ENTRE CULTURAS E APRENDIZADOS: A FORMAÇÃO EM ENFERMAGEM POR MEIO DO INTERCÂMBIO INTERNACIONAL

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202504301055


ASSIS, Jaqueline Nazare de1
PEREIRA, Queli Lisiane Castro2


RESUMO: Este relato de experiência apresenta a vivência acadêmica de uma estudante de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) durante um programa de intercâmbio internacional realizado na Universidad Simón Bolívar (USB), em Barranquilla, Colômbia. O texto explora a relevância da mobilidade acadêmica internacional e descreve os desafios enfrentados, as metodologias de ensino e práticas clínicas vivenciadas, além dos aprendizados adquiridos ao longo do programa. A metodologia baseou-se em uma abordagem qualitativa, utilizando diário de campo e observação participante para a coleta de dados, com análise temática dos registros. Os resultados destacam as diferenças entre os sistemas de saúde e ensino do Brasil e da Colômbia e seus impactos na formação profissional. O intercâmbio foi uma experiência enriquecedora, contribuindo para o desenvolvimento acadêmico, pessoal e profissional da estudante, além de ampliar a compreensão sobre cuidados de saúde em contextos globais. 

Palavras-chave: Intercâmbio Educacional Internacional; enfermagem; formação profissional.  

ABSTRACT: This experience report presents the academic journey of a Nursing student from the Federal University of Mato Grosso (UFMT) during an international exchange program at the Universidad Simón Bolívar (USB) in Barranquilla, Colombia. The text explores the relevance of international academic mobility and describes the challenges faced, the teaching methodologies and clinical practices experienced, as well as the knowledge acquired throughout the program. The methodology was based on a qualitative approach, using a field diary and participant observation for data collection, with thematic analysis of the records. The results highlight the differences between the healthcare and educational systems of Brazil and Colombia and their impacts on professional training. The exchange program proved to be an enriching experience, contributing to the student’s academic, personal, and professional development, as well as broadening her understanding of healthcare in global contexts. 

Keywords: International Educational Exchange; Nursing; Professional Training;  

INTRODUÇÃO 

O aumento da migração global de enfermeiros ancorada à crescente demanda por esses profissionais têm entusiasmado e despertado o interesse de estudantes de enfermagem por experiências internacionais.  A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima um déficit de 6 milhões de profissionais de enfermagem no mundo (OMS, 2020), ressaltando a importância de estratégias que promovam o desenvolvimento acadêmico, pessoal e sensibilidade para as questões globais e culturais (Dallas et. al, 2018). 

A escassez de profissionais de saúde exige soluções criativas e eficazes para enfrentar esse desafio. Nesse contexto, os programas de intercâmbio acadêmico internacional desempenham um papel crucial, ao oferecer experiências que promovem o desenvolvimento técnico, científico e cultural dos discentes. Além de aprimorar competências profissionais, esses programas favorecem a construção de habilidades interpessoais e uma visão crítica sobre a saúde em contextos globais. Assim, a vivência internacional não apenas enriquece a formação acadêmica, mas também prepara os futuros profissionais para lidar com as complexidades de sistemas de saúde diversos, contribuindo para um cuidado mais qualificado e abrangente. 

A mobilidade internacional acadêmica oferece uma oportunidade única para ampliar competências, compreender as diferenças culturais e educativas entre países, além de promover uma visão crítica e reflexiva sobre sistemas de saúde. Representam uma oportunidade fundamental para a formação intercultural de profissionais da saúde, contribuindo significativamente para o desenvolvimento de competências que vão além das habilidades técnicas. Como destacado por Bardaquim e Dias (2018), a internacionalização da educação superior, alicerçada em conceitos como cooperação internacional e integração cultural, abre espaço para o aprendizado transformador. Essa abordagem não apenas amplia a capacidade de adaptação dos estudantes a diferentes contextos culturais e de saúde, mas também promove reflexões críticas sobre práticas globais. Além disso, superar barreiras culturais, como preconceitos e etnocentrismo, é crucial para oferecer um cuidado mais inclusivo e humanizado, fortalecendo a empatia e a comunicação. Esses aspectos são essenciais para preparar futuros profissionais para os desafios de um mundo cada vez mais conectado e diversificado. 

