REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102501030920
Antonia Luciene de Freitas¹
RESUMO
O objetivo deste artigo é analisar a formação sócio-histórica do Estado e suas implicações para política social, bem como, refletir a violência social como parte desse processo e a geração de seus impactos para saúde pública, em particular no Brasil contemporâneo. O conceito de Estado encontra-se estreitamente vinculado à economia no processo de produção e reprodução do sistema capitalista, assim como, o surgimento da política social atrela-se as expressões sociais decorrentes deste. Sabe-se que o fenômeno da violência está presente em todo o trajeto percorrido pela sociabilidade humana, faz-se presença em todos os segmentos da sociedade, manifestando-se de diversas formas, e gerando impactos e consequências sociais imensuráveis, principalmente para o sistema de saúde pública.
Palavras – chave: Estado. Política Social. Violência.
1 INTRODUÇÃO
O processo de estabelecimento e evolução do sistema capitalista necessita ser compreendido no âmbito histórico, econômico, político e social. Assim como, as particularidades de cada conjuntura e suas especificidades.
Muito embora, a chegada do desenvolvimento econômico capitalista no Brasil tenha sido tardiamente, e sua expansão acontecido com algumas especificidades diferenciais dos países capitalistas centrais, manteve-se as características essenciais de sua base: a exploração da classe trabalhara e a concentração das riquezas socialmente produzidas nas mãos da classe opressora.
Para tanto, a reflexão sobre a construção histórica do interior desse processo, recorre-se a referenciais teóricos que retrata os determinantes políticos, econômicos, ideológicos, culturais e sociais formadores das especificidades de cada conjuntura histórica, numa perspectiva reflexiva dialética de que o Estado é produto das relações inconciliáveis entre as classes.
Com o desenvolvimento capitalista, o Estado foi requisitado a assumir algumas responsabilidades sociais, em determinadas conjunturas com incremento de ações e política social, em outras com ajustes fiscais e cortes de gastos públicos.
No entanto, não há registro em nenhum momento da história, a execução de uma cidadania plena ou uma proteção social absoluta, apenas elaboração e execução de ações e serviços de acolhimento das expressões socias, frutos das precárias condições sociais de sobrevivência e da exploração da mão de obra da classe trabalhadora.
Nesse sentido, a violência configura-se um fenômeno que está enraizado desde os primórdios das relações humanas e está presente em todos os segmentos da sociedade, manifestando-se de diversas formas, e gerando impactos e consequências sociais degradantes.
2 ESTADO E POLÍTICA SOCIAL: FUNDAMENTOS SOCIO-HISTÓRICO
O percurso histórico que envolve o Estado e a Política Social, não somente no Brasil, mas em todo mundo, está atrelado ao capitalismo, aos modos de produção e às formas como as relações de classes se organizam em cada conjuntura.
O conceito de Estado está estreitamente vinculado à economia no processo da globalização. A esse respeito, segundo Mandel (1986), o Estado resulta da divisão social do trabalho, mediando a produção material, cujo papel era sustentar uma estrutura de classes e relações de produção. Já para Lenin (2010) o Estado não é um órgão de conciliação de classes, e sim um órgão de dominação de classes, um aparelho de dominação em que uma classe subjuga outra.
Desse modo, o Estado é um elemento determinante e determinado, ao mesmo tempo, pelas relações econômicas e pertence à base do sistema do capital, ou seja, ele é essencial à existência do próprio capitalismo. É enfático reiterar que, na perspectiva marxista de Estado, este exerce um papel de assegurar a conservação da classe burguesa, e a exploração da classe trabalhadora, atendendo às classes dominantes do capitalismo que detêm os meios de produção e alienando o trabalhador. Segundo Lenin:
O Estado nasceu da necessidade de refrear os antagonismos de classes, no próprio conflito dessas classes, resulta, em princípio, que o Estado é sempre o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante que, também graças a ele, se toma a classe politicamente dominante e adquire, assim, novos meios de oprimir e explorar a classe dominada. (LENIN, 2010, p.44).
O Estado surge dentro da sociedade em um determinado estágio de desenvolvimento econômico que intensificava as contradições entre as classes. De acordo com Lenin (2010, p. 09), “O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados”.
