ENTRE EXÍLIOS E INSÍLIOS: PERCURSOS FEMININOS EM NARRATIVAS DE SCHOLASTIQUE MUKASONGA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7737804


Izabel Cristina Oliveira Martins¹
Mayra Tomaz de Oliveira Cavalcante²


RESUMO

A guerra e os fenômenos a ela relacionados, como exílios, insílios e desexílios, são vivências marcantes e temas largamente registrados pelas literaturas africanas. Não podia ser diferente, considerando que as chagas decorrentes dessas experiências no continente ainda se encontram abertas. No que diz respeito à produção literária de escritoras africanas que abordam a temática, muito se dá prioridade ao protagonismo feminino, destoando da partitura histórica tradicional que impõe à mulher apenas o papel de figurante. Desse modo, o romance africano produzido por autoras descarta a ideia de que as grandes guerras tenham sido empreendimentos exclusivamente masculinos e volta seu olhar para a periferia dos conflitos armados e de lá desoculta as mulheres que precisaram ficar em casa, na chamada home front, como lembra Margarida Calafete Ribeiro, as que tiveram de abandonar sua terra natal e acompanharam os maridos, as que foram vítimas de violações, as que em “insílio” tiveram que perambular internamente em seus países sem perspectivas de retorno à comunidade natal e tantas outras que, em situações bélicas, foram invisibilizadas. Tematizar e problematizar a narração dos sofrimentos das mulheres têm sido uma constante em narrativas de escritoras que contextualizam a experiência traumática da guerra, no entanto, sem enquadrar o sujeito feminino como vítimas improdutivas e sem negligenciar sua importância social e política, entendendo que o sucesso e a transformação de uma nação dependem da participação de todos, de homens e de mulheres, assim como acreditavam algumas lideranças políticas, a exemplo do guineense Amílcar Cabral. Considerando o exposto, o artigo trata das narrativas Baratas (2006) e A mulher de pés descalços (2008), da escritora ruandesa Scholastique Mukasonga, chamando a atenção para a situação insiliar das personagens femininas e, sobretudo, destacando o modo como estas obras quebram o estereótipo de mulheres como vítimas passivas da guerra.

PALAVRAS-CHAVE: Guerra; Insílio; Mulher; Literatura Africana.

Histórias de mulheres contadas por mulheres. É isso que, regularmente, mulheres escritoras procuram apresentar em suas obras. Sob a perspectiva de quem há muito tempo ficou relegada ao silêncio e teve suas histórias forjadas pela História, visibiliza e dizibiliza suas iguais, trazendo à cena, dentre outras coisas, as minúcias do cotidiano feminino, tantas vezes desprezado e considerado com desvalor pela pena masculina, pela voz de seus incontáveis narradores protagonistas. Nessa conjuntura, de luta constante por “um teto todo seu”, para lembrar Virgínia Woolf (2004), inúmeras ficcionistas africanas vêm se distinguindo no cenário literário de seus países, mas não só, visto que muitas de suas produções ultrapassam as fronteiras de África. Dentre elas, ressalta-se a escritora ruandesa Scholastique Mukasonga que, com a força da palavra, apresenta para o mundo a mulher “de” e “em” África.  Baratas (2006) e A mulher de pés descalços (2008) discorrem sobre conflitos civis ocorridos em Ruanda, país natal da autora, e protagonizam personagens femininas inseridas no cenário da guerra, com destaque para a condição insiliar dessas mulheres, isto é, sua vivência no “insílio”, exílio dentro de seu próprio país, o qual é classificado por Julio Cortázar (2001), como a mais penosa e traumática forma exiliar, posto que, nessa condição, o exilado é obrigado a conviver com todo tipo de opressão e medo, presenciando, sem outra opção, a destruição do torrão natal, a aniquilação dos parentes e dos conhecidos, e anulação dos seus sonhos e das suas esperanças.

Com origem na língua espanhola, o vocábulo insílio estaria registrado, segundo Marisa Martinez Pérsico (apud LIMA, 2017), desde 1945, dando origem à palavra “isla”, isto é, ilha. Dentre as suas acepções, o termo pode ser compreendido como “las situaciones donde las personas que debieron esconderse en su próprio país, para salvar sus vidas y las de sus hijos, atravesaron situaciones de exílio interno, exclusión y abandono dentro de su país, gerándose múltiples consecuencias” (PÉRSICO apud LIMA, 2017, p. 149).

