REGISTRO DOI:10.69849/revistaft/th102411151542
Joanna da Silva
Thaynara Nascimento Almeida
RESUMO
A crônica Vocês não viram Iracema?, presente na coletânea intitulada Um solitário à espreita (2013), de autoria do escritor amazonense Milton Hatoum, foi utilizada como objeto da pesquisa que se desenvolveu ao longo deste Projeto de Iniciação Científica. O objetivo proposto ao projeto em tela consistiu em discutir e analisar as imagens e sentidos que o cronista constrói em torno das personagens, Iracema e Suely, protagonistas dos filmes/documentários, Iracema, uma transa Amazônica, de Jorge Bodanzky, e O céu de Suely, de Karin Ainouz, que no caso, foram também objetos de referência do autor/cronista. Partindo do pressuposto que o material midiático constitui-se artefato de grande valor cultural, devendo ser analisado criticamente, a metodologia aplicada à pesquisa foi de natureza bibliográfica e analítica, que consistiu numa abordagem crítico-analítica acerca da contextualização histórico-social apresentada na crônica de Milton Hatoum, e nos dois filmes/documentários; já a discussão e análise em torno da vida errante das duas protagonistas, Iracema e Suely, que partiram do interior do Brasil para centros mais avançados, em busca de uma vida melhor, foi subsidiada pela teoria crítica feminista e de gênero que, aplicada ao texto literário, ao enredo e imagens fílmicas, nos permitiu proceder a análise crítica a respeito dos (des)caminhos seguidos pelas duas mulheres/protagonistas, que, apesar dos esforços empreendidos, não conseguiram romper com o movimento de (des)continuidade que as aprisionou à margem de uma sociedade excludente e discriminatória, que, cada vez mais, impele as pessoas pobres e marginalizadas, para o fundo do abismo social e existencial. A pesquisa proposta buscou subsidio teórico em autor(a)es como Adriana Piscitelli (2005), Antônio Costa (1989), Bell Hooks (2018), Giselle Gubernikof (2016), Heleieth Saffioti (1987), Luciana Villarinho (2002), Luiz Carlos Merten (2003), Luiza Bairros (2020), Marc Ferro (2010), Regina Dalcastagné (2008), Stuat Hall (2000), Thomas Bonnici (2003; 2007), entre outros estudiosos da área cujos textos contribuíram com os pressupostos da pesquisa em tela.
Palavras-chave: Iracema e Sueli. Imagens e sentidos. Milton Hatoum. Cinema.
- INTRODUÇÃO
Como se constrói literariamente o perfil feminino a partir do texto literário e de imagens fílmicas, produzidos em diferentes contextos? Como colocar em evidência a figura da mulher pobre para discutir questões relacionadas ao ser marginalizado tomando a própria margem como local de enunciação?
Ao problematizar questões em torno das representações sociais construídas a partir do texto literário e do cinema, considero oportuno citar Stuat Hall (2000), pois, segundo este, o estudo das representações de gênero na literatura e no cinema, bem como em outras produções artísticas e culturais, nos permite observar atitudes e posicionamentos muito significativos, isso porque as produções culturais, enquanto práticas sociais, constituem um campo de luta pela construção de significados.
Nesse sentido, acredito que a literatura, assim como outras produções de natureza artística e cultural, com certeza nos possibilita vislumbrar não só a emergência de diferentes categorias estéticas e analíticas, mas também a dimensão ideológica, social, cultural e política em que o texto se inscreve, uma vez que o espaço literário, como bem nos orienta Antônio Candido (2008), é território onde se constroem e se validam representações do universo social.
Concernente ao posicionamento crítico dos autores citados acima, é possível discutir o papel do cinema nacional a partir da década de 1970, que, mesmo sob o pesado sistema de censura e repressão do governo militar no Brasil, a partir das décadas de 1960 e 1970, ocupou um lugar de destaque na sociedade e na história do povo brasileiro, por seu posicionamento de luta e resistência contra as injustiças sociais da época, mesmo sob a repressão que o regime militar impunha naquele momento historico.
Nesse sentido, cabe ressaltar ainda que, assim como a Literatura, o cinema é atividade que representa o mundo, o homem e aspirações de um povo em um determinado contexto histórico-social, seus anseios individuais, o imaginário, os sonhos e ideais que coincidem com os anseios e a fantasia de uma coletividade.
Este conceito de arte como instrumento de representação social nos possibilita pensar, e também problematizar, acerca da complexa função humanizadora que o cinema exerce enquanto Arte e Ciência frente a sua capacidade representativa no contexto histórico, político e social, entre outros, pois é através da arte, desde épocas muito remotas, que o homem busca expressar de forma realista, ou simbólica, experiências vividas, sejam elas individuais ou coletivas.
Diferente das histórias contadas e recontadas, que são passadas de geração para geração, ou dos livros que são lidos e relidos, o cinema traz o encanto das imagens, a agilidade dos acontecimentos, onde tudo parece real. Porém, é justamente por seu conteúdo mimético, sua aproximação com o real, sua natureza e capacidade denunciativa das mazelas sociais sofridas por determinado grupo, e em diferentes épocas, que a produção cinematográfica no Brasil, durante o período histórico da ditadura militar, foi fortemente atingida pela repressão dos poderes constituídos.
A respeito da natureza irreverente e transgressora da arte cinematográfica, Marc Ferro (1976) esclarece que o cinema,
destrói a imagem do duplo que cada instituição, cada indivíduo se tinha constituído diante da sociedade. A câmera revela o funcionamento real daquela, diz mais sobre cada um do que queria mostrar. Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros, tira as máscaras, mostra o inverso de uma sociedade, seus “lapsus”. É mais do que preciso para que, após a hora do desprezo, venha a da desconfiança, a do temor […]. A idéia de que um gesto poderia ser uma frase, esse olhar, um longo discurso é totalmente insuportável: significaria que a imagem, as imagens […] constituem a matéria de uma outra história que não a História, uma contraanálise da sociedade (FERRO, 1976, p. 202-203).