Desse modo, refletindo Marx, segundo Lenin (2010), as classes sociais, surgem a partir da divisão social do trabalho. Em razão dela, a sociedade se divide em classe dominante e os não detentores dos meios de produção. O estado aparece para representar os interesses da classe dominante e cria, para isso, aparatos que condicionam o desenvolvimento de ideologias e normas reguladores, nomeados por Marx de “infraestruturas”, para assegurar os interesses dos possuidores dos meios de produção.
Tais aparatos, sejam eles, políticos, jurídicos, religiosos, culturais ou econômicos, em nada interessam abolir as contradições de classes, ao contrário, estavam a serviço da classe burguesa e de seus interesses de crescimento dos monopólios, ampliação da especulação e da acumulação do capital.
Nesse sentido, em todos os estágios do sistema capitalista, a classe trabalhadora não conseguiu superar a condição de classe oprimida, nem mesmo nos países onde os trabalhadores se organizaram fervorosamente para lutar contra precarização do trabalho. As mobilizações operarias e as organizações dos movimentos sindicais, pelo mundo, resultaram em conquistas de direitos trabalhistas, lentamente e legalmente instituídos pelo Estado, mas nunca na abolição das contradições entre as classes.
Ao longo de seus estágios, o sistema capitalista para superar suas crises, cria novas roupagens e se reinventa substituindo as antigas condições de exploração por novas formas de opressão e submissão da classe oprimida, traz consigo, os traços e os princípios da perpetuação dos males próprios do seu desenvolvimento, tais como a pobreza, desigual relação entre capital e trabalho, desemprego, perda dos valores humanos, dentre outros males.
À medida que o capitalismo tem seus estágios de desenvolvimento ao longo da história, a concepção de Estado também passou a sofrer modificações, ampliando suas funções, com intervenções na vida econômica e social, tendo que superar algumas limitações que antes era atribuída ao mercado, um Estado mais protetor com finalidade de promover o desenvolvimento continuo e sistemático do capital e atingir o bem estar social.
No interior de mudanças do Estado estavam as políticas sociais, compreendida como estratégicas governamental para enfrentamento dos conflitos sociais, segundo Behring, (2006, p.42) “cujos fundamentos se encontram nas relações de exploração do capital sobre o trabalho”. Nesse sentido, debruçar no estudo sobre o surgimento e os desdobramentos das políticas sociais requer considerar sua múltipla causalidade e correlacionar com suas diversas dimensões.
Do ponto vista histórico, ´é preciso relacionar o surgimento da política social a expressões da questão social que possui papel determinante em sua origem{…}. do ponto de vista econômico, faz-se necessário estabelecer relações da política social com as da economia e seus efeitos para com as condições de produção e reprodução da vida da classe trabalhadora{…}. Do ponto de vista político, preocupa-se em reconhecer e identificar as posições tomadas pelas forças políticas em confronto, desde o papel do Estado até a atuação de grupos que constituem as classes sociais
{…}. (BEHRING, 2006, p.43).
Nesta perspectiva, tanto o fundamento quanto a formatação das políticas sociais são formas de enfrentamento às expressões da questão social no capitalismo. Quanto a atuação do Estado, este se limitava a construir parâmetros de mínimos sociais que supram apenas as provisões básicas de sobrevivência dos sujeitos. Não era permitido ao Estado liberal a interferência nos dispositivos das relações de trabalho, mas representativo na garantia dos interesses do capital, com implantação de normas que facilitasse e enaltecesse um mercado financeiro livre, sem amarras para seu pleno desenvolvimento, para Behring:
Não se trata então, de um estabelecer uma linha evolutiva linear entre Estado liberal e o Estado social, mas sim, chamar atenção para fato de que ambos têm um ponto em comum: o reconhecimento de direitos sem colocar em xeque os fundamentos do capitalismo. (BEHRING, 2006, p. 63).
Neste contexto, observa-se que a base material da questão social está na economia capitalista; sua fundamentação está na contraditória relação de produção entre o capital e o trabalho, e que as principais formas de respostas às expressões da questão social são dadas, segundo Netto (2006), pela intervenção do Estado, através das políticas sociais.