Compreendendo o termo “insílio” de maneira similar ao que propõe Marisa Martinez Pérsico, Miriam Volpe (2005) é uma das estudiosas na atualidade sobre o assunto. Baseada nos estudos críticos de Paul Ilie (Literature and inner exile, 1980), Paul Tabori (Anatomy of exile, 1972) e Gloria Cunha-Giabbai (El exílio, realidad y ficción, 1992), a pesquisadora uruguaia designa o insílio como uma forma de exílio vivido dentro do próprio país, cuja experiência torna o sujeito estrangeiro em sua terra e reflete quase as mesmas características que o exílio exterior, uma vez que também é capaz de promover alienação nos indivíduos, levando-os a uma vida paralela da qual não podem participar. “Esta alienação”, segundo Gloria Cunha-Giabbai (apud VOLPE, 2005, p. 17), “causa frustração porque impede uma realização plena. Os exilados interiores são também indivíduos nostálgicos que têm saudades da vida passada que reconhecem ter perdido”.

Nessa perspectiva, o exílio interno apresentado por Mukasonga expressa a migração forçada que os ruandeses foram submetidos de uma região para outra, dentro das próprias fronteiras. Permeada de memórias, a escrita dessa escritora luta contra a “segunda morte, a morte social, o esquecimento” (UMBACH, 2012, p.). Suas narrativas, além de estarem associadas as suas experiências pessoais, interligam-se à memória coletiva, “localizando-se na transição entre literatura, cultura e história” (UMBACH, 2012, p. 218).

Com uma destreza incontestável, Mukasonga dá a entender que a guerra experienciada pelas mulheres é mais terrível que a masculina, uma vez que elas consideram os detalhes, aquilo que é imperceptível ao olhar do homem. Em outras palavras: a ótica feminina capta com uma sensibilidade incomparável. Nesse sentido, “a guerra delas tem cheiro, cor, o mundo detalhado da existência”, conforme observa a bielorussa Svetlana Aleksiévitch, em seu livro A guerra não tem rosto de mulher (2016, p. 20).

Além disso, Mukasonga retira a mulher do plano de fundo, como assim também o fez a escritora liberiana Leymah Gbowee em seu aclamado Guerreiras da paz (2012), e a incorpora na “linha de frente”, contrariando aqueles que documentam a história de guerra tradicional. Dessa forma, apresenta suas personagens femininas em luta constante para conseguir o básico (água, alimento etc.) e para esconder os filhos dos olhares dos soldados que, semelhantemente ao da personagem mitológica Medusa, petrificam as vítimas, quando as encontram, ceifando suas vidas, seja com a morte, seja com o recrutamento.

A mulher de pés descalços (2008) e Baratas (2006), relatos autobiográficos de Scholastique Mukasonga, trazem para a ficção os dolorosos conflitos vividos pelos filhos de Ruanda, em decorrência da rivalidade entre os dois principais grupos étnicos do país: os tutsis e os hutus. Estes últimos, considerando-se como os legítimos ruandeses, e com apoio do regime governamental em exercício no país, promoveram um dos maiores genocídios que o século XX conheceu. A matança deliberada pelos hutus custou a vida de mais de 800.000 tutsis e deixou sequelas entre os que sobreviveram, marcas não apenas no corpo, mas, sobretudo, na alma.

De etnia tutsi, Mukasonga registra, em Baratas (2006), retrospectivamente, todos os acontecimentos que desembocaram no genocídio de Ruanda, à medida que relata como ela e sua família enfrentaram as diversas proscrições a que foram submetidos. Em outras palavras, pode-se dizer que, apropriando-se da História, e nela imergindo, a autora busca as raízes que conduziram ao acionamento da engrenagem genocida, a qual deixou Ruanda com um número considerável de mortos, dentre eles, pais, irmãos, sobrinhos, outros parentes e amigos da escritora.

