ESTELIONATO AFETIVO POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIDADE PENAL E CIVIL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.6613793


Autora:
Cristina França da Conceição
Graduanda em Direito pela Universidade Unicerrado
cristinafconceicao@gmail.com


RESUMO

O presente trabalho tem como escopo analisar a responsabilidade frente às relações afetivas não protegidas juridicamente, com isso observar as hipóteses de cabimento da responsabilização penal e a reparação por danos morais em decorrência de atos na utilização do afeto para obter vantagens no âmbito patrimonial. Para além disso, o trabalho objetiva delimitar os pressupostos para admissibilidade da referida reparação para os casos em que a legislação não prevê expressamente como o estelionato psicológico também conhecido como estelionato sentimental.

palavras-chave: relações afetivas, danos morais, estelionato sentimental

ABSTRACT

The present work aims to analyze the responsibility in the face of affective relationships not legally protected, thus observing the hypotheses of appropriateness of criminal liability and compensation for moral damages as a result of acts in the use of affection to obtain advantages in the patrimonial scope. In addition, the work aims to delimit the assumptions for admissibility of said reparation for cases where the legislation does not expressly provide for psychological fraud, also known as sentimental fraud.

keywords: affective relationships, moral damages, sentimental fraud

Como o estelionato sentimental não é regulamentado no Brasil e sua prática vem se propagando a cada vez, seja por meios eletrônicos ou presenciais, observa-se a importância de estudar sobre esta modalidade. Nos autos nº 0012574-32.2013.8.07.0001 no Tribunal de Justiça do Distrito Federal, observou que o estelionato sentimental tem aparato também na responsabilidade civil e no crime do artigo 171 do Código Penal.

Isso porque no Tribunal de Justiça do Distrito Federal já houve decisão que condenou um ex-namorado ao pagamento das despesas efetuadas durante a relação amorosa do ex-casal, despesas essas relativas aos gastos materiais suportados pela mulher durante o relacionamento. Danos superam a órbita material e atingem a esfera sentimental da vítima.

O conhecimento sobre a caracterização do estelionato sentimental e como ele se consuma no cotidiano é fundamental para que as vítimas ou indivíduos que são sujeitos de direitos possam denunciar, os quais precisam resguardar quando se veem como vítimas.

Isso pode ser feito a partir do entendimento do que é o amor simulado. O amor simulado: é quando um dos parceiros de forma proposital, utiliza de má-fé o afeto alheio como instrumento para obter vantagens pessoais, ou seja, o cometimento do estelionato sentimental.

Como detectar a fraude no amor? fraude: é qualquer ato ardiloso, enganoso, de má-fé, com o intuito de lesar ou ludibriar outrem, ou de não cumprir determinado dever. Seria a confiança depositada no outrem demais, em um cotidiano onde a falta de confiança é notório. A quem recorrer quando o amor paga a conta.

Já que a legislação é omissa em relação à prática do estelionato sentimental, poderia ser usada analogia ao crime de estelionato previsto no artigo 171 do Código Penal? Decreto- Lei N°2.848/1940 Código Penal artigo 171 caput- “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. Infere-se da oração, induzindo ou mantendo alguém ao erro, as prática do estelionato sentimental que tem grande incidência no cotidiana e na vida de muitas mulheres e é companheiro de outros crimes de gênero como a violência doméstica patrimonial, onde por meios fraudulentos um dos companheiros em uma relação amorosa pede dinheiro a outrem com a promessa de pagar e não o faz, ou mesmo transfere bens imóveis para sua propriedade argumentando que ao casar será dos dois e o casamento não acontece.

O presente projeto de pesquisa parte do pressuposto da omissão legislativa relativa ao estelionato sentimental. Para tanto, serão analisados dispositivos presentes no Código Penal e Código Civil, bem como será observada a aplicação prática dos direitos constitucionais a partir dos princípios da dignidade da pessoa humana, da afetividade e boa-fé.

Para tanto, o método utilizado foi o hipotético dedutivo por mais se enquadrar ao tema em questão. No mais, o procedimento técnico aplicado foi de pesquisa bibliográfica a partir de materiais já publicados, constituído principalmente de doutrinas, jurisprudências e artigos científicos atinentes.

O estelionato sentimental é uma conduta que gera lesão de bem que integra os direitos da personalidade, como a honra, a dignidade, a intimidade, a imagem, o bom nome etc., como se infere dos arts. 1º, III, e 5º, V e X, da Constituição Federal, embora não esteja regulamentado no âmbito jurídico brasileiro, no estelionato sentimental fica evidente que existe uma lesão ou outrem, busca-se respaldo legal no artigo 171 do Código Penal (estelionato) e o art. 186 do atual Código Civil (responsabilidade civil), exprime que aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Sendo que o próprio Código Civil conceitua ato ilícito quando diz que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito, o Código ainda é omisso na tipificação do caso de estelionato sentimental podendo ter um parágrafo no Código Penal aumentando a pena para esses casos.

Zanonni (1982, p. 239-240) acrescenta sobre o tema:

O dano imaterial ou moral é aquele que não tem prejuízo econômico, o que atinge o íntimo do agente, sua moral, seus princípios basilares dos quais se utiliza para conviver em sociedade, pois cada qual é criado conforme seus fundamentos, e dependendo do tipo de ato por ele sofrido, aumenta o dano a ser reparado.

Ademais, diante dos pressupostos da responsabilidade civil expostos até o momento, é possível verificar que as três condições inerentes ao referido instituto desencadeiam uma série de consequências para as partes envolvidas, sendo que primeiramente uma ação (conduta) deverá ser praticada, em consequência desta ocorrerá uma lesão (dano) e por fim deverá ser verificada a existência de um vínculo entre a ação e o resultado, configurando a responsabilidade civil.