Em um país historicamente desigual como o Brasil, os mínimos sociais têm o significado, no discurso político, assegurar direito ao acesso as necessidades básicas da população em processo de vulnerabilidades social, ou seja, mínimos indispensáveis para provisão de saúde, educação, alimentação, dentre outros. No entanto, quando se fala em acesso básico para sobrevivência na sociedade democrática, percebe-se uma notória dicotomia entre o socialmente produzido e o materialmente acessível, legitimando uma sociedade, que na maioria das vezes, pela lógica histórica das relações de classes, está à margem dela mesma, vivendo com mínimo de cidadania.
Para compreender as nuances desse processo Wood (2010, p.31) pondera que o modo de produção capitalista “não existe em oposição aos fatores sociai, mas sim em função destes”. Sendo assim, a produção está permeada de um caráter político e social, em que o capitalismo faz uso da política para propósitos econômicos e tem no Estado, em suas forças de coerção legítima, seu maior apoiador.
3 CAPITALISMO, ESTADO E POLÍTICA SOCIAL NA CONJUNTURA BRASILEIRA
A consolidação do capitalismo, assim como, o surgimento e desenvolvimento da política social no cenário brasileiro foi bem diferente dos países berços da revolução industrial, ainda que mantendo as características essenciais. O Brasil adaptou-se ao capitalismo a partir da substituição lenta do trabalho escravo pelo trabalhador livre nos moldes do poder autárquico da burguesia brasileira. O novo modelo desenvolvimento surge pela mediação do passado. Logo, o caráter conservador do processo de modernização não rompeu com a diversas condições de atraso do país.
Dessa forma, o processo de desenvolvimento do capitalismo tardio é marcado pela expansão do processo de acumulação, tornando as condições internas do modo de produção capitalista ainda mais agudas. Para Mandel (1986) o capitalismo tardio não tem sentido de uma “nova essência”, mas lança mão de novas formas de uso do trabalho que envolvem mudanças tecnológicas, organizacionais e gerenciais e o Estado está incluído nesse processo como instrumento de mediação política entre o crescimento econômico e as expressões da questão social.
Nesse sentido, as particularidades do surgimento da política social brasileira não acompanham a mesma cronologia histórica dos países de capitalismo centrais, pois as marcas de país escravocrata do século XIX, permeou as décadas iniciais do século XX, com permanência do latifúndio, o papel de país agroexportador, e a continuidade da exclusão da classe trabalhadora dos processos políticos decisórios do país. Nesse cenário, surge uma frágil expressão da luta da classe trabalhadora na busca de reconhecimento de direitos trabalhistas, numa arena de legítimo predomínio de poder latifundiário.
O Brasil passa pela transição de país agrário para o desenvolvimento industrial, e essa transição não foi presidida por uma burguesia com forte orientação direcionada para um desenvolvimento capitalista interno e autônomo. Pelo contrário, o Brasil transitou do poder das oligarquias ao domínio do grande capital, processo esse que aprofundou os laços de dependência em relação ao capital exterior. Segundo Fernandes (1975), no Brasil, a transição do capitalismo competitivo ao monopolista ocorre por caminhos bastante distintos do “modelo universal da democracia burguesa”.
Nesse contexto, a expansão monopolista aprofunda a desarmonia econômica e sociais, e o Estado assume um papel decisivo na unificação dos interesses da classe dominante, consequentemente, uma nítida dissociação entre o Estado e a luta pela constituição de direitos da classe trabalhadora.
Nesse viés, as desigualdades agravam-se e diversificam-se. A crescente exclusão da classe trabalhadora das decisões do Estado, somadas à resistência à exploração de sua força de trabalho pelo capital, desencadeiam uma expressiva luta operaria por melhores condições de trabalho e acesso a direitos básicos como: saúde, educação, moradia, dentre outros.
De fato, ao longo desse processo, a classes trabalhadora brasileira conseguiu se organizar em diversas manifestações pela legitimidade dos direitos sociais, movimentos que ganharam força política e fez com que as autoridades iniciassem o debate sobre a aprovações das leis trabalhistas.
A dimensão política da questão socia evidencia-se na forma de organização e de luta da classe trabalhadora por melhores condições de vida e de trabalho. Como fruto da luta organizada, a classe trabalhadora, mesmo de forma lenta e gradual, conseguiu importantes conquistas na dimensão dos direitos políticos, coletivos e sociais. Lutas que demarcaram não somente a urgência de implantação de políticas sociais, mas, sobretudo, pressionou o Estado a assumir e realizar, segundo Behring, (2006, p.64); “ações sociais de forma mais ampla, planejada, sistematizada e com caráter de obrigatoriedade”.