Oportunidades, assim, possibilitam a comparação entre os processos formativos, identificando-se diferenças e potencialidades entre as trilhas formativas e proporcionam uma visão crítica, ampliada e diferenciada. Portanto, relatar esse tipo de experiência torna-se importante para fomentar reflexões, pesquisa científica e incentivar os estudantes de graduação e pós-graduação a ingressarem em novos desafios e buscarem esse tipo de oportunidade, assim como motivar os colegas estrangeiros a virem para o Brasil e ampliarem a troca de saberes (Schneider, et al, 2020). 

Nesse contexto, este artigo tem como propósito relatar, de forma crítica e reflexiva, a experiência de uma estudante de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Campus Araguaia, durante um programa de intercâmbio na Universidade Simón Bolívar (USB), em Barranquilla, Colômbia. Destaca os desafios enfrentados na adaptação cultural e acadêmica, descreve as metodologias de ensino e práticas clínicas, e explora os aprendizados acadêmicos e culturais adquiridos 

MÉTODOS 

Tipo de estudo:  

Este relato de experiência caracteriza-se como um estudo crítico-reflexivo, descritivo e de abordagem qualitativa.   

O relato de experiência crítico-reflexivo descritivo foi selecionado como método deste estudo por sua adequação ao objetivo de capturar, de maneira abrangente e contextualizada, os desafios e aprendizados vivenciados durante o intercâmbio acadêmico. Essa abordagem permite não apenas descrever as experiências vividas, mas também analisá-las de forma reflexiva, considerando os impactos acadêmicos, profissionais e pessoais dessa vivência (SCHÖN,2017). 

Além disso, o método é particularmente eficaz em estudos qualitativos (MINAYO, GUERRIERO, 2014) que buscam explorar dimensões subjetivas e contextuais, como a adaptação a novas metodologias de ensino e a inserção em um ambiente cultural diferente. Ao compartilhar uma experiência real, este relato contribui para fomentar a discussão acadêmica sobre mobilidade internacional e inspira outros estudantes a explorar oportunidades semelhantes, valorizando a internacionalização na formação acadêmica. 

Contexto e Participante do Estudo: 

O relato foi baseado na experiência de uma estudante do sexto período de Enfermagem da UFMT, selecionada de acordo com os critérios de elegibilidade do edital de mobilidade internacional da Secretaria de Relações Internacionais (SECRI) e do Programa Acadêmico de Mobilidade Educacional (PAME) da Unión de Universidades de América Latina y el Caribe (UDUAL). Os critérios incluíram desempenho acadêmico, proficiência em língua estrangeira, motivação para o intercâmbio e elaboração de um plano de estudos. Neste, optou-se por disciplinas teórico-práticas com vínculo à comunidade e hospitais com enfoque na atenção à saúde de jovens e adultos, além da administração de enfermagem e investigação científica.  

Coleta de dados:  

Para coletar os dados qualitativos, foi utilizado um diário de campo, onde a participante registrava experiências, aprendizados, reflexões e desafios enfrentados, e a observação participante direta, realizada durante o período de fevereiro a junho de 2024.   

As orientações teóricas e metodológicas sobre o uso do diário de campo foram baseadas nos estudos de Bogdan e Biklen (1994), além de contribuições de pesquisadores como o antropólogo Malinowski (1967), Diniz (2017) e Brandão (1982). Esses autores exploram o diário de campo como um instrumento essencial para a pesquisa qualitativa, apresentando variações nos formatos e destacando as especificidades e potencialidades desse recurso na coleta de dados. 

Cada registro incluía a identificação do local, e horário da atividade desenvolvida. Descrição detalhada das ações realizadas, objetivo, a escolha da intervenção, a forma como foi desenvolvida, adaptação, os materiais empregados, o público-alvo, a quantidade de participantes e a faixa etária correspondente. Ademais, o diário contemplava reflexões críticas e comparativas acerca das experiências vivenciadas, tanto em contexto clínico quanto pessoal, possibilitando uma análise aprofundada das práticas realizadas. Por fim, os registros eram complementados com documentação visual, como fotografias, a fim de proporcionar uma representação mais abrangente das atividades desenvolvidas.  