É com base nesse pressuposto, e por acreditar na importância da representatividade cinematográfica como testemunho singular de seu tempo, que essa pesquisa objetiva debater questões relacionadas à representação feminina em diferentes campos artísticos e culturais. E nesse sentido, Adelaine LaGuardia (2015) nos assegura que, embora algumas pessoas dentro do próprio debate feminista considerem esse tipo de abordagem já “superado”, ele não perdeu sua importância no campo da crítica literária, pois,
[…] se a crítica feminista hoje prioriza uma abordagem “ginocrítica”, como propugnou Elaine Showalter, a pertinência política de se estudar as representações femininas em obras literárias não perdeu sua relevância, especialmente quando se considera que o funcionamento ideológico, segundo o pensamento marxista mais recente, apoia-se nos “sistemas de representação”, dos quais conferimos sentido às nossas condições reais de existência. Em outras palavras, como um sistema de representação, a linguagem literária incorpora imagens, fantasias, estereótipos e valores circulantes na sociedade, e assim, contribui para sua sobrevivência e difusão (o que os marxistas denominam “reprodução”) (LAGUARDIA, 2015, p. 15).
O caráter político e sociocultural que envolve as discussões em torno das representações femininas no cinema, na literatura, e em outras formas expressões artísticas, aponta que essas discussões na contemporaneidade não aprisionam mais a mulher dentro de uma perspectiva “essencialista”, e sim, como “categoria política heterogênea, ao levar em conta a multiplicidade que recorta suas experiências, condição e lugar social, “seja como mulher casada ou solteira, rica ou pobre, trabalhadora ou dona de casa, branca, negra ou indígena, velha ou jovem, hétero ou homossexual, imigrante ou nativa” (LAGUARDIA, 2015, p. 15).
Partindo do princípio de que a linguagem é um dos mais fortes mecanismos de imposição e manutenção do poder, e reconhecendo a importância da literatura e do cinema como campo de registro de diferentes vozes silenciadas e subalternizadas pelo poder hegemônico, a problemática definida como central nesta pesquisa é que o discurso hegemônico sempre procurou justificar a condição de marginalização e subordinação do outro, principalmente do ser feminino, relacionando-a a questões de gênero, sexualidade, classe social e raça/etnia, aspectos estes que resultam em diferentes formas de discriminação e marginalização do Outro.
Assim, ao delimitar o campo de discussão e análise que norteará estte projeto de Iniciação Científica, o objetivo proposto para o estudo consistiu em discutir e analisar as imagens e sentidos construídas em torno do ser feminino, as expectativas e os (des)caminhos que atravessam a vida errante de duas mulheres pobres e marginalizadas, que o texto literário e as imagens e cenas fílmicas captam com precisão, no mais íntimo do ser.
No entanto, para desenvolver uma pesquisa acerca da representação feminina a partir de determinadas produções artísticas e literárias, é importante reunir teórica(e)s e pesquisador(a)es que dialoguem com a temática de forma crítica, como é caso de Adriana Piscitelli (2005), Antônio Costa (1989), Bell Hooks (2018), Luiza Bairros (2020), Joan Scott (1995), Márcio Souza (2009), Marc Ferro (2010), Regina Dalcastagné (2008), Simone de Beauvoir (2009), Thomas Bonnici (2003; 2007), entre outros estudiosos da área que venham contribuir com a pesquisa.
Como justificativa para o estudo, considero imprescindível enfatizar a carência de pesquisas nessa área, que além de discutir aspectos relacionados à mulher, tomam como objeto de estudo o texto literário de contextualização amazônica, como é o caso da obra do consagrado escritor amazonense, Milton Hatoum, que através de um texto rápido e suscinto, como é a crônica, busca resgatar do nosso acervo histórico e cultural, duas produções duas produções cinematográficas que, como é muito comum, com o passar do tempo, acabam caindo no esquecimento.
Além desse fato, outra questão que também atribui relevância à pesquisa, é própria natureza do objeto abordado, uma vez tratar-se de uma obra contemporânea de um escritor renomado, e por isso capaz de dar sustentabilidade à pesquisa crítica/analítica aqui proposta, que vai girar em torno da construção e representação da mulher amazônica e nordestina, representadas pelas personagens, Iracema e Suely, presentes na crônica hatouniana, intitulada Vocês não viram Iracema?.
A referência feita por Hatoum a essas duas personagens se deve ao fato das duas, Iracema e Suely, também serem as protagonistas das duas produções cinematográficas. As cenas projetadas nos dois filmes/documentários, Iracema, uma transa Amazônica, de Jorge Bodanzky, e O céu de Suely, de Karin Ainouz, servem de inspiração, servem de inspiração para o cronista, que, através das imagens e sentidos projetadas na tela, estabelece um ponto de diálogo, e aproximação, entre as duas protagonistas.
É justamente essa aproximação entre as duas personagens, Iracema e Suely, que tomaremos como objeto de análise dentro desta pesquisa, pois buscaremos situar nosso olhar sobre essas duas mulheres, a fim de problematizar diferentes aspectos que se relacionam a condição e representação do ser feminino na trama cinematográfica, aqui eleita objeto de estudo.
E para dar sustentabilidade à discussão em tela, recorremos a estudiosos do campo dos estudos culturais e de gênero, e da teoria crítica feminista, para dar suporte à análise dos diferentes aspectos relacionados a construção e representação dessas duas personagens eleitas como protagonistas centrais nos dois enredos cinematográficos.
3. OBJETIVOS
3.1 OBJETIVO GERAL
– Analisar de maneira crítica as imagens e sentidos criados em torno das personagens femininas Iracema e Suely, a partir da crônica de autoria do escritor Milton Hatoum, Vocês não viram Iracema? (2013), também protagonistas dos filmes/documentários, Iracema, uma transa Amazônica, de Jorge Bodanzky, e O céu de Suely, de Karin Ainouz.