Gonçalves (2012) acrescenta considerações a respeito do tema:

Pode-se afirmar, portanto, que responsabilidade exprime a ideia de restauração de equilíbrio, de contraprestação, de reparação de danos. Sendo múltiplas as atividades humanas, inúmeras são também as espécies de responsabilidade, que abrangem todos os ramos do direito e extravasam os limites da vida jurídica, para se ligar a todos os domínios da vida social.

Logo, se conclui que se trata de uma lesão a um dano extrapatrimonial, um bem que está subjetivado na vida de cada agente, ou até mesmo uma lesão a um bem patrimonial que cause reflexos extrapatrimoniais, estando estes direitos expressos pode ser defender que é de suma importância debater sobre o estelionato sentimental, para que seja compreendido e denunciado pelas vítimas.

A questão é se a analogia usada do artigo 171 do Código Penal pode ter o mesmo resultado quando acontece o estelionato sentimental de gênero, a responsabilidade do Código Civil poderia ser usada também em analogia a essa conduta, e as penas da Lei 11.340/2006 poderia também.

O princípio da afetividade geralmente engloba direitos relacionados à família, pois é onde mais se encontra o afeto entre as pessoas. O afeto se traduz no sentimento de carinho, compaixão que é demonstrado à uma pessoa, no âmbito familiar e dos relacionamentos. Mostra-se comum este tipo de conduta uns para com os outros, visto que estão encobertos pelos laços familiares e amorosos.

É importante para o estado que o afeto se concretize nas relações sociais, pois a partir do afeto se vê uma segurança jurídica maior e por consequência a diminuição nas lides processuais.

Dias (2015, p. 52) comenta e acrescenta sobre a afetividade:

A afetividade é o princípio que fundamenta o Direito de Família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia em face de considerações de caráter patrimonial ou biológico.

O termo affectio societatis, muito utilizado no Direito Empresarial, também pode ser utilizado no Direito das Famílias, como forma de expor a ideia da afeição entre duas pessoas para formar urna nova sociedade, a família. O afeto não é somente um laço que envolve os integrantes a uma família. Também tem um viés externo, entre as famílias, pondo humanidade em cada família, compondo, no dizer de Sérgio Resende de Barros, a família humana universal, cujo lar é a aldeia global, cuja base é o globo terrestre, mas cuja origem sempre será, como sempre foi, a família.

Em vista disso, assevera-se que a afetividade não se encontra somente dentro do âmbito familiar, ela pode ser encontrada, como dito acima, nas relações entre as famílias, não sendo necessário que haja laços sanguíneos, para sua configuração, eis que a convivência pode levar ao afeto. Subentende-se que o afeto esteja ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois é inerente ao ser humano se relacionar não só com os entes familiares, como também com as pessoas com quem convive, seja no trabalho ou nos momentos vagos.

O afeto acaba por se tornar uma expectativa que se tem em relação ao outro, sendo um importante instrumento na construção de uma sociedade sadia nas relações sociais e também jurídicas.

Acerca da importância do referido princípio, Rizzardo (2013, p. 691) dispõe sobre o tema:

De todos é conhecida a importância da afetividade, que envolve o vasto mundo de uma subjetividade decisiva na estrutura psíquica da pessoa, não podendo ser desligada de seu crescimento e formação. É incontestável que o afeto desempenha um papel essencial na vida psíquica e emotiva do ser humano. A afetividade é uma condição necessária na constituição do mundo interior. Conclui-se que a afetividade contribui também na construção do psicológico das pessoas, colaborando com o desenvolvimento normal do ser humano como um todo.

Rizzardo (2013) ainda acrescenta que o tratamento afetivo, carinhoso, amoroso, atencioso, cuidadoso, de constante presença e acompanhamento, é indispensável para a personalidade normal e ajustada, para adaptação do meio social.

Contudo, o que muito tem se discutido é a possibilidade de reparação moral e material quando se tem frustrada a expectativa do recebimento do afeto. O entendimento a respeito do assunto ainda tem sido amadurecido nos tribunais brasileiros, pois, poucos são os casos em que foi possível a referente reparação. Muito se diz que não haveria essa obrigação recíproca de sentir afeto pela outra pessoa, porque tal atitude não constitui ato ilícito, não havendo o que se falar em dever de reparação, malgrado em alguns casos seja uma atitude reprovável.

Muito embora ainda não exista a tipificação da conduta de estelionato sentimental nos diplomas legais brasileiros, sabe-se que ele acomete tanto a esfera moral, podendo atingir até mesmo a esfera patrimonial das vítimas. Com isso, questiona-se se é possível a punição deveria ser mais gravosa na seara penal daquele que comete o ato de estelionato sentimental. É a partir desse questionamento que o trabalho irá se estruturar.

A procedência de um julgamento justo, devido e conforme os preceitos legais, consiste no cumprimento de deveres das partes. O juiz possui o dever de pronunciar-se sobre o caso concreto e prestar sua tutela jurisdicional, em conformidade com o princípio da inafastabilidade da jurisdição, o qual está resguardado pela Carta Magna em seu artigo no artigo 5º, inciso XXXV.

Ademais, espera-se que as partes litigantes também cumpram com o seu papel dentro do processo com o devido respeito à distribuição do ônus da prova prevista no artigo 333 do Novo Código de Processo Civil, o qual determina que incumbe ao autor o ônus da prova quanto ao fato constitutivo de direito e ao réu quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo de direito.

Ao tratar-se da responsabilidade civil extracontratual nos casos em que se configura violência doméstica, verifica-se, com fulcro nas decisões dos tribunais, que o dano moral é presumido, afastando, portanto, a necessidade da parte autora de provar a violação dos direitos da personalidade, podendo apenas provar que houve o ato ilícito.

