ENTRE AMORES: ASPECTOS DAS RELAÇÕES SENTIMENTAIS DE CAROLINA MARIA DE JESUS A PARTIR DOS SEUS RELATOS

BETWEEN LOVES: ASPECTS OF CAROLINA MARIA DE JESUS’ SENTIMENTAL RELATIONSHIPS BASED ON HER NARRATIVES

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202408032038


Doralice de Freitas Fernandes¹;
Abílio Neiva Monteiro²;
Daysa Rêgo de Lima³;
Ângela Viana de Sousa Silva4.


Resumo

A pesquisa tem como objetivo refletir sobre as relações afetivas de Carolina Maria de Jesus e buscar verificar as suas conexões com homens brancos não brasileiros, pais de seus filhos, e com outros homens brancos de sua nacionalidade. O estudo é fruto de uma análise social e racial vivenciado pela autora, com base nos sentimentos apresentados pela escritora, tendo em vista sobretudo os contrapontos expressos pela mesma, quando se refere às etnias branca e preta, perpassadas pelas apresentações ambíguas de seu corpo tomado como voz (anti)colonial. O trabalho baseia-se na vida, no contexto e espaço em que a autora se insere, aflorando a sua liberdade afetiva e sexual. O artigo em questão é de caráter bibliográfico e utiliza como aporte teórico, alguns autores, entre eles, Candido (1993), Evaristo (2005), Rougemont (2003), entre outros. Com base na pesquisa, pode-se verificar que Carolina Maria de Jesus possui uma escrita visceral, apresentando em linhas carnais e íntimas, a sua experiência singular e profunda, os amores que a tiraram do lugar comum, fazendo-a repensar a sua condição social e principalmente o seu espaço e direito enquanto mulher, sendo a personagem principal de sua jornada, o que a torna insubmissa, resistente e a frente do seu tempo, pois ao denunciar a realidade em que estava imersa, ela reivindica para si o direito de conduzir a sua jornada, o seu corpo e consequentemente os seus amores.

Palavras-chave: Amor. Corpo. Decolonialidade. Carolina Maria de Jesus.

Abstract

This research aims to reflect on the emotional relationships of Carolina Maria de Jesus and to verify her connections with non-Brazilian white men, fathers of her children, and with other white men of her nationality. The study is the result of a social and racial analysis experienced by the author, based on the feelings presented by the writer, taking into account, mainly, the contrasts expressed by her, when referring to the white and black ethnicities, permeated by the ambiguous presentations of her body taken as an (anti)colonial voice. The work is based on the life, context and space in which the author inserts herself, bringing out her emotional and sexual freedom. The article is of a biobiographical nature and uses as theoretical support some authors, mainly Candido (1993), Evaristo (2005), Rougemont (2003), and others. Based on the research, we conclude that Carolina Maria de Jesus has a visceral writing style, presenting in carnal and intimate lines her unique and profound experience, the loves that took her out of the ordinary, making her rethink her social condition and, especially, her place as a woman, being the main character of her journey, which makes her insubordinate, resistant and ahead of her time, because, by denouncing the reality in which she was immersed, she claims for herself the right to lead her journey, her body and, consequently, her loves.

Keywords: Love. Body. Decoloniality. Carolina Maria de Jesus.

1. INTRODUÇÃO

Carolina Maria de Jesus alcançou a atenção da crítica literária em 1960 com a publicação de Quarto de despejo: diário de uma favelada. Muitas outras obras foram escritas por ela, no entanto, nenhuma delas elevou a escritora a um patamar literário, e sim documentário, por expor a realidade dos favelados em forma de denúncia direta e de ataque aos sistemas presidencial, governamental e municipal. Essa exposição, que não agradou os frequentantes da “sala de visitas” (Jesus, 1960) foi, aos poucos, sendo deixada de lado, levando ao esquecimento de sua denunciante. 

Em vida e já fora dos holofotes Carolina publica, com recursos próprios e sem sucesso, Pedaços da fome e Provérbios em 1963. Atualmente, um grande número de pesquisadores analisa os textos de Carolina porque suas temáticas não se exaurem e são tão imprevisíveis como a própria escritora. Fazemos essa afirmação com base na leitura de Quarto de despejo (1960). Neste livro, encontramos, além de relatos do cotidiano dos moradores da favela do Canindé, São Paulo, poesias, quadras, canções, provérbios, citações e uma infinidade de mesclas textuais utilizadas pela escritora para demonstrar a discriminação sofrida por homens e mulheres pretos/as. Mas, para falar sobre o amor em Carolina, a obra que nos auxiliará é Diário de Bitita (2007), onde ela descreve, a partir de suas memórias, como foi a sua inserção ao mundo da leitura e qual o livro influenciou diretamente o seu gosto literário e, também, amoroso.

