EROSÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA: ENTRE DEMOCRACIA MILITANTE E FAKE NEWS ELEITORAL

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10249181258


Álvaro Ricardo de Sousa Cruz1
Gilberto Marcos Martins2


RESUMO

A democracia militante está baseada na premissa de que, diante de ataques à sua própria existência, os regimes democráticos têm legitimidade para acionar medidas restritivas de direitos de grupos ou indivíduos movidos por projetos autoritários. A centralidade crescente ocupada pelo Supremo Tribunal Federal, revela uma pretensa jurisprudência ativista. Em que pese uma atuação que revela um espírito de constitucionalismo abusivo, a Corte, soube utilizar dos mecanismos da democracia militante para impedir ataques ao regime democrático. A proliferação de fake news com aptidão para contaminar o espaço público e influir na vontade dos eleitores no processo eleitoral de 2022, fez com que o TSE editasse uma Resolução visando inibir a propagação de fake news. O caso foi levado ao Supremo Tribunal Federal, através da ADI 7.261 que considerou constitucional a referida Resolução. Assim, a partir da teoria Karl Loewenstein, busca-se analisar a conjuntura que justificou a decisão da Corte.

PALAVRAS-CHAVE: Democracia Militante. Constitucionalismo Abusivo. Fake News. Supremo Tribunal Federal

ABSTRACT

Militant democracy is based on the premise that, faced with attacks on their own existence, democratic regimes have the legitimacy to take measures restricting the rights of groups or individuals driven by authoritarian projects. The growing centrality accelerated by the Federal Supreme Court reveals an activist pretension. Despite an action that reveals a spirit of abusive constitutionalism, the Court could use the mechanisms of militant democracy to prevent attacks on the democratic regime. The regulation of fake news to the exclusion of contaminating public space and influencing the will of participants in the 2022 electoral process led the TSE to issue a resolution temporarily inhibiting the spread of fake news. The case was taken to the Federal Supreme Court, through ADI 7,261, which is considered the aforementioned Resolution constitutionally. Thus, based on Karl Loewenstein’s theory, we seek to analyze the situation that justified the Court’s decision.

KEYWORDS: Militant Democracy. Abusive Constitutionalism. Fake News. Federal Supreme Court. 

1.          INTRODUÇÃO

A segunda metade do século XX marcou o início de um processo de revigoramento e expansão da democracia. Mas esse processo tem sido marcado por ameaças de variadas espécies. Populismo, racismo, xenofobia, medidas iliberais e neoconservadorismo têm marcado presença como elementos de resistência aos postulados da democracia.

Esse cenário reacendeu o debate no sentido de que a democracia deve se defender de seus inimigos fazendo uso de instrumentos constitucionais que possibilitem a exclusão do processo democrático daqueles que se voltam contra ele. A experiência brasileira, especialmente nessa última década, tem revelado um processo de erosão democrática e constitucional que alçou o Supremo Tribunal Federal – STF- a um protagonismo impróprio e inusual. Isso porque a intervenção judicial se caracteriza pela prevenção e não pela reação como tem acontecido.

A centralidade crescente ocupada pelo STF ao longo, das últimas décadas da vida político-institucional brasileira,  trouxe à lume uma pretensa jurisprudência ativista, de natureza progressista e garantista. Em que pese uma atuação que revela um espírito de constitucionalismo abusivo, a Corte, especialmente no momento em que a democracia  brasileira passou por seu maior teste de resistência, soube utilizar dos mecanismos da democracia militante para impedir ataques deletérios à democracia.

Nas últimas décadas tornou-se notória a crise vivenciada pela democracia brasileira. O que deu margem para o uso da expressão erosão constitucional. Diante da emergência de práticas iliberais ocorreu uma expansão atípica de competências do Supremo Tribunal Federal, que em razão do ativismo acabou por gerar desconfiança em relação aos seus atos. O que tem acontecido no Brasil faz parte de uma conjuntura maior de retrocesso democrático vivenciado por muitas democracias do ocidente.

O propósito deste artigo é analisar a decisão proferida na ADI 7.261.  O quadro fático, que sedimentou a atuação da Corte, deu-se a partir da proliferação de fake news com aptidão para contaminar o espaço público e influir indevidamente na vontade dos eleitores. O que fez com que o TSE editasse uma Resolução visando inibir a propagação de fake news, evitando, que a desinformação pudesse comprometer a escolha consciente dos eleitores nas eleições de 2022. O caso foi levado ao STF, que considerou constitucional a Resolução 23.714/2022 do TSE, mediante a interpretação de que a mesma não configura censura, e tampouco exorbita a competência normativa do Tribunal. 

O método utilizado será o indutivo-dedutivo, a partir de revisão bibliográfica e  arcabouço jurisprudencial do STF. Na perspectiva da teoria da democracia militante, o objetivo é analisar o pressuposto segundo o qual, a Corte em defesa da democracia, entende, que nenhum direito fundamental é absoluto. De modo que procura-se mostrar que a decisão foi legítima, enquanto jurisprudência de contexto, pois evitou que o uso de institutos democráticos pudessem subverter a democracia. 

Trata-se de uma decisão importante, no contexto de outras tantas decisões proferidas pela Corte em seu papel de militância democrática. No entanto, alguns questionamentos são inevitáveis quando se analisa a decisão, a saber: quais são os impactos da utilização do instituto da democracia militante por parte do STF? A Corte está atuando no campo do constitucionalismo abusivo  ou da democracia militante? A democracia como autocorreção abre caminho para a falta de autocontenção? A hipótese a ser defendida é a de que, a curto prazo, a decisão foi acertada, pois garantiu, ou pelo menos minimizou o impacto das fake news no processo eleitoral de 2022. No entanto, a médio e longo prazo, os efeitos de uma atuação responsiva e de autodefesa podem pavimentar o caminho para a falta de autocontenção, dando à democracia militante o espírito de constitucionalismo abusivo. 

O prognóstico ainda é incerto, pois pautado por uma jurisprudência de contexto, mas a longo prazo, os resultados poderão agravar ainda mais o processo de erosão democrática, onde a vontade de ter vontade poderá vir a ser conduzida por uma Corte Constitucional. Embora não seja o objeto deste artigo, mas a tradicional divisão de poderes está em questionamento, o caminho pode ser o diálogo interinstitucional.

2.         A IMAGEM DISTORCIDA: O PARADOXO DA DEMOCRACIA MILITANTE 

A expressão democracia militante é associada ao constitucionalista alemão Karl Loewenstein, que, pouco após a ascensão do Partido Nazista na Alemanha, escreveu em 1937, dois artigos intitulados “Militant Democracy and fundamental Rights”, argumentando que as técnicas fascistas haviam obtido êxito em razão das condições oferecidas pelas instituições democráticas.

Essas técnicas fascistas só poderiam ser vitoriosas sob as condições extraordinárias oferecidas pelas instituições democráticas. O seu sucesso baseia-se na sua perfeita adaptação à democracia. A democracia e a tolerância democrática têm sido utilizadas para a sua própria destruição. Ao abrigo dos direitos fundamentais e do Estado de Direito, a máquina antidemocrática poderia ser construída e posta em funcionamento legalmente. (LOEWENTEIN, 1937a, p . 423)[1]

Loewenstein (1937a, p.424) argumenta que a democracia foi incapaz de impedir seus opositores de fazerem uso de instrumentos democráticos contra ela própria. Aos fascistas foram concedidas todas as oportunidades e garantias das instituições democráticas. Permitiu-se o surgimento e  ascensão de um movimento antidemocrático, no âmbito do formalismo exagerado de um Estado de Direito, assentado na igualdade formal. Esse formalismo, impossibilitou excluir do jogo os que negavam a própria existência da democracia. O fundamentalismo democrático mostrava-se incapaz de combater o emocionalismo fascista, isso porque a democracia representa o fair play para os direitos fundamentais.