Nesse sentido a jurisprudência:

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – LEI MARIA DA PENHA – FIXAÇÃO DE VALOR MÍNIMO A TÍTULO DE DANO MORAL – ADMISSIBILIDADE- PEDIDO EXPRESSO NA INICIAL ACUSATÓRIA – DANO MORAL PRESUMIDO (IN RE IPSA). – A Jurisprudência dos Tribunais Superiores se consolidou no sentido de ser cabível, independentemente de instrução probatória, a fixação de valor a título de danos morais às vítimas de violência doméstica,como no caso em discussão. O dano nesse caso é presumido, em razão da vítima ter sua honra, dignidade e moralidade lesadas, podendo ser estabelecido na sentença, conforme autoriza o artigo 387, inciso IV, do CPP, desde que requerido pelo Ministério Público quando do oferecimento da denúncia. (TJ-MG- APR: 10024161124706001 MG. Relator: Beatriz Pinheiro Caires. Data de Julgamento: 30/05/2019, Data de Publicação: 07/06/2019)

Através da aludida apelação, observa-se que os Tribunais Superiores já consolidaram o entendimento acerca do cabimento de indenização a título de danos morais em decorrência de violência doméstica. Esse cabimento gozará da particularidade de que independe de instrução probatória, devido ao caráter in re ipsa do dano, ou seja, já lhe é presumido. Isso se justifica em razão da violação da honra, dignidade e moralidade por decurso do ato ilícito em questão.

Nesse âmbito, Brasilino e Rodrigues (2019) discorrem sobre a importância de não haver necessidade de comprovar grande abalo psicológico da vítima, no sentido de que a dilação probatória nesses casos poderia comprometer a condenação do ofensor à reparação moral para a vítima, podendo se instalar uma espécie de protelação no processo, fazendo com que a mesma tivesse que estar diante do trauma por mais tempo, lhe causando ainda mais sofrimento e, por consequência, uma possível desmotivação em levar o caso adiante, ou seja, a medida importa, além de oferecer uma segurança maior para a ofendida, uma repreensão à impunidade do agressor em sede de violência doméstica.

ENTENDIMENTO DO STJ

A incidência de processos julgados referentes a pedidos de indenização por danos morais em decorrência de violência doméstica é constante, de forma que, apesar de ser possível encontrar decisões que percorrem caminhos divergentes, já existe um entendimento majoritário acerca do tema dentre os tribunais, bem como uma consolidação do entendimento por parte do Superior Tribunal de Justiça que, por sua vez, compreende a indenização como merecida e o dano como presumido, pela simples condição da vítima, a de violência doméstica. Somado a isso, o entendimento do STJ também discorre acerca da fixação do valor mínimo para reparação do dano, sobre o qual não deverá haver a exigência da especificação do valor para deferimento da indenização, sendo suficiente apenas o pedido em sua forma genérica.

Nesse sentido, veja-se a posição do relator Ministro Rogerio Schietti Cruz (STJ, 2018, RECURSO ESPECIAL Nº 1.643.051 – MS): Quanto à reparação mínima de danos deve ser concedida, nota-se que o art. 387, IV, do CPP, de cunho imperativo, veio para prestigiar a vítima e conceder-lhe maior celeridade na obtenção da antecipação da indenização, pois, nos termos do art. 91, I do Código Penal, trata-se de efeito automático da sentença condenatória definitiva. Anota-se que o art. 387, IV do CPP não faz qualquer distinção quanto ao tipo de dano a ser indenizado, ou seja, material ou moral. Ainda, entendo que, em se tratando de violência doméstica e familiar contra a mulher, estamos diante do dano moral in re ipsa, portanto que dispensa prova para sua configuração. O dano moral, assim, decorre da prática delituosa contra a vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, à honra, à imagem da mulher (art. 5º CF). Não há necessidade de a vítima comprovar que a conduta do agressor se deu de forma injusta e de má fé; ou comprovar que do fato ela sofreu abalo psíquico, emocional e moral para conseguir a reparação.

Objetivando o bom andamento do processo, a busca pela justiça e o afastamento de possíveis arbitrariedades que possam vir a contaminar o poder judiciário, o ordenamento jurídico é banhado por garantias fundamentais e princípios constitucionais. Dessa forma, importa dizer que a fixação de valor mínimo à título de indenização por dano moral no caso em discussão, não fere essas garantias nem princípios, tampouco confere ao réu algum tipo de prejuízo em âmbito cível. A exigência mínima do ato de pedir é, para o relator do recurso em questão, o efetivo exercício do contraditório e da ampla defesa, não ocorrendo, portanto, arbitrariedade ou ilegalidade no possível acolhimento de indenizações deste tipo.

Leia-se o entendimento aludido, Ministro Rogerio Schietti Cruz (STJ, 2018, RECURSO ESPECIAL Nº 1.643.051 – MS):

Diante desse quadro, entendo que a simples relevância de haver pedido expresso na denúncia, a fim de garantir o exercício do contraditório e da ampla defesa, ao meu ver, é bastante para que o Juiz sentenciante, a partir dos elementos de prova que o levaram à condenação, fixe o valor mínimo a título de reparação dos danos morais causados pela infração perpetrada, não sendo exigível produção de prova específica para aferição da profundidade e⁄ou extensão do dano. O merecimento à indenização é ínsito à própria condição de vítima de violência doméstica e familiar. O dano, pois, é in re ipsa.

A partir desse direcionamento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, observa-se que o ordenamento jurídico tem um importante papel na repreensão da violência contra a mulher, seja ela de qualquer natureza. Os tribunais, em conjunto com a legislação, têm tido notável evolução nesse sentido ao tentar aplicar na prática a erradicação da violência doméstica e, portanto, fazer jus ao artigo 1º da Lei Maria da Penha e ao § 8º do art. 226 da Constituição Federal.