Com início em 1959, os primeiros pogroms (perseguições dos hutus contra os tutsis) forçaram inúmeros tutsis ao exílio. Muitos, à época, abandonaram Ruanda e se instalaram em países vizinhos, como o Burundi. Passariam, dali por diante, a sentir a dor do exílio, da perda da terra natal, e a conjecturar um possível retorno em tempos mais promissores. Outros, como os membros da família de Mukasonga, permaneceram no país, enfrentando o insílio. Refugiados em sua própria terra, foram obrigados a perambular pelo território ruandês, vivendo em condições precárias em acampamentos improvisados, até serem despejados em Nyamata, cidade ruandesa localizada no distrito de Bugesera. A narrativa apresenta o momento da chegada dos deportados à região. O espanto diante do “novo lugar”, ao qual acreditavam inicialmente não ser Ruanda, é nitidamente percebido pelas palavras da narradora:

Não sei quanto tempo durou a viagem. […] Por fim, os caminhões pararam no pátio de uma escola. […] Estávamos, realmente, em um país desconhecido que não parecia Ruanda.
Não sei quando meus pais se deram conta de que tinham sido deportados para Nyamata, em Bugessera. Bugesera! O nome tinha algo de sinistro para todos os ruandeses. Era uma savana quase desabitada, moradia de grandes animais selvagens, infestada pela mosca tsé-tsé. Dizia-se que o rei exilava para lá os chefes caídos em desgraça.
Logo também percebemos que não éramos os primeiros tutsis a serem deslocados para Nyamata. Os do Norte, sobretudo Ruhengeri, já estavam lá. […] Nós, vindos do Sul, chegamos por último. No nosso comboio, havia famílias das províncias da Gitarama, de Gikongoro, mas a maior parte era da província de Butare. Fomos amontoados, provisoriamente, nas classes vazias da escola primária. (MUKASONGA, 2018, p.19).

Privados dos bens inerentes à cidadania e distantes de algo que se assemelhasse à rotina que possuíam antes do deslocamento forçado para o interior de Ruanda, os desterrados de Nyamata não perderam, no primeiro momento, a esperança de voltar para casa. Acreditavam que suas alocações em salas de aula e nas barracas construídas no pátio da escola eram provisórias. A compreensão de que jamais retornariam às suas regiões de origem aconteceu quando alguns hutus que estavam instalados por engano em Nyamata foram levados por caminhões: O desespero tomou conta de todos que ficaram. Eles entenderam: jamais voltariam a suas casas. Por serem tutsis, estavam condenados a viver como párias, pestilentos, em uma reserva da qual não poderiam escapar” (MUKASONGA, 2018, p. 23).

Começava dali por diante para os tutsis desterrados, em geral, e para a família de Mukasonga, em particular, uma vida marcada a ferro e fogo, visto que, além de buscar meios para se estabelecer nas aldeias de Bugesera, também haviam de se preocupar com os constantes e violentos ataques efetivados pelos grupos hutus, os quais igualavam os tutsis a “inyenzis”, isto é, baratas que deveriam ser extintas. A intranquilidade vivenciada pelos insiliados aparece bem demarcada em trechos da narrativa como o que segue:

Na espera, o terror era sistematicamente organizado. Sob pretexto de treinamento ou de controle, os soldados patrulhavam o tempo todo pela estrada, entre as casas, nos bananais. Do alto dos caminhões que cruzavam as pistas, apontavam seus fuzis, às vezes atiravam. (MUKASONGA, 2018, p. 69). 

Nesse cenário de perigo iminente, Mukasonga destaca o papel feminino, especialmente em A mulher de pés descalços, ressaltando o esforço sobre-humano da mulher para dar continuidade à vida em meio aos escombros do insílio. Stephania, mãe da protagonista, é quem – diferentemente do que vemos nas narrativas contadas pela História oficial – representa a outra realidade da vida das mulheres atingidas pela guerra, ou seja, longe de apresentar-se como indivíduo fragilizado e incapaz de lutar, caracteriza-se como sujeito ativo, criador de estratégias para proteger a família. Sua prioridade era salvar os filhos. Para isso, passou a providenciar esconderijos no meio dos grandes arbustos da vegetação selvagem. Até mesmo as tocas dos tamanduás serviam para esse fim, depois de alargadas, com a ajuda dos filhos. Além disso, desenvolveu a audição aguçada, com o intuito de captar qualquer ruído que fugisse do “convencional”. Dessa forma, era ela quem, antes de qualquer membro da família, identificava o barulho das botas dos soldados na estrada e sinalizava o momento de fuga para os filhos, principalmente para as meninas, favorecendo que se escondessem no matagal espesso, localizado nas proximidades da casa.