Os escrúpulos constitucionais já não podem impedir restrições aos fundamentos democráticos, com o objetivo de, em última análise, preservar esses mesmos fundamentos. A ordem liberal-democrática conta com tempos normais. A garantia dos direitos individuais e coletivos serve de base jurídica para o compromisso entre interesses que, certamente, podem entrar em conflito, mas que, no entanto, são animados pela lealdade comum para com os fundamentos do governo (LOEWENTEIN, 1937a, p . 432)[2]

O apego cego das democracias aos seus próprios princípios evidenciava a fraqueza estrutural desses regimes. Sob a lógica do paradoxo democrático, as Constituições permitem mudanças pacíficas a partir de métodos regulares. No entanto, Loewenstein argumenta que elas precisam ser “endurecidas” ou adotarem normas “de reação” em face de movimentos que pretendam a sua destruição, basicamente por meio da sua exclusão do processo político e mesmo da suspensão temporária de direitos fundamentais. Esse seria o custo para que a democracia pudesse salvar a si mesma: “Se a democracia está convencida de que ainda não cumpriu o seu destino, deve combater no seu próprio plano uma técnica que serve apenas ao propósito do poder. A democracia deve tornar-se militante” (LOEWENSTEIN, 1937a, p. 423)[3].

Embora o tema tenha sido primeiramente introduzido por Loewenstein, outros estudiosos também vieram a discorrer sobre o assunto, entre eles Karl Popper (1974, p. 289) que se referiu ao “paradoxo da tolerância”, advertindo que a tolerância sem limites levaria ao desaparecimento da tolerância. Para Popper, a tolerância não deve ser concedida aos intolerantes. Qualquer movimento que pregue a intolerância deve ser colocado à margem da lei. Sob essa perspectiva, Svetlana Tyulkina ( 2015a, p. 519) defende que “a democracia pode ser mais agressiva para com aqueles que não acreditam nela e nos seus valores”.[4]

A democracia militante associa-se a uma forma de democracia constitucional autorizada a proteger a sua continuidade como tal, restringindo preventivamente o exercício das liberdades civis e políticas. Em sua primeira manifestação, na Alemanha,  após as atrocidades da Segunda Guerra Mundial, o alvo foram os partidos políticos com propostas antidemocráticas. Nos últimos anos, houve um alargamento do campo de abrangência da democracia militante, que passou a incluir ameaças como o terrorismo e o fundamentalismo religioso, bem assim, em alguns casos, tentativas de restrição de direitos fundamentais realizadas por governos autoritários, acompanhadas de redução ou fim da autonomia do Judiciário. A popularização das redes sociais, fez com que esta via de comunicação também se contaminasse pelas propostas antidemocráticas, ampliando ainda mais o campo de abrangência da democracia militante. Isso ocorreu em razão do uso das redes sociais com a finalidade de proliferação de fake news com aptidão para contaminar o espaço público e influir indevidamente na vontade dos eleitores.

O conceito de democracia militante nasceu, portanto, como uma tentativa de resposta ao desafio de como a democracia deve se defender de seus inimigos não democráticos. Ele se volta para as ações do Estado dirigidas à autodefesa contra seus inimigos internos de modo a manter-se fiel a si mesma. 

Não há, porém, uma definição universal para ela, mas há um relativo consenso sobre aquilo que o termo militante acrescenta à democracia. Como bem observa Svetlana Tyulkina (2015a), a noção de prevenção em relação a um inimigo comum, que se volta contra as estruturas democráticas do Estado, que abusa dos direitos e privilégios garantidos pela democracia, são características cruciais para determinar a militância de um sistema constitucional. De modo que se pode dizer que a democracia militante se refere à capacidade das democracias liberais de produzirem ações preventivas para se defenderem do abuso, por parte de seus inimigos, de instituições e procedimentos democráticos, visando à instituição de regimes autoritários ou, no mínimo, híbridos.

3. O ALICERCE DA DEMOCRACIA MILITANTE E OS NOVOS CAMPOS DE BATALHA

Para ser salva, Loewenstein (1935, p. 593) defendia, que a democracia precisava se tornar militante. Não poderia ser culpada por aprender com seus inimigos a aplicar também a coerção que seus adversários utilizavam contra ela. Para Loewenstein (1937b), o legislador deveria aprovar normas que pudessem neutralizar o fascismo, fundadas em uma vontade indomável de sobrevivência. 

Karl Mannheim, em 1943, se posicionou sobre o assunto, defendendo que os governos democráticos poderiam fazer uso das mesmas técnicas e ferramentas utilizadas pelos regimes totalitários, visando alcançar objetivos legítimos. Mas, para tanto, seria necessária a valorização das virtudes democráticas fundamentais. Para Mannheim[5] a democracia deveria se tornar

militante para defender o justo processo de mudança social e virtudes e valores básicos que são o alicerce do funcionamento  pacífico de uma ordem social. (…) a nova democracia militante desenvolverá, portanto, uma nova atitude em relação aos valores (…) terá a coragem de reconhecer alguns valores básicos, aceitos por todos que compartilham das tradições da civilização ocidental. (MANNHEIM  1943, p.7)

A democracia militante não deve se distanciar do liberalismo, todavia. Mannheim somente não concorda com a tolerância excessiva dos liberais, que poderia colocar em risco sua existência. Para ele, construir uma democracia de caráter militante era planejar pela liberdade. 

A afirmação de Loewenstein (1937a) de que “fogo se combate com fogo” ou de que “a legalidade tira férias” para combater os inimigos se insinua nos esforços de justificação do modelo militante de democracia.

(…) O problema se torna, principalmente, o de escolher o menor de dois males – o dos meios considerados e o que deverá surgir se não forem adotados esses meios. Em outras palavras, o melhor dos fins não justifica, como tal, os meios maus, mas a tentativa de evitar piores resultados pode justificar ações que por si mesmas produzam ·maus resultados (POPPER, 1974, p. 315).

Como se pode constatar a preocupação recorrente é no sentido de que a democracia pode sucumbir sem os meios institucionalizados para se proteger dos ataques dos seus inimigos internos (TYULKINA, 2015a). Muito menos pode permanecer passiva diante das ameaças provenientes de organizações e indivíduos que abusam dos privilégios, direitos e oportunidades que lhes são concedidos pelo regime. Como afirma Svetlana Tyulkina (2015a, p. 520), “as constituições liberais não devem funcionar como pactos suicidas e devem estar preparadas para tomar medidas autodefensivas quando necessário”.[6] Para salvaguarda da democracia, é necessário que se valha da intolerância em face de quem abomina a própria democracia e os seus pressupostos constitucionais (HABERMAS, 2004; ISSACHAROFF, 2006). Uma justificação que aparentemente é antidemocrática. 

Alguns instrumentos têm sido pensados e usados como estratégia de prevenção da erosão interna da democracia. Destacam-se as chamadas “cláusulas de eternidade” ou “limites materiais” às emendas constitucionais, que põem certas disposições constitucionais imunes a alterações ou abolições. A exclusão formal de ideologias e partidos políticos também se insere no rol de medidas defensivas da democracia. Outro instrumento encontrado em textos constitucionais é o estatuto de emergência constitucional (estado de sítio). Há inclusive quem defenda medidas defensivas extraconstitucionais. “Pode haver circunstâncias em que o método apropriado para enfrentar perigos e ameaças graves implique sair da ordem constitucional, às vezes até violando princípios, regras e normas constitucionais de outra forma aceites” (GROSS, 2003, p. 2023).  O que segundo Gross, pode em circunstâncias apropriadas fortalecer e resultar em mais fidelidade constitucional e compromisso com o Estado de Direito.

O inimigo não se limita mais ao nazifascismo. Após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, o “fogo” da democracia militante passou a ser direcionado a quem seja capaz de pôr em risco a institucionalidade democrática, por qualquer meio. No repertório das medidas defensivas, incluem-se os expedientes de reforço à garantia do processo eleitoral livre, inclusive contra o uso distorcido da liberdade de comunicação e expressão. Há mesmo quem defenda a eliminação por completo do emocionalismo político com a adoção de restrições preventivas racionais-legais (SAJÓ, 2012). Como o povo seria propenso a paixões e, por isso, facilmente manipulado, ações deveriam ser tomadas para reduzir os apelos emocionais de líderes populistas. Neste cenário é inevitável a presença do Judiciário  como ator da democracia neomilitante.

Nas últimas décadas o Supremo Tribunal Federal tem atuado de forma preventiva e restaurativa em relação à democracia. Isso é uma decorrência da ampliação do seu papel no constitucionalismo democrático.

Os controles judiciais podem desempenhar um papel importante na prevenção da utilização política indevida de medidas democráticas militantes e na preservação das garantias legais dos direitos fundamentais, sempre que esses direitos possam ser restringidos por uma questão de proteção da democracia. (TYULKINA, 2015a, p.524)[7]

A autodefesa do Estado constitucional só tem sentido diante de uma presunção de perigo iminente. O entendimento liberal, no que se refere à liberdade de expressão, leva à conclusão de que a disseminação de pontos de vista, não ameaça, por si só, a democracia ou o Estado constitucional, até que ocorram justificadas razões para serem criminalizadas.

