do racismo pela cor. Souza (1983) argumenta que há espaços voltados para os grupos de cor mais clara onde a ascensão social é facilitada. Mas o critério racial torna-se um mecanismo de seleção, supondo que o negro seja escalado para os níveis mais baixos da hierarquia – demarcada pela discriminação estrutural. 

Para ter uma vida um pouco mais confortável, em comparação com a vida “sofrida” dos parentes, meu pai teve que se esforçar no trabalho durante o dia e se destacar nos estudos supletivos no período noturno. “Mesmo o negro e o mulato que não queiram ‘passar por branco’ precisam corresponder aparentemente a esse requisito, onde e quando aspirem a ser aceitos e a serem tratados de acordo com as prerrogativas de sua posição social” (Souza, 1983, p. 23).

No saguão da escola tinha uns murais para a exposição dos trabalhos desenvolvidos pelo alunado. O meu irmão gêmeo fixou umas piadas e algumas advinhas num papel sulfite em branco. Tinha uma que me deixou curiosa: “o que é o que é que Deus falou quando fez o segundo negro?” A resposta seria: “mais um passou do ponto”. Atualmente, na minha reflexão, esse fato era tratado com uma “cortina de fumaça” pela instituição, de modo que continua necessário discutir as relações raciais em todos os espaços sociais.

E complementa:

Ainda no ambiente escolar, lembro-me de um episódio ocorrido envolvendo o meu irmão mais novo na disciplina de geografia. Com a didática maçante, “o mano” se entretia com as brincadeiras imaginárias e, por conta disso, o professauro sugeriu aos meus pais que procurassem um psicólogo.

A instituição de ensino, quando não acolhe o sofrimento do aluno não-branco, fica no discurso teórico de que todos são iguais perante a lei e reforça o racismo institucional. A estrutura racista que constitui o país abrange toda a dimensão social, o que contribui grandemente para o genocídio da raça.

O racismo institucional é o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações (CRI, 2006, p. 22 apud Almeida, 2018, p. 35).

Essa ideologia hegemônica perpassa os círculos familiares, educacionais e religiosos, pois estes são influenciados pelas diretrizes do racismo institucional. Para Souza (1983, p. 74),

“A ideologia aqui é entendida como um sistema de representações, fortemente carregadas de afetos que se manifestam na subjetividade consciente como vivências, ideias ou imagens e no comportamento objetivo como atitudes, condutas e discursos.” 

Para promover a mudança, é preciso adotar práticas educativas inclusivas e democráticas eficazes, além do estímulo a mobilizações sociais e implementação de estratégias promotoras dos valores humanos. A autora ainda complementa que esses ideais ideológicos são viabilizados através do sujeito, pois “só existe ideologia através do sujeito e para os sujeitos” (Souza, 1983, p. 74). Quando o sujeito toma consciência desse processo ideológico e entende o mito negro, ele se potencializa, busca estratégias para reassegurar o respeito à diferença e reafirma a sua dignidade contra qualquer forma de exploração.

Althusser (1974 apud Reder, 2022, p. 30) caracteriza a igreja e a escola como instituições de Estado, reprodutoras e fundadoras “de saberes práticos” ideológicos com o intuito de estabelecer relações de reprodução que resultem na satisfação de seus próprios interesses. Essa relação de poder facilita a reprodução dogmática e forma pessoas preconceituosas e intolerantes com os seus pares.

Não foi somente nas relações familiares e na escola que percebi a presença do racismo, houve um fato ocorrido na igreja durante um ensaio catequético. Lembro-me de que as crianças brancas não queriam pegar na mão dos colegas negros para uma apresentação, no domingo, na celebração religiosa da Primeira Comunhão.  

No jogo das diferenças de cunho étnico-racial, tem-se, de maneira geral, que as identidades são edificadas a partir de um ponto de referência: o branco. Assim, a identidade negra é construída como contraponto: enquanto algumas diferenças são marcadas, outras podem ser apagadas em favor de uma identidade pretensamente universal (CREPOP, 2017, p.59).

A autora Souza (1983, p. 2) argumenta que “ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de Ego do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro”. Aqui, percebe-se que a violência racista se torna o núcleo central da tentativa da exterminação do povo negro, seja física ou psicologicamente, pela classe dominante branca.