A RESPONSABILIDADE E O ESTELIONATO SENTIMENTAL

O termo “estelionato sentimental” aparece de forma curiosa no âmbito jurídico e levanta olhares e questionamentos acerca do tema, visto que esta denominação parte do crime de estelionato o qual resta tipificado no artigo 171 do Código Penal brasileiro. Para compreensão do termo aludido, faz-se necessário trazer a baila o conceito determinado pelo âmbito criminal. Com fundamento no dispositivo legal em questão, configura-se como estelionato o ato de obter para si ou para outra pessoa, vantagem ilícita, proveniente de quaisquer meios fraudulentos, assim como induzir ou manter alguém em erro.

A título de complemento do conceito legal, NUCCI, Guilherme de Souza (2020, p.847), compreende que a obtenção de vantagem indevida mediante condução do ofensor será configurada mesmo que a vítima tenha entrado na situação de erro sozinha, visto que o texto legal também prevê o núcleo do tipo “manter”.

O uso do termo em questão se iniciou a partir de um processo julgado pela 7ª Vara Cível de Brasília em 2015, o qual tratou sobre o caso em que um homem foi condenado a ressarcir sua ex-namorada por diversas dívidas que a mesma teria contraído durante o relacionamento em decorrência do ato ilícito do réu de querer se aproveitar da confiança e da boa-fé da vítima. Ou seja, o estelionato sentimental ocorre quando uma parte visa a obtenção de vantagem patrimonial ilícita dentro de um relacionamento amoroso, ao se aproveitar do vínculo de confiança proveniente da relação existente e do estado afetivo da outra pessoa, muitas vezes, simulando um afeto ou sentimento para manter aquele relacionamento e fazer a vítima acreditar que está dentro de uma relação de confiança, fidelidade e dotada de sentimentos reais. Nessa situação, o estelionatário, por vezes, demonstra estar necessitado de ajuda financeira e está sempre pedindo quantias sob o juramento de que irá pagar todo o valor devido posteriormente, o que não acontece.

Com base nos dizeres de Cavalieri Filho (2020), a boa-fé objetiva é um elemento essencial para as relações sociais e para o nascimento da confiança dentro delas, sendo, portanto, um “padrão de conduta”. É verdade que nos relacionamentos se espera que haja ajuda mútua em diversas esferas, porém, o que se observa aqui, em consoante com o julgado de Brasília, é que a boa-fé objetiva servirá como limite nessas relações para que não recaia sobre o caso de abuso de direito.

Nesse sentido, o juiz Luciano dos Santos Mendes (processo nº 0012574-32.2013.8.07.0001) compreendeu:

Embora a aceitação de ajuda financeira no curso do relacionamento amoroso não possa ser considerada como conduta ilícita, certo é que o abuso desse direito, mediante o desrespeito dos deveres que decorrem da boa-fé objetiva (dentre os quais a lealdade, decorrente da criação por parte do réu da legítima expectativa de que compensaria a autora dos valores por ela despendidos, quando da sua estabilização financeira), traduz-se em ilicitude, emergindo daí o dever de indenizar.

O dever de indenizar de que menciona o magistrado, é mais facilmente demonstrado quando se refere aos danos materiais, visto que o estelionato fere o patrimônio da vítima, lhe causando prejuízo econômico, tanto na esfera cível quanto na esfera penal. Ademais, o dano moral, objeto de estudo deste artigo científico, percorre algumas nuances para que seja configurado.

A autora Claudia Neves (2020), ressalta que, no estelionato sentimental, o dano vai muito além do material, sendo possível sim a reparação a título de dano moral, dada a situação de humilhação que a vítima passa ao ser enganada e ludibriada dentro de um relacionamento o qual acredita ser verdadeiro, para ser usurpada pelo parceiro em quem confia e por quem construiu sentimentos.

Como tema inovador, há tribunais que não compreendem cabível o dano moral, mas já é possível essa hipótese, porém, existe a dificuldade de demonstração de que o réu agiu com má-fé para proveito próprio. O que é imprescindível para que seja afastada a possibilidade de alegar “ajuda espontânea” por parte da defesa do réu.

É possível notar uma grande diferença entre esta situação e a hipótese estudada no tópico anterior. Aqui, não há que se fazer em dano presumido, pelo contrário, para efetivação do pedido faz-se necessário um forte trabalho probatório para maior possibilidade de deferimento por parte do magistrado. Deve-se utilizar todos os meios de prova possíveis para demonstração do fato e para a possível condenação.

RESPONSABILIDADE CIVIL EM SITUAÇÕES DECORRENTES DO ROMPIMENTO DE RELAÇÕES AFETIVAS

A família tem sido centro de profundas mudanças perpetradas na sociedade brasileira, sobremaneira, ao longo das últimas décadas, que vão desde novas formas de organização familiar ao surgimento de uma série de costumes e direitos. Deixou na história uma realidade na qual vigorava a hegemonia da família matrimonializada, fulcrada no patriarcalismo, dando abertura ao estabelecimento do afeto como valor absoluto.

Desta forma, tendo em vista a supremacia do afeto e sua defesa como verdadeiro princípio, traz-se a necessidade de proteção jurídica a situações que envolvam relacionamentos tanto baseados na norma positivada, quanto aqueles sustentados apenas no afeto, como no caso de namoros e noivados. Denota-se que, para além da proteção conferida à forma da relação afetiva, na atual base jurídica, tanto no nível constitucional quanto no infraconstitucional, destaca-se a proteção dada à pessoa, que se tornou ponto central do ordenamento, em detrimento ao aspecto patrimonial. Assim, a igualdade, a proteção aos direitos da personalidade e a dignidade da pessoa humana passaram a prevalecer sobre o patrimônio e a hierarquia.