Não existem diretrizes normativas gerais claras sobre como os liberais devem tomar o seu próprio lado numa discussão sem deixar de ser liberais (Muller, 2012, p. 1118). O dilema gira em torno de como as democracias que tentam defender-se podem evitar a erosão dos seus próprios alicerces.

4.        CONSTITUCIONALISMO ABUSIVO E  EROSÃO CONSTITUCIONAL

David Landau (2013) analisa o uso de mecanismos de mudança constitucional para corroer a ordem democrática. Incidentes recentes ocorridos no Egito, Hungria, Venezuela, Colômbia e no Brasil demonstram como pretensos autocratas procuram refazer a ordem constitucional através de mudanças muito sutis. Esses exemplos são apenas a ponta do iceberg, do que tem sido uma ocorrência cada vez mais rotineira, sob as mais variadas formas de manifestação, diretas e indiretas. Parece arriscado afirmar que seja uma prática exclusiva de chefes do executivo, todavia. O uso de ferramentas democráticas contra a própria democracia tem aumentado consideravelmente, sob as mais variadas formas, fenômeno denominado constitucionalismo abusivo. 

A prática do constitucionalismo abusivo revela um processo de erosão democrática que ocorre de forma relativamente lenta, corroendo instituições e impactando negativamente a democracia. A morte das democracias, cada vez mais, acontece através de líderes eleitos que subvertem o próprio processo que os levou ao poder. Esse modelo autoritário  de fazer política é uma forma de  trazer as velhas elites rurais (atualmente urbanas) para a política, desautorizando as demandas das minorias, abusando da autoridade, reproduzindo dinâmicas segregacionistas, hierarquias simbólicas e recriando o passado (SCHWARCZ, 2019), nesse último caso buscando uma equivocada, ou pelo uma “revisão” muito parcial da história.

Não há tanques nas ruas. Constituições e outras instituições nominalmente democráticas restam vigentes. As pessoas ainda votam. Autocratas eleitos mantêm um verniz de democracia enquanto corroem a sua essência. (…) Como não há um momento único – nenhum golpe, declaração de lei marcial ou suspensão da Constituição – em que o regime obviamente ‘ultrapassa o limite para a ditadura, nada é capaz de disparar os dispositivos de alarme da sociedade (LEVITSKY & ZIBLATT, 2018, p. 17)

Líderes autoritários chegam ao poder por meio de eleições, mas a partir daí utilizam a lei a seu favor para se perpetuarem no poder. Assim, a própria democracia possui os instrumentos que a levam ao seu fim, se não tiver mecanismos de defesa efetivos para impedir a chegada de demagogos ao poder. Subestimar e dar voz a políticos com discursos autoritários e antidemocráticos é um dos principais motivos que levam as democracias ao redor do mundo à morte. ( LEVITSKY & ZIBLATT, 2018).

A crise democrática passou a ser vivenciada pelo Brasil, de forma mais explícita a partir de 2013. Após o otimismo democrático que marcou as primeiras manifestações, os confrontos evoluíram para dinâmicas mais polarizadas, banalizando soluções autoritárias e progressivamente invalidando instituições democráticas (MENDONÇA & DOMINGUES,202; 2). 

A crise democrática brasileira agravou-se a partir do momento em que atores políticos passaram a  recorrer à parcela da população que lhes oferecia apoio, para com esta estratégia, utilizar ferramentas democráticas contra a própria democracia. Grupos antidemocráticos procuraram usar a arena eleitoral  como um fórum para propagandear suas causas e reunir apoiadores. O espaço escolhido para isso foram as redes sociais.

Os engenheiros do caos  perceberam que milhões de pessoas  trabalharam gratuitamente para os lucros do Google e do facebook. Criar uma colmeia com milhões de abelhas  repassadoras de informações políticas  foi o passo dado por eles. Nesse sentido, textos curtos, o emprego de pilheria  e o abuso de imagens fez proliferar uma nova forma de escrita (CRUZ, SILVA e GIBSON, 2022, p. 65-66.

A radicalização atingiu seu auge no processo eleitoral de 2022, porém, tendo um percurso de evolução gradativa e radical desde a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Com variação de grau de intensidade, a pauta dos pretendentes à autocracia é praticamente universal. 

Populismo, nacionalismo, discurso moral e religioso. Xenofobia, repúdio a imigrantes e racismo. Desprezo pelos partidos e pregação da antipolítica. Domesticação ou fechamento do Judiciário. População armada. Antiliberalismo. Negacionismo. Rejeição às teses identitárias e rancor contra artistas e intelectuais. (…) disseminação de fake news, discurso de ódio com ameaças físicas e inversão de conceitos (CASTRO, 2024)

Esse processo de erosão democrática ocasionado pela prática do constitucionalismo abusivo tem por corolário, entre outras situações, a polarização e a utilização da desinformação  como forma de legitimar atos de governos autocráticos.

4.1      Polarização Desinformação  e Autocracia

Uma das consequências da prática iliberal é a radicalização de posicionamentos ocasionando a polarização política. O instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo no relatório de democracia publicado em 2022 apresentou dados sobre o aumento da polarização em pelo menos 40 países, nos quais ocorreram vitórias eleitorais de antipluralistas e fortalecimento de suas agendas autocráticas. O relatório revelou que os governos utiliza(ra)m cada vez mais a desinformação para moldar a opinião nacional e internacional. Partidos antipluralistas impulsiona(ra)m a autocratização em pelo menos 6 dos 10 principais países autocratizadores, entre eles: Brasil, Hungria, Índia, Polónia, Sérvia e Turquia ( DEMOCRACY, 2022, p. 7). O instituto V-Dem alertou para o aumento da polarização e desinformação governamental, tendências essas interligadas, pois os públicos polarizados são mais propensos a demonizar os adversários políticos e a desconfiar de informações provenientes de diversas fontes. O ano de 2022 ficou marcado pelos ataques à autonomia de instituições  democráticas (DEMOCRACY, 2022, p. 11) e no Brasil a situação não foi diferente.

O relatório publicado pelo V-Dem em 2023 revelou que o nível de democracia de que goza(va) o cidadão global médio em 2022 caiu para os níveis de 1986. No caso específico da América Latina esse nível regressou a 1989, época do final da Guerra Fria e das primeiras eleições democráticas pós regime civil-militar. No caso do Brasil e da Polônia, em 2022, como avaliou o instituto sueco, a autocratização estagnou antes do colapso da democracia, o que se deve à vitória de Lula sobre Bolsonaro. O instituto traz alguns dados importantes demonstrando que no Brasil a democracia liberal decaiu substancialmente após 2015 alcançando índices alarmantes em 2019. No entanto, após a pandemia a mobilização tanto pela democracia quanto pela autocracia aumentou rapidamente e atingiu o pico durante a campanha eleitoral de 2022. “Durante o ano eleitoral de 2022, os indicadores do índice de eleições limpas deterioraram-se incluindo a intimidação e a violência eleitoral por parte do governo em exercício” ( DEMOCRACY, 2023, p. 22).

Os governos com tendências autocratizantes são aqueles que mais aumentam o uso da desinformação, o que tem relação direta com a polarização, ou seja, desinformação, a polarização e a autocratização reforçam-se mutuamente.

A “Desinformação Governamental” mede a frequência com que os governos e os seus agentes utilizam as redes sociais para disseminar pontos de vista enganosos ou informações falsas para influenciar a sua população. A “Polarização Política” mede até que ponto a sociedade está polarizada em campos antagónicos e políticos onde as diferenças políticas afetam as relações sociais para além das discussões políticas (DEMOCRACY, 2023, p. 26)[8]

O relatório do V-Dem 2022 constatou que a polarização atingiu níveis globais sem precedentes em 2021. Além disso, os governos autocráticos utiliza(ra)m cada vez mais a desinformação como ferramenta para manipular a opinião pública. 

A polarização torna-se tóxica quando atinge níveis extremos. Os campos do “Nós contra Eles” começam a questionar a legitimidade moral uns dos outros e a tratar a oposição como uma ameaça existencial a um modo de vida ou a uma nação. Quando as elites políticas e os seus seguidores já não acreditarem que os adversários políticos são legítimos e merecem igual respeito, as normas e regras democráticas podem ser postas de lado para “salvar a nação”. Este é um desenvolvimento perigoso (DEMOCRACY, 2022, p. 30)[9].