Mamãe não deixava nada nas mãos do acaso. Normalmente, quando anoitecia, fazia um ensaio geral. Assim, sabíamos exatamente como entrar no matagal cheio de espinhos, como nos esconder debaixo do mato seco. Mesmo no meio da aflição que nos causavam as botas pisoteando a estrada, íamos direto para os arbustos ou para tocas onde, seguindo as instruções da mamãe, tínhamos aprendido a nos esconder. (MUKASONGA, 2017, p. 14).

O planejamento de uma fuga emergencial para o Burundi (país ao norte de Ruanda) também acompanhava o pacote de estratégias de Stefania. Desde que se tornou “exilada do interior”, ela sabia que uma das maneiras de continuarem vivos seria atravessar a fronteira e se instalar no território burundês. Nesse sentido, dedicou-se a explorar as trilhas que levavam até o país vizinho, demarcando o percurso que os filhos deveriam seguir durante a retirada. Provisões para o exílio eram estrategicamente deixadas para os que conseguissem escapar. No entanto, mais inconveniente que a fome ou os perigos próprios da savana (búfalos, leopardos, elefantes), Stephania sabia que as patrulhas militares eram os piores inimigos que os filhos poderiam encontrar. Não raras eram as notícias de estupros, torturas e mortes infligidos contra os que se arriscavam a buscar novos horizontes em outras terras.

Com a deportação e o exílio, as mulheres tutsis precisaram, além de assumir o trabalho agrícola, encontrar meios para alimentar as suas famílias, enquanto a colheita não acontecia. Isso significa dizer que em adição aos afazeres rotineiros (como cuidar das atividades domésticas, dos filhos e da própria lavoura), elas precisaram trabalhar fora e, assim, pelo menos garantir uma refeição diária para os filhos e os maridos. O empenho delas pode ter passado despercebido pelos que escreveram os anais históricos, no entanto, marcou cada filho sobrevivente. Na passagem abaixo, Mukasonga registra como, além de viver as consequências da guerra, a mulher se reinventa, forjando novas formas de ser e de estar no mundo:

Logo pareceu que o único modo de conseguir um pouco de comida era ir trabalhar para os moradores da região, os bageseras.
[…] Os que aceitavam nos contratar davam-nos algumas batatas-doces por um dia de trabalho. Para conseguir um cachinho de bananas era preciso trabalhar dois dias nos campos, sem receber nada. Mas sobrevivíamos ao dia a dia, e minha mãe não podia se arriscar a voltar de mãos vazias. Assim o mais comum era ela se contentar com as batatas-doces.
Eu me lembro que íamos com muita frequência trabalhar para uma família que se mostrava particularmente hospitaleira. A mãe chamava-se Kabihogo. Esqueci o nome do pai. Eles tinham apenas uma filha mais ou menos da minha idade por isso não recusavam a ajuda que viemos lhes propor. Enquanto minha mãe trabalhava nas plantações eu varria o quintal. A menininha queria brincar comigo. Aquilo me dava um certo descanso. Às vezes eu chegava a ter direito de comer com ela. À noite, voltávamos com um cestinho de batatas-doces […]. Quando eu chegava em casa, ficava orgulhosa de mostrar a meu irmão Antoine e a minhas irmãs tudo o que tinha ganhado em um dia. (MUKASONGA, 2018, p. 28-29).

Símbolo de resistência, Stephania procurava manter acesa as brasas da tradição de seus ancestrais, mesmo em meio às hostilidades de uma terra que em nada favorecia para a sobrevivência. Da conservação do fogo no centro do inzu[1] aos cuidados com a terra e com os filhos, tudo era piamente seguido conforme aprendido antes do insílio. Quando questionada pelos filhos sobre a insistência de manter costumes tradicionais, a personagem sabiamente esclarecia: “[…] olha, meu filho, os brancos já nos deram muitos presentes e você está vendo onde fomos parar! Então, se for preciso, me deixe buscar o fogo como sempre fizemos na nossa terra. Ao menos, resta alguma coisa.” (MUKASONGA, 2017, p. 40).