Ela tem uma cor de pele menos retinta que a nossa, mas não era branca. Esse termo “cor parda”, em nossa certidão de nascimento, me intrigava.  

Esse questionamento infantil quanto à cor de pele da mãe ser ou não ser negra fundamenta-se no determinismo sociopolítico. Referentemente ao colorismo de pele, é possível perceber que indivíduos com o tom mais claro têm mais privilégios e mais acesso aos diferentes espaços, em comparação com os de pele de mais tom escuro, que sofrem mais com as opressões.

De acordo com o relatado pelo CREPOP (2017), o grupo social pardo é formado pelos mestiços. Considera-se pardo aquele que tem ascendência preta miscigenada com um dos outros grupos raciais. É por isso que o Movimento Negro e pesquisadores consideram negro uma categoria política composta por pretos e pardos.

O mito da democracia racial tenta sustentar o famoso clichê de que no Brasil não existe racismo. No entanto, um racismo mascarado surgiu com a mestiçagem e relações naturalizadas no tratamento de indivíduos brancos e negros. Dado que revela essa discriminação é que as mulheres pretas são as que mais trabalham como empregadas domésticas em São Paulo (IBGE, 2011 apud CREPOP, 2017, p. 40). Esse ponto ganha reforço na citação de Gonzáles (2020, p. 11): 

Ideologias nacionais como democracia racial e miscigenação se reproduziriam por meio de discursos que naturalizariam a experiência da escravidão e seus efeitos deletéricos sobre a sociedade capitalista […]. Na verdade, o grande contingente de brasileiros mestiços resultou de estupro, de violentação, de manipulação sexual da escrava. Por isso existem os preconceitos e os mitos relativos à mulher negra: de que ela é mulher fácil, de que é boa de cama (mito da mulata). 

Nesse panorama, a mulher negra passou a ser vista como objeto. Como Gonzáles (1980, p. 225) aponta: “o processo de construção social e cultural não será o mesmo para todas as mulheres, pois outros fatores, como o racismo, redefinem as trajetórias dos sujeitos em questão sócio-econômica que elucida uma série de problemas propostos pelas relações raciais”. Nisso culminam as discussões na perspectiva da sexualidade da mulher negra, vista como objeto de desejo e não como apta ao casamento, e, no ponto de vista de classe, com a ocupação dos cargos de menos visibilidade e de habilidade prática.

10.3 Análise escrevivente do sexismo

Na sociedade contemporânea, as mulheres negras sobrevivem de forma bem desfavorável, num contexto de discriminação, a maioria em situação de pobreza, direitos humanos violados, subempregos, entre outras situações contraproducentes. “Além de existir um forte e inegável sexismo na sociedade brasileira, havia preconceitos e desigualdades entre raças: a mulher negra sofria duplamente” (González, 2010, p. 98).

Conforme Nascimento (2013), no campo semântico de cunho étnico patriarcal existe a dupla exclusão a que as mulheres negras foram submetidas e, em contrapartida, ao tomar a palavra, elas deslocam essas duas referências (etnocêntricas e falogocêntricas) e se autonomeiam, ressignificando sua identidade e estabelecendo novos sentidos contra a hegemonia traçada pelas representações ocidentais.

[…] como diziam os meus pais, o “serviço de mulher” era de minha responsabilidade: as tarefas domésticas rotineiras, cuidar dos irmãos mais novos e preparar as refeições. Tarefas que eu considerava muito chatas! Eu desejava fazer as mesmas atividades que os meus irmãos, o manejar da agricultura familiar, as brincadeiras com carrinhos e futebol, as atividades que exigiam força e competição – essas eram as que mais me interessavam.

Desde criança, a menina já percebe as opressões no cotidiano da vida em sociedade. É por meio dessa percepção que mais tarde ela pode aderir às lutas do movimento das feministas negras e, através do empoderamento, alcançar a justiça social. Gonzáles (2020, p. 35) afirma que, pela falta de perspectiva quanto à possibilidade de alternativas profissionais, as atividades da mulher negra voltavam-se aos serviços domésticos, o que a colocava numa situação de sujeição, dependência, inferioridade, subordinação e internalização da diferença.