A polarização mina a coesão social e a estabilidade política desmantelando a democracia. A verdade é que os mecanismos de defesa democrática são amplamente ineficazes em relação a estas situações. Não existe uma bala de prata para resolver o problema. 

a polarização no Brasil começou a aumentar em 2013 e atingiu níveis tóxicos com a vitória eleitoral do presidente de extrema direita Jair Bolsonaro em 2018. Desde que assumiu o cargo, Bolsonaro juntou-se a manifestantes que apelam à intervenção militar na política brasileira e ao encerramento do Congresso e do Supremo Tribunal. Além disso, promoveu uma militarização em grande escala do seu governo e a desconfiança pública no sistema de votação ( RELATÓRIO, 2022, p. 33).

A desinformação pode ser usada  de forma estratégica  para influenciar os cidadãos insuflando sentimentos negativos e desconfiança, instigando a violência , tudo isso em busca de angariar legitimidade para decisões políticas “convenientes” aos autocratas. Este padrão ocorreu durante a votação do “Brexit” na Grã-Bretanha e nas eleições presidenciais dos EUA em 2016. Os autocratas manipulam dados e fazem com que seus apoiadores confiem em informações controladas pelo governo (DEMOCRACY, 2022)

Segundo o relatório do V-Dem (2021, p.7) primeiro vem o ataque à mídia e à sociedade civil, depois, a polarização da sociedade através do desrespeito aos oponentes e da disseminação de informação falsa e por fim, o ataque às instituições. Todavia, nesse último aspecto, a crise democrática brasileira teve um capítulo à parte, no que concerne às restrições judiciais que o Supremo Tribunal Federal passou a impor aos atos diretos e indiretos do governo Bolsonaro. 

4.2 Resistência e ataque: Supremo Tribunal Federal e justiça eleitoral na mira autocrática

Tornou-se notório o desrespeito aos direitos fundamentais das minorias, a demonização dos opositores políticos, a violência política, bem como o uso do poder governamental para a promoção de agendas autocráticas ( tentativa de controle sobre meios de comunicação e sobre o judiciário. A crise agravou-se, quando os ataques de Bolsonaro foram direcionados para o Supremo Tribunal Federal, TSE  e aos ministros destas Cortes.

Diante das tentativas de desacreditar o sistema eleitoral, Bolsonaro enfrentou resistência do Supremo Tribunal Federal. Os ânimos, acirraram-se ainda, mais quando o Ministro Alexandre de Moraes iniciou investigações (processo das fake news; invasão de hakers ao sistema de informática do TSE)  sobre Bolsonaro desencadeadas pelos repetidos ataques à integridade do sistema de votação eletrônica do país. Como represália Bolsonaro apresentou um pedido de impeachment em desfavor do Ministro, acusando-o de atuar como investigador e juiz, ao mesmo tempo que censurava a liberdade de expressão ( MINISTRO, 2021; BOLSONARO, 2021).

Além de tentar o impeachment de Moraes, Bolsonaro atacou publicamente outro juiz superior, Luis Roberto Barroso, que também preside o tribunal eleitoral federal. Barroso rejeitou repetidamente as alegações de Bolsonaro sobre o sistema de votação, levando o presidente a chamar o juiz do Supremo Tribunal de “filho da puta”. (…) “Há muito tempo os ministros Alexandre de Moraes e Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, extrapolam os limites constitucionais com atos”, tuitou ( BOLSONARO, 2021).

A crise entre o Supremo Tribunal Federal e o governo era explícita. “Bolsonaro pediu aos apoiadores que coordenassem manifestações em 7 de setembro de 2021 em apoio aos apelos antidemocráticos, incluindo a destituição de todos os juízes do Supremo Tribunal e o espectro de um golpe militar (DEMOCRACY, 2022, p. 26)[10]. A ousadia dos líderes revela que o processo de autocratização havia se tornado mais vigoroso. Em matéria publicada por Andrew  Fishman  na página do The Intercept,  em 05 de setembro de 2021 há um relato de como os grupos online  estavam se organizando para o comício do dia 07 de setembro. “O zelo por desfazer as instituições democráticas estava em plena exibição. Ativistas pró-Bolsonaro, (…) ofereceram sugestões para faixas: “Retirem todos os ministros do Supremo”, (…) “Ativem as Forças Armadas””( FISHMAN, 2021). Esse foi o cenário sobre o qual se desenvolveu o processo eleitoral referente às eleições de 2022. O Supremo Tribunal Federal, que já tem uma postura ativista, precisou intensificar ainda mais o combate aos ataques dos quais passou a ser vítima. Mas é preciso considerar que como decisão de contexto a solução adotada pela Corte parece correta. Mas não se pode perder de vista os possíveis riscos que a crise democrática impõe às decisões do tribunal. Isso em razão de legislativo fraco e da falta de clareza do texto constitucional no que concerne às condutas a serem adotadas em momentos s de crise.

4.2.1 DECIFRA-ME OU DEVORO-TE: Quando a reação pode se tornar um ataque 

A esfinge grega era um monstro que trazia morte e destruição por onde passava. A interpretação mais conhecida está no mito de Édipo. Ao chegar na cidade de Tebas, o monstro causou destruição e devorou as pessoas que não conseguiam decifrar seu enigma. O rei da cidade, Creonte, desesperado com a situação ofereceu o trono para quem decifrasse o enigma. Édipo conseguiu esse feito e a esfinge, envergonhada, jogou-se de um penhasco (SILVA, 2024) . O desafio do Supremo Tribunal Federal frente às práticas de constitucionalismo abusivo, assemelha-se ao desafio da esfinge. Isso porque a democracia precisa ser protegida, mas a que custo? E  por quem? Como resultado desse processo de erosão democrática tem-se um alargamento do campo de abrangência da democracia militante, a emergência do ativismo judicial e o risco de novas formas de constitucionalismo abusivo. Neste último caso, especificamente no que concerne ao combate às fake news, através da intervenção do Judiciário na vontade de ter vontade por parte dos cidadãos. De toda forma, revela-se um processo de erosão democrática.

O uso de ferramentas constitucionais para criar regimes autoritários e semi-autoritários é cada vez mais predominante. Poderosos presidentes e partidos podem projetar mudanças constitucionais de modo a tornar difícil a sua substituição no poder e desarmar instituições, como os Tribunais de Justiça, que possam fiscalizar seus atos enquanto governo. ( LANDAU, 2013, p. 191)[11]

O constitucionalismo abusivo é muito mais difícil de ser detectado, por isso, esse tipo de prática não é alcançado pelas chamadas cláusulas democráticas, que no âmbito do direito internacional punem os regimes que assumem o poder por meios inconstitucionais A falta de clareza sobre o papel institucional  que deve ser desempenhado pelos vários atores institucionais dentro de uma crise é manifesta nos textos constitucionais. (FELDMAN et al, 2013). No Brasil a situação não é diferente, tanto que cogitou-se uma intervenção militar para supostamente restabelecer a ordem democrática ( isso na perspectiva dos atores iliberais). Essa falta de clareza do texto constitucional aumenta o risco de outros atores políticos poderosos abusarem de seu poder  para se engrandecerem ou para minar outras instituições democráticas, ou até mesmo em busca de defesa da própria democracia. “Os textos constitucionais de numerosos países não fornecem orientações claras sobre a forma como os diferentes intervenientes devem agir durante uma crise, nem explicam como gerir os conflitos entre estes intervenientes ( FELDMAN et. al, 2013, p.4). 

No caso do Brasil, “indícios” de constitucionalismo abusivo ( e erosão constitucional) podem ser identificados em atos praticados  no âmbito do executivo, principalmente durante o governo Bolsonaro, mas o legislativo tem sua parcela de contribuição quando foi favorável a um processo de impeachment, em 2013, bem atípico. Ou ainda, quando os partidos políticos acovardam-se em sua função de serem portões da democracia, deixando de escolher adequadamente aqueles que irão disputar os cargos públicos. Além disso ainda há o problema da falta de solidez e ideologia de muitos partidos que negociam apoio em troca de poder, servindo exclusivamente aos seus próprios interesses. Por fim, a atuação reativa e inusual do STF com seu ativismo, bem como a deferência aos atos praticados pelo legislativo – diga-se de passagem o impeachment da ex-presidente Dilma, isso sem falar na deficiência em relação à análise de prognósticos legislativos. Esses são alguns dos ingredientes da crise democrática vivenciada pelo Brasil, pelo menos, desde 2013.