A observação participante foi a técnica utilizada por compreender o contato direto da pesquisadora com o fenômeno observado para obter informações sobre a realidade (MINAYO, DESLANDES, 2002). A intercambista estabeleceu uma relação face a face com o contexto observado. 

Análise de dados:  

A análise temática foi utilizada para a análise dos dados qualitativos. Os registros do diário de campo/informações foram submetidos a várias leituras atentas com objetivo de captar os aspectos relevantes e descobrir os significados que correspondem ao objetivo do estudo. Esses dados foram confrontados com a literatura pesquisada e com reflexões das autoras, seguindo os passos da análise temática proposta por Minayo (MINAYO, 2007). 

Assim emergiram 2 categorias:  adaptação à nova cultura, desenvolvimento dos componentes cursados. 

RESULTADOS E DISCUSSÃO 

Este tópico busca descrever as vivências durante o intercâmbio, serão abordados aspectos como adaptação cultural, vivências acadêmicas, desafios enfrentados e reflexões sobre os modelos de ensino e de saúde do Brasil e da Colômbia. Durante o intercâmbio acadêmico na Universidad Simón Bolívar (USB), cursei as disciplinas Cuidados de la Juventud y la Adultez (teórica e prática), Formación para la Investigación I (teórica) e Administración y Gestión en Salud I (teórica).   

• Adaptação à Nova Cultura 

Antes da viagem, meu contato com a língua espanhola limitava-se a estudos autodidatas básicos, o que me permitia compreender frases simples. No entanto, ao iniciar as aulas presenciais e interagir com colegas e professores, a proficiência  do idioma evoluiu rapidamente. As primeiras semanas foram desafiadoras, principalmente devido ao sotaque costeiro e a expressões informais típicas da região. No entanto, após um mês, já era possível comunicar de forma clara e compreender os outros, o que facilitou as atividades acadêmicas e a interação social. 

Embora os hábitos alimentares locais apresentassem semelhanças com os do Brasil, a presença de ingredientes típicos trouxe uma fase inicial de adaptação. Alimentos como a banana-da-terra verde, utilizada nos tradicionais “patacones”, e as “arepas” de farinha de milho eram parte essencial da culinária local. O uso frequente de pimenta em pratos e molhos também foi um desafio no início. Dentre as experiências gastronômicas agradáveis com pratos típicos da região destaca-se o “Tutumazo”, uma sopa tradicional rica em sabor e muito apreciada pelos moradores; o “Pastel”, uma preparação à base de arroz com recheios variados, geralmente de carnes bem temperadas. Além disso, a “Salchipapa”, uma combinação simples, porém deliciosa, de batatas fritas com salsicha, tornou-se uma das minhas preferidas. Também era muito comum encontrar frutas vendidas nas ruas, especialmente manga verde cortada em filetes e servida com limão e sal, uma combinação inusitada, mas extremamente saborosa. Outra experiência curiosa foi a “noite dos chorizos”, em que era tradicional consumir esse embutido preparado de diversas formas. No geral, a culinária local não apenas ampliou meu paladar, mas também me permitiu explorar aspectos culturais e sociais através da alimentação 

No que tange a mobilidade, havia várias opções de transporte urbano: ônibus, carros por aplicativo, táxis e moto Uber. Encontrei dificuldades com os ônibus, já que poucas empresas aceitavam o cartão pré-pago e a falta de informações sobre rotas e baixa qualidade dos veículos complicavam seu uso. Barranquilla está conectada a povoados como Soledad, sem fronteiras claras, dificultando a identificação dos destinos. Por isso, optei por usar apenas uma empresa de transporte mais moderna para facilitar meus deslocamentos. 

No que diz respeito à segurança, percebi uma maior vulnerabilidade em Barranquilla em comparação ao Brasil, principalmente devido a episódios de assédio nas ruas e aos alertas constantes de colegas e professores sobre possíveis riscos. Assim como no Brasil, é comum presenciar abordagens indesejadas enquanto se caminha, porém acredito que o fato de estar em um país estrangeiro e em uma cidade consideravelmente maior contribuiu para a sensação de insegurança. Apesar disso, não enfrentei situações de perigo direto, mas o ambiente exigiu maior atenção e precaução em momentos de lazer, como durante o Carnaval, quando percebi uma situação de furto envolvendo outro intercambista.  