Kergoat (2009, apud Silva, 2021, p. 51) esclarece, quanto à divisão do trabalho familiar, que a tradição de que a mulher seja destinada à esfera reprodutiva e o homem à esfera produtiva se dá com base em dois princípios – separação e hierarquização – que determinam os papéis sociais conforme o gênero do sujeito, ainda como resquícios das relações patriarcais de sexo.

Gonzáles (2020, p. 100) afirma que o sexismo induz as mulheres a menosprezar o trabalho doméstico em prol de uma concepção idealizada de emprego e carreira. Vê-se a força de uma ideologia sexista, que gera padrões de comportamento conforme os papéis do dominante e do submisso.

Ainda tenho nas lembranças e no coração um amor secreto por um rapaz loiro, olhos verdes, esguio e de estatura mediana que morava na última casa da quadra do lado esquerdo da minha casa.  

Esse encanto adolescente pelo vizinho com traços caucasianos implica uma dimensão étnico-racial das relações amorosas entre indivíduos brancos e negros – o “amor de senzala”. Silva (2021, p. 67) compreende essas relações como oriundas do mito da democracia racial, com a prática da miscigenação por meio da exploração sexual e do estupro das mulheres negras.

Gonzáles (2020, p. 42) menciona que a constituição do mito da democracia racial advém dos “casamentos inter-raciais” e que, por meio do processo de miscigenação e da crença de que o racismo inexiste, ele é internalizado pelo povo brasileiro.

Os casos de abuso sexual eram pouco divulgados. No início da adolescência, lembrome de que fui assediada por um parente próximo. Não comentei com ninguém por vergonha. Culpava-me pelo fato ocorrido. A partir disso, passei a evitá-lo e sentia certo medo dos homens.  

Existem outras formas de violências imbricadas nas relações de raça e sexo no conjunto das opressões-explorações-dominações, como o assédio sexual doméstico, assunto que atualmente ainda é considerado um tabu em alguns contextos familiares. Segundo Souza

(1983, p. 10), num espaço de censura da expressão de sentimentos e pensamentos, cria-se uma “ferida” e um pensamento mutilado em sua essência – gerando sofrimento ao sujeito.

Iniciando o Ensino Médio, conheci a graciosa “Marilucia”, uma colega de turma também negra, mas com uma autoestima mais elevada que a minha, e que rebatia na mesma moeda as ofensas recebidas dos outros. Esse comportamento antagônico ao meu me enaltecia. A nossa camaradagem adolescente se transformou numa sólida amizade de 23 anos e em um convite de apadrinhamento.  

O sentido do empoderamento ocorre pela capacidade de acolhimento e sentimento de pertencer ao grupo, o que só pode se constituir na coletividade e no diálogo autêntico, no qual duas experiências se encontram e partilham integralmente de um momento. Pressupõe-se que a educação familiar da colega contribuiu no processo de consciência crítica e utilização de meios para manejar as opressões sociais e superá-las com atitudes resilientes. Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Esse discurso se torna tanto mais significativo quanto mais fundamentado é no conhecimento concreto da realidade (Souza, 1983, p. 17).

Uma vez, ele foi mexer com a Marilucia, proferindo comentários racistas. Ela, toda segura, o reprimiu e o colocou em seu lugar, com um discurso empoderado e maduro.  

É necessário romper com os silenciamentos e a discriminação velada nos contextos sociais. Souza (1983, p. 6) afirma ainda que, para que o sujeito construa enunciados sobre sua identidade, de modo a criar uma estrutura psíquica harmoniosa, é necessário que o corpo seja predominantemente vivido e pensado como local e fonte de vida e prazer. Silenciar-se revela a presença de um pacto de omissão e cumplicidade da nossa disciplina para com o mito vigente, hegemônico e opressivo da existência de uma democracia racial (González, 2020, p. 37).

Anos mais tarde, percebi que a participação do movimento negro se mostrou relevante na luta contra a opressão racial e pela reinvindicação de direitos e intervenção política direta. É no movimento que se encontra o espaço necessário para as discussões e o desenvolvimento de uma consciência política a respeito do racismo, suas práticas e articulações com a exploração de classe (González, 2020, p. 91).