3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS
– Mapear e discutir diferentes aspectos relacionados a construção e representação que se projetam sobre as duas mulheres/personagens Iracema e Suely, protagonistas no enredos literário e cinematográfico, da crônica hatouniana Vocês não viram Iracema?, em dos filmes/documentários, Iracema, uma transa Amazônica, de Jorge Bodanzky, e O céu de Suely, de Karin Ainouz.
– Focalizar pontos de diálogos que o cronista estabelece entre as duas protagonistas, para então prob0lematizar diferentes aspectos que se relacionam a condição e representação do ser feminino na crônica e na trama cinematográfica.
-Desenvolver uma abordagem crítico-analítica acerca da contextualização histórico-social apresentada na crônica e nos dois filmes/documentários eleitos como objeto de pesquisa no presente Projeto de Iniciação Científica.
- METODOLOGIA
A metodologia proposta para esta pesquisa será de natureza bibliográfica e analítica, tomando como objeto principal de investigação a crônica Vocês não viram Iracema?, presente na coletânea intitulada Um solitário à espreita (2013), de autoria do escritor amazonense Milton Hatoum. A pesquisa que se pretende desenvolver será de natureza bibliográfica e analítica, que consistirá numa abordagem crítico-analítica acerca da contextualização histórico-social apresentada na crônica e nos dois filmes/documentários, buscando focalizar aspectos da vida errante das duas personagens/protagonistas, Iracema e Suely, que partem do interior do Brasil para centros mais avançados, em busca de uma vida melhor. O estudo será subsidiada pela teoria crítica feminista e de gênero que, aplicada ao texto literário e ao enredo e imagens fílmicas, nos permitirá proceder uma análise mais profunda acerca dos (des)caminhos seguidos por essas duas mulheres, que em meio aos percalços de uma trajetória de vida errante, não conseguem romper com o movimento de (des)continuidade que cada vez mais as aprisiona à margem de uma sociedade que insiste em engambelar o pobre e o empurrar mais e mais para o fundo do abismo social e existencial. A pesquisa aqui proposta será subsidiadas pela teoria crítica feminista e de gênero que, aplicada ao texto literário e ao enredo cinematográfico nos possibilite pensar a missão e o compromisso do escritor e do roteirista com a vida, e com a sociedade, ao transformar sua criação literária e artística em arte identificada com os anseios e inconstâncias do ser humano diante do mundo. Para tanto, buscaremos amparo teórico em autor(a)es como Adriana Piscitelli (2005), Antônio Costa (1989), Branca Moreira Alves & Jacqueline Pitanguy (1985), Luiza Bairros (2020), Márcio Souza (2009), Marc Ferro (2010), Regina Dalcastagné (2008), Simone de Beauvoir (2009), Thomas Bonnici (2003; 2007), entre outros estudiosos da área que venham contribuir com a discussão e análise, nos possibilitando uma fundamentação teórica capaz de subsidiar a pesquisa em tela.
- RESULTADO FINIAL
Cinema e representação das adversidades sociais
O cinema surgiu no fim do século XIX ligado à tradição realista que imperava na época, mas o conceito de cinema não é algo que se encaixa somente a uma resposta, pois, para algumas pessoas o cinema é apenas uma distração, e uma forma de entretenimento e para outros o cinema é imaginação, é arte, realidade, espaço de críticas sociais e expressão cultural, também podendo ser renda financeira para o comércio. No entanto, não é certo definir o cinema apenas com uma palavra, mas ressignificar a cada pensamento e respostas pessoais. Segundo Luiz Carlos Merten (2003, p. 7), “a grandeza do cinema está na sua diversidade. Não há só um caminho para o cinema, ele encerra em si todos os caminhos”.
Dessa maneira pode-se compreender que o cinema é também um modo de representatividade social, capaz de elaborar cenas e tratar de assuntos que quebram quaisquer formas de preconceito e discriminação. Visto que no cenário brasileiro e nos filmes Iracema, uma Transa Amazônica e O Céu de Suely, o cinema apresenta duas mulheres como muitas brasileiras marginalizadas que estão em busca de uma vida melhor e acabam escolhendo caminhos que as deixam a mercê da sociedade. Essa é uma realidade que rodeia o nosso cenário brasileiro, no qual os filmes representam os descaminhos causados pela falta de oportunidade, desemprego e abandono de lar.
Contudo, o cinema não se polariza, pois através deste é possível encontrar respostas que se encaixam em distintos pensamentos e pode-se enxergar o reflexo de uma sociedade mediante as denúncias que são reais e expostas no mundo cinematográfico. Assim, pode ser visto no filme Iracema, uma Transa Amazônica, pois distorce o Brasil ilusionista no momento da Ditadura Militar e reflete os problemas sociais e ambientais como: prostituição; miséria; queimada e desmatamento. Para Sheila Schvarzman, (2007 p. 36),
O cinema é, portanto, um meio que se emprega para conhecer um âmbito maior, é um meio a partir do qual se lança mão para conhecer sentimentos, subjetividades, reações. Ou o espelho onde se observa a forma de encenar a mulher, ou o homem: as representações.
Para chegar nessa grande diversidade de expressões culturais, o cinema teve uma intensa trajetória desde o seu surgimento até aqui. De acordo com Renato Mocellin (2009), os irmãos Lumière foram os pioneiros que criaram uma máquina a qual marcou a história do cinema a partir de 28 de dezembro de 1895, na França, com seus curtas metragens e se tornou a sétima arte. Desde então o cinema chamou a atenção do público por ser algo inovador, capaz de representar a realidade em fleches da luz, e foi crescendo, se desenvolvendo até que chegou ao Brasil no ano de 1897. Com esse avanço o cinema deixou de ser visto apenas como uma distração e diversão, passando a ser considerado como arte e canal de comunicação utilizado para mostrar problemas sociais e ambientais.