Uma das partes mais relevantes do intercâmbio foi a interação social, tanto com outros intercambistas quanto com meus colegas da universidade. No entanto, enfrentei algumas situações de racismo e exclusão social por parte de certos intercambistas, o que foi desafiador. Por outro lado, a interação dentro da universidade foi bastante acolhedora. Todos demonstraram interesse em receber uma estudante do Brasil, mostrando curiosidade sobre meu país, o sistema de ensino superior e as oportunidades que ele oferece. Fui bem recebida pelos professores e pela coordenação do curso de Enfermagem, o que contribuiu para não me sentir tão afastada do ambiente familiar. 

A adaptação cultural em Barranquilla, ainda que desafiadora, foi enriquecedora e ampliou minha perspectiva sobre a diversidade. A experiência de superar barreiras linguísticas, culturais e logísticas contribuiu de forma significativa para o meu crescimento acadêmico e pessoal.  

A imersão cultural em Barranquilla representou um marco transformador na minha trajetória, proporcionando desafios que impulsionaram meu crescimento acadêmico, pessoal e profissional. A superação da barreira linguística aprimorou  a capacidade de comunicação em contextos multiculturais, uma habilidade crucial para a prática da Enfermagem em um mundo cada vez mais globalizado. O contato com costumes e práticas locais, desde as diferenças alimentares até os modos de interação social, ampliou minha sensibilidade cultural, fortalecendo minha empatia e adaptação frente à diversidade. Esses aprendizados não apenas enriqueceram minha vivência acadêmica, mas também reforçaram minha compreensão sobre a importância da internacionalização para o desenvolvimento de profissionais mais resilientes e preparados para lidar com os desafios globais na área da saúde. 

• Desenvolvimento dos componentes cursados 

A disciplina “Cuidados de la Juventud y la Adultez”, equivalente à disciplina de Saúde do Adulto na instituição de origem, apresentou uma abordagem diferente ao integrar teoria e prática dentro do mesmo semestre. Essa metodologia proporcionou um aprendizado mais fluido e direto. No entanto, um dos desafios observados foi que os primeiros grupos de prática poderiam iniciar suas atividades sem um conhecimento aprofundado do conteúdo teórico, mesmo que a prática começasse algumas semanas após o início das aulas teóricas. Esse formato reduz o hiato entre teoria e prática, mas traz a desvantagem de uma possível falta de embasamento inicial.  

A experiência acadêmica na USB permitiu uma comparação direta com o modelo adotado pela UFMT, evidenciando diferenças marcantes na formação dos profissionais de Enfermagem. Na UFMT, há uma separação clara entre teoria e prática, garantindo que os estudantes construam uma base sólida antes de vivenciarem o ambiente clínico. Já na USB, essas etapas acontecem de forma simultânea, permitindo uma aplicação imediata dos conteúdos, embora essa abordagem possa gerar desafios na absorção inicial.  

Durante as aulas teóricas de todas as disciplinas, foram utilizados métodos como: aula expositiva dialogada; estudo dirigido; resolução de estudo de caso; seminário em grupo; aprendizagem baseada em problemas (PBL); sala de aula invertida e a simulação realística participativos, assim como o uso obrigatório de aplicativos e ferramentas online (como kahoot & Create Quizzes ferramentas de jogos com perguntas online para interação ao vivo com os alunos em sala, entre outros) em todas as atividades, inclusive o próprio portal acadêmico continha essas ferramentas para cada disciplina e unidades de conteúdos a fim de verificar o conhecimento que contabilizava ao menos 10% da nota total final. De acordo com Minayo e Deslandes (2002), a pesquisa e o ensino devem permitir a criatividade e a adaptação aos contextos específicos, percebi essa abordagem na forma como a USB estruturava suas disciplinas, utilizando metodologias ativas que tornavam o aprendizado mais dinâmico e interativo. Esse método de avaliação segundo minha vivência e reflexão crítica mostrou-se mais eficiente ao promover uma aprendizagem mais atrativa, criativa, profunda e reflexiva, focada no desenvolvimento das potencialidades do acadêmico, ao invés de apenas medir o quanto de conteúdo programático foi absorvido através de modelos avaliativos tradicionais.  