O confronto entre as tradições dos ruandeses frente a dos povos brancos é marcado em outras passagens da narrativa, quando os ruandeses se referem ao que chamam de indícios de progresso. A religiosidade cristã, por exemplo, é descrita por Mukasonga como um ingresso para a civilidade, quando é decretado que apenas crianças batizadas podem matricular-se nas escolas: “Para serem admitidos na escola era preciso ter um nome cristão. Os abapaganis – pagãos – acabavam sendo considerados ‘atrasados’ que tinham ficado às margens do irreversível progresso.” (MUKASONGA, 2017, p. 136). Dessa maneira, por se preocuparem com a educação dos filhos, as mães submetiam-nos à admissão de dois nomes: um de batismo (nome de branco) e outro tradicional/local, para que assim eles pudessem usufruir dos dois mundos como um sinal de esperança.

Os costumes das mulheres ruandesas estão presentes em todos os momentos do novo cotidiano frente às condições adversas impostas pelas milícias policiais. Faz-se indispensável, a partir do novo panorama condicional de violência e luta pela sobrevivência, a necessidade da preservação cultural. Dessa forma, havia um envolvimento místico que unia o conhecimento medicinal do manuseio de diversas plantas à recorrência de espíritos ancestrais, os quais aterrorizavam as crianças pelas histórias ouvidas sobre eles. Na casa de Stefania, era comum encontrar medicamentos naturais no terreiro que superavam até mesmo os comprimidos e xaropes do enfermeiro Bitega e do veterinário Gatashya. “Sua farmácia era feita de ervas, tubérculos, raízes, folhas de árvores da savana” (MUKASONGA, 2017, p. 59).  Assim, a mãe de Mukasonga curava os recorrentes ferimentos de trabalho que acarretavam marcas profundas, principalmente nos pés.

Em a mulher de pés descalços, diante de um cenário caótico que exigia, em especial das mulheres, diversas habilidades, mantinha-se uma faísca que não deixara de brilhar, principalmente para Stefania, conhecida por todos como conselheira e casamenteira. A centelha em questão é a beleza da mulher tutsi. Era preciso ter um minucioso olhar em relação às moças que desejavam desposar-se. Para tanto, alguns critérios eram amplamente avaliados, desde a silhueta corporal até a disponibilidade para o trabalho. Decorrente disso, após as celebrações, a exigência social que indicava prosperidade era a procriação de muitos filhos homens. Do contrário, ter maior número de filhas mulheres era sinal de pobreza e estagnação.

Destaque-se que a vaidade feminina era marcada por cortes de cabelo que ressaltavam os fios crespos chamados amasunzus, que tinham um formato curvado em “meia-lua”.

Mas os amasunzus não eram para as meninas e nem para as adolescentes mais novas. O corte de cabelo que deveríamos usar variava de acordo com a idade. As crianças, tanto meninas quanto meninos, tinham a cabeça raspada com apenas, bem em cima da testa, um pequeno tufo redondo feito um pompom. Na puberdade, perto dos doze, treze anos, podíamos deixar o cabelo crescer. As moças nunca cortavam. Se ficassem longos demais, elas prendiam.  Os amasunzus não eram usados antes dos dezoito, ou vinte anos. (MUKASONGA, 2017, p.92). 

Ao chegarem aos dezoito anos, além de poderem usar o cabelo mais longo, as moças estavam aptas para o casamento. No entanto, havia outro avanço que dizia respeito ao progresso feminino, isto é, modificar a aparência do cabelo “de lua” e extrapolar os padrões. Isso ocorreu quando as moças descobriram a possibilidade de alisar os fios dos cabelos com ferro quente. Além disso, outra novidade que fez saltar os olhos de curiosidade das mulheres era o uso de calcinhas. Iniciado em Butare, na escola de Serviço Social, tal requisito era obrigatório e, desde então, o costume espalhou-se.

Dentre todos os critérios que compõem a beleza e o progresso feminino, até mesmo em meio ao insílio, há um que marca consubstancialmente essa observância mútua entre as mulheres, em especial as que conseguem adentrar ao segundo grau colegial, diz respeito aos pés das moças. Muito além de ser um atributo meramente estético, os pés eram como mapas ou livros da vida. A partir deles, podia-se arrancar as raízes de toda existência de quem os possuía. Isso porque “de todas as partes do corpo, os pés eram os mais expostos aos machucados”. (MUKASONGA, 2017, p. 60).  Logo, era simples identificar os pés massacrados das camponesas, esses eram largos e marcados pela dura labuta, diferente dos “pés de princesa”, ditos por Stefania serem finos e macios.