A importância do cinema para a história e para a sociedade vem através dessas representatividades, onde a luta por democracia e liberdade se destacam e atravessam fronteiras como uma forma de denunciar a censura que estavam vivendo no momento pelo governo atuante. No ano de 1964 ocorreu o golpe no Brasil sendo este a Ditadura Militar durou 21 anos. O governo era regido por generais militares, que ao tomar posse buscaram transformar o país em uma ditadura, censurando quaisquer movimentos que se posicionassem contra. Foi retirado dos cidadãos o direito de voto, o direito de expressão e de fala, e quem se opusesse era linchado, com isso foram anos de tortura e repressão. O cinema sofreu muito com esse governo, pois o movimento do cinema novo criticava e denunciava a forma como o Brasil estava aquele momento.
O cinema novo rompe com as propostas de filmes que buscavam apenas o entretenimento e retrata a realidade do país, faz crítica a burguesia, luta pela liberdade de expressão, mostra o que os militares estavam fazendo com a sociedade e por estes motivos os filmes eram cortados e não podiam ser reproduzidos. Segundo Leonor E. Souza Pinto (2006, p4),
Sua ação no cinema brasileiro buscou moldar a produção aos projetos políticos do regime. O lema central era proibir, sempre que possível. Na impossibilidade de proibir, cortar, se as duas opções falhassem, “colocar na geladeira”, significando engavetar o processo de requisição de censura sem, no entanto, admitir o feito. O processo permanecia “em análise”, sem que nenhum parecer fosse emitido. Assim, os produtores não tinham argumentos para sequer negociar com a censura. Esta atitude podia levar meses, até anos. Enquanto isso, o regime garantia que o filme não iria a público.
Após o final do Ditadura Militar, o cinema brasileiro cresceu ainda mais e os recursos para as produções cinematográficas melhoraram, e além de retratar a realidade, oferecer entretenimento, serviu como uma forma de aumentar a renda econômica, por ser uma tecnologia inovadora as pessoas queriam prestigiar e pagavam para entrar na sala, como ainda acontece nos dias de hoje, e isso serviu para impulsionar a economia. Mas o cinema é considerado também uma importante ferramenta de poder e resistência social no mundo globalizado, como nos explica Luiz Carlos Neiton: “No novo mundo globalizado, só a cultura regional e, dentro dela, o cinema, serão instrumentos de resistência contra a dominação que se afigura poderosa como um rolo compressor” (2003, p. 10).
Com essa revolução tecnológica, o cinema passou a ser visto como uma ferramenta para mostrar e passar a mensagem para as pessoas como o real pode ser reproduzido na arte e como os filmes conseguem retratar com sarcasmo e ironia um momento tão aterrorizado como o período do regime militar. Segundo FERRO (1992 p.39),
De L’Alffaire Dreyfus, de Méliès, a Gardarem lo Larzac, seria possível imaginar que há muitos filmes antimilitaristas. Na realidade, esses filmes frequentemente paródicos ou marginais, abordam as singularidades do militarismo, o espírito militar, o ridículo e a ingenuidade dos seus dogmas. Eles mostram por exemplo a que situações trágicas ou absurdas a aplicação de seus preceitos pode conduzir: ao suicídio, à morte e à derrota.
Servindo para emocionar e expor a realidade de muitos, faz com que o espectador consiga sentir e ver suas vivências através dos filmes. Mas para que tenha todos esses resultados, os filmes são realizados em conjuntos com imagens, sonorização e movimentos que formam a linguagem cinematográfica. Logo no surgimento do cinema, os curtos metragens eram mudos, as imagens eram em preto e branco, apresentava-se apenas projeções que passavam e se movimentavam.
Logo com os avanços tecnológicos e os estudos na área, a arte cinematográfica foi evoluindo e se modernizando, passou a incluir o som, as cores e efeitos especiais, dando lugar e identidade ao cinema vivo, como temos hoje. As realidades foram impostas no cinema como documentários que retratavam histórias a partir de fatos reais. No entanto, os filmes precisavam ser dirigidos, com roteiros e narrativas, dando início ao material que é editado e enfatizado com foco na mensagem que o filme vai passar ao espectador. Assim, como diz Jean-Claude Bernardet (1996, p. 33), “os passos fundamentais para a elaboração dessa linguagem foram a criação de estruturas narrativas e a relação com o espaço.”
Essas estruturas que representavam a realidade se tratava de documentários produzidos e gravados por grupos pequenos, que buscavam/buscam mostrar na tela aspectos culturais e sociais relevantes, e que carecem de maior visibilidade, o que motiva toda uma equipe de produção produzir, filmar e projetar para o público, fatos verídicos, que realmente estava acontecendo, ou aconteceu, em um determinado espaço e tempo, sem efeitos especiais ou montagens. É importante enfatizar que um documentário não é escrito ou imaginado pelo autor, e sim montado um roteiro através das vivencias a serem contadas, a partir daí, passa a ser produzido com pessoas que fazem parte da realidade a qual será exposta no filme, mas para sua realização, é necessário que o roteirista tenha conhecimento do tema que vai ser retratado e passado ao espectador.
O filme, antes de ser gravado e produzido, passa pelo crivo do autor, que se encarrega de produzir os roteiros que os atores profissionais seguirão, com as falas e cenas que serão produzidas para mostrar veracidade, ainda que seja apenas ficção. Essa é a diferença entre documentário e cinema, pois este último tem como característica mostrar a trama da ficção com edições e roteiros prontos, enquanto o documentário monta o roteiro conforme as condições filmadas. A esse respeito, Manuela Penafria (2003 p.8), faz o seguinte esclarecimento:
O filme documentário lembra-nos a nossa presença no mundo, lembra-nos que fazemos parte do mundo e que interagimos com ele. Contudo, antes de representar algo, o cinema trabalha o movimento. A imagem especificamente cinematográfica, a imagem em movimento.