Da mesma forma que os mencionados postulados passaram a prevalecer no direito brasileiro, adveio a necessidade de mecanismos para sua salvaguarda. Desponta, portanto, a reparação civil como meio eficiente na busca de reparação de danos. Doutrina e jurisprudência da responsabilidade civil têm passado por processo de evolução muito intenso desde o início de sua aplicação no ordenamento brasileiro, sendo palco de grandes controvérsias e muitas incertezas, eis que se revelam como defensores dos ditames norteadores da CF/88. Portanto, a sua evolução foi acompanhando o grau de eficácia que os princípios da Constituição iam ganhando no ordenamento.

Não obstante as demais formas de danos que podem ser acobertados pela responsabilização civil, como os patrimoniais e os estéticos, importante 45 destacar a figura do dano moral para a realidade jurídica brasileira recente, diante da magnitude conferida ao ser humano e aos direitos da personalidade. O dano moral, que se caracteriza pela afronta a qualquer direito personalíssimo, tem encontrado na jurisprudência fundamentação, deveras, deturpada, na medida em que julgadores das diversas regiões justificam suas decisões nos efeitos acarretados, ou seja, concedem dano moral quando verificam a dor, o sofrimento, a humilhação ou outros resultados externos à vítima.

Na verdade, a pura e simples violação a um direito da personalidade é fato suficiente a ensejar a condenação por dano moral. Também se afigura controversa e obscura a caracterização do ato ilícito na jurisprudência brasileira, para a verificação do dano moral. Seguindo os ditames dos artigos 186 e 187 do Código Civil, para a ocorrência de um ato ilícito, deve ser constatada uma ação ou omissão que traga um dano real e efetivo a outrem, bem como quando há abuso de direito. Contudo, nas questões que envolvem o rompimento de relacionamentos afetivos, há uma tendência de muitos julgadores no sentido de alegar, no caso concreto, que algumas situações constituem meros dissabores decorrentes do término da relação, olvidando-se, por vezes, do caráter de ilicitude contido no ato.

tratam-se os referidos atos de ilícitos indenizáveis quando acarretam um dano, como no caso do abuso de boa-fé, de direitos e de confiança obtida por meio da relação ou comportamento contraditório ou violação ao nome, à imagem, entre outros. Pode-se usar como exemplo a situação conhecida na expressão “revenge porn”, na qual um dos consortes, após o rompimento do enlace, divulga na internet vídeo ou foto íntimos sem o consentimento do outro, como forma de vingança, geralmente contendo cenas de sexo explícito que, mesmo quando gravadas de forma consentida, no curso do relacionamento, não tinham a intenção de serem divulgadas publicamente.

Desta forma, uma série de situações corriqueiras na sociedade deixam de receber o devido amparo pelo Poder Judiciário, conforme será visto nas decisões adiante comentadas. O caso do rompimento do noivado decorrente de notícia veiculada em jornal a promovente do caso em comento ajuizou ação de reparação de danos 1 em face de ex noivo, ao fundamento de que iniciaram um relacionamento amoroso com ampla convivência pública e posterior promessa de casamento, começando um noivado cinco anos após o início do relacionamento e alimentando uma relação que lhe privou de diversas oportunidades, como realização de curso de graduação em cidade diversa, além de dedicação exclusiva aos afazeres de casa, no cuidado ao lar tanto da cidade, quanto da fazenda, na qual o noivo passava boa parte do tempo sozinho

. Acrescentou ter, inclusive, comprado enxoval por conta do noivado, mas que, algum tempo após, foi surpreendida ao se deparar, em jornal de grande circulação, com uma foto do requerido ao lado de outra mulher, com um bebê no colo, junto das seguintes frases: “Márcia e Hélder Chaves de Moura ganharam um presente de Deus. A lindinha Marianny chegou alegrando a vida dos papais e dos avós Maria do Carmo, Francisco e Maria Luiza”. O noivo se limitou a dizer, contudo, que havia ocorrido um mal entendido. A autora alegou ter sido expulsa de casa por seus próprios pais, além de virar alvo de chacota pela cidade e receber telefonemas da outra mulher, que a agredia verbalmente. Por todos os motivos que aduziu, pleiteou indenização por danos morais e materiais.

Em trecho da decisão analisada, é suscitado que : Configura dano moral indenizável a conduta de pessoa já casada que omite tal fato e se envolve, durante anos, com jovem, com ela ficando noivo e convivendo, sob promessa de casamento, para depois, romper o relacionamento, diante da descoberta da situação pela própria jovem, por . Neste sentido, conferi: BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. AC 10209080830091001 MG. Relator: Evandro Lopes da Costa Teixeira, Data de Julgamento: 11/06/2014, Câmaras Cíveis / 17ª CÂMARA CÍVEL meio de notícia de jornal, fato que foi causa de profundo constrangimento, humilhação e sofrimento psíquico.

De fato, quando um indivíduo casado omite esta relevante informação para se relacionar com outrem, está violando a boa-fé objetiva, tendo em vista que, se a companheira soubesse previamente do relacionamento, teria a oportunidade de discernir com mais clareza sobre a pessoa do convivente e se estava disposta a se envolver com alguém já comprometido. Continuando com a fundamentação, outro excerto pontua que não se tem como deixar de reconhecer a ocorrência, no caso, do dano moral, em consequência não do término do relacionamento em si mesmo, mas em virtude da forma como isso se deu, causadora de grande abalo psíquico à parte autora, exposta que foi ao vexame, ao constrangimento e à incomensurável sensação de desrespeito, decorrente de uma conduta desumana, destituída de qualquer resquício de princípio ético ou moral, com o qual se deve pautar o homem honesto, no sentido mais pleno da palavra. Percebe-se, portanto, a partir da análise do julgado, a conotação atribuída ao dano moral por parte dos Tribunais brasileiros, constituindo a regra a sua concessão pelos efeitos causados à vítima, diferentemente do que vem defendendo a doutrina, que o reconhece como mera afronta aos direitos da personalidade.