Desse modo, historicamente, considera-se que no Brasil, as expressões da questão social são determinadas pelas formas estruturais e as particularidades de apropriação/expropriação dos países de capitalismo central, o que reforça a sua posição de subalternidade, enquanto país periférico, dependente econômico e politicamente e de desenvolvimento capitalista tardio.
4 CRISE DO CAPITAL, AJUSTE FISCAL E ESTADO MÍNIMO
É sabido que no capitalismo consolidado, as principais respostas às manifestações da questão social são dadas pelo Estado, e por essa razão, é fundamental vincular as mudanças ocorrida no Estado e na política social no Brasil, não somente ao contexto econômico mundial, como também as transformações estruturais germinadas no capitalismo contemporâneo.
O Brasil passou por grandes mudanças no plano econômico, político e social a partir da década de 1960. A exemplo disso foi a instauração da ditadura militar que reeditou a modernização conservadora, e reconfigurou as expressões da questão social que passa a ser enfrentada de forma repressiva e assistencial pelo Estado, nesse período segundo Behring, (2006, p.136) “houve um forte incremento da política social brasileira”. De fato, foram feitas, no decorrer período militar, várias reformas administrativas, criação de ministérios com institucionalização da previdência, saúde e com menor importância a assistência. Contudo, foi nesse período que se abriu espaço para iniciativa privada, para Behring:
{…} como estratégia de busca de legitimidade, a ditadura militar abria espaços para saúde, previdência e a educação privada, configurando um sistema dual de acesso a políticas sociais/; para quem pode e para quem não pode pagar. Essa é uma das principais herança do regime militar para a política social. (BEHRING, 2006, p.137).
A partir da década de 1970, a economia mundial se viu mergulhada em uma crise sem precedentes, crise própria do sistema capitalista, caracterizada pela superprodução e desemprego, e a linha de produção em massa já dava sinal de esgotamento. O Estado de bem- estar que implementava políticas sociais, que arcava com os custos da força de trabalho, já fazia parte de um sistema de proteção social em decadência.
Já no Brasil, o problema do endividamento externo acarretou em dificuldades quase insuperável para o desenvolvimento econômico e social do país, uma vez que, a dívida externa se tornou pública, e o Estado optou, como alternativa para sair da crise, segundo Behring, (2006, p.63) “emitir títulos do Tesouro Nacional a juros altos, o que intensificou o processo inflacionário” endividando o país de forma incisiva e duradoura.
Com a inflação em alta, e a fragilidade da política econômica, as ideias liberais começaram a emergir aceleradamente, propondo atuação do Estado mínimo, ajuste fiscal, o corte dos gastos públicos e as privatizações. Assim, a abertura financeira e comercial se tornou principal aposta do governo para salvar a economia.
É nesse período de instabilidade e crise econômica da década de 1980, que ganha força o movimento democrático, composto por vários segmentos profissionais e da sociedade, em torno do projeto de Estado de direito, marcadamente discutido pelo debate sobre o papel do Estado e a necessidade de construir um sistema seguridade social no Brasil, calçado pelo tripé: saúde, previdência e assistência social.
Sem dúvidas, a Constituição Federal de 1988 representou avanços sem precedentes em termos de direitos sociais, humanos e políticos. No entanto, a década de 1990, foi período marcado pela difusão das estratégias implantadas do capital para responder às crises do capitalismo contemporâneo e retornar os níveis elevados do crescimento financeiro. Configurando o que Behring (2006) denomina de “reação burguesa”.
Nesse período a reforma do Estado, aparece como condição imprescindível, defendida pelo governo, para retomada do crescimento econômico e a melhoria do cenário social. Além, de ser parte fundamental das estratégias do capital para recuperar e manter suas altas taxas de lucros. Nesse viés, a agenda reformista propõe um conjunto medidas ditas essenciais para o capital, dentre elas, destacam-se o ajuste fiscal, a geração de superávit primário para saldar juros da dívida pública, maior abertura ao capital estrangeiro, além da desregulamentação das relações de trabalho e um forte desmoronamento da política social, em especial, a seguridade social.