Concernente as questões aqui tratadas, cabe enfatizar que o documentário Iracema, uma Transa Amazônica, retrata uma história baseada em fatos reais, pois na região em que foi produzido estava acontecendo tudo o que o documentário procura denunciar. Como se trata de uma produção criada durante a era da ditadura militar, esse documentário sofreu uma forte censura, que o impediu de ser mostrado ao público na época de sua produção e lançamento, pois seu conteúdo mostrava uma realidade contrária à que o governo da época buscava divulgar: uma rodovia coberta de fumaça provocada pelo desmatamento, pessoas vivendo em condições miseráveis, exploração sexual de menores, entre outras. Já o filme O Céu de Suely, expõe a vida de uma jovem como muitas no senário brasileiro, que não tem oportunidade e muito menos privilégios. Suely, se envolve com um homem ainda nova e tem um filho, depois se torna mãe solo e sai em busca de uma vida melhor. Apesar de ser uma história presente no nosso cotidiano, se trata de um filme, com roteiros prontos e atores profissionais contratados, e que se prepararam para gravar as cenas.
Entretanto, o cinema marcou a história brasileira, pois tem como objetivo retratar a realidade do país da maneira mais fiel possível, cada época vivida e os fatos acontecidos. Os filmes trazem entretenimento e ao mesmo tempo abre os olhos da sociedade com histórias reais, e também fictícias, como uma arte que deslumbra o espectador. Antônio Costa, (1989, p.27) afirma que “O cinema é uma linguagem que tem parentesco com a literatura, possuindo em comum o uso das palavras das personagens e a finalidade de contar histórias”.
- A representação da mulher no cinema
O cinema é uma arte icônica no mundo, que apesar de todas as dificuldades de expor suas críticas sociais e conseguir um espaço nas mídias devido a censura na ditadura militar, se tornou uma das artes mais valorizadas e reconhecida no mundo todo. Mas assim como em todas as áreas profissionais, o cinema ainda é muito carente da representatividade feminina. Apesar do cinema ter o intuito de mostrar a realidade, existe uma cultura que precisamos lutar para desconstruir: a de que a mulher nasceu e foi criada para servir o homem, e por isso, o homem precisa estar sempre à frente da mulher. Assim como diz a autora Giselle Gubernikof (2016 p. 14) “Historicamente, a sociedade brasileira criou um constrangimento físico e moral sobre a mulher por meio da família patriarcal. A hegemonia masculina, de dominação e poder, marca profundamente a vida e a mentalidade da mulher brasileira”.
Essas expectativas machistas que se tinham em torno do papel da mulher na sociedade, também fizeram parte de muitas representações exibidas no cinema, dentre elas, a manutenção da ideologia de submissão do ser feminino ao domínio do homem. Devido a maioria dos filmes serem dirigidos por homens, podia-se identificar a relação da mulher no cinema, sempre como a princesa, a mulher submissa e obediente, servindo ao homem, e consequentemente, por outro lado, cenas de dois homens brigando pela disputa do amor de uma mulher, como se ela fosse um troféu a ser conquistado pelo vencedor, aquele que ao ganhar a disputa, poderia leva-la para casa, como algo que lhe pertencia. Com isso, é percebível que em todo o mundo, o papel da mulher no cinema era refletir a realidade imposta na sociedade patriarcal. Segundo Giselle Gubernikof (2016 p.82),
Na história da cinematografia brasileira pode-se observar uma forte influência do sistema patriarcal e de seus valores, já que a participação da mulher na sociedade nunca foi total. Os mesmos conceitos se reproduzem, o da mulher como objeto ou como não participante da sociedade produtiva, já que a cultura oficial sempre esteve nas mãos das classes dominantes.
Dessa forma, a imagem da mulher era construída e mostrada como um ser frágil, doce, sensual, e/ou ingênuo, e nunca como um ser mulher forte, batalhador, capaz, e que não precisa da presença de um homem, marido e/ou filhos, para ser respeitada. Em toda a existência do cinema, nos filmes dirigidos por homens, os papeis destinados às mulheres buscavam reafirmar o conceito social da mulher como um ser inferior ao homem, protagonizando cenas de entretenimento, e nunca como a heroína, a vencedora, pois o papel de herói sempre foi protagonizado pelo homem. Neste sentido, em diversos momentos da história do cinema, o (não)protagonismo feminino ficou à sombra da figura masculina, relacionando sempre a figura da mulher como secundária a do homem. A esse respeito, Marcos Cezar de Freitas (2010, p. 226), faz a seguinte afirmação:
Livros sobre a história da mulher são raramente reeditados, o que significa que sua recepção, mesmo quando elogiada pela crítica acadêmica, não é abrangente. As teses defendidas sobre as questões que envolvem a mulher, incidem mais sobre a história da família, do casamento, ou da sexualidade, do que sobre a mulher.
Ao analisar mais profundamente essa questão apontada por Freitas (op. cit.), observamos que essa cortina patriarcal e machista, que por muito tempo imperou no campo cinematográfico, sendo responsável pelo ofuscamento da imagem da mulher, sob o protagonismo masculino, ainda tem alguns reflexos nos dias atuais. Prova disso, é o fato de que ainda na atualidade, não é muito comum ver as mulheres por trás das câmeras, como diretoras, produtoras, cineastas, mas sim, diante das câmeras, como entretenimento e objeto de sensualismo. É possível reconhecer que atualmente o preconceito profissional nesta área já diminuiu bastante, no entanto, a representatividade feminina diminuída e marginalizada ainda está presente na indústria cinematográfica.
A esse respeito, os descaminhos trilhados pelas personagens Iracema e Suely não fogem à regra, pois refletem um pouco dessa sociedade machista, que relega às mulheres o papel sentimental, acolhedor, aquela que cuida de casa, que serve ao homem e que foi feita para procriar, e não, o papel da mulher forte, determinada, que toma as rédeas da sua vida e alcançam a vitória. Por esse motivo, nos dois filmes propostos para discussão e análise neste Projeto de Iniciação Científica, busco discutir um pouco sobre essas questões com base nas duas personagens femininas, Iracema e Suely, mostrando a realidade de duas mulheres que buscam uma vida melhor e no decorrer dessa procura, acabam se perdendo nos (des)caminhos da vida, devido a situação econômica e social imposta a elas. As dificuldades e empecilhos impostos a essas duas mulheres/personagens, Iracema e Suely, nos levam a refletir e questionar sobre os motivos dos abandonos e da falta de oportunidade que elas enfrentam, e que também são reais para muitas mulheres nos dias atuais.