Bitita – apelido de Carolina na infância – aprendeu a ler aos sete anos de idade, graças à dedicada professora Lonita, na cidade de Sacramento, Minas Gerais, onde ela nasceu. Adquirida a habilidade leitora, o primeiro livro que a menina Bitita leu foi a obra A escrava Isaura (1975), de Bernardo Guimarães. Esse livro representou, para a escritora, um marco temporal porque tanto ampliou a sua visão de mundo como fez com que ela idealizasse o homem perfeito – branco – que a salvasse de todas as injustiças raciais por ela sofridas, assim como fez Álvaro por Isaura. 

Um olhar sobre a leitura, possibilita observar que Carolina não é vista somente como uma mulher, negra, mãe solo ou catadora, mas é um auto reflexo em sua construção literária, pois, disponibiliza nas linhas de sua escrita o espaço social em que vivia, em meio a um ambiente de violência, marginalidade, preconceito e pobreza relatando a tristeza, a dor, a fome e a incerteza que assolavam o seu espaço.

A produção torna-se uma ferramenta de liberdade, em que a mesma, consegue sair da zona periférica que morava, e também de proteção e exposição, denunciando a sua realidade, na qual reproduzia a vida miserável e a condição precária vivenciada por ela e pelos demais moradores, relatos viscerais, profundos e dolorosos, que destacam com frequência a diferença de classe, apontando por intermédio de sua escrita uma aproximação do leitor acerca das experiências vivenciadas, que são transformadas em tábua de sobrevivência e resistência contra as injustiças, a fome e a pobreza, sob a qual considera um mal indescritível.

Apesar de ser uma pessoa semianalfabeta, a autora consegue com sua produção simples e objetiva, na qual por múltiplos momentos é possível notar a presença de problemas gramaticais, fato ligado a sua falta de conhecimento sobre a gramática normativa, expor com mais ímpeto, a realidade vivida, o que possibilita ao leitor uma aproximação com as experiências vivenciadas, os sentimentos de tristeza, desamparo e indignação, quando direitos básicos como ter o que comer, torna-se complicados, sendo esta uma realização humilhante e desigual.

 Infelizmente, Carolina não teve a mesma sorte que a personagem de Bernardo Guimarães. Poderíamos dizer que ela está mais para Bertoleza – a negra cafuza de O cortiço, de Aluísio de Azevedo (1890) – “que não queria sujeitar-se a negros e procurava institivamente o homem numa raça superior à sua” (1993, p.144). Assim como Bertoleza, Carolina, ao que tudo indica, possuía o mesmo desejo, embora não tenhamos encontrado nada escrito por ela que justifique seus gostos por homens brancos, porém, seus textos deixam essa afirmação bem clara.

De acordo com Cardoso (2014, p. 118);

Efetivamente, sou negro e livre para ser o que quiser, apesar da história. Quanto aos meus olhos? Eles se dirigem para o branco. Considero-o uma questão. Julgo relevante pesquisar, observar aquele que tanto me observou. O branco que possui tanta bibliografia a meu respeito (Carone; Bento, 2002). Ele, o ilustre acadêmico, que possuiu o monopólio para definir cientificamente quem é negro; a ideia de negro, a identidade negra, o conceito negro durante muito tempo (Guimarães, 2002). Ele que ainda possui grande prestígio quando o tema é raça e todos os outros. Observo o branco. Os meus olhos estão voltados em sua direção há muito tempo, objetivamente (Haraway, 1995).

Dialogando com o pensamento de Cardoso (2014), podemos observar que os relacionamentos com homens brancos e estrangeiros talvez tenham representado a insubordinação e a ousadia de Carolina Maria de Jesus perante seus “predominadores” (Jesus, 1960) e seu olhar voltado para o branco, espelhando críticas, comparações e desconstruções sociais. Envolver-se com homens brancos proporcionava a ela a certeza de que para reduzir “a dor de sua cor” (Carneiro, 2011), era necessário mesclar suas relações modificando apenas a origem de cada parceiro, no entanto, a cor permanecia a mesma: branca. 