Para além do arcabouço que serve de argumentação para casos semelhantes, vale destacar a ocorrência de diversos ilícitos nas peculiaridades do caso em tela, como o abalo à imagem, à honra, bem como pelos abusos de direito cometidos à noiva, que transgrediram todos os limites da boa-fé e da confiança. Desta forma, não resta dúvida de que a conduta perpetrada pelo réu não se trata de um simples desentendimento amoroso ou que o término do relacionamento existente entre as partes tenha decorrido de um processo natural de desgaste.

O que se retira dos autos é que o promovido, agindo de forma irresponsável e premeditada, enganou a autora e sua família, durante quase cinco anos, causando-lhe significativos danos, sobretudo pelo manifesto abuso de direitos e da confiança conquistada pelo afeto, estando correto o reconhecimento de dano moral indenizável. Quanto aos danos materiais, melhor sorte não assistiu à promovente, haja vista não ter comprovado de forma inequívoca o decréscimo patrimonial, pois, mesmo considerando que os recibos apresentados por ela, em princípio, comprovam seus gastos com a aquisição do enxoval, que deveria guarnecem a residência das partes após o casamento, não há prova no sentido de que referidos bens tenham permanecido na posse do réu.

Desta forma, o dano material indenizável, requisito da obrigação de indenizar, é a desvantagem experimentada no bem jurídico, ou seja, a diminuição ocorrida no patrimônio da vítima, cabendo ao prejudicado a comprovação do efetivo prejuízo, eis que o dano hipotético não justifica a reparação.

O caso do “estelionato sentimental” A autora propôs ação de reparação de danos , alegando ter conhecido e iniciado uma relação amorosa com o réu, que durou quase dois anos, terminando pouco tempo depois de ter descoberto que este havia se casado com outra mulher durante o curso do relacionamento.

Aduziu que o réu iniciou, pouco tempo após o início do envolvimento, uma sequência de pedidos de empréstimos financeiros, empréstimos de carro, pedidos de créditos de celular e compras usando o seu cartão de crédito. Ao todo, entre saques e transferências, sustentou ter entregue ao requerido o valor de R $43.419,00 (quarenta e três mil, quatrocentos e dezenove reais).

Para cobrir os valores sacados e para quitar dívidas existentes em nome do demandado, disse ter precisado fazer empréstimos bancários, de modo que deve a quantia de R$ 62.676,10 (sessenta e dois mil, seiscentos e setenta e seis reais e dez centavos) a uma instituição bancária, para quitação imediata, e já tendo.

Neste sentido, conferi: BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. 7ª Vara Cível de Brasília. Processo: 2013.01.1.046795-0. Data da decisão: 08/09/2014. realizado o pagamento de R$ 38.861,61 (trinta e oito mil, oitocentos e sessenta e um reais e sessenta e um centavos), o que totalizou a importância de R$ 101.537,71 (cento e um mil, quinhentos e trinta e sete reais e setenta e um centavos) .

Ao final, afirmando ter suportado, além dos danos materiais, danos morais pela humilhação e situação vexatória que ficou perante amigos e familiares, pugnou pela condenação do réu ao pagamento de R$ 101.537,71 (cento e um mil, quinhentos e trinta e sete reais e setenta e um centavos) a título de indenização por danos materiais, e R$ 20.000,00 (vinte mil reais) a título de indenização por danos morais. A promovente intitulou a ação do promovido como verdadeiro “estelionato sentimental” O caso, que foi julgado pela 7ª Vara Cível de Brasília, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, teve a seguinte fundamentação : É certo que, naturalmente, os chamados “relacionamentos amorosos” implicam, muitas vezes, nas mais variadas formas de ajuda mútua. Geralmente os casais, no intuito de manterem a unidade afetiva e progresso de vida em comum, se ajudam mutuamente, seja de forma afetiva, seja de forma financeira.

E não há que se falar em pagamento por este tipo de ajuda. Parte-se da espontaneidade do ser; do bem-querer nutrido pelo companheiro ou companheira de vida; da busca pela manutenção ou estabilização do relacionamento vivido. […] Poderíamos dizer, assim, e apressadamente, que não haveria meios jurídicos de se ressarcir dos prejuízos suportados por uma das partes da relação na busca da estabilização/manutenção deste relacionamento.

O afeto faz emergir uma situação de ajuda e cooperação mútuas entre os companheiros, os quais realizam diversos atos tanto afetivos quanto financeiros para tentar estabilizar o seu par e, consequentemente, o relacionamento, baseados na solidariedade e na confiança, com o intuito de manterem a unidade afetiva e o progresso de vida em comum. Realmente, não pode existir pretensão de ressarcimento por todo e qualquer gasto realizado em virtude da relação, o que desvirtuaria sua própria essência.

O afeto não comporta sua mensuração em valor econômico. Contudo, o que não se justifica é, em verdade, o manifesto abuso da boa-fé e da confiança, de forma quase criminosa, sob falsas promessas de compensação futura. Continua o magistrado, em sua decisão, asseverando : […] em uma análise mais detida do ordenamento jurídico, sobretudo do Civil, imbricado fortemente pelos princípios constitucionais que visam dar sustentação e concretude aos princípios da dignidade da pessoa humana, da livre iniciativa, da função social da propriedade, da liberdade, da justiça social e da solidariedade, tenho que a solução jurídica da questão está na vedação do enriquecimento sem causa. O valor dignidade da pessoa humana enseja o respeito às individualidades de cada ser humano, além de proteção aos valores não econômicos, insuscetíveis de mensuração, do qual se desdobram os princípios da igualdade e autonomia da vontade e a proteção aos direitos humanos.