- Entre Iracema e Sueli: imagens, sentidos e representações da mulher no cinema nacional.
O filme/Documentário Iracema, uma transa Amazônica, de Jorge Bodanzky, conta a história da jovem ribeirinha, com baixa estatura, de cabelos escuros e lisos, olhos espichados e pele morena, Iracema tinha todos os traços de uma indígena, até mesmo a maneira de falar. O filme apresenta denúncias sociais devido à exploração de trabalho, a falta de assistência do governo à população mais distante dos centros econômicos do Brasil, a prostituição de menores, e tudo isso em meio ao desmatamento florestal, às queimadas, à exploração da madeira na região amazônica, que acontecia nas décadas de 1960 e 1970, em decorrência da construção da rodovia Transamazônica.
Assim como acontecia com a floresta Amazônica, que estava sendo explorada por homens que vinham de outros estados e regiões, a personagem Iracema também pode ser lida como uma metáfora da exploração sofrida pela região naquele momento histórico, e essa ideia de mostrar a realidade daquele lugar, através dessa personagem emblemática, é contrário ao ideário de integração e desenvolvimento pregado pelo discurso político da época. Como já dito, o filme foi produzido durante a Ditadura Militar, e nessa época, pregavam que a construção da rodovia era uma necessidade de integração e desenvolvimento para o Brasil, enquanto o filme mostra o contrário. A esse respeito, LAPERA, 2008, p. 6, faz a seguinte afirmação:
há um jogo metafórico e metonímico entre a trajetória de Iracema e a de milhares de índios: a) em um primeiro momento, a perda dos pais/contato com sua cultura; b) a vida na cidade e a prostituição/assimilação forçada; c) mendicância e a degradação física/extermínio.
O filme traz essa lembrança da chegado dos portugueses ao Brasil, quando invadiram e tentaram fazer um aculturamento, forçando os indígenas a sair do seu habitar para servir ao homem branco. Foi toda uma guerra onde houve muito sangue derramado devido a tentativa de imposição violência de uma cultura sobre a outra. A personagem Iracema também representa traços dessa aculturação ao sair de seu habitar e enveredar por um caminho incerto e desconhecido, e em meio aos descaminhos de uma vida sofrida, em meio a um ambiente hostil e excludente, para sobreviver se vê obrigada a se prostituir, vender seu corpo ainda muito jovem, se submetendo a homens e lugares inadequados para sua idade.
A Jovem protagonista sai da sua casa, nas margens de um rio situado no interior da floresta paraense, e vai para cidade a cidade grande em um barquinho com sua família, a fim de festejar o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, que é uma festa religiosa e típica da região em Belém. Ao chegar na cidade, durante o dia Iracema passeia, brinca, toma banho de rio, e participa do Círio durante; a noite ela vai a uma festa acompanhada de pessoas estranhas, nessa festa ela, mesmo sendo menor, ingere bebida alcóolica e permanece na companhia de alguns homens e mulheres. Nessa mesma ocasião, a jovem conhece uma casa onde moram mulheres que se prostituem, e assim, sua vida de exploração sexual dá início nesse momento. Desde então, a jovem Iracema deixa a sua aparência de criança inocente, vestindo roupas simples, e começa a se vestir e se comportar como uma mulher adulta.
Ao chegar nessa casa onde hospedavam mulheres que se prostituíam, Iracema começa a vida como uma garota de programa, fazendo vestimenta de roupas mais vulgares e maquiagens pesadas, se moldando ao que ela estava vivendo no momento. Era uma moça de apenas quinze anos que iniciava a vida em um ambiente de exploração sexual inadequado para a sua idade. Iracema encontra nesse espaço, uma forma de ganhar a vida, por isso começou a se adaptar à noite fazendo uso de bebidas alcóolicas e fumando cigarros com os homens que iam ali buscar prazer e diversão com as jovens.
Dessa forma, Iracema saiu do seu ambiente familiar para seguir um outro caminho em busca de uma vida melhor, e em meio as incertezas de um caminho errante, em um determinado momento do filme, ao dizer que é uma pessoa que não tem paradeiro, e que sua sina é andar pelo mundo, ela se auto reconhece como um ser errante, que vaga pelo mundo sem oportunidades, sem um destino definido, e a única forma que encontra para sobreviver, é se prostituindo.
Essa falta de perspectiva que acomete a personagem, que a impele a vender seu corpo para ter dinheiro e se sustentar, é, segundo Romel Gomes (et al, 1999, p. 177), a mesma forma encontrada por muitas crianças e adolescentes em situação de rua no Brasil, e que também afirmam que a prostituição é a única forma que resta para ganhar dinheiro e se alimentarem miseravelmente, e que fazem isso por necessidade. Além disso, é comum essas crianças e adolescentes afirmarem também que saíram de casa porque eram abusadas por algum membro da família.
O filme não deixa claro o que aconteceu para Iracema tomar essa decisão de vender seu corpo, mas como afirma BRAGA (1982), as jovens que saem do interior e vão para cidade, se encantam com o ambiente, por ser algo novo e diferente da vida que levava na zona rural, e quando decidem viver ali, muitas delas, por não possuírem uma formação escolar básica, não conseguem emprego, e a única forma de se manter ali na cidade, é a prostituição.
O filme mostra diversas cenas de Iracema se arrumando para ir aos bares e botecos em busca de homens, no intuito de vender seu corpo e receber por isso. Em uma dessas noites, a jovem conheceu Tião, um caminhoneiro com quem Iracema se envolveu e viajou pela rodovia Transamazônica. A partir do momento em que ela se envolve com Tião começa uma nova história em sua vida, assim como muitas jovens que vivem nessa vida, a protagonista se encantou por Tião, e viu nele uma oportunidade de encontrar proteção e amparo para sua vida, além de poder viajar pelo mundo.