Em regra, os países democráticos respondem aos ataques à democracia restringindo a participação de indivíduos ou partidos políticos que apresentam conduta que extrapolam o âmbito da tolerância. Mas isso levanta sérios problemas para qualquer teoria liberal em que a legitimidade depende do consentimento democrático dos governados. A remoção de certas opiniões políticas da arena eleitoral limita as escolhas que são permitidas aos cidadãos e põe assim em causa a legitimidade de todo o empreendimento democrático ( ISSACHAROFF, 2007). 

O recurso à democracia militante é útil para afastar ameaças autoritárias tradicionais, mas bem menos capaz de enfrentar a ameaça mais ambígua e não ideológica representada pelo constitucionalismo abusivo (LANDAU, 2013; ISSACHAROFF, 2007). A remoção de certas opiniões políticas da arena eleitoral limita as escolhas que são permitidas aos cidadãos, colocando em causa o empreendimento democrático. 

Diante de uma crise democrática e da ausência de orientações constitucionais claras sobre como proceder, o desafio volta-se para as formas de ação que possam garantir que o aparelho estatal não seja capturado por formas de intolerância socialmente destrutivas. É preciso mobilizar as instituições democráticas para resistirem à captura pelas forças antidemocráticas. As instituições da democracia não podem ser atreladas ao que pode ser denominado democracia iliberal (ISSACHAROFF, 2007). Eis o arranjo que promove a erosão democrática.

As técnicas de democracia militante precisam ser pontuais, contextuais e não transformarem a exceção em regra. “O ponto-chave, contudo, não é a onipresença das proibições, mas a justificação para elas” (ISSACHAROFF, 2007, p. 1410). Limitar o âmbito da deliberação democrática coloca em questionamento a legitimidade do processo político. Por outro lado o Estado tem a obrigação de manter a abertura dos instrumentos da competição política da mesma forma que protege a integridade dos mercados econômicos dos comportamentos anticompetitivos. O Estado como afirma Issacharoff (2007)  é o guardião da vitalidade do processo democrático como um todo, mas isso deve ser feito de forma a preservar a capacidade dos cidadãos de rejeitar seus governantes.

No Brasil as ameaças à democracia fizeram com que as armas da democracia militante, sob uma nova roupagem, fossem empunhadas pelo Supremo Tribunal Federal. Isso em um contexto de notável ativismo judicial. Atuando no modo militante a Suprema Corte envolveuse em uma espécie de controle social, ao considerar as fake news inconstitucionais. O que revela uma preocupação de controlar os opositores da democracia. A tendência autoritária manifestada pelo governo de Bolsonaro não foi capaz de comprometer a atuação do Supremo Tribunal Federal, mas fez com que a Corte tivesse que se expor demais. Essa exposição acabou por revelar a dificuldade de se combater as novas práticas autoritárias. Por outro lado, o ativismo judicial ligou o sinal de alerta, no que se refere ao resultado dessa atuação reativa, afinal, não estaria a Corte incorrendo em prática de constitucionalismo abusivo e aprofundando ainda mais a crise democrática?

Diante de um ativismo ofuscante e fazendo uso de instrumentos da democracia militante, a crença de  que “os tribunais permanecem como locais de resistência contra a degradação constitucional, servindo como um farol a indicar o caminho a ser seguido na direção da liberdade contra sistemas ditatoriais e autoritários” (BARBOSA, FRANCISCO & HORSH, 2022, p.70; GINSBURG; HUQ, 2018, p. 20), passa a ser colocada em dúvida ( e deve ser), pois ao atuar como farol indicando caminhos, não estaria a Corte influenciando a vontade dos cidadãos e atuando no modo constitucionalismo abusivo? Estaria Édipo casando-se novamente com a mãe? O diálogo interinstitucional e a definição mais clara de papeis seria um caminho para livrar-se da crise democrática e evitar a erosão constitucional? São questões que se abrem ao futuro.

5.               NEODEMOCRACIA MILITANTE E O CONSTITUCIONALISMO ABUSIVO: VERSO E ANVERSO

Para autores como Anthoula Malkopoulou e Ludwig Norman (2018, p. 443), “o discurso sobre a democracia militante reproduz uma noção elitista amplamente excludente de governo democrático, construída sobre uma desconfiança profundamente enraizada na capacidade de o povo governar a si próprio”.[12] Aliás, o próprio Loewenstein (1937b, p. 657) afirmara que “a democracia liberal [era] adequada, em última análise, apenas para os aristocratas políticos”. Esse elitismo “representa um modelo de autodefesa democrática com implicações potencialmente prejudiciais para a arena mais ampla da política democrática” (MALKOPOULOU; NORMAN, 2018, p. 446).[13]

A democracia militante ainda apresenta o risco de se tornar arbitrária na seleção de seus inimigos. É uma contradição lógica e interna, pois a democracia não combina com arbitrariedade. E uma contradição prática, pois permite aos que estejam no poder afastar a concorrência de quem seja identificado, por eles, como hostil à ordem democrática. Sem as devidas cautelas a democracia militante se converte num oximoro (ACCETTI; ZUCKERMAN, 2017). 

Talvez o maior risco que a militância democrática traga esteja na verdade na “rotineirização” ou “normalização” da exceção, convertendo-a em regra. Normaliza-se o que é atípico, tipifica-se o que é anormal, a ponto de resultar em fronteiras indistintas entre eles com a desestabilização a longo prazo de princípios basilares que sustentam o Estado de Direito e a Constituição (GROSS, 2003). 

O Brasil, nas últimas décadas vivenciou e experimentou os sintomas de uma crise democrática. Uma onda de ressentimento tomou conta de parte expressiva da população. Todos, de algum modo, entrelaçavam-se, não mais pela mediação política tradicional e do discurso manifestado em espaço aberto à contestação plural, mas por redes sociais que ampliavam e distorciam fatos e opiniões em bolhas e grupos de pensamento incontestável (HABERMAS, 2022; AVRITZER, 2023). Esse caldo de ressentidos, temorosos e esquecidos, retroalimentados pelos bolsões midiáticos, era propício a discursos negacionistas, conspiratórios e reacionários.

A desconfiança, a polarização e o ressentimento tomaram de assalto a cena política nacional, e conduziram à eleição de um populista de traços autoritários, que ameaça, com palavras e ações, a higidez do regime democrático. (…) não é de se espantar que o fruto da democracia brasileira  esteja apodrecendo antes mesmo de ter amadurecido por completo ( PONTES, 2020, p.39).

Tempos sombrios da democracia brasileira. A tarefa mais árdua ficou a cargo do STF. “A Corte vem sendo provocada a solucionar questões com impactos significativos para os poderes políticos e para os seus integrantes, fazendo-o, entretanto, de maneira muitas vezes contraditória” (PONTES, 2020, p. 63). 

Diante de uma atuação inusual e imprópria do STF, mas motivada por uma conjuntura de ataques à democracia, o risco de excessos é iminente. Como consequência tem-se uma Corte cada vez mais responsiva, reativa e ativista. Daí ser importante, não só reconhecer os efeitos positivos do uso da democracia neomilitante, mas também questionar os impactos da utilização desse instituto por parte do STF.  Isso porque  a democracia como autocorreção pode abrir caminho para a falta de autocontenção. A curto prazo, a decisão do STF  na ADI 7.261foi acertada, pois garantiu, ou pelo menos minimizou o impacto das fake news no processo eleitoral de 2022. No entanto, a médio e longo prazo, os efeitos de uma atuação responsiva e de autodefesa democrática podem pavimentar o caminho para a falta de autocontenção, dando à democracia militante o espírito de constitucionalismo abusivo.

Não se pode negar que a Corte tenha sua parcela de contribuição no processo de erosão constitucional vivenciado no Brasil nos últimos anos. Isso em razão de uma jurisprudência de contexto, bem como dos movimentos políticos e manifestações sobre temas diversos e sensíveis politicamente, por parte de alguns de seus membros. É nesse contexto de crise que a Corte precisou atuar no modo democracia militante.

Para compreender a atuação do STF como agente da democracia militante no que concerne ao combate às fake news é necessário entender melhor que fenômeno é esse e a partir de que momento tornou-se uma ameaça à democracia.

6.        A ORIGEM DAS FAKE NEWS E AMEAÇA À DEMOCRACIA 

Segundo o Instituto de Estudos Avançados da USP a expressão fake news foi eleita pelo dicionário Collins, como a expressão do ano em 2017, sendo definida  como informações falsas que são disseminadas em forma de notícias, muitas vezes de maneira sensacionalista ( HERMÍNIO, 2022). 