Nesse contexto, o orçamento da seguridade social foi um dos mais atingidos, em relação aos cortes nos gastos públicos, para Behring:
Esse mecanismo de manipulação orçamentaria, que transfere recursos do orçamento da seguridade social para orçamento fiscal, tem sido nefasto, pois permite transferência de recursos públicos crescente para o mercado financeiro, por meio do pagamento de serviços dívida pública. (BEHRING, 2006, p 166).
Dessa forma, esse crescente discurso da política econômica, em nome dos ajustes fiscais, expropria recursos das políticas sociais e investe na reprodução do capital, assegurando a participação do Estado em sua reprodução, por meio da alocação recursos do fundo público para pagamento dos juros da dívida pública. O que chama bastante atenção para raciocínio de Behring:
A necessidade do crescimento do fundo público para garantia do processo de desenvolvimento das forças produtivas evidencia um esgotamento de uma suposta autorreprodução automática do capital, no contexto do capitalismo maduro. (BEHRING, 2006, p.176).
De modo geral, o século XXI se inicia com profundas transformações na política social, em especial, o desmonte da seguridade social como sistema de direito público, como designou Behring (2006) uma “contra-reforma” de caráter profundamente destrutivo com relação ao pouco que se havia avançado na CF 1988.
De fato, conseguimos grandes avanços com a Carta Magna de 1988, com a conquista de direitos sociais instituídos em lei, pois pela primeira vez se construía um sistema de proteção integral, como política social afiançadora de direitos para todos, a exemplo o tripe constitutivo da seguridade social.
Ademais, o discurso ideológico bastante eloquente do capital nos faz retroceder ao passado e lembrar que as parcas conquistas sociais são frutos da luta coletiva dos sujeitos na história pela emancipação política, e que estamos muito distantes de qualquer avanço no que diz respeito ao princípio da materialidade da emancipação humana.
5 ESTADO E AS RAÍZES SOCIAIS DA VIOLÊNCIA
Sabemos que a violência sempre fez parte da vida em sociedade, algumas causas da violência são facilmente constatadas no cotidiano, outras estão profundamente enraizadas no tecido social, cultural e econômico da vida humana.
Atrelados a história da existência humana estão muitos atos violentos de submissão de relações de classe, de manutenção do poder pela classe dominante, pelo discurso de defesa de manutenção da ordem social pacífica. Juntamente com a violência, sempre houve sistemas institucionais, religiosos, filosóficos e legais e que foram desenvolvidos a fim de prevenir, limitar ou reprimi-la.
É notório ressaltar que as manifestações da violência, configurando-se de maneiras diferentes em cada contexto histórico, a depender das necessidades expansivas das forças produtivas em cada modo de produção inerente. Marx já afirmava que “a violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova; ela mesma é uma potência econômica” (Marx, 1985, tomo II, p. 286).
A sociedade é regida pela contradição de um sistema estruturado, que, por sua vez, é o produto das relações sociais de classes. De tempos em tempos, certas soluções são engendradas pela necessidade material de revolucionar às condições de vida dos sujeitos, e assim, surge novas instituições, novas leis, novas ordens.
Nesse sentido, o próprio sistema capitalista é dinâmico e temporal, apesar da estrutura sistêmica, não é definitivo, portanto, as necessidades que este carrega no interior de suas próprias contradições, resultante do próprio processo de desenvolvimento do capitalismo, impetra a formação de um Estado interventor, uma dinâmica própria à formação do Estado burguês-capitalista.
A ideologia política burguesa procura apresentar o Estado como uma função necessária para mediação da sociabilidade humana, uma força que nasce do próprio sistema ideológico burguês que se coloca acima da sociedade para manter os conflitos de classes nos limites da ordem. Nas palavras de Engels, o Estado é:
(…)antes de tudo, uma força que sai da sociedade e se volta contra ela como um poder estranho que a subjuga, um poder que é obrigado a se revestir de aparatos armados, de prisões e de um ordenamento jurídico que legitime a opressão de uma classe sobre outra. (ENGELS,1975, p.34)
Os princípios pelos os quais nasce o Estado, é o mesmo que oculta seu próprio fundamento, uma vez que, para garantir-se como sistema hegemônico, o capitalismo precisa suprimir toda possibilidade de articulação de resistências ao modo de produção e acumulo do capital, para Lenin (2010, p.12) o Estado “é o produto e a manifestação do carácter inconciliável das contradições de classes”.
Nesse contexto, o Estado é um instrumento legal de manutenção da ordem, que se utiliza da força da violência, não somente para conter as expressões sociais, mas como forma de opressão daqueles que se manifestam opositores ao sistema de exploração da força de trabalho e da reprodução ampliada do capital.
Dessa maneira, o Estado detém o monopólio da violência legal, e em nome da ordem, a organização burocrática favoreceram o desenvolvimento do capital em detrimento das necessidades humanas e sociais. A verdade é que o Estado capitalista nunca abriu mão dos mecanismos violentos capazes de subalternizar e oprimir as classes que resiste ao sistema de exploração da força trabalho e da acumulação ampliada do capital. A teoria do Estado de Gramsci (1980) revela que este é produto das interconexões entre sociedade civil e sociedade política num permanente movimento de opressão e equilíbrio relativo entre consenso e coerção.
Nesse sentido, discutindo a natureza contraditória do Estado, Marx assevera que “o poder executivo do Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia” (Marx, 1998, p. 13). Ou seja, o surgimento de um Estado vinculado aos interesses da classe burguesa e as necessidades de seu cerceamento para hegemonia das classes dominantes, a qual o toma mais como instrumento de controle da classe trabalhadora.
O Estado emerge de dentro da sociedade em um determinado estágio de desenvolvimento econômico que intensificava as contradições entre as classes. De acordo com Lenin:
O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados”, Estado este, que ainda segundo o autor precisa ser superado, enquanto regulador da vida dos indivíduos, tornando a classe trabalhadora como protagonista desse processo. (LENIN,1986, p. 09).
Diante do exposto, toda e qualquer reflexão sobre os aspectos e causalidades da violência conjectura o reconhecimento da complexidade que envolve a problemática, pois se trata de uma realidade complexa e plural, que necessita ser conhecida e conceitualmente fundamentada.
6 VIOLÊNCIA EM SUA COMPLEXIDADE SOCIAL E SEUS IMPACTOS NA SAÚDE PÚBLICA
A violência possui uma historicidade, assim como as teorias e discursos que se propõem explicá-la. Interpretar as suas diversas formas teóricas metodológicas pressupõem a
interpretação de suas pluricausalidades que envolvem necessidades biológicas, psicológicas, históricas, políticas, econômicas, culturais e sociais. E por considerar que a violência tem múltiplas dimensões, deve-se refletir a relação dialética entre indivíduo e sociedade. A luz da interpretação de Minayo:
[…] Não se conhece nenhuma sociedade totalmente isenta de violência. Ela consiste no uso da força, do poder e de privilégios para dominar, submeter e provocar danos a outros: indivíduos, grupos e coletividades. Há sociedades mais violentas do que outras, o que evidencia o peso da Cultura na forma de solução de conflitos (MINAYO, 2006, p.22).
Em 2002, a Organização Mundial de Saúde – OMS se pronunciou de forma mais expressiva sobre a classificação do fenômeno da violência, lançando o Relatório mundial sobre violência e saúde, no qual caracteriza o problema como:
(…) Uso intencional da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (OMS, 2002, p. 5).
A violência é um fato humano e social, que persiste no tempo que esteve e está presente em toda história da humanidade, seja no uso do poder para dominar, ou da força que submete e provoca danos aos indivíduos e sociedade como todos.
Nesse sentido, a violência não se classifica por cor, raça, etnia ou gênero, ela abrange todas as classes e os segmentos sociais, muito embora, algumas de suas expressões sejam mais típicas dos pobres, e outras, da classe média e dos ricos. É impreciso concluir que a classe menos favorecida é a mais violenta ou que provoca mais violência, muitas vezes, é a que mais sofre ou é mais vítima.
Ser pobre não significa ser violento; “[…] prova disso é que, se fosse o caso, os estados, as cidades e os bairros Brasileiros mais pobres estariam em pé de guerra e quase metade da População viveria em estado de revolta contra os mais ricos. Mas isso não ocorre” (MINAYO, 2002, p.24).
Historicamente, do ponto de vista da sociedade, violento e sempre o outro, mas a violência está implícita dentro de cada ser humano que vive na coletividade. Refletindo Minayo (2006), mesmo que a sociedade praticasse de forma absoluta os direitos e os deveres humanos e sociais de forma ampla, se não houvesse, do ponto de vista individual, o reconhecimento da cidadania do outro, de tolerância, de capacidade de negociação e de solução de conflitos pela discussão e pelo diálogo, certamente, existiria violência, haja vista que, toda e qualquer forma de sociedade é fruto da convivência humana, das relações sociais, coletivas e individuais.
Desse modo, é incontestável que a questão social é resultante da contraditória relação capital x trabalho, fruto da exploração da força de trabalho, e que a violência social se configura na sua expressão mais gritante, mas não a única.
A violência social está presente em todos os segmentos da sociedade, manifestando-se de diversas formas, e gerando impactos e consequências sociais degradantes. É um fato universal que ronda todas as organizações societárias, é gerada pela fonte da marginalidade social, consequência de diversos fatores que envolvem as relações sociais e de poder. As expressões da violência encontram-se presentes em toda parte, todo cidadão de alguma forma está vulnerável a vivenciá-la de forma direita ou indireta, e que atualmente caminha a passos largos, tornando-se quase incontrolável.
Nas duas últimas décadas, o crescimento da violência no Brasil vem afetando toda a sociedade. Esse crescimento fomenta a discussão de que o país estaria passando por uma nova catástrofe social e por um dos mais graves problemas de saúde pública a ser enfrentado. Essa argumentação fundamenta-se não somente nas letalidades dos casos, mas no aumento das diversas formas de violências e nos reflexos com que esse fenômeno passou ter nos cenários da vida individual e coletiva da sociedade, na deterioração da qualidade de vida e nas condições de saúde da população.
O fenômeno da violência acompanha todo o trajeto percorrido pela sociabilidade humana desde os primórdios, configurando-se de maneiras diferentes em cada contexto histórico, a depender das necessidades expansivas das forças produtivas em cada modo de produção específico. Marx já afirmava que “a violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova; ela mesma é uma potência econômica” (MARX, 1985, tomo II, p. 286).
Com a restruturação produtiva do capital e as transformações no mundo do trabalho e das relações sociais, a violência foi ganhando novos conceitos e tipologias, e passou a traduzir problemas sociais pouco discutido. Expressões essas que se evidenciam no sistema de saúde com aumento de gastos com emergência, assistência, tratamento, cuidados e reabilitação, serviços muito mais onerosos que a maioria dos procedimentos convencionais.
Essa tragédia traz implicações tanto na alta demanda por atendimentos no sistema de saúde, como também mostra a frágil atuação do Estado com investimentos em políticas sociais de prevenção e tratamentos de agravos. Entretanto, não mostra somente isso, revela que a solução para a questão da violência precisa, urgentemente, envolver os mais diversos setores da sociedade, não só a segurança pública e um judiciário eficiente, mas demanda com
profundidade e extensão melhorias no sistema educacional, saúde, habitacional, oportunidades de emprego, dentre outros fatores. Requer compromisso do Estado com política pública intersetorializada, com uma participação maior da sociedade nos fóruns e nas discussões desse fenômeno de abrangência nacional.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da história o Estado capitalista vem se apresentando de distintas formas, com propósito de acompanhar a evolução do mundo do capital. Para as expressões da questão social, o Estado, em variadas conjunturas, apresentou diferentes respostas que foram desde a repressão até a implantação de políticas sociais que permitiram visualizá-lo como concepção que abrange algum compromisso com o aspecto mais coletivo. No entanto, sem perder o caráter, essencialmente, implícito de poder político a serviço da burguesia e dos interesses do capital.
A proteção social, de modo isolado, não pode ser vista como um instrumento de libertação, mas pode e deve fortalecer-se em um espaço de lutas para aquilo que se propõem em princípio: garantias de direitos e melhores condições de vida.
Dessa maneira, não podemos desconsiderar que a violência atravessa as mais variadas formas de sociedade, se fazendo presente em todas as conjunturas, desde a transformação do homem pelo trabalho em tempos primórdios, como também, pelo processo de construção e reestruturação do sistema capitalista que tem por fundamento a ampliada do capital.
Em suma, que a luta de classe por emancipação política não pode, portanto, ser considerada um fim, mas um meio que permita vislumbrar a possibilidade de uma sociedade liberta e humanamente emancipada.
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1 Graduada em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN. Aluna do Curso Mestrado em Serviço Social e Direitos Sociais-UERN. E-mail:freitasluciene069@gmail.com