As práticas ocorreram na Clínica de La Costa, a maior instituição de saúde e investigação do Atlântico Colombiano, com 156 leitos e 48 leitos de UTI. Durante essa experiência, passei por diferentes setores, incluindo centro cirúrgico, clínica de feridas, centro renal e prática comunitária. O primeiro setor que vivenciei foi o centro cirúrgico, uma experiência completamente nova para mim. Não havia tido a oportunidade de realizar a prática. O centro cirúrgico da clínica me surpreendeu pelo seu tamanho, diversidade de salas cirúrgicas e especialidades, número de equipes e infraestrutura mais completa e avançada.  A diferença entre os cenários de prática foi evidente, levando em consideração fatores como o porte da população atendida e o modelo de saúde adotado. Na Clínica de La Costa, todas as salas contavam com colchões térmicos de ar quente, sendo o uso desses dispositivos obrigatório para garantir maior conforto aos pacientes durante os procedimentos. Além disso, a gestão documental do transoperatório era totalmente digital, com uma enfermeira responsável exclusivamente por essa documentação via sistema. Também pude observar a aplicação rigorosa do protocolo de cirurgia segura, seguido de forma padronizada e rotineira. Outro diferencial foi a sala de recuperação pós-anestésica, participei ativamente da monitorização dos pacientes no pós-anestésico, observando como cada indivíduo reagia ao retorno da anestesia. A organização do fluxo de pessoas dentro do centro cirúrgico também chamou atenção. O controle de entrada era rigoroso e cuidadoso, garantindo a manutenção da esterilidade e a segurança do ambiente cirúrgico. Quanto à realização de técnicas básicas de enfermagem, como assepsia, antissepsia, sondagem vesical e acesso venoso, minha atuação prática foi limitada. Durante o estágio no centro cirúrgico, realizei apenas a passagem de uma sonda vesical de demora feminina e a preparação da antissepsia dos pacientes, com o auxílio da enfermeira da sala de cirurgia. Isso ocorreu porque os professores responsáveis pelas turmas de prática não acompanhavam os estudantes dentro do setor, exigindo maior proatividade por parte dos alunos. A supervisão docente nas práticas clínicas de enfermagem desempenha um papel essencial na segurança do paciente e na formação dos estudantes. No Brasil, essa supervisão é obrigatória e regulamentada, garantindo que os acadêmicos recebam orientação direta ao executar procedimentos. A ausência desse acompanhamento pode impactar a qualidade do aprendizado e a confiança dos alunos ao realizarem técnicas básicas (Lopes et. al, 2020). A ausência de uma supervisão direta pode aumentar os riscos de erros por imperícia, imprudência ou negligência, especialmente porque as enfermeiras encarregadas do setor nem sempre estavam disponíveis para oferecer orientação detalhada ou dedicar tempo ao ensino. Dessa forma, as práticas exigiram maior autonomia e responsabilidade, tornando-se um desafio adicional para minha formação. Por fim, devido às restrições de privacidade e confidencialidade da clínica, não tive acesso a documentos específicos do centro cirúrgico, como relatórios anestésicos e controle de materiais, o que limitou minha compreensão sobre esses aspectos administrativos. 

Durante minha passagem pela clínica de feridas, pude vivenciar um atendimento de excelência no tratamento de feridas adquiridas ou pré-existentes dos pacientes. O setor se destacou pela utilização de produtos e dispositivos especializados, como os hidrocoloides, malhas antimicrobianas, antibióticos tópicos de qualidade entre outros, com os quais tive a oportunidade de conhecer. Na clínica, o acesso a esses materiais era frequente, o que me permitiu realizar diversos curativos com uma ampla gama de recursos, tive a oportunidade de tratar feridas por pressão, pé diabético, necroses, queimaduras extensas, e curativos em amputações. Esse acesso contribuiu significativamente para o crescimento da minha habilidade sobre a prática clínica, pois pude aplicar conhecimentos teóricos diretamente no cuidado ao paciente.  