Quando a autora escreve sobre a questão mencionada anteriormente, e coloca as suas ideias sobre os fatores misóginos e machistas da sociedade, ela rompe com o fator submissão, o qual muitas mulheres deixaram de escrever ou fazer algo que tinham vontade por não terem a liberdade reconhecida, por terem suas vozes abafadas, silenciadas e marginalizadas, principalmente, pelo meio em que estavam inseridas que tinham uma espécie de palavra final nas discussões e que se apoiavam em uma sociedade extremamente patriarcal.

Colaborando com a resistência da escritora, enquanto mulher, periférica e negra:

Embora muitas pessoas a minha volta teimem em querer me provar que uma pessoa negra e de família pobre, mesmo bem-sucedida como me julgavam alguns, tenha que viver na sombra. Ora uma pessoa negra jamais seria invisível no Brasil: todo o tempo ela é lembrada que tem uma cor. E mesmo que sejamos muitos, e somos, eles insistem há séculos em fingir que não existimos. Ou que existimos apenas para lhes servir. Não (Dornellas, 2018, p. 37-38).

A escritora Déborah Dornellas enfatiza que o sujeito negro no Brasil é lembrado diariamente a sua cor, ou seja, o seu lugar e sua “subordinação” ao branco, enfatizado principalmente na escrita feminina negra, em que a denúncia é o elo de luta pelos direitos dos indivíduos negros para ocupar o seu espaço de direito.

Destarte, uma quebra ocorre quando a figura feminina se desvincula dos parâmetros que a sociedade impõe. Carolina automaticamente se reconstrói com um novo lugar, espaço e função, de uma mulher que não precisa se prender a uma fórmula pronta, ou seja, seguir passo a passo as regras de um estilo de vida a qual não pertencem. É pertinente ressaltar que essa ruptura ocorreu ao longo de muitos anos, a custa de muitas lutas e discussões de movimentos que colaboraram para transformações singulares. Assim, norteando a pesquisa, surge a seguinte questão: Como se dão as relações amorosas de Carolina Maria de Jesus a partir dos seus relatos, em especial, Quarto de Despejo (1960) e Casa de alvenaria (2021). 

Com o desenvolvimento da pesquisa, podemos refletir sobre elementos que ficam à margem das produções, estudos e análises que existem sobre a autora em questão, reconhecendo a existência de lacunas sobre o assunto, buscamos realizar uma retomada sintética dos estudos feitos até então.

2. ROMPENDO ESPELHOS: PROBLEMATIZAÇÃO DE SUJEITO, CORPO E SOCIEDADE

Na década de 1960, temos um contexto conservador e uma literatura já estabelecida pela classe letrada em que não havia espaço para a escrita de Carolina da forma como ela foi apresentada. Essa afirmação se alicerça a partir da categorização que obteve Quarto de despejo (1960) como “[…] uma denúncia forte e violenta da miséria, não um simples diário” (Castro, 2007, p. 53).  A produção da escritora revela aspectos que refletiam o ambiente em que ela e muitos brasileiros estavam inseridos, mas que não tinham espaço ou relevância para a sociedade vigente da época, por essa razão, quando fez sucesso com Quarto de despejo: diário de uma favelada, Carolina Maria de Jesus se apresenta ao mundo como uma escritora que foi discutida pela crítica (Levine, 2015, p. 60) como sendo uma “favelada preta”, “mulher pobre e de cor”, “vítima da miséria”. Por outro lado, os acadêmicos classificavam a sua produção literária como representativa das “classes subalternas”, de “grupos dos oprimidos” e “subliteratura”.

Dialogando com a referida questão, Cardoso (2014, p. 253) afirma que:

Quando o espetáculo é levado ao grande público e gera uma rentabilidade, o branco será aquele que mais vai lucrar. O negro não estaria na função de produtor ou de diretor. Pois, não teria conhecimento técnico disponível no mercado do modo que o branco oferece. Refiro ao domínio de outro idioma, escrita, conhecimento financeiro e jurídico. Justamente algumas das formações profissionais que são negligenciadas com maior intensidade aos negros do que aos brancos. Digo isso, diante do histórico das desigualdades raciais no Brasil (Guimarães, 2004, Hasenbalg, 2005). Em suma, o branco se coloca de forma tão impetuosa e afaimada pelo “melhor espaço”, que ele não ambiciona “todo o espaço”, e sim, o melhor lugar. O branco se apropria dos melhores ambientes mesmo aqueles criados pelos outros, sem o menor acanhamento. Sobretudo, se for a “função” “de mando”, pois quem manda é a cabeça (o branco) e o corpo (o negro) obedece (Fanon, 1983; Cleaver, op. cit.).