Porém, no decorrer das cenas, constatamos que o romance de Iracema com Tião trata-se apenas de um mero envolvimento de uma garota de 15 anos, ingênua e ignorante, com um homem mais velho, que estava a trabalho na região apenas à trabalho, um explorador, um aventureiro que não queria se comprometer com nada, e nem com ninguém, queria apenas lucrar e se divertir com as moças daquele lugar. Um típico caminhoneiro acostumado a fazer viagens longas, passando dias nas estradas, longe da família e, devido justamente a essa carência afetiva, acostumado a buscar prazer no álcool e em mulheres vulneráveis à prostituição.
Em uma pesquisa realizada por Luciana Villarinho (2002, p. 65), a respeito do comportamento desses trabalhadores, e dos riscos que envolvem as relações ocasionais, a autora constatou que o tempo em que permanecem fora de casa, esses homens confirmaram ser recorrente manterem relações sexuais com diversas parceiras ocasionais sem proteção. Além da cultura do comportamento de risco praticado pelos caminhoneiros, que envolve a alta probabilidade de contrair e transmitir doenças sexualmente transmissíveis, existe também a prática do crime de aliciamento de menores, pois assim como no filme/documentário, é comum eles se envolverem com meninas menores de idade.
Além de representar a classe dos caminhoneiros, com todas as suas implicâncias, essa personagem, Tião encena um discurso típico do homem branco e de caráter exploratório, e essas marcas são muito evidentes todas as vezes que ele fala sobre o desenvolvimento do País, as vantagens que aquele plano político de rodovia iria acarretar.
No entanto, as imagens na tela procuram enfatizar o contrário de tudo isso, mostram a decadência da paisagem e dos moradores daquele local, em do desmatamento, das queimadas, da exploração dos trabalhadores locais, do tráfico de pessoas e da prostituição de menores.
Tião é aquele típico homem que busca se divertir com mulheres mais novas, e essa é uma realidade muito recorrente nas regiões interioranas do Brasil, pois frequentemente muitos homens do Sul do país, que trabalham como caminhoneiros, ao viajarem a trabalho para as regiões Norte e Nordeste do Brasil, costumam se relacionarem com garotas de programa, e na maioria das vezes, essa garotas são menores de idade como no caso da jovem protagonista do documentário em análise.
Iracema, como diversas outras moças de origem de família pobre, sonha com um futuro melhor, tem planos de sair do local onde moram e ir para outra cidade, conhecer novos lugares, arrumar um emprego com um salário que possa suprir as necessidades básicas, e assim garantir uma vida melhor. Mas como a maioria dessas moças vindas de localidades distantes e isoladas, e por isso não conseguiram frequentar a escola, e adquirir uma educação formal, ou mesmo serem alfabetizadas, acabam achando que para elas resta apenas o caminho da prostituição, como única forma de sobreviver.
Assim é Iracema, uma jovem sem muita perspectiva ascensão na vida, pois seus pais eram pobres, não tinham escolaridade, e viviam de venda de produtos extrativistas, coletados no interior da floresta, para serem vendidos no comércio mais próximo, a fim de suprir as necessidades mais básicas, outras vezes, nem isso acontecia, pois os produtos coletados eram trocados por garrafas de cachaça.
As adversidades, e a falta de perspectiva, as vezes causam desânimo e falta de esperança na vida de muitas jovens que buscam por melhoria, e sonham com uma vida melhor. Foi o que aconteceu com Iracema, por isso ela se entregou a essa vida de incerteza, e saiu em viagem na companhia de Tião, mas, infelizmente, sua história não teve um final feliz, pois o caminhoneiro não tinha nenhuma intenção de se comprometer com ela, ou mesmo ampará-la, apenas a usou por um tempo, e depois a dispensou, como se fosse um objeto descartável, que serviu momentaneamente para satisfazer seus desejos de homem, e depois a largou em um bordel de beira de estrada, sozinha e sem acolhimento.
Abandonada na beira da estrada, a jovem mais uma vez teria que recomeçar toda sua vida, ali se viu perdida, sem esperanças e com raiva do homem que a usou e a enganou. Esses abandonos de parceiros tornam a mulher ainda mais transtornada e decepcionada com os homens e com a vida, pois além de sentir se humilhada, ela também se sente envergonhada, decadente, e traumatizadas com a falta de perspectivas. De acordo com Ribeiro, M. e Sacramento, O. (2014, p 205),
Simultaneamente, ao serem empurradas para as margens da sociedade, os estigmas sociais intensificam-se, tornando ainda mais graves as inúmeras consequências negativas que a elas tendem a estar associadas: inibição do acesso a serviços básico, stress, ansiedade, medo da exposição da identidade e permanente esforço de gestão da mesma, exaustão emocional, défice de participação cívica, baixas expectativas pessoais para o futuro, dificuldade para abandonar a prostituição, violência interpessoal e institucional.
Abandonada à margem da recém construída rodovia Transamazônica, Iracema protagoniza os efeitos da decadência feminina que acomete diversas mulheres relegadas à margem por falta de oportunidade: envelhece rapidamente, fica cada vez mais feia, sem dentes, sobrevivendo de forma miserável, às custas do dinheiro dos homens que passavam por ali à procura de sexo barato com mulheres vulneráveis. Enquanto isso, por outro lado, Tião encena o papel do homem branco que prospera às custas da exploração dos recursos naturais, e também de outras pessoas, exibe uma vida de privilégios e oportunidades, enquanto Iracema está mais feia e descaída, ele ostenta uma aparência mais bonita, limpo, bem vestido, usufruindo dos benefícios e privilégios da profissão de caminhoneiro.
Em O céu de Suely, filme produzido Karin Ainouz, conta a história de uma mulher chamada Hermila, que se envolveu com um homem chamado Mateus e tiveram um filho que a mãe chama carinhosamente de Mateuzinho. Hermila estava morando em São Paulo com seu companheiro e o filho, mas por decorrência das adversidades e dificuldades que estavam atravessando, decidem voltar para sua cidade natal no interior do Ceará. A jovem foi na frente levando o filho pequeno, confiando que Mateus fosse depois, pois ele precisa ficar em São Paulo ainda por um tempo, para resolver algumas pendencias. No entanto, isso não aconteceu. Passaram-se dias, Mateus não apareceu, nem deu mais notícias.