Esses pés carregavam um peso mais fatigante que o próprio corpo ou acrescidos de bebês nas costas. Eles levavam consigo as memórias de um regresso que não aconteceria e o fato tristonho da exposição à vergonha e à desgraça do exílio. Não se podia fazê-los fugir do perigo, pois uma vez tentados a praticá-lo, havia sangrenta represália.  Eram pés de moças que não podiam afastá-las do estupro policial. Entretanto, “ninguém podia falar sobre esse assunto. Não existia nenhuma brecha nos costumes que permitisse enfrentar essa catástrofe que perturbava as famílias”. (MUKASONGA, 2017, p. 149). Tal silenciamento ferrenho agravava tamanha opressão.

A proibição de conversações acerca de assuntos de cunho sexual calava mulheres aflitas e faziam-nas alheias a todos os outros assuntos que provêm do ato. Assim, surgiam novas doenças que eram incapazes de serem curadas com mandingas ou ervas. Uma delas era a “doença do amor” que refutava o saber popular a indagar de que maneira o amor poderia causar danos se a sua natureza era boa. Ademais, surge o HIV como característica unilateral dos estupradores que, em muitos casos, espalhavam o vírus, assolando a população, visto que tal doença consiste numa tragédia sem previsões de reversão do número de infecções.

A luta pela sobrevivência era uma realidade constante, ora pelas recorrentes fugas, ora pela falta de comida. A saída de Bugesera para Burundi foi marcada por mais um massacre. “Em Nyamata, numerosas foram as famílias que foram para o Burundi. Não era difícil, a fronteira ficava bem próxima […]. Mas logo o campo militar de Gako foi reforçado” (MUKASONGA, 2018, p. 49). Os policiais sempre estavam em lugares estratégicos para impedir fugas numerosas e aterrorizar os tutsis. Isso é intensificado nos anos de 1960 quando os soldados do acampamento de Gako fizeram constantes perseguições às mulheres.

Não havia esconderijo que fosse seguro o bastante. Nas casas, as travas das portas não surtiam efeito; nas igrejas, alguns padres usavam metralhadora para afastar os malfeitores, mas acabaram tornando-se um “memorial de genocídio”; e nas estradas, nem a mata selvagem ajudava, tornando-se um cenário caótico de depósito de corpos e ossos. A formação das comunas e do partido político único (Parmehutu) só intensificava o massacre.

Para as jovens sonhadoras que ousavam querer mudar o destino e sair desse tormento, havia a possibilidade de fazer o exame nacional secundário, concorrendo a 10% (dez por cento) das vagas. Mukasonga, por sua vez, foi aprovada e assim foi estudar no Liceu do Norte. A esperança e o regozijo que ela almejava foram parcialmente atendidos, uma vez que se livrou de grande parte da violência que atormentava os tutsis. Ainda assim, na escola, uma ficha de “pretensa etnia” não a deixava esquecer suas origens. Desse modo, a perseguição policial ainda estava latente.

Ao seguir para o segundo ciclo secundário, os preconceitos eram amenizados, posto que em Burundi não havia tanto preconceito quanto em Kigali, porém essa realidade não perdurou e novos ataques foram iniciados e, com isso, Mukasonga foi expulsa da escola. Com uma nova fuga de Ruanda para Burundi, a oportunidade de retorno parecia cada vez mais distante. Ruanda tornou-se um país proibido. As mulheres que ficaram lá não podiam mais estudar e deviam contentar-se com as escolas complementares. “Ali, as meninas aprendiam a costurar, a cozinhar, além de vagas noções de francês.” (MUKASONGA, 2018, p. 123). Isso fazia com que o desejado progresso fosse afastado das meninas tutsis.

Estar viva em meio aos mortos, era essa a sensação descrita por Mukasonga. Sua luta pela vida era constante, não obstante as lembranças aterrorizantes dos seus mortos (os seus familiares) surgissem com frequência. A sensação de não existência, detenta de um passado apagado, como se nada do que os seus olhos viram e os seus ouvidos ouviram tivesse sido verdade. Antes fosse um sonho, verdadeiramente um pesadelo, mas tudo era real e impossível de esquecer. Então, a protagonista fazia a “chamada dos mortos” como forma de eternização dos seus parentes queridos.