Assim, a escrita de Carolina fica no limbo da marginalização, não comparecendo nos eixos canônicos, por ser uma escrita negra. Isso posto, na esfera literária, a ideia de que as obras estão em um constante diálogo com a sociedade é originário do século XVII. De acordo com Candido (2006), a literatura é um produto social que expressa as condições de cada grupo de indivíduos na qual ela passa a existir, assim, com Carolina não foi diferente, pois ela dialoga tanto com a forma não literária quanto com a produção ficcional. Um exemplo dessa questão é quando ela escreve o seguinte: “[…] A noite está tépida. O céu está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido” (Jesus, 1960, p. 28). No entanto, esse momento poético é interrompido porque Carolina relata a sua realidade: “[…] Começo a ouvir uns brados. Saio para a rua. É o Ramiro que quer dar no senhor Binidito. Mal entendido” (Jesus, 1960, p. 28). Aqui existe uma dualidade, em que a escritora transita nas duas esferas e isso aponta para uma fusão na relação literatura e sociedade, uma vez que, a literatura é vista como um espelho que reflete os múltiplos diálogos, vivências e arcabouço cultural e identitário do sujeito.

Dialogando com a questão referida anteriormente sobre cultura e identidade do sujeito, Fanon (2008, p.56) destaca que:

O branco e o negro representam os dois pólos de um mundo, pólos em luta contínua, uma verdadeira concepção maniqueísta do mundo; a sorte está lançada, não nos esqueçamos: branco ou negro, eis a questão! Sou branco, quer dizer que tenho para mim a beleza e a virtude, que nunca foram negras. Eu sou da cor do dia… Sou negro, realizo uma fusão total com o mundo, uma compreensão simpática com a terra, uma perda do meu eu no centro do cosmos: o branco, por mais inteligente que seja, não poderá compreender Armstrong e os cânticos do Congo. Se sou negro não é por causa de uma maldição, mas porque, tendo estendido minha pele, pude captar todos os eflúvios cósmicos. Eu sou verdadeiramente uma gota de sol sob a terra.

Assim, observamos que a cultura e a identidade da escritora se sobressaem em uma dualidade social e sentimental, que transita na sua reflexão sobre o lugar e os direitos do branco e do negro, demarcados por discursos extremamente excludentes e elitistas.

Contribuindo com as reflexões sobre identidade, Hall afirma que:

O que denominamos “nossas identidades” poderia provavelmente ser melhor conceituado como as sedimentações através do tempo daquelas diferentes identificações ou posições que adotamos e procuramos “viver”, como se viessem de dentro, mas que, sem dúvida, são ocasionadas por um conjunto especial de circunstâncias, sentimentos, histórias e experiências única e peculiarmente nossas, como sujeitos individuais. Nossas identidades são, em resumo, formadas culturalmente (Hall, 2006, p. 07).

O escritor lança em destaque o termo identidade para significar

[…] o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos ‘interpelar’, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades que nos constroem como sujeitos aos quais se pode ‘falar’(Hall, 2006, p.111-112).

Assim, é possível compreender que os limites do conceito de identidade são mutáveis, não sendo estáveis, pois carregam o arcabouço ideológico, cultural, social, político e se adequa a realidade em que o sujeito está inserido.

Podemos destacar a relação do uso social como representação e crítica nos relatos da escritora em análise, pois em um determinado momento são enfatizados alguns pontos da realidade em que estava inserida, como a elitização e a segregação que a ABL (Academia Brasileira de Letras) comete com os “escritores desconhecidos” ou que estão fora do eixo canônico. Tal situação foi se transformando ao longo dos anos. Entretanto, é importante frisar que mesmo com avanços consideráveis, a ABL ainda precisa rever alguns conceitos e formas de seleção.

[…] chegou a Dona Helena Figueiredo. Convidou-me para sair que ela ia fotografar-me para uma reportagem. Alugamos um táxi ela fotografou-me na porta da Academia Brasileira de Letras, a porta estava fechada. Ela disse:

─ As portas das Academias do Brasil ainda estão fechadas para Carolina Maria de Jesus.