Definimos “fake news” como informações fabricadas que imitam o conteúdo da mídia noticiosa na forma, mas não no processo ou intenção organizacional. Os meios de comunicação de notícias falsas, por sua vez, carecem das normas e processos editoriais dos meios de comunicação para garantir a precisão e a credibilidade da informação. (LAZER, et.al, 2018, p. 1094)[14]

As fake news estão relacionadas aos conceitos de desinformação e misinformation (NEMER, 2020; LAZER, 2018). A desinformação tem  a intenção clara de enganar através de narrativas manipuladas. É criada e espalhada propositalmente como verdade, para influenciar a opinião pública e enganar as pessoas. Ao passo que a misinformation volta-se para informações inverídicas (falsas ou enganosas) que são disseminadas  e causam desinformação, mesmo que não haja essa intenção.[15] 

Fakes News é um termo guarda-chuva que cobre uma gama de conceitos pertencentes a categoria de falsidades ou mentiras, incluindo a própria desinformação. A Fake News nem sempre tem a intenção de enganar, por exemplo, pode ser uma informação falsa ou imprecisa que foi criada ou disseminada por engano ou inadvertidamente. A Fake News pode ser também uma informação verdadeira que quando usada fora do contexto pode desinformar. ( NEMER, 2020, p.113)

As fake news podem ser utilizadas como clickbait visando publicidade, como sátira ou paródias, mas nos últimos anos foram utilizadas em forma de propaganda intencional para enganar o leitor. “O entendimento de Fake News ficou muito atrelado às redes sociais já que desde 2016 essas redes vêm sendo utilizadas para influenciar politicamente as pessoas por meio de notícias falsas, embora não seja um fenômeno exclusivo das plataformas virtuais” ( NEMER, 2020, p. 113).

Embora o conhecimento sobre existência notícias falsas seja antigo, foi a partir da disputa presidencial ocorrida em 2016 nos Estados Unidos, entre Hilary Clinton e Donald Trump, que a expressão passou a ser utilizada por Trump. Isso porque as pesquisas de intenção de voto indicavam vantagem para Hilary, no entanto, Trump venceu e passou a utilizar o termo fake news para designar o trabalho de jornalistas e analistas da mídia em geral, normalizando a expressão entre seus apoiadores e ao redor do mundo ( HERMÍNIO, 2022).

Casos como Cambridge Analytica, movimento QAnon e Pizzagate nos EUA demonstram o impacto das tecnologias e das redes sociais na circulação de informação para efeitos políticos. Episódios como o da Cambridge Analytica colocam “um ponto de interrogação para saber o que está acontecendo com os nossos processos de escolha democrática, com os mecanismos eleitorais que se tornam muito porosos e muito influenciáveis pela tecnologia da informação” ZANATTA, 2018, p. 12)

As fake news atraíram a atenção, especialmente num contexto político, mas podem ser identificadas também em outras situações, de toda forma, são perniciosas na medida em que parasitam os meios convencionais de comunicação minando sua credibilidade. Para além disso, os impactos desse fenômeno na democracia podem ser bastante deletérios. De modo que, para a finalidade da discussão proposta neste artigo  a expressão fake news será utilizada em seu viés de arma política.

6.1      O impacto da disseminação da desinformação

Embora possa haver a percepção de que as fake news não tragam consequências para o mundo real, a verdade é que a exposição às informações falsas pode mudar as ações das pessoas. O perigo aumenta quando a campanha de desinformação é desenvolvida por governos, membros de partidos ou ativistas, com a finalidade de ganho político, de cumprimento de agendas políticas.

A sociedade da informação (Castells 2000) e a consequente necessidade de respostas instantâneas e  definitivas faz com que as pessoas se tornem cada vez mais carentes de certeza. Quando  não há consenso social, cria-se um ambiente fértil para  que tudo seja contestado. As redes sociais tornam-se uma das principais facilitadoras das fake news. Os usuários tendem a ficar presos a manchetes que muitas vezes desinformam. Essas redes sociais, através dos seus algoritmos, criam as bolhas filtro onde as pessoas encontram apenas informações e opiniões que estão em conformidade e reforçam suas próprias crenças e vieses (PARISER, 2011; SASTRE & BELDA, 2018).

As bolhas filtro geram assim o efeito câmara de eco no qual uma pessoa só encontra informações ou opiniões que refletem e reforçam as suas. As câmaras de eco podem criar desinformação e distorcer a perspectiva de uma pessoa, fazendo com que ela tenha dificuldade em considerar pontos de vista opostos e discutir tópicos complicados. ( NEMER, 2020, p. 114).

Devido ao seu modelo econômico, as redes sociais não se sentem motivadas a combater fake news, já que o seu combate efetivo pode comprometer a sua renda, isso porque o sucesso para a maioria das redes sociais se resume em manter as pessoas conectadas clicando em anúncios (NEMER, 2020; O’NEIL,2016).

A estrutura em rede da sociedade da Informação (CASTELLS, 2000) promove a democratização da comunicação, mas a grande questão é que esta possibilidade (NEMER, 2020) permite que fake news e campanhas de desinformação sejam criadas ameaçando a própria democracia. Estas campanhas são potencializadas por algoritmos das redes sociais, programados para potencializar vieses  e preconceitos existentes na sociedade e provenientes de setores dominantes ( NOBLE, 2018; EUBANKS, 2018).

A desinformação e a filtragem seletiva de notícias contribuíram para a polarização ideológica das plataformas de redes sociais que favoreceu Donald Trump nas eleições presidenciais dos EUA de 2016 e na votação do “Brexit” (VAIDHYANATHAN, 2018; NEMER, 2020). Situação que tendeu a se repetir no Brasil nas eleições de 2022.

As fake news têm sua disseminação favorecida pelos apelos emocionais. Conteúdos emotivos, especialmente se estimularem o sentimento de ódio, viralizam mais rapidamente. As fake news e o discurso de ódio dependem um do outro para triunfarem. Nesse cenário, cria-se um campo fértil para a polarização. “ As bolhas nas redes sociais, que permitem a disseminação de notícias e conteúdo são formadas a partir de amizades e laços virtuais” ( CRUZ, SILVA e GIBSON, 2022, p. 129). Os indivíduos tendem a não questionar a credibilidade da informação, a menos que esta viole suas concepções ou os incentivem a fazê-lo. Caso contrário aceitam a informação de forma acrítica. As pessoas preferem informações que confirmem  suas atitudes preexistentes, em um viés de confirmação, estando inclinadas a aceitar informações que lhes agradam, em um viés de desejabilidade (LAZER et. al, 2018. p.1095). Sob esta linha de raciocínio, crenças partidárias e ideológicas anteriores podem impedir a aceitação da verificação de fatos de uma fake news.  Além disso, há o risco de a repetição de informações falsas aumentar a probabilidade de serem aceitas como verdadeiras. O que ocasiona inclusive a redução da credibilidade dos meios de comunicação convencionais.

As fake news abrem espaço para as pessoas questionarem estruturas que foram criadas dentro da realidade com a função de apoiar as instituições, como por exemplo a democracia. Quando a percepção é desconexa com a realidade as pessoas começam a questionar, sem fundamento, os pilares da democracia. Coloca-se em questão o sistema eleitoral, o papel do STF, refuta-se o papel da Constituição, a ciência, as pesquisas eleitorais, o entendimento sobre a liberdade de expressão torna-se muito peculiar, as teorias conspiratórias ganham relevância e o discurso favorável a golpes e ditaduras fortalece o iliberalismo e arrebanha adeptos. 

Abre-se um espaço para questionamentos desnecessários, fora da realidade. Empoderase essa visão de mundo, quando um veículo de comunicação endossa esse tipo de pensamento. O que faz as pessoas desinformadas se agarrarem a esse viés de desejabilidade e de confirmação. O ressentimento e ódio recebem o reforço que precisam para se fortalecerem nessas bolhas virtuais. A polarização e a violência assumem a ordem do dia (LAZER et. al, 2018; NEMER, 2022).  As fake news colocam em risco a liberdade de expressão, e por outro lado avivam o discurso de ódio. Líderes populistas se beneficiam da desconfiança no sistema e procuram minar a fé  no papel legítimo dos meios de comunicação, na independência dos tribunais e na integridade das eleições ( NORRIS, 2017, p. 3). 