González (2020, p. 145) destaca:

[…] a discriminação de sexo e raça faz das mulheres negras o segmento mais explorado e oprimido da sociedade brasileira limitando suas possibilidades de ascensão. Em termos de educação, por exemplo, é importante enfatizar que uma visão depreciativa dos negros é transmitida nos textos escolares e perpetuada em uma estética racista constantemente transmitida pela mídia de classe. Se adicionarmos o sexismo e a valorização dos privilégios de classe, o quadro fica então completo. 

A construção de conhecimento científico crítico torna-se um anseio no interior da Psicologia, de modo que a relação entre teoria e prática expresse comprometimento e responsabilidade social e política, visando à democratização social, racial e de gênero, para atender as pessoas que são afetadas pela exclusão social, discriminação, intolerância, preconceito, desigualdades, dentre outros processos de exclusão e estigmatização social (CREPOP, 2017, p. 39).

Considerações finais

Este artigo escrevivente buscou articular saberes em Psicologia a conceitos oriundos do feminismo negro a partir de um exercício individual de memória, visando à superação das opressões que podem afetar as mulheres negras.

Do ponto de vista da Psicologia, espera-se que este texto contribua para que futuros profissionais venham a oferecer um ambiente tranquilo, uma atitude acolhedora e o trato com humanidade perante questões interseccionais, para que a/o sujeito seja ouvida/o e atendida/o com reconhecimento da validade do seu sofrimento. Para isso, é fundamental externar a dificuldade ligada ao processo de subjetivação e reconhecimento de si enquanto pessoa negra diante da colonialidade que oblitera e mata corpos negros.

A Psicologia contribui para a compreensão, enfrentamento e superação de sentimentos envolvidos em relações raciais racistas. A crítica torna possível colocar teoria e técnica a serviço da compreensão da “construção subjetiva da negritude” (Silva, 2001, p. 17 apud CREPOP, 2017, p. 104). Para tanto, é preciso que o profissional da Psicologia construa e fortaleça a sua profissão com ações coletivas com base em aportes teóricos críticos. Nesse sentido, faz-se urgente uma renovação das políticas públicas que garantam os direitos dos grupos minoritários e uma práxis psicológica que leve em consideração as influências do preconceito racial e de gênero, lembrando que a discriminação dificulta a organização coletiva para a inclusão, a diminuição das desigualdades e a busca por melhores condições de vida para as mulheres negras.

Em parceria com a Psicologia, a educação pode contribuir para transformar a realidade social, incluir o ensino da cultura e história afro-brasileiras nas instituições de ensino, capacitar profissionais que atuam diretamente com o público e promover a contratação de pessoas negras nas instituições, para que se exprimam as diferenças culturais e étnico-raciais na sociedade, bem como para o fortalecimento das redes de apoio e de grupos/movimentos que lutam pelos direitos do povo preto com o intuito de construir uma nação igualitária e justa.

No desenvolver desta pesquisa, tive a oportunidade de conhecer e aprofundar-me nos estudos sobre as relações raciais e de gênero; compartilhei experiências, dialoguei com autoras deste campo. Espero que a publicação destas vivências possa contribuir para a desconstrução do racismo. Pessoalmente, pretendo desenvolver a mesma temática para um futuro mestrado, considerando que ainda são necessários estudos, estratégias e atividades práticas para a desconstrução das opressões que adoecem a população brasileira.

Referências

ALMEIDA, Arthur Gomes de. A História de A.: escrevivências de um aluno cotista negro no curso de psicologia da UFRGS. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Psicologia) – Faculdade de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: p. 83, 2018. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/193342. Acesso em: 06 dez. 2022.

BOA VENTURA, S.S; Meneses, M.P. (orgs). Epistemologias do Sul, Coimbra Almeidina,2009.       Disponível    em:http://www.professor.ufop.br/sites/default/files/tatiana/files/epistemologias_do_sul_boaventur a.pdf. Acesso em: 25 mar. 2023.

CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA. Psicologia e relações Étnico-Raciais: diálogos sobre o sofrimento psíquico causado pelo racismo. Curitiba: Conselho Regional de Psicologia

– 8ª região, 2016. Disponível em: https://crppr.org.br/wpcontent/uploads/2019/05/AF_CRP_CadernoEtnico_Social_pdf.pdf. Acesso em: 23 mar. 2023.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relações Raciais: Referencias Técnicas para a atuação de psicólogas/os. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2017. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/09/relacoes_raciais_baixa.pdf. Acesso em: 23 mar. 2023.

DUARTE, Constância Lima; NUNES, Isabella Rosado (org.). Escrevivência: a escrita de nós. Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. Disponível em: https://www.itausocial.org.br/wp-content/uploads/2021/04/Escrevivencia-AEscrita-de-Nos-Conceicao-Evaristo.pdf. Acesso em: 09 dez. 2022.

EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. 2. Ed. Rio de Janeiro: Malê, p. 142, 2016. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/495016238/Insubmissas-Lagrimasde-Mulheres-by-Conceicao-Evaristo-Z-lib-org. Acesso em: 28 mar. 2023.

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. 2. ed. Rio de Janeiro. Pallas: Fundação Biblioteca Nacional,        p.         124,     2018.   Disponível      em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5676744/mod_resource/content/1/Olhos%20.pdf. Acesso em: 08 dez. 2022.

GONZÁLEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, p. 223-244, 1984. Disponível em:https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5509709/mod_resource/content/0/06%20-%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-

%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf. Acesso em: 09 dez. 2022.GONZALES, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. Disponível em:  https://mulherespaz.org.br/site/wp-content/uploads/2021/06/feminismo-afro-latino-americano.pdf. Acesso em: 07 abr. 2023.

HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Disponível em:       https://iedamagri.files.wordpress.com/2017/01/raizes-do-brasil-sergiobuarque-de-holanda.pdf. Acesso em: 10 mar. 2023.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro:     Bazar do        Tempo,           2019.   Disponível      em: https://pt.scribd.com/read/505566301/Pensamento-Feminista-Conceitos-fundamentais. Acesso em: 05 dez. 2022.

NASCIMENTO, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: possibilidades nos dias da destruição.Editora Filhos da África: [s.l.], 2018. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/537683265/BEATRIZ-QUILOMBOLA. Acesso em: 05 dez. 2022.

PINHEIRO, Lauany Câmara Chermont. Psicologia e relações raciais: um estudo sobre os usos dos dispositivos de branquitude na psicologia política e social brasileira. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Filosofia e de Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará. Belém: p. 156, 2021. 

REDER, Thiago Veríssimo Gonçalves. Escrevivências de Si. A narrativa autoral como ferramenta pedagógica. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia) – Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense. Niterói: p. 45, 2022. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/25221/THIAGO%20VERISSIMO%20GON%C3% 87ALVES%20REDER.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 06 dez. 2022.

SILVA, Debora Elita de Sousa. Crítica à concepção de empoderamento e as implicações nas lutas feministas no contexto neoliberal. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social, Universidade do Rio Grande do Norte. Natal: p. 170, 2021. 

SOARES, Lissandra Vieira; MACHADO, Paula Sandrine. “Escrevivências” como ferramenta metodológica na produção de conhecimento em Psicologia Social. Revista Psicologia e Política, v.      17,      n.       39,      p.      203-219,       ago.      2017.      Disponível              em:https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7306139/mod_resource/content/1/Escrevive%CC%8 2ncias%20como%20ferramenta%20metodolo%CC%81gica%20na%20produc%CC%A7a%C C%83o%20de%20conhecimento%20em%20Psicologia%20Social.pdf. Acesso em: 08 dez. 2022.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. São Paulo: Companhia das Letras, 1983. Disponível em:

https://pt.scribd.com/document/406151724/SOUZA-Neusa-Santos-Tornar-se-negro-asvicissitudes-da-identidade-do-negro-brasileiro-em-ascensao-social-2-ed-Rio-de-JaneiroEdicoes-Graal-1983. Acesso em: 16 abr. 2024.


1Universidade Federal de Mato Grosso
vanderleia.dionezio@sou.ufmt.br