Ao considerar os insumos disponíveis neste serviço colombiano, que adota um modelo misto, semelhante ao de países como Chile e Alemanha, com maior participação do setor privado, evidencia-se a predominância de uma abordagem curativista em detrimento da promoção da saúde. A incorporação de tecnologias avançadas em coberturas reflete as consequências desse modelo, no qual se agravam as condições crônicas e se reforça a centralidade na doença e no tratamento imediato, em vez de investir em ações preventivas e na melhoria contínua da qualidade de vida, como defendido no sistema universal brasileiro, que privilegia a promoção da saúde e a prevenção de agravos. Além do ônus à qualidade de vida, há ônus financeiro às pessoas. 

Minha experiência nesse setor também foi marcada pelo reconhecimento da enfermeira responsável pelo setor, que elogiou meu desempenho, especialmente pela minha habilidade e conhecimento teórico no tratamento de feridas. Graças ao meu conhecimento prévio, fui capaz de me destacar, realizando os curativos de maneira eficiente e seguindo os protocolos estabelecidos. A sistematização do cuidado com feridas era um ponto crucial no setor, e pude observar como a enfermeira responsável havia desenvolvido protocolos específicos para cada tipo de ferida, incluindo detalhadas fichas de avaliação e planos de cuidados bem estruturados baseados na taxonomia quando necessário. Essa organização proporcionou uma abordagem de cuidado mais individualizada como propõe a teoria do autocuidado de Dorothea Orem em que os indivíduos têm a capacidade de cuidar de si mesmos, e, quando não são capazes de realizar esse cuidado, o enfermeiro deve intervir para suprir essa necessidade (OREM, 2001). 

Além do trabalho prático, fui envolvida também no acompanhamento e desenvolvimento de planos de cuidados, destacando a importância da documentação e do uso de registros clínicos. A enfermeira do setor era responsável por supervisionar os processos e garantir que todos os registros seguissem os padrões estabelecidos, o que demonstrou a importância da sistematização no cuidado ao paciente, principalmente no contexto das feridas, que exigem um acompanhamento contínuo e detalhado.  

Além das atividades voltadas para o tratamento de feridas, o setor também contava com uma enfermeira responsável pela coleta de informações sobre doenças endêmicas e infecções sexualmente transmissíveis. Sua função era monitorar, registrar e reportar esses dados às autoridades de saúde pública, contribuindo para o controle epidemiológico e a implementação de medidas preventivas. Esse trabalho reforçava a importância da vigilância em saúde dentro da instituição, garantindo que os casos identificados fossem devidamente acompanhados e notificados, auxiliando no desenvolvimento de estratégias de intervenção e prevenção.  

Ao longo da vivência na clínica, tive a oportunidade de conhecer outros setores, incluindo a Unidade de Terapia Intensiva (UTI), que conta com diversas especializações, como UTI adulto, UTI cardíaca, UTI pediátrica e UTI neonatal. Essa experiência foi extremamente valiosa para minha formação, pois, no meu campo prático de origem, ainda não existe uma UTI cardíaca, pediátrica ou neonatal. Pude observar os cuidados intensivos e participar da rotina das unidades, com foco especial no cuidado neonatal, área de grande interesse para mim. Tive a chance de aplicar conhecimentos específicos, como o cálculo da idade gestacional de prematuros por meio do exame físico, utilizando fatores como o desenvolvimento da pele e das orelhas, componentes da avaliação do CAPURRO (Curva de Avaliação da Idade Gestacional). 

Infelizmente, devido à falta de organização quanto à distribuição dos dias em cada setor, não tive a oportunidade de passar tempo suficiente no setor renal para me aprofundar nesse campo. No entanto, pude interagir com uma paciente, observando e compreendendo tanto os impactos biológicos quanto às consequências sociais e emocionais das doenças renais crônicas. Além disso, fui apresentada aos maquinários de hemodiálise, conhecendo seu funcionamento e as substâncias utilizadas no processo de filtração do sangue. 