A democracia está no corner, sendo espancada pelo crescimento das políticas autoritárias e diante de um aparato de vigilância e controle que a virtualidade permite. As grandes empresas de tecnologia transformam nossos dados em commodities, revelando a face do capitalismo de vigilância ( ZANATTA, 2018, ZUBOFF, 2019). 

O capitalismo de vigilância reivindica de maneira unilateral a experiência humana como matéria-prima gratuita para a tradução em dados comportamentais. Embora alguns desses dados sejam aplicados para o aprimoramento de produtos e serviços, o restante é declarado como superávit comportamental do proprietário, alimentando avançados processos de fabricação conhecidos como “inteligência de máquina” e manufaturado em produtos de predição que antecipam o que um determinado indivíduo faria agora, daqui a pouco e mais tarde. (…) Esses produtos de predições são comercializados em mercados de comportamentos futuros ( ZUBOFF, 2019, p. 21).

Escancara de um lado um jogo perverso de interesses entre corporações e governos e de outro resistências tentando restabelecer a ordem democrática. Nesse contexto, o STF aparece como um dos atores dessa tentativa de controle democrático desse capitalismo de vigilância, quando o ataque se volta para a democracia e principalmente contra a própria Corte.

O combate ao processo de desinformação é muito complexo, pois como afirma Zanatta (2018) não existe uma bala de prata capaz de resolver todos os problemas, o que é uma tendência do Congresso Nacional, no sentido de criar leis de combate às notícias falsas. O que pode beneficiar os congressistas pois mina as críticas e sátiras em desfavor deles, com o risco de silenciar vozes alternativas. Nesta mesma linha de raciocínio pode ser vista a atuação militante do STF revelando a outra face de constitucionalismo abusivo.

Em uma matéria publicada na Revista Science pelos principais acadêmicos da internet do mundo, em um artigo denominado The science of fake news, os pesquisadores concordam que não há respostas à pergunta de como combater as fake news. A preocupação com o problema é global, enfrentar notícias falsas requer um esforço multidisciplinar. “Muito permanece desconhecido relativamente às vulnerabilidades dos indivíduos, das instituições e da sociedade às manipulações por parte de intervenientes maliciosos”( LAZER et.al., 2018, p.1094)[16].

Avaliações do impacto a médio e longo prazo no comportamento político da exposição a notícias falsas (por exemplo, se e como votar) são essencialmente inexistentes na literatura. (…) No entanto, a mediação de muitas notícias falsas através das redes sociais pode acentuar o seu efeito devido ao endosso implícito que acompanha a partilha. ( LAZER et.al., 2018, p. 1095).[17]

Para além dos impactos eleitorais, existem muitas vias potenciais de influência das fake news, desde o aumento do cinismo e da apatia até o incentivo ao extremismo. Segundo a publicação da Revista Science ( LAZER et. Al, 2018) existe pouca avaliação dos impactos das fake news nestes aspectos. Os autores da publicação questionam quais intervenções poderão ser eficazes para conter o fluxo  e a influência das fake news. Para tanto, sugerem capacitação dos indivíduos e mudanças estruturais visando prevenir a exposição dos indivíduos.

O grande desafio que se coloca é que qualquer intervenção direta do governo ou das plataformas, impedindo os usuários de verem o conteúdo levanta preocupações sobre a censura e a liberdade de expressão.

7.        O COMBATE ÀS FAKE NEWS: A ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO AGENTE DA DEMOCRACIA MILITANTE

Havia uma jurisprudência já consolidada sobre os direitos de comunicação. Ainda em 2009, o STF havia julgado procedente a ADPF 130, ao declarar não recepcionada a Lei 5.250/1967, a Lei de Imprensa do regime militar, de forma a garantir a liberdade de imprensa e por consequência a liberdade de manifestação de pensamento. No mesmo sentido, a Corte entendeu em 2015, quando do julgamento da ADI 4.815/DF, ser inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais. Também considerou constitucional a trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que degradasse ou ridicularizassem candidatos, partidos e coligações, bem como a difusão de opinião favorável ou contrária a candidatos, partidos e coligações, tema que foi objeto da ADI 4451 DF.

A Democracia não existirá e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada, pois esta constitui condição essencial ao pluralismo de ideias, que por sua vez é um valor estruturante para o salutar funcionamento do sistema democrático. A livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, tendo por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva. (BRASIL, 2018, p.01)

No entanto, desde as jornadas de junho, a democracia brasileira vem passando por um processo crescente de crise. Isso fez com que o STF tivesse que mudar de posicionamento em relação a determinadas situações, como foi o caso da decisão proferida na ADI 7261. Atuando no modo democracia militante, a Corte proferiu decisão de contexto, na contramão de uma jurisprudência de conjuntura. Mas que é legítima, dadas as circunstâncias fáticas que evidenciavam o uso de instrumentos democráticos em desfavor da democracia.

A ADI 7261 foi protocolada em 21.10.2022, mas o fenômeno das fake news já havia desaguado no STF, muito antes, através de um inquérito atípico – Inq.4781- instaurado pela própria Corte a fim de investigar notícias falsas envolvendo ministros e seus familiares. O que fez com que o Partido Rede Sustentabilidade  ajuizasse a ADPF 572 questionando a constitucionalidade da portaria que instaurou o referido inquérito. Julgada improcedente, entre as razões apontadas pelos ministros, destaca-se: “ataques sistemáticos à instituição e violação ao Estado Democrático de Direito não estão abrangidos pela liberdade de expressão” ( CRUZ, SILVA E GIBSON, 2022, p.132). 

O que se nota em decisões dessa natureza é um esforço de evitar o “sinkhole” democrático, tanto no modelo antigo, com um golpe de Estado típico, quanto pela correção, nem sempre em procedimentos próprios, das iniciativas de erosão da institucionalidade. A permanência dessa militância excepcional, até mesmo com emprego de procedimentos não convencionais, em período de normalidade e eventual reações políticas à atividade judiciária são pontos que se abrem ao futuro. 

Devemos assumir uma perspectiva crítica  para além da ingenuidade de crer que a legalidade democrática está sendo assegurada. O Supremo Tribunal Federal, embora dotado de todos os ares de legitimidade (…) tem utilizado instrumentos que estão nos limites da legalidade do Estado Democrático de Direito. ( CRUZ, SILVA E GIBSON, 2022, p.140).

O dilema está posto, o fenômeno democracia militante precisa ser temporário, não pode se tronar a regra, sob pena de se ter um Corte implementando o constitucionalismo abusivo. Combater fake news e garantir liberdade de expressão para equiparar-se a um dos difíceis trabalhos realizados por Hércules.

7.1 O décimo terceiro trabalho de Hércules: combater  fake news e garantir a liberdade de expressão.

Hércules  foi um herói da mitologia grega que durante um ataque de loucura, provocado pela deusa Hera, assassinou os filhos e a esposa. Como forma de expiação pelo crime o oráculo de Delfos ordenou que realizasse doze tarefas de extremo risco, denominadas “Os Doze Trabalhos de Hércules”(PACIEVITCH, 2024).

O desafio do STF de recorrer aos métodos da democracia militante para salvar a democracia dos ataques sofridos nos últimos tempos, pode ser comparado à difícil missão dada a Hércules. Como afirma Zuboff ( 2021) não pode haver leis para nos proteger daquilo que não tem precedentes, e sociedades democráticas são vulneráveis ao poder sem precedentes.

Estudiosos como Pippa Norris (2017), Erik Voiten (2016), Welzel & Alexander ( 2017); Ronald Inglehart (2016) Mounk & Foa (2017) Zuboff (2021) apontam para uma desconsolidação das democracias ocidentais, durante muito tempo consideradas impermeáveis a ameaças antidemocráticas. A extensão e a natureza dessas ameaças ainda não podem ser mensuradas, mas revela que o ideal democrático não é mais um imperativo sagrado, mesmo em sociedades democráticas maduras.

O capitalismo de vigilância, como força social antidemocrática, faz com que direitos conquistados de longa data sejam repensados a fim de evitar a degradação da autodeterminação dos indivíduos. Como afirma Zuboff (2021) não se trata de um coup d’état, mas de um coup de gens, uma derrubada do povo.

A democracia pode estar sitiada, mas não podemos permitir que seus muitos ferimentos nos desviem da fidelidade à sua promessa. (…) A democracia é vulnerável ao que não tem precedentes, mas a força das instituições democráticas é o relógio que determina a duração e o grau de destruição dessa vulnerabilidade. Em uma sociedade democrática, o debate e a contestação viabilizados por instituições ainda saudáveis podem virar a maré da opinião pública contra fontes inesperadas de opressão e injustiça (ZUBOFF, 2021, p.610).