Eu sentei a Vera e o José Carlos perto do busto de Machado de Assis. O João queria sentar-se eu disse-lhe que não porque você não é escritor. O João começou a chorar, reclamando que eu lhe puis no mundo para humilhar-me (Jesus, 2021, p. 127).

É possível verificar também na citação anterior, o preconceito de Carolina com o filho, pois João, de acordo com a mãe, não tinha direito de sentar no local por não ser um escritor. Aqui, se evidencia uma construção de um discurso que está mergulhado nos pontos da realidade em que a mulher fazia parte, como a elitização e a segregação, já explanadas anteriormente. Com isso, a autora reproduz os discursos da elite.

Um outro relato impactante feito por Carolina é sobre a exclusão social que sofreu durante alguns momentos de sua vida, entre eles, destacamos o trecho a seguir:

Subi no elevador, eu e a Vera. Mas eu estava com tanto medo, que os minutos que permaneci dentro do elevador pareceu-me séculos. Quando cheguei no quarto andar respirei aliviada. Tinha a impressão que estava saindo de um tumulo. Toquei a campainha. Surgiu a dona da casa e a criada. Ela deu-me um saco de papéis. Os dois filhos dela conduziu-me no elevador. O elevador em vez de descer, subiu mais dois andares. Mas eu estava acompanhada, não tive receio. Fiquei pensando: a gente fala que não tem medo de nada, as vezes tem medo de algo inofensivo. No sexto andar o senhor que penetrou no elevador olhou-me com repugnância. Já estou familiarizada com estes olhares. Não entristeço. Quiz saber o que eu estava fazendo no elevador. Expliqueis lhe que a mãe dos meninos havia dado-me uns jornaes. Era este o motivo da minha presença no elevador. Perguntei-lhe se era médico ou deputado. Disse-me que era senador. O homem estava bem vestido. Eu estava descalça. Não estava em condições de andar no elevador. Pedi ao jornaleiro para ajudar-me a por o saco nas costas, que o dia que eu estivesse limpa eu lhe dava um abraço. (Jesus, 1960, p. 98).

Na citação mencionada, podemos destacar alguns aspectos, o primeiro se trata do preconceito social e racial devido a cor de pele, em que Carolina foi submetida, pois por ser pobre, negra e estar com trajes humildes e descalça, foi questionada sobre a sua presença naquele ambiente. O segundo, patriarcal, é refletido no comportamento elitista do político, no caso, um senador, que, ao invés de tratar a mulher de forma cordial, foi ríspido e mal educado. E por fim, o fato de Carolina não se sentir à vontade para abraçar o jornaleiro, devido a internalização do discurso discriminatório da elite social branca, que foi construído ao longo da história.

Corroborando com as discussões propostas acima, Cardoso (2014, p. 50) afirma que:

O ideal do branqueamento contém em sua matriz a lógica da superioridade branca e da inferioridade negra. Os negros, ao deixar de serem necessários, tornaram-se indesejados, porque os consideravam inferiores. Na emergência do trabalho livre, urbanização e industrialização, os brancos tornaram-se desejados em virtude de serem vistos como superiores. O branco tornava-se necessário para solucionar o problema que se tornou o negro.

Assim, o corpo da mulher negra e pobre, além de ocupar um lugar de exposição e servidão ao homem, também assume o aspecto de auto-segregação e autodiscriminação.

Sobre o corpo, Fanon (2008, p. 186 e 187) pontua que:

Deve-se ter percebido que a situação que estudei não é clássica. A objetividade científica me foi proibida, pois o alienado, o neurótico, era meu irmão, era minha irmã, era meu pai. Tentei constantemente revelar ao negro que, de certo modo, ele aceita ser enquadrado; submete-se ao branco, que é, ao mesmo tempo, mistificador e mistificado. O negro, em determinados momentos, fica enclausurado no próprio corpo. Ora, “para um ser que adquiriu a consciência de si e de seu corpo, que chegou à dialética do sujeito e do objeto, o corpo não é mais a causa da estrutura da consciência, tornou-se objeto da consciência. (…)Todas as vezes em que um homem fizer triunfar a dignidade do espírito, todas as vezes em que um homem disser não a qualquer tentativa de opressão do seu semelhante, sinto-me solidário com seu ato. De modo algum devo tirar do passado dos povos de cor minha vocação original. De modo algum devo me empenhar em ressuscitar uma civilização negra injustamente ignorada. Não sou homem de passados. Não quero cantar o passado às custas do meu presente e do meu devir.