Já a prática comunitária foi realizada em uma escola estadual de ensino fundamental e ensino médio. Meu grupo ficou responsável por trabalhar com os estudantes do oitavo ano, cujas idades variavam entre 13 e 16 anos. As atividades eram pautadas em temas sugeridos pela coordenação escolar, considerados relevantes para a formação e o bem-estar dos adolescentes. Entre os assuntos abordados estavam prevenção do HIV e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), saúde mental, uso de vape, hábitos alimentares, saúde física e outros temas relacionados à promoção da saúde. Essas práticas ocorriam semanalmente e se estenderam por todo o semestre. Ao final do período, era obrigatória a apresentação dos resultados das atividades desenvolvidas, por meio da elaboração de um banner e de uma apresentação detalhada. Esse processo não apenas validava o impacto das ações realizadas, mas também incentivava os estudantes e acadêmicos a refletirem sobre a eficácia das estratégias aplicadas e o aprendizado adquirido ao longo da prática. Todas as atividades realizadas com os estudantes precisavam ser registradas em um documento chamado FSE42, que funcionava de maneira similar a um diário de campo. Esse registro incluía a lista de presença, registro fotográfico, descrição detalhada da intervenção, materiais utilizados, dinâmicas aplicadas, referencial teórico e a faixa etária do público-alvo. O rigor na documentação possibilitava um acompanhamento preciso das ações desenvolvidas e sua relevância para os estudantes. Essa experiência foi extremamente enriquecedora e divertida, ainda que, inicialmente, minha maior preocupação fosse a comunicação, pois precisava interagir com adolescentes em um idioma que ainda não dominava completamente. No entanto, fui surpreendida pela receptividade dos estudantes, que demonstraram muito carinho, empolgação e curiosidade.   Os alunos não apenas participaram com entusiasmo das atividades dinâmicas propostas, mas também mostraram interesse em conhecer mais sobre minha cultura, frequentemente perguntando sobre meu país e compartilhando o que sabiam a respeito do Brasil.  

Entre todas as atividades realizadas, uma que me marcou profundamente foi a relacionada à saúde mental. Nessa dinâmica, os estudantes expressavam seus sentimentos anonimamente em pequenos papéis, que depois eram organizados em um mural. Durante esse exercício, percebi que muitos alunos sofriam de ansiedade de desempenho e relatavam a pressão excessiva dos pais para obterem bons resultados acadêmicos. Alguns chegaram a se emocionar, resultando em rompantes de lágrimas. Além disso, muitos mencionaram a sobrecarga de tarefas escolares, uma realidade que também enfrentei ao longo do intercâmbio. Diferente da minha universidade de origem, onde os professores não costumam solicitar atividades com tanta frequência, na instituição onde realizei o intercâmbio havia uma rotina intensa de entregas acadêmicas. Esse contraste me fez refletir sobre as diferentes abordagens educacionais e o impacto da carga de atividades na saúde mental dos estudantes.  

No geral, essa vivência me proporcionou aprendizados significativos, tanto no aspecto acadêmico quanto no interpessoal. A troca de experiências com os estudantes e a oportunidade de explorar metodologias ativas para abordar temas sensíveis reforçaram minha compreensão sobre a importância da educação em saúde e do acolhimento no ambiente escolar. 

A disciplina teórica Formación para la Investigación I, que corresponde, na instituição de origem, à disciplina de Metodologia Científica, apresentava um conteúdo semelhante em ambos os contextos, o que facilitou minha compreensão. No entanto, observei diferenças significativas na estrutura curricular. Enquanto, no Brasil, a pesquisa acadêmica geralmente culmina na entrega individual de uma monografia ao final do curso, na universidade onde realizei o intercâmbio, essa disciplina é desenvolvida de forma contínua ao longo de três semestres (Investigación I, II e III). Além disso, o trabalho final é elaborado em grupo, possivelmente devido ao grande número de estudantes por turma, que pode chegar a aproximadamente 120 alunos. As aulas envolveram atividades práticas, como a elaboração de mapas conceituais, que proporcionaram um aprofundamento nas etapas de planejamento, execução e análise de estudos científicos. Houve também um foco significativo nos meios de busca de informações acadêmicas, tendo em vista que a própria universidade possui um centro de pesquisa de grande porte, a sede Eureka, onde estão concentradas as investigações de todas as áreas do conhecimento. A visita a essa sede foi uma experiência enriquecedora, permitindo-me conhecer pesquisas inovadoras como uma patente para um instrumento destinado à observação do fundo do olho de recém-nascidos. De modo geral, essa vivência ampliou a visão sobre a pesquisa em saúde e fortalecendo minha capacidade crítica e reflexiva. 