A sentença continua pontuando : […] surgiram novos deveres a serem observados nas relações interpessoais – ainda que “sentimentais/amorosas” -, considerados secundários, anexos, em relação à obrigação formal/escrita propriamente dita, quais sejam os deveres calcados na boa-fé, no prisma da justiça social e na solidariedade. Denota-se, portanto, a necessidade de proteção a situações que não estão plenamente individualizadas pela ordem positivada, mas que repercutem na sociedade e se manifestam como fato social, carecendo de respeito aos deveres baseados na boa-fé, na justiça social e na solidariedade.

Ademais, fundamenta o magistrado: Não há remédio legal destinado ao ressarcimento do prejuízo suportado pela autora que, no curso da relação, viu frustrado, pelo seu rompimento, a legítima expectativa criada pela conduta do réu de, quando da sua estabilidade financeira, ter de volta todos os valores a ele entregues no curso da relação.

Para a doutrina de Miguel Reale (1998), o novo Código Civil encontra-se baseado em três princípios fundamentais, que trazem meios interpretativos para a elucidação do caso em apreço, quais sejam: a socialidade, a operabilidade e a eticidade.

De acordo com o princípio da socialidade, ao desvincular-se do caráter individualista e egoístico do Código Civil de 1916, todos os institutos de Direito Privado passaram a ser analisados dentro de uma concepção social inafastável, tendo como norte inicial a Constituição Federal e seus preceitos fundamentais, particularmente aqueles que protegem a pessoa humana. Com relação ao princípio da operabilidade, pode-se dizer que ele é responsável não só pela facilitação da utilização do Direito Privado, como por sua efetividade, relacionado com o sistema de cláusulas gerais que nada mais são do que verdadeiras lacunas deixadas pelo legislador para preenchimento pelo aplicador do Direito. Por último, tem-se o princípio da eticidade, que impôs à ética e à boa-fé uma nova perspectiva, uma nova valorização.

A boa-fé ultrapassa o campo das ideias, da intenção, que sintetizam a boa-fé subjetiva, ingressando no campo dos atos, das práticas de lealdade, que se referem à boa-fé objetiva. Esta modalidade é concebida como uma forma de integração não só dos negócios jurídicos em geral, mas de toda e qualquer relação interpessoal atualmente existente. Trata-se de ferramenta auxiliar do aplicador do Direito destinada ao preenchimento de lacunas, de espaços vazios deixados pela lei.

No tocante ao abuso de direito, a fundamentação sustenta: Embora a aceitação de ajuda financeira no curso do relacionamento amoroso não possa ser considerada como conduta ilícita, certo é que o abuso desse direito, mediante o desrespeito dos deveres que decorrem da boa-fé objetiva (dentre os quais a lealdade, decorrente da criação por parte do réu da legítima expectativa de que compensaria a autora dos valores por ela despendidos, quando da sua estabilização financeira), traduz-se em ilicitude, emergindo daí o dever de indenizar.

Abuso de direito é conduta lícita quanto ao seu conteúdo, e ilícita quanto as suas consequências. Portanto, pode-se depreender que o dever de indenização pelos danos materiais, no caso em questão, decorre da vedação ao enriquecimento sem causa, mediante conduta praticada com abuso de direito, conforme a regra trazida pelo art. 187, do Código Civil, o que desrespeita, sobremaneira, a boa-fé objetiva. Relativamente aos danos morais, entendeu o julgador não restarem configurados, sob a seguinte justificativa

Por mais frustrante que seja o fim do relacionamento, todos os que vivem em sociedade, e se relacionam entre si, estão sujeitos aos dissabores decorrentes do término do relacionamento afetivo vivido. Meros dissabores, no entanto, por pior que possam ser considerados, não são passíveis de reparação pela via da ação de indenização por danos morais.

O fragmento da decisão acima colacionado traduz o espírito experimentado por diversos julgadores do Judiciário brasileiro. Trata-se de verdadeira contradição admitir o abuso de direitos, de modo que ultrapassa todos os limites razoáveis da boa-fé e da confiança, sem, contudo, reconhecer a existência de dano moral indenizável ao presente caso. A realização de diversos empréstimos e favores, todos substanciados na confiança adquirida ao longo do relacionamento, fazem com que a atitude perpetrada pelo réu se convalesça em verdadeira ilicitude.

Entretanto, mesmo sob uma análise superficial, pode-se depreender o patente desrespeito à dignidade da pessoa humana, além da imagem e da honra da promovente, que viu seu envolvimento público, com amplo convívio entre familiares e amigos, transformar-se em verdadeira espécie análoga ao estelionato, na medida em que o réu utilizou da confiança e do afeto para convencer a promovente a realizar uma série de ajudas e empréstimos, sob falsas promessas de recompensa futura. Portanto, percebe-se a clara afronta a direitos personalíssimos da demandante, o que é suficiente a justificar o reconhecimento de danos morais indenizáveis, mas que não ocorreu no caso em comento.

Por fim, pode-se extrair da análise realizada na decisão a falta de sensibilidade concernente ao magistrado, no tocante ao resguardo de direitos fundamentais. O juiz, no exercício de seu mister, deve estar aberto e sensível aos problemas humanos, de modo que, sem essa característica, não consegue alcançar os dramas relatados nos autos. O julgador tem que abrir as janelas dos direitos para a realidade que o cerca. Percebe-se uma boa preparação técnica dos membros do Poder Judiciário, mas falta, contudo, uma formação humana.

Carece a percepção para entender que nem sempre a letra fria da lei é capaz de fornecer a solução justa ao caso concreto, especialmente quando se está diante de conflitos envolvendo a vida afetiva das pessoas. Deve-se, portanto, investir na instrução humanística dos operadores do direito, uma vez que o direito é pensado pelo homem e para o homem, o que resta refletido na Constituição, a partir dos valores nela positivados, a fim de que se concretizem as garantias e direitos fundamentais.