Isso posto, a literatura deve ser concebida como um todo, resultado de um tecido formado por várias características sociais distintas e que se complementam. Candido (2006) reconhece o social por meio de um processo de interiorização e que as visões específicas determinadas são o que define a construção de um livro, com isso, a visão de Carolina Maria de Jesus sobre si era de uma mulher negra, periférica e marginalizada, exemplificando tal afirmação, temos um momento que foi vivenciado pela escritora no dia 16 de junho de 1958, quando foi apresentar aos diretores de circo suas peças teatrais:

[…] Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me:

— É pena você ser preta.

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. E indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.

…Um dia, um branco disse-me: — Se os pretos tivessem chegado ao mundo depois dos brancos, aí os brancos podiam protestar com razão. Mas, nem o branco nem o preto conhece a sua origem.

O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém (Jesus, 1960, p. 58).

Entretanto, mesmo se considerando uma mulher negra, marginalizada e racializada socialmente, a escritora tinha orgulho de suas características físicas e tecia críticas as particularidades do branco, subsidiando assim, uma comparação que induz a reflexões sobre a falta de conhecimento e das origens raciais, culturais e identitárias do sujeito. Com isso, depois de destacar que o branco se diz superior em relação ao negro, a escritora expõe que as particularidades do negro não passam de hábitos que perpassam nas duas raças e conclui que a “natureza não seleciona ninguém”. 

Em relação entre o branco e o negro, Cardoso (2014, p. 49) pontua que:

Um Estado nacional branco representa progresso, desenvolvimento, modernização, ocidentalização. Os africanos tornaram-se personae non gratae. O trabalho “escravo” passa a ser símbolo do atraso. Em nosso processo de modernização ocorreu à abolição gradual da escravatura, houve o estímulo para imigração centro-europeia, o que equivale dizer, branco-branco. Os não-brancos não eram mais necessários, especialmente, os africanos. Aliás, por razão semelhante, não seriam bem-vindos: japoneses, chineses, porque eles poderiam acentuar a feiura do povo brasileiro, que já era horripilante por causa de sua matriz portuguesa, indígena e africana, três povos feios, povos não-brancos mesmo.

Uma outra situação vivenciada por Carolina é uma em que reflete a sociedade da época, quando sofre preconceito por um outro negro, “Quando eu passava perto do campo do São Paulo, várias pessoas saíam do campo. Todas brancas, só um preto. E o preto começou a insultar-me: ─ Vai catar papel, minha tia? Olha o buraco minha tia” (Jesus, 1961, p. 12). Aqui, além de expressar o racismo do sujeito negro para com um outro indivíduo da mesma cor, podemos destacar a questão do etarismo, refletindo a ideia do falso cuidado, em que o rapaz aparentemente se preocupa com a idade da escritora, quando na verdade não passava de um preconceito, demarcando uma superioridade e pertencimento dos colegas brancos, uma vez que, o rapaz negro estava inserido naquela realidade.

Entendemos que essa atitude, pensamento e comportamento podem ser justificados a partir de Pele negra, máscaras brancas (2008), livro em que Frantz Fanon nos apresenta a situação do jovem negro que não se considera como tal por conviver entre os sujeitos brancos, passando a atacar a escritora de uma forma velada. O negro que insultou Carolina não se reconhece como negro porque adquiriu com os brancos, seus amigos, a cultura do inconsciente como inscrição do sujeito branco (Fanon, 2008).

Para o autor:

O negro não deve mais ser colocado diante deste dilema: branquear ou desaparecer, ele deve poder tomar consciência de uma nova possibilidade de existir; ou ainda, se a sociedade lhe cria dificuldades por causa de sua cor, se encontro em seus sonhos a expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu objetivo não será dissuadi-lo, aconselhando-o a “manter as distâncias”; ao contrário, meu objetivo será, uma vez esclarecidas as causas, torná-lo capaz de escolher a ação (ou a passividade) a respeito da verdadeira origem do conflito, isto é, as estruturas sociais (Fanon, 2008, p.96).

Logo, a literatura tem um caráter social que se entrelaça com a cultura e a sociedade. Sendo assim, podemos dizer que existe uma relação entre a literatura, o imaginário humano, e consequentemente, nos seus sentimentos. Percebemos que o Mito do Amor Romântico está presente nas obras literárias e nos relatos de Carolina Maria de Jesus, como também nas ideologias sociais. Cabe enfatizar que, o amor na esfera romântica não era um dos fatores predominantes na vida da autora em questão. Desse modo, faremos um breve relato acerca das relações entre mito e sociedade dialogando com as vivências amorosas da escritora.