Os sobreviventes do exílio em Ruanda não eram mais que “subviventes”, porque “sobreviviam sem viver, fora delas, sem prestar atenção ao fato de que continuavam existindo, sem família em meio aos seus […], em um passado indizível, que só ressurgia em seus pesadelos, em um futuro sem esperança.” (MUKASONGA, 2018, p. 136). Essa confusão instaurada na mente dos sobreviventes se tornaria algo indelével, uma marca que jamais poderia ser apagada.

As marcas do insílio e o desejo de regresso não estão congruentes com a realidade devastada pelo sangue dos tutsis. O retorno à Nyamata deveria ser motivo de grande alegria, mas não o era, uma vez que não havia braços para afagar-se, todos estavam mortos, assassinados pelos “bons-cristãos” (os hutus). As grandes famílias formadas majestosamente pelos filhos homens e as outras com numerosas mulheres já não existiam, todos haviam partido. Os sentimentos que restavam era o luto e a angústia devido à impossibilidade de sepultar os restos mortais dos familiares, os quais encontravam-se espalhados pelas estradas e valas. Sendo assim, recompor ou reparar o país de outrora torna-se algo praticamente impossível. Não há mais como encontrar pautas de referências pessoais, conforme sentencia a protagonista de “Baratas”: “Estou só em uma casa estranha onde ninguém me espera” (MUKASONGA, 2018, p. 177).

Conforme apresentado, as narrativas de Scholastique Mukasonga exibem traços históricos e etnográficos, funcionando como um acervo documental que permite conhecer o massacre em massa dos tutsis, ocorrido em Ruanda, em 1994. Retratam experiências humanas vivenciadas por figuras sociais, colocadas em risco em circunstância da guerra, priorizando posições e percepções femininas. É fato que as mulheres representadas não assumem rótulos sociais costumeiramente atribuídos aos homens pela História oficial, como guerrilheiras ou combatentes. No entanto, é notório que, diante do cenário de ruína provocado pela guerra, as personagens de Mukasonga não são meramente dispostas na trama textual como primeira vítima e primeiro alvo de massacres. Essas mulheres se colocam como peças de fundamental importância no espaço social que reelaboram no insílio. Delas, dependem a manutenção dos valores tradicionais, a garantia do bem-estar familiar e a flexibilidade emocional para lidar cotidianamente com privações, perdas pessoais e rejeição. Assim como inzus, as mulheres representadas em Baratas e em A mulher de pés descalços são refúgio e, com esforço próprio, conduzem o barco familiar, tentando livrar os seus das desditas, conduzindo-os a um porto seguro, num explícito manifesto de valorização da mulher.

REFERÊNCIAS

ALEKSIÉVITCH, Svetlana.  A guerra não tem rosto de mulher.São Paulo: Companhia da Letras, 2016.

CORTÁZAR, Julio. América Latina: exílio e literatura. In: Obra Crítica 3. Organização de Saul Sosnowski. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

GBOWEE, Leymah. Guerreiras da paz: como a solidariedade, a fé e o sexo mudaram uma nação em guerra. São Paulo: Companhia da Letras, 2012.

LIMA, Kelly Mendes. Rui Knopfli e Manuel Alegre: De exílios e insílios, a poesia. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017.

MUKASONGA, Scholastique. A mulher de pés descalços. São Paulo: Editora Nós, 2017.

MUKASONGA, Scholastique. Baratas. São Paulo: Editora Nós, 2018.

QUEIROZ, Maria José. Os males da ausência ou A literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.

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VOLPE, Miriam L. Geografias de exílio. Juiz de Fora: Ed. da UFJF, 2005.

VOLPE, Miriam L. Geografias de exílio: Mario Benedetti, um intelectual latino-americano. Em Tese, Belo Horizonte, v. 07, p. 45-55, dez. 2003.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.


[1] Casa africana, separada por biombos. É considerada um refúgio sagrado da família.


¹Graduada em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, Mestre e Doutora em Literatura e Interculturalidade – UEPB.
²Graduada em Letras e Pedagogia pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, especialista em “Língua, Linguística e Literatura” pela Faculdade Integrada de Patos – FIP – e Especialista em Educação de Jovens e Adultos pelo Instituto Federal de Rondônia – IFRO.