O amor de Hermila por Mateus, seguido da decepção amorosa, a impulsionou a sair de sua casa e ir para uma cidade grande atrás de melhorias, uma vez que estava muito decepcionada por não ter tido sorte na vida amorosa. Diante daquela posição de mulher abandonada, mãe solo, e enganada pelo parceiro, a única alternativa que lhe restava era ir embora daquele lugar e recomeçar, cuidar de si mesma e do filho. Mas para isso precisava de dinheiro, e como não conseguia trabalho que pagasse bem, o que conseguiu foi apenas lavar carros em um posto de gasolina, e diante da falta de recursos, e de perspectivas melhores, Hermila resolveu vender seu próprio corpo, afim de conseguir um dinheiro para seguir em frente.
Mais uma vez, a história se repete, pois assim como Iracema, Hermila se encontra diante da mesma situação de dificuldade, falta de perspectivas, uma realidade recorrente no Brasil, pois muitas mulheres que são mãe solo, e que não possuem formação escolar, não encontram espaço no mercado de trabalho. E a única alternativa que encontram é a prostituição. Ainda que seja apenas por uma noite, Hermila se prostituiu e deitou com um homem qualquer pôr dinheiro. Nesse sentido, os destinos das duas personagens, Iracema e Hermila são idênticos. Hermila também foi enganada pelo companheiro, e ainda teve que arcar com a responsabilidade sobre o filho, mesmo sem ter condições de sustenta-lo, enquanto Mateus, em nenhum momento se preocupou com o destino de Hermila e do filho, apenas decidiu seguir sua vida sem a responsabilidade afetiva.
A respeito das desigualdade que recaem sobre homens e mulheres, Heleieth Saffioti (1987, p 08), faz a seguinte afirmação:
Não é difícil observar que homens e mulheres não ocupam posições iguais na sociedade brasileira. (…) A identidade social da mulher, assim como a do homem, é construída através da atribuição de distintos papeis, que a sociedade espera ver cumpridos pelas diferentes categorias de sexo. A sociedade delimita, com bastante precisão, os campos em que pode operar a mulher, da mesma forma como escolhe os terrenos em que pode atuar o homem.
Assim a sociedade sempre pregou que o trabalho e oportunidades para mulheres é sempre mais restrito, mais difícil, e mais ainda para aquelas que não tiveram os privilégios de acesso à escola, a uma educação formal de qualidade. Por este motivo, o olhar que se dirige para Hermila vislumbra também a situação em que se encontram muitas mulheres brasileiras, principalmente, muitas jovens que saem da casa dos pais em busca de oportunidades melhores, se apaixonam, e acabam se frustrando no amor e na vida, isso as leva ao declínio e à falta de perspectivas.
No final do filme, Hermila consegue o dinheiro e vai embora, em busca de um recomeço, mas dessa vez vai sozinha, sem olhar para trás. Abandonou seu filho, que foi criado pela mesma tia que a criou, e é como se a história fosse se repetindo. O abandono da mãe e do companheiro, fez com que a personagem que representa muitas brasileiras também abandonasse o filho para ir buscar uma vida melhor. De acordo com Freston e Freston (1994. P 81.), no Brasil, as características da mãe solo que abandona os filhos para irem em busca de um futuro melhor, são de mulheres jovens, na faixa de 20 anos, sem muita escolaridade, às vezes apenas com o ensino fundamental I, que não possuem profissão definida.
Hermila tem uma trajetória muito parecida com a da personagem Iracema, que sai da casa dos pais ainda muito jovem, cheias de esperança, partem em busca de um futuro melhor, mas no decorrer da jornada são acometidas pela falta de oportunidades, mesmo assim, procuram seguir em frente, mas apesar dos esforços, não conseguem romper com o movimento de (des)continuidade que as aprisiona à margem de uma sociedade excludente e discriminatória, que insiste, cada vez mais arrasta as pessoas pobres e marginalizadas, para o fundo do abismo social e existencial.
- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tomando como mote de estudo e pesquisa a crônica Vocês não viram Iracema?, de Milton Hatoum, esta pesquisa teve por objetivo analisar as imagens e sentidos que o cronista constrói em torno das personagens, Iracema e Suely, protagonistas dos filmes/documentários, Iracema, uma transa Amazônica, de Jorge Bodanzky, e O céu de Suely, de Karin Ainouz, também tomados como objetos de referência do autor/cronista. As duas produções cinematográficas são muito ricas e propícias para o estudo da temática feminina, por meio do protagonismo das personagens Iracema e Suely, o que possibilitou uma abordagem relacionada a condição e representação feminina no cinema nacional.
O protagonismo das duas personagens principais ganha destaque por representarem a realidade comum para mulheres brasileiras, que buscam uma melhor condição de vida mas, no entanto, as adversidades encontradas ao longo da trajetória as impedem de ascender na vida, ao mesmo tempo que as arrastam de volta para o fundo do abismo existencial, da falta de oportunidades e perspectivas em alcançar uma vida melhor, e mais digna. Assim são os (des)caminhos seguidos pelas duas mulheres/protagonistas, Iracema e Suely, que, apesar dos esforços empreendidos, não conseguiram romper com o destino errante que as relegou ao fracasso, terminando sozinhas, pobres e sem muita esperança ou perspectiva de realizações.
O fracasso que acometeu a jornada empreendida por essas duas personagens, também acontece com muitas mulheres brasileiras, pobres e sem estudo. Tal fato nos ajuda a refletir sobre o estigma que circundam muitas mulheres em nossa sociedade, que buscam a todo custo escapar das malhas da pobreza e da marginalização, mas, que ao final, diante do fracasso, sentem-se sozinhas, abandonadas, e relegadas ao abandono e a falta de perspectivas.
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