3. O MITO DO AMOR E SUA RELAÇÃO COM A LITERATURA: OS AMORES DE CAROLINA

O amor faz parte da vida humana em várias esferas, logo, está presente em todas as culturas, sendo apresentado e vivenciado de diferentes formas. Assim, como o amor, a literatura também perpassa as culturas. Ao mencionarmos amor e literatura não há como negar essa relação intrínseca disseminada por meio de romances, contos, novelas e outras obras literárias. 

Dessa forma, O mito do amor romântico se insere nesse contexto, pois há no subconsciente das pessoas que ao falarmos em amor, vem a mente a ideia de amor eterno, de felicidade que será conquistada por meio de um relacionamento amoroso. Como percebemos nos Contos de Fadas e em romances, narrativas em que há um final feliz romântico para o casal protagonista. 

Na Literatura, os noivos casam, entretanto, a vida depois do casamento não é mencionada, visto que a história tem seu final feliz no dia do casamento. Observando a aparente perfeição dos romances, as pessoas passam a desejar um amor também perfeito como os dos contos de fadas e, consequentemente, deparam-se com a realidade humana, diferente das personagens, daí a frustração de não encontrarem uma felicidade eterna no relacionamento.

Para Denis de Rougemont (2003, p. 28):

Poderíamos dizer, de um modo geral, que um mito é uma história, uma fábula simbólica, simples e tocante, que resume um número infinito de situações mais ou menos análogas. O mito permite identificação imediata de determinados tipos de relações constantes, destacando-os de emaranhado das aparências cotidianas.

Dessa forma, o mito não tem autoria pública, mas está ligado a tradições sociais, religiosas e pode influenciar a vida das pessoas, como Rougemont (2003, p.29) afirma: “o caráter mais profundo do mito é o poder que exerce sobre nós, geralmente à nossa revelia” (grifos do autor). O mito exerce poder sobre as pessoas, pois atinge seus subconscientes, mostra situações que o indivíduo deseja para si, mas não consegue colocar em prática na sua vida.

Logo, o mito do amor romântico, do casamento feliz, sempre esteve presente nas sociedades ocidentais. Mesmo diante da crise do casamento, muitas pessoas querem e acreditam no que está processado no seu subconsciente desde sua infância e tentam transportar o mito para a realidade conjugal. Entretanto, isso é uma realidade talvez para mulheres privilegiadas e brancas. Já para as mulheres negras, o que existe, em alguns casos, é um outro caminho, repleto de empecilhos, conflitos e impedimentos.

Em A mulher negra e o amor” (2021), Beatriz Nascimento traça o perfil amoroso da mulher negra e como “essas relações são marcadas por um desejo amoroso de repartir afeto, assim como repartir o recurso material”. No entanto, para Carolina esse desejo não se concretizou. Ainda que tivesse uma liberdade sexual, suas relações se davam como homens brancos, pais de seus filhos. Poucas informações temos acerca deles e ainda assim, há contradições que explicitem como essas relações aconteceram. Porém, o gosto por homens brancos fica claro em muitos relatos em Quarto de despejo (1960), quando ela menciona os afetos que possui como o senhor Manoel, o Cigano, o pai de Vera Eunice e David St Clair, todos brancos. 

Carolina Maria de Jesuspertence à classe mais baixa da população e cabe a ela o sustento da família. Ela, matriarca, está fora do padrão de constituição da família nuclear. Sua família – a mulher e os três filhos – não possui nenhum parente próximo ou distante. Com isso, para a escritora, ter um homem em casa não era sinônimo de partilha, e sim de submissão e subordinação. 

[…] Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas tem marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade. Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer espécie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pedem socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebram as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos sossegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam a vida de escravas indianas (Jesus, 1961, p. 14). 

Percebemos a falta de alteridade de Carolina para com suas semelhantes. Esse tipo de ação é recorrente em seu Quarto de despejo (1960). Por outro lado, é a própria Carolina que admite “[…] Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar” (Jesus, 1960, p.19). Tanto o senhor Manoel como o Cigano propõem união com Carolina, mas ela rejeita por motivos diferentes.

Essa rejeição reflete o receio em ser submissa e controlada por um homem, a autora tinha na escrita a liberdade que almejava e essa conquista poderia ser ameaçada pelo enlace matrimonial. Com isso, Carolina rompe os espelhos do tradicionalismo social, em que para a mulher ser aceita dentro de um determinado ciclo ou que a mesma pudesse conquistar os seus objetivos, tinha que ter um esposo.

(…) O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal. Ele deu-me 50 cruzeiros e eu paguei a costureira. Um vestido que fez para a Vera (Jesus, 1960, p. 44).

Embora a escritora não tivesse uma relação matrimonial com algum dos seus casos, a mulher buscava uma segurança. Carolina tinha na figura do senhor Manuel um apoio, alguém que lhe ajudava a suprir as necessidades básicas que não estavam apenas na materialidade, mas também no seu íntimo, em questões afetivas e sexuais.

Cabe enfatizar que com o pai de Vera, a situação era um pouco diferente, pois entre eles, o envolvimento era de gratidão. Primeiro pela preservação da identidade paterna de Vera, assim, o homem se mantinha na clandestinidade, fator muito comum no quotidiano de várias mães solteiras e independentes. Segundo a relação entre os dois, é determinado um acordo que para Carolina era necessário, uma vez que a mesma necessitava do apoio financeiro proporcionado pelo sujeito.

Você me escreveu que a menina estava doente, eu vim visitá-la. Obrigado pelas cartas. Te agradeço porque você me protege e não revela o meu nome no teu diário. Ele deu dinheiro aos filhos e eles foram comprar balas. Nós ficamos sozinhos. Quando os meninos voltaram a Vera disse que quer ser pianista (Jesus, 1960, p. 156).

Já no que diz respeito ao relacionamento com o cigano, observamos que existe uma dependência emocional, pois Carolina se deixa envolver pelos encantos do homem, apesar de ter uma discriminação em relação à naturalidade do sujeito, pois, a escritora demonstra ter preconceito com os nortistas: “O nome do cigano é Raimundo. Nasceu na capital da Bahia. Mas não usa peixeira. Ele parece o Castro Alves. Suas sobrancelhas unem-se” (Jesus, 1960, p. 134). A escritora enfatiza a questão do homem não usar peixeira, pois de acordo com a sua compreensão pejorativa e generalista, todo nortista usa peixeira.

Outro ponto destacado é o encantamento pelas atitudes do cigano, entre eles, o gosto pela leitura;

Que ele é viúvo e gosta muito de mim. Se eu quero viver ou casar com ele. Abraçou-me e beijou-me. Contemplei a sua boca adornada de ouro e platina. Trocamos presentes. Eu dei-lhe doces e roupas para os seus filhos e ele deu-me pimenta e perfumes. A nossa palestra foi sobre arte e música. Disse-me que se eu casar com ele que retira-me da favela. Disse-lhe que não me adapto a andar nas caravanas. Ele disse-me que é poética a existência andarilha. Ele disse-me que o amor de cigano é imenso igual o mar. É quente igual o sol. Era só o que me faltava. Depois de velha virar cigana. Entre eu e o cigano existe uma atração espiritual. Ele não queria sair do meu barraco. E se eu pudesse não lhe deixava sair. Convidei-lhe para vir ouvir o rádio. Ele perguntou-me se sou sozinha. Respondi-lhe que eu tenho uma vida confusa igual um quebra-cabeça. Ele gosta de ler. Dei-lhe livros para ele ler. (Jesus, 1960, p. 131).

Na citação, ficam em evidência alguns interesses, entre eles, a possibilidade de sair da favela, uma entrega particular para uma relação que até então, Carolina não tinha experienciado, a forma como o cigano demonstra conhecimento por intermédio de seu discurso poético proporciona uma ligação com o mito do amor romântico, que possui bases na troca de juras amorosas, cumplicidade e a construção de um ambiente que seduz e envolve os enamorados. Assim, o discurso amoroso da escritora se evidencia no momento em que a mesma percebe que está se envolvendo com o andarilho e fica incomodada com o seu próprio comportamento:

11 DE JANEIRO …Não estou gostando do meu estado espiritual. Não gosto da minha mente inquieta. O cigano está perturbando-me. Mas eu vou dominar esta simpatia. Já percebi que ele quando me vê fica alegre. E eu também. Eu tenho a impressão que eu sou um pé de sapato e que só agora é que encontrei o