A disciplina “Administración y Gestión en Salud I” correspondia parcialmente à matéria de Gestão e Gerência no curso de origem. No entanto, na USB, essa disciplina era dividida em duas partes. A que cursei abordava exclusivamente as teorias da administração aplicadas à saúde e aos ambientes hospitalares. Ao longo do semestre, estudamos cerca de 12 teorias administrativas gerais, entre elas: Teoria Clássica da Administração, Administração Científica (voltada para o aumento da produtividade e eficiência operacional), Teoria da Burocracia, de Max Weber, Teoria Estruturalista, de Talcott Parsons, e Teoria da Contingência, entre outras. Essa disciplina se destacou como uma das mais desafiadoras, principalmente devido à velocidade da fala da professora, o que dificultava a compreensão em alguns momentos. No entanto, foi também a disciplina em que mais percebi a preocupação da docente em garantir que eu estivesse acompanhando o conteúdo. Toda a abordagem foi baseada em metodologias ativas, com diversas atividades lúdicas, o que tornou o aprendizado mais dinâmico e interativo. Esse formato se mostrou particularmente adequado para uma disciplina que tinha como objetivo principal desenvolver habilidade de administrar tanto situações quanto pessoas dentro do contexto da saúde. 

Minayo e Deslandes (2002) ressaltam a importância da observação como ferramenta essencial para a compreensão dos fenômenos sociais e de saúde. Durante a prática clínica no intercâmbio, a observação dos protocolos de atendimento, infraestrutura e rotina dos profissionais possibilitou reflexões valiosas sobre as diferenças entre os modelos assistenciais do Brasil e da Colômbia assim também como no aspecto acadêmico onde pude fazer observações valiosas quanto as diferenças positivas e negativas entres os modelos de ensino apesar de não ter enfrentado grandes dificuldades com os conteúdos ou com a metodologia de ensino, pelo contrário, encontrei facilidade no aprendizado e tive a oportunidade de observar métodos de avaliação diferenciados que contribuíram significativamente para minha formação quanto profissional da enfermagem. A vivência no exterior também proporcionou crescimento pessoal, aprimorando habilidades de adaptação, autonomia e comunicação, elementos essenciais para a atuação profissional em enfermagem. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS  

A experiência de intercâmbio acadêmico na foi um marco enriquecedor na formação, proporcionando um aprendizado que foi além do conhecimento técnico em Enfermagem. A vivência permitiu a construção de competências interculturais, o fortalecimento da autonomia e a ampliação da sensibilidade frente às diversidades culturais e sociais. A troca de conhecimentos com profissionais, colegas e comunidades locais reforçou habilidades, como empatia, adaptabilidade e comunicação. 

A integração em diferentes sistemas de saúde também possibilitou reflexões valiosas sobre os impactos das abordagens curativistas e preventivas na prática profissional. No contexto da saúde, a Colômbia opera um sistema misto, com forte influência do setor privado, o que se traduz em maior investimento em tecnologia e especialidades de alta complexidade. Em contrapartida, o Brasil, por meio do SUS, enfatiza a promoção da saúde e a prevenção de doenças, ampliando o acesso e fortalecendo a atenção primária. Essa diferença influencia diretamente o perfil dos profissionais formados em cada país: enquanto a formação colombiana privilegia o contato com avanços tecnológicos e práticas especializadas, a brasileira foca em abordagens abrangentes e preventivas. O intercâmbio acadêmico, portanto, proporcionou uma visão mais crítica sobre como esses sistemas impactam a atuação do enfermeiro, permitindo reflexões essenciais sobre os desafios e oportunidades dentro de cada modelo.  

Por fim, a experiência internacional se mostrou transformadora ao preparar a estudante para lidar com desafios complexos no contexto global da saúde. A imersão cultural e acadêmica resultou em uma futura profissional mais preparada e confiante, com uma visão crítica e ampla das necessidades de cuidado e atenção, elementos essenciais para a atuação em ambientes cada vez mais interconectados. 

REFERÊNCIAS 

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1Acadêmica do curso de Enfermagem. Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). E-mail: nazarejaqueline70@gmail.com
2Enfermeira. Doutora em Ciências. Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). E-mail: queli.pereira@ufmt.br