O uso das fake news confirma que o objetivo da civilização da informação é o domínio da natureza humana, com o propósito de modificar o comportamento dos indivíduos substituindo a internalidade humana que alimenta a vontade de ter vontade ( ZUBOFF, 2021). 

A  decisão do STF que considerou constitucional a resolução editada pelo TSE para combater fake news, precisa ser situada como uma forma de proteção da vontade de ter vontade. Mas isso é de um grau de complexidade tão grande, que assemelha-se aos trabalhos de Hércules para eximir-se da culpa de ter matado a família. O recurso à democracia militante precisa ser pontual e limitado, contextual, sob pena de se colocar em risco a própria democracia e caracterizar um impedimento à vontade de ter vontade, assumindo natureza de constitucionalismo abusivo.

A dificuldade enfrentada pela Corte além das críticas que são direcionadas à democracia militante, volta-se para o fato de que no âmbito de propagação de fake news nem todas as pessoas acreditam que a democracia é a melhor forma de governo, de modo que nem sempre valores, princípios e práticas democráticas serão refletidos nas condutas e haverá sempre alguém disposto a atacar a democracia, inclusive colocando em xeque a independência da Corte. Além do mais, não há como dissociar a atuação das instituições democráticas, nesse caso o STF, da crise democrática que atinge o Brasil. O desafio se abre ao futuro. A tarefa de Hércules será concluída com êxito?

8.        CONSIDERAÇÕES FINAIS 

O combate às fake news é um desafio recente, para o qual ainda não existe uma solução consolidada. Diante de uma intervenção por parte do Estado, parece inevitável o conflito com liberdade de expressão. Mas é uma decorrência da atuação no modo democracia militante. A atuação da Corte foi legítima, enquanto jurisprudência de contexto, pontual, o que não significa que a exceção deve se tornar a regra, sob pena de se materializar uma espécie de constitucionalismo abusivo. O STF deve ser o guardião da Constituição e não necessariamente da vontade do povo.

REFERÊNCIAS 

ACCETTI, Carlo I; ZUCKERMAN, Ian. What’s wrong with militant democracy? Political Studies, v. 65, n. 1, p. 182-199, 2017.

ALEXANDER, Amy C.; WELZEl, Christian.  Myth of Deconsolidation: Rising Liberalism and the Populist Reaction.  Journal of Democracy, 28 de apr.2017. Disponível em:https://www.econstor.eu/bitstream/10419/170694/1/ile-wp-2017-10.pdf. Acessado em: 06.04.2024.

AVRITZER, Leonardo. Esfera pública sem mediação. Habermas, anti-iluminismo e democracia. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, v. 118, p. 13-40, 2023.

BARBOSA, Estefânia Maria de Queiroz; FRANCISCO, Guilherme Ozório Santander; HORSH, Henrique Severgnini. A erosão constitucional vista sob um enfoque judicial – como salvar a democracia em face dos tribunais em estados autoritários. In: CRUZ, et. al.. Erosão Constitucional. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2022.

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[1] Tradução livre: This technique could be victorious only under the extraordinary conditions offered by democratic institutions. Its success is based on its perfect adjustment to democracy. Democracy and demo- cratic tolerance have been used for their own destruction. Under cover of fundamental rights and the rule of law, the anti-demo- cratic machine could be built up and set in motion legally (LOEWENTEIN, 1937a, p . 423).

[2] Tradução livre : Constitutional scruples can no longer restrain from restrictions on demo- cratic fundamentals, for the sake of ultimately preserving these very fundamentals. The liberal-democratic order reckons with nor- mal times. The guarantee of individual and collective rights serves as a legal basis for compromise between interests which, to be sure, may fall into conflict, but which nevertheless are animated by common loyalty toward the fundamentals of government (LOEWENTEIN, 1937a, p . 432).

[3] Tradução livre: If democracy is convinced that it has not yet fulfilled its destination, it must fight on its own plane a technique which serves only the purpose of power. Democracy must become militant ( LOEWENSTEIN, 1937a, p. 423) .

[4] Tradução livre: In other words, democracy can be more aggressive towards those who do not believe in it and its values (TYULKINA, 2015a, p. 519).

[5] Tradução livre: becomes militant only in the defence of the agreed right procedure of social change and those basic virtues and values (…) which are the basis of the peaceful functioning of a social order.The new militant  democracy will. therefore develop a new attitude to values. (…)  as it will have the courage to agree on some basic values which are acceptable to everybody who shares the traditions of Western civilization (MANNHEIM  1943, p.7).

[6] Tradução livre: In other words, liberal constitutions should not function as suicide pacts, and must be prepared to take self-defensive actions when needed. (TYULKINA, 2015a, p.520)

[7] Tradução Livre. Judicial controls can play an important role in preventing the political misuse of militant democracy measures and preserving legal guarantees of fundamental rights where such rights may be curtailed for the sake of protecting democracy (TYULKINA, 2015a, p.524)

[8] Tradução livre: “Government Disinformation” measures how often governments and their agents use social media to disseminate misleading viewpoints or false information to influence their population. “Political Polarization” measures the extent to which society is polarized into antagonistic and political camps where political differences affect social relationships beyond political discussions (RELATÓRIO, 2023, p. 26)

[9] Tradução livre: Polarization becomes toxic when it reaches extreme levels. Camps of “Us vs. Them” start questioning the moral legitimacy of each other and start treating opposition as an existential threat to a way of life or a nation. Once political elites and their followers no longer believe that political opponents are legitimate and deserve equal respect, democratic norms and rules can be set aside to “save the nation”. This is a dangerous development. (RELATÓRIO, 2022, p. 30)

[10] Tradução livre: In Brazil, President Jair Bolsonaro asked supporters to coordinate rallies on September 7th, 2021 in support of anti-democratic calls, including the removal of all supreme court judges and the specter of a military coup (RELATÓRIO, 2022, p. 26).

[11] Tradução livre: , the use of constitutional tools to create authoritarian and semi-authoritarian regimes is increasingly prevalent. Powerful incumbent presidents and parties can engineer constitutional change so as to make themselves very difficult to dislodge and so as to defuse institutions such as courts that are intended to check their exercises as power. ( LANDAU, 2013, p. 191)

[12] Tradução livre: Despite the broadly liberal outlook of many ‘neo-militant’ theorists, the discourse on militant democracy reproduces a largely exclusionary elitist notion of democratic government built on a deep-rooted mistrust in the people to govern themselves ( MALKOPOULOU E  NORMAN 2018, p. 443)  

[13] Tradução livre.  However, as we will argue in the following, militant democracy, even in its neo-militant version, retains an elitist and illiberal core, and representes a model of democratic self-defence with potentially damaging implications for the broader arena of democratic politics ( MALKOPOULOU E  NORMAN 2018, p. 446)   

[14] Trad. Livre: We define “fake news” to be fabricated information that mimics news media contente in form but not in organizational process or intent. Fake-news outlets, in turn, lack the news media’s editorial norms and processes for ensuring the accuracy and credibility of information . (LAZER, et.al, 2018, p. 1094.

[15] Trad. Livre: Fake news overlaps with other information disorders, such as misinformation (false or misleading information) and disinformation (false information that is purposely spread to deceive people). (LAZER, et.al, 2018, p. 1094.

[16] Tradução livre: much remains unknown regarding the vulnerabilities of individuals, institutions, and society to manipulations by malicious actors ”( LAZER et.al., 2018, p. 1094)

[17] Tradução livre: Evaluations of the medium-to-long–run impact on political behavior of exposure to fake news (for example, whether and how to vote) are essentially nonexistent in the literature. (…) Evaluations of the medium-to-long–run impact on political behavior of exposure to fake news (for example, whether and how to vote) are essentially nonexistent in the literature  


[1] Possui graduação em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestrado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente é Desembargador Federal no Tribunal Regional Federal da 6ª Região e Professor Adjunto III da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: estado democrático de direito, hermenêutica, direito comparado, relações igreja-estado e direito contemporâneo. Brasil. Email: alvaro.sc@terra.com.br

[2] Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Licenciado em História pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras do Alto São Francisco Pós-graduado em História Moderna e Contemporânea pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em História Social do Brasil e de Minas pela Universidade Vale do Rio Verde de Três Corações. Doutorando em Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais ( Com bolsa da FAPEMIG). Advogado. Bolsista FAPEMIG. Brasil. Email: advogadogilberto@hotmail.com