O SILÊNCIO DAS VÍTIMAS

Não é fácil para as vítimas procurarem uma delegacia de polícia relatar ser enganadas pelos próprios namorados ou companheiros, abrir a sua intimidade, o silêncio das vítimas é uma razão de o judiciário ter recorrência ainda muito tímida no enfrentamento da questão.

Mulheres e Homens são vítimas de estelionato sentimental mas o preconceito, a vergonha e a ignorância atuam como freio na busca da reparação penal e civil,

A vítima, na maior parte das vezes, prefere suportar o prejuízo material a ter que se socorrer de uma ação indenizatória. Quando pode, busca a terapia para tratar os danos psicológicos decorrentes do trauma. A vergonha é, em alguma medida, acompanhada de culpa pelo ocorrido.

Além disso, a reparação dos danos materiais necessita de comprovação de repasse dos bens ou valores monetários. Para que seja ressarcida, a vítima precisa contratar um advogado e, mais uma vez, reunir as provas de que foi levada a erro, enganada sob o manto do afeto, para postular em juízo as indenizações devidas.

As demais relações afetivas, mesmo não estando no rol daquelas protegidas pelo ordenamento por força legal, devem ter proteção especial e o reconhecimento de determinados direitos e deveres, ao exemplo dos namoros e noivados, tendo em vista o elevado grau de afeto e confiança envolvidos.

Diante de todo o exposto, dos entendimentos jurisprudenciais mencionados e da tentativa de responder aos questionamentos levantados no presente trabalho, mesmo que não se possa esgotar o assunto, o Direito como um todo, a legislação, a doutrina e a jurisprudência, em conjunto, resguardam ao indivíduo o direito de ser restituído pelos danos sofridos. É verdade que a restituição de valores referentes a danos materiais é muito mais palpável, diferentemente do dano moral, em virtude de sua subjetividade de sua matéria, em se tratando de responsabilidade civil extracontratual, dentro de relacionamentos amorosos, a tarefa parece ser ainda mais árdua dada a complexidade das relações e particularidades de cada indivíduo e, consequentemente, de cada relacionamento.

É a partir dessas nuances que surgem reflexões acerca da possibilidade de indenização por danos morais em relacionamentos, bem como a extensão desta e os pressupostos para o reconhecimento do dano em cada hipótese em espécie.

As hipóteses estudadas foram respectivamente: violência doméstica, estelionato sentimental. Quanto a indenização a título de dano moral em decorrência de violência doméstica no relacionamento, foi possível notar uma particularidade com relação às outras situações abordadas. Nesta, por sua vez, o magistrado prevê a possibilidade de dano presumido, afastando o ônus de provar o ato ilícito por parte da vítima, além de admitir a fixação de valor mínimo para a reparação.

No estelionato sentimental, portanto, é necessário trabalhar fortemente quanto às provas, colher o maior número de informações possíveis, não deixando quaisquer lacunas em aberto, além de ser necessária a demonstração do forte abalo moral sofrido pela vítima em juízo, para que não seja alegada pela parte contrária que os valores pagos pela vítima foram meramente a título de “ajuda espontânea”.

No que se refere a configuração do dano moral em sede de infidelidade conjugal, foi observado que ainda que o adultério não mais importe ao Direito Penal, aquele que compreender ter tido sua honra ferida, não deve ficar em desamparo jurídico, apesar de que o ato de trair, por si só, não configura ato ilícito passível de reparação, o Direito Civil prevê a possibilidade de condenação ao pagamento indenizatório em caráter de exceção ao fazer o estudo do caso concreto, não ficando o judiciário omisso em casos de extrema humilhação e publicidade do fato que acarrete para o indivíduo forte abalo moral e psíquico, além de prejuízo à sua reputação perante a sociedade.

O entendimento jurisprudencial no que concerne à hipótese de indenização por danos morais em caso de ruptura de noivado, tem seguido uma linha de pensamento muito semelhante. Constatou-se que, para o Direito não interessa o mero dissabor ou decepções inerentes ao compartilhamento da vida a dois, não se pode esperar que o judiciário mantenha um sistema de tutela a nível de reparação destinado ao indivíduo que se encontra insatisfeito por não ter tido suas expectativas pessoais e afetivas supridas.

Nada obstante, o ordenamento jurídico não se exime da proteção jurídica de reparação de danos quanto aqueles que se percebem ofendidos, em conformidade com o artigo 927 do Código Civil. Nessa ótica, a exigência é que existam os pressupostos para o reconhecimento da responsabilidade civil no caso concreto. Por mais que cada hipótese estudada tenha suas particularidades, é possível traçar caminhos comuns a serem percorridos quando se trata do cabimento ou não da reparação em relacionamentos por danos morais.

A legislação é categórica em seu texto quanto a necessidade de reparação quando existe o dano, o ato e o nexo de causalidade, porém, a pesquisa jurisprudencial se faz essencial para que seja possível definir e delimitar o que é considerado dano dentro de um relacionamento, uma vez que nem sempre é possível agir com total racionalidade em relações onde o foco é a subjetividade do sentimento humano e tem como pilar, a afetividade.

Desta feita, é possível verificar, como caminhos comuns ao cabimento da reparação, uma análise quanto ao resultado da ação. Se determinada ação resulta em forte humilhação pública, fere a honra e a reputação do indivíduo ou a dignidade da pessoa humana, o dano é configurado e a reparação é devida, além disso, com exceção da hipótese de violência doméstica, a qual os tribunais já preveem o dano presumido e a necessidade de provar é afastada, foi observado que nas outras hipóteses a boa-fé objetiva é um elemento essencial para análise do caso, visto que é o que se espera numa relação afetiva, bem como um comportamento ético, verdadeiro e probo. E por fim, mas não menos importante, a presente pesquisa permite notar que os casos aqui apreciados de estelionato sentimental, são casos em que a fase probatória é determinante para o deferimento do pedido indenizatório.

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