REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10250131464
Laura Ferreira Dias
Renan Monnerat Spinelli
Beatriz Bezerra Santos Damasceno Ferreira
Juliana Jones de Souza Vaz
Namir Santos Moreira
1. RESUMO
A esporotricose é uma micose subcutânea de evolução subaguda à crônica, causada por fungos dimórficos e geofílicos do complexo Sporothrix schenckii e mais 5 espécies. A transmissão zoonótica vem recebendo destaque, tendo os felinos domésticos um importante papel epidemiológico na doença. Este trabalho tem como objetivo descrever o caso clínico de um felino, fêmea, 2 anos de idade, S.R.D., na região metropolitana do estado do Rio de Janeiro, onde foi detectada a presença de anticorpos para leishmaniose e cultura positiva para esporotricose. Tal conjunção de fatores mostrou-se um desafio à clínica devido à complexidade dos sintomas e a dificuldade de ajuste de protocolos medicamentosos. Durante todo o longo período de tratamento foram realizados diversos exames laboratoriais (hemogramas, biopsias, raspados de pele, ultrassonografias, raios-x, cultura e antibiogramas, perfil renal e hepático) para dar suporte ao veterinário na eleição da terapêutica a ser empregada bem como no ajuste da dosagem.
TERMOS DE INDEXAÇÃO: Felis catus domesticus, dermatopatia, Leishmaniose, micoses, Sporothrix e zoonoses
2. INTRODUÇÃO
2.1 ESPOROTRICOSE
A esporotricose é uma infecção acometida por fungos de complexidade zoonótica; caracterizada inicialmente como uma doença ocupacional, popularmente conhecida como “Doença do jardineiro” ou “Doença do Florista” podendo atingir profissionais que tenham contato com microrganismo ou com portadores da enfermidade. Possui distribuição mundial, comumente isolado em regiões de clima quente e úmido. Detectado em solos, matéria orgânica vegetal e em decomposição, cascas de árvores, espinhos de plantas ou em qualquer objeto contaminado pelo fungo (Barros & Paes, 2011). Apresenta prevalência, em regiões tropicais e subtropicais com predominância na África do Sul, Brasil, Peru, Colômbia, Guatemala, México e Estados Unidos (Macedo-Sâles et al., 2018; Romeu et al, 2022). A esporotricose animal, naturalmente adquirida, é rara, embora vários animais sejam considerados susceptíveis tais como cavalo, cão, gato, rato, camundongo, muar, tatu, porco, camelo, chimpanzé e boi. (Marques et al, 1993)
Atualmente existem mais de seis espécies patogênicas dessa enfermidade, a qual, inicialmente, presumiam o Sporothrix Schenckii como o único agente causador. Porém, com o sequenciamento de genes, foi observado que o Sporothrix Schenckii é um complexo, composto das seguintes espécies: S. albicans, S. globosa, S. luriei, S. Mexicana e Sporothrix brasiliensi, sendo essa última, identificada no Brasil (Macêdo et al., 2018; Romeu et al, 2022). O Sporothrix Schenckii é um fungo anamórfico e dimórfico. Podendo em certos casos apresentar em forma sexuada, com crescimento predominante em temperatura 26°C e 27°C e umidade entre 92 e 100% (Romeu et al, 2022).
Neste contexto, devido aos felinos serem notívagos, peridomiciliares, possuírem hábitos de lamberem uns aos outros, de brigas por territórios e por fêmeas, há a transmissão do fungo, comumente, armazenado em unhas e saliva. Sendo comumente encontrado, em forma de micelas filamentosas, no meio ambiente e, em forma de leveduras, nas lesões de felinos contaminados. No âmbito epidemiológico, destaca-se os machos, sem raça definida, não castrados, com livre acesso à rua e com média de 24 meses de idade como os principais transmissores e propagadores da infecção (Pires, 2017; Romeu et al, 2022).
A via de infecção ocorre pela pele, na forma de conídios e hifas e, uma vez implantado no tecido do hospedeiro, já na forma de leveduras, ocasiona infecções cutâneas primárias, atingindo as vias linfáticas. Posteriormente, o animal infectado, em contato direto com o homem, poderá contaminá-lo através de arranhaduras e mordeduras ou em contato com as lesões ulcerativas pelo Sporothrix sp. O grau de infecção estará diretamente relacionado com a quantidade de células fúngicas leveduriformes contidas no ato da inoculação (Almeida et al., 2018; Romeu et al, 2022).
O diagnóstico definitivo da doença deve ser realizado em clínica médica veterinária, mediante profissionais experientes, por intermédio de uma anamnese cautelosa, que combina dados epidemiológicos locais e análises laboratoriais, como por exemplo o exame citopatológico (Pereira et al., 2011, Jericó et al., 2015). Cabe ressaltar que as lesões de esporotricose são de difícil diferenciação com relação às demais dermatopatias, visto que apresentam características semelhantes a arranhões (Larsson et al., 2011) e às dermatopatias, abscessos bacterianos, leishmaniose tegumentar, nocardiose, dermatites eosinofilias, criptococose e histoplasmoses. Portanto, o diagnóstico diferencial da esporotricose é executado pelo conhecimento clínico da doença, visto que também configura-se similar à neoplasias como: carcinoma espinocelular, linfoma cutâneo e fibrossarcoma cutâneo, sendo, por isso, essencial a realização do exame histopatológico (Nuñez et al., 2019).
O diagnóstico é realizado através de exames presuntivos associados aos complementares como a citologia, exame de cultura micológica, histopatologia, provas sorológicas, testes intradérmicos, inoculação em animais e na reação em cadeia de polimerase (Larsson 2010). No entanto, a cultura fúngica é o método definitivo para o diagnóstico da esporotricose (Almeida et al, 2019).
O itraconazol é o fármaco de escolha para tratamento de felinos com esporotricose, pois apresenta menos efeitos adversos na espécie estudada quando comparado aos demais agentes antifúngicos (Bustamante & Campos 2001, Schubach et al. 2004, Rosser & Dunstan 2006, Pereira et al. 2010). O uso do medicamento deve estender-se por até 30 dias após a cura clínica (Nobre et al. 2002, Nunes & Escosteguy 2005), (Almeida et al, 2019).
2.2 LEISHMANIOSE
A Leishmaniose é um complexo de doenças causadas pelo protozoário do gênero Leishmania, que é transmitido pela picada de fêmeas de flebotomíneos infectadas. A doença apresenta-se em três formas principais: visceral, cutânea e mucocutânea (OMS, 2017). Souza Silva et al, 2020. O primeiro relato de infecção por Leishmania spp. em gatos domésticos (Felis catus) foi publicada há mais de um século atrás (Sergent et al., 1912), e inicialmente acreditou-se que os gatos eram resistentes a Leishmania spp. infecção (Pennisi et al., 2015).
A Leishmaniose é uma enfermidade zoonótica de grande importância para a saúde pública, sendo considerada endêmica em 5 continentes (MARCONDES; ROSSI, 2013; PIRAJÁ et al. 2013). A afecção é causada por protozoários do gênero Leishmania, podendo se manifestar nas formas cutânea ou visceral (TILLEY, 2015). O protozoário é transmitido por vetores flebotomíneos, sendo que no Brasil o gênero Lutzomyia é o principal envolvido na transmissão, e apresenta como hospedeiros várias espécies de animais silvestres, sinantrópicos e domésticos, como o felino (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2017).
Embora a doença clínica seja relativamente incomum, os sinais clínicos mais frequentes da doença felina leishmaniose (FeL) são lesões cutâneas e/ou mucocutâneas e linfadenomegalias causadas por espécies como Leishmania mexicana, L. venezuelensis,L. braziliensis, L. amazonensis e L. infantum (Bonfante-Garrido et al., 1996; Souza et al., 2009; Pocholle et al., 2012; Pennisi et al., 2015).
Os principais achados clínicos nos gatos com leishmaniose foram linfadenomegalia (65%), alopecia (55%), lesões ulcerativas na pele e emagrecimento (40%), nódulos cutâneos (25%), redução significativa de hemácias (p=0,0005) e hematócrito (p=0,0007), hiperplasia no baço 4/5(80%), presença de Leishmania no baço 2/5(40%), hepatite 3/5(60%), degeneração hepática 4/5(80%) e nefropatia inflamatória 3/5(60%)(BATISTA, J. F. el al. 2023)
O Brasil é o país da América Latina com o maior número de casos anuais registrados, sendo a região Nordeste considerada a principal zona endêmica de leishmaniose visceral nas Américas (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2017).Estima-se que a ocorrência de leishmaniose felina no Brasil tenha aumentado em até 8%, considerando inquéritos sorológicos e moleculares (Asfaram et al., 2019), e até o momento, três Leishmania spp. foram relatados casos de infecção em gatos no país: Leishmania braziliensis, Leishmania amazonensis e Leishmania infantum (Savani et al., 2004; Schubach et al., 2004; Souza et al., 2005; Nascimento et al., 2022), sendo este último o mais comumente descrito (Nascimento et al., 2022).
A leishmaniose visceral (LV) é uma zoonose de grande impacto na saúde pública. Tem sido apontada como doença reemergente em evidente processo de transição epidemiológica, com aumento de casos nas áreas endêmicas e a expansão geográfica para estados da região Sul do Brasil, em franco processo de urbanização (CAMPRIGHER, V. M. et al. 2019). Inquéritos epidemiológicos realizados em vários países têm demonstrado taxas preocupantes de infecção nos gatos domésticos (Cardoso et al., 2010; Garrido, 2012; Chatzis et al., 2014).
Embora ainda não tenha sido alcançado um consenso sobre o papel dos felinos no ciclo epidemiológico da LV (Silveira et al., 2015; Pennisi & Persichetti, 2018; Nascimento et al., 2022), visto os estudos de xenodiagnóstico que demonstraram que os gatos podem ser infecciosos para vetores competentes de LV (Maroli et al., 2007; Silva et al., 2010), esses animais têm sido sugeridos como reservatório secundário do parasita em áreas endêmicas de LV, tendo assim um papel importante na epidemiologia da zoonose (Pennisi et al., 2015; Silveira et al. , 2015; Pennisi & Persichetti, 2018; Asfaram et al., 2019; Nascimento et al., 2022).
O diagnóstico é realizado por técnicas laboratoriais, imunológicas e moleculares, como identificação do parasito em esfregaços sanguíneos, Ensaio Imunoenzimático (ELISA), Reação de Imunofluorescência Indireta (RIFI) e Reação de Cadeia em Polimerase (PCR) em material de biópsia e punção aspirativa de tecidos ou medula óssea (FONSECA, 2013; PIRAJÁ et al. 2013). Apenas um produto foi regulamentado e autorizado pelo Ministério da Saúde para o tratamento da leishmaniose em animais domésticos: o Milteforan™ (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA, 2020).
Cabe ressaltar que, mesmo após cura clínica, os animais permanecem como reservatório do parasito, sendo motivo para o Ministério da Saúde não recomendar o tratamento em animais sororreagentes para leishmaniose (BRASIL, 2018), sendo confirmado por xenodiagnóstico que felinos positivos para leishmaniose servem como fonte de infecção para o vetor, com taxas semelhantes às obtidas em cães sintomáticos submetidos às mesmas condições (MAROLI et al., 2007). A eutanásia de animais positivos consta como parte integrante das políticas públicas para o controle da leishmaniose na legislação federal vigente: Decreto nº 51.838, de 14 de março de 1963, art. 3º, c, e art 9º (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA, 2020).
Assim, a importância da Leishmania spp. em gatos tem recebido cada vez mais atenção, especialmente considerando o grande número de gatos ocupando espaços anteriormente ocupados por cães nos domicílios nas últimas décadas (Otranto, 2015; Pennisi, 2015).
3. CONSIDERAÇÕES ÉTICAS
Houve autorização do tutor para o relato e publicação do caso, bem como o consentimento e doação das fotos expostas no presente trabalho.
RELATO DE CASO
Uma felina, fêmea, castrada, pelagem amarela, de 2 anos de idade, foi atendida em um hospital veterinário na região oceânica de Niterói, em Itaipu. O animal havia sido atacado por um cão, e apresentava quadro álgico intenso, febre e lesões em região submandibular, estendendo-se até a região torácica ventral, de forma que optou-se pela internação. Após melhora do quadro, recebeu alta, porém, 10 dias depois, começou a apresentar lesões úmidas, circulares, piogranulomatosas, com presença de crostas, áreas de alopecia na pata dianteira esquerda e nas regiões do histórico de mordedura, além de mucosas ictéricas e quadro de anorexia.
Mediante o agravamento clínico do animal, a felina permaneceu internada e foram solicitados novos exames, sendo eles: SNAP test para vírus da imunodeficiência e leucemia felina (FIV e FeLV), hemograma, bioquímica sérica, citologia e ultrassonografia abdominal total. A citologia apresentou resultado compatível com infecção por esporotricose e a ultrassonografia abdominal sugestiva de processo degenerativo gorduroso, mais especificamente, esteatose hepática. Igualmente foram constatadas alterações bioquímicas em ALT, AST e GGT, além de SNAP test negativo para FIV e FeLV.
O animal foi medicado com analgesia, suporte hepático, Itraconazol de 100 mg e Iodeto de Potássio 14 mg via oral. Durante o tratamento, foi constatada melhora significativa do quadro hepático, com regressão do quadro ictérico e taxas referenciais de ALT, GGT e AST dentro do padrão de normalidade. Entretanto, no que diz respeito ao aspecto cutâneo, ainda após 60 dias de administração de antifúngico, o animal apresentava-se mais debilitado e com maiores áreas de lesões compatíveis com o agravamento da infecção fúngica. Foi realizada uma nova sorologia para Esporotricose, constatando titulação de 1:800 e exame histopatológico, ambos reiterando a presença intensa do fungo. Ademais, foram realizados outros exames sob suspeita de doenças autoimunes, síndromes ou outros agentes infecciosos associados ao caso, incluindo a investigação de leishmaniose, devido ao seu relevante aspecto epidemiológico na região Oceânica de Niterói, Rio de Janeiro. A sorologia para Leishmaniose através do método ELISA e RIFI, reagente com titulação de 1/40.
O estado clínico da felina agravou-se com estados febris, anorexia, letargia, mucosas hipocoradas e quadros dispneicos, com o surgimento de novas lesões de mesmo padrão descrito acima em mucosa nasal. Visto isso, visando reduzir o processo inflamatório instaurado, optou-se pelo uso de anti-inflamatórios esteroidais. Logo, combinou-se o uso de Prednisolona 2 mg/kg durante 10 dias com o Itraconazol de 100mg, efetuando posteriormente, o período de desmame da medicação anti-inflamatória.
Cabe ressaltar que, com apenas 3 dias de uso da Prednisolona, o animal apresentava formação de tecido de granulação, áreas de crosta, redução da extensão da maioria das lesões e menor produção de exsudato, além de apresentar apetite regular e comportamento responsivo. Após o período de desmame, as lesões em patas, dígitos e peitoral já haviam cicatrizado, restando apenas a lesão circular em mucosa nasal.
Portanto, foi ministrado mais 2 meses de Itraconazol e o animal evoluiu para a alta clínica sem mais intercorrências. Cabe ressaltar que após a cicatrização de todas as lesões, a medicação foi mantida por mais 30 dias. Visto isso, o objetivo deste relato é promover a reflexão acerca da complexidade e da individualidade de cada paciente, sendo essencial a realização de diferentes exames para uma avaliação fidedigna e profunda do caso, além da busca pelo tratamento mais eficaz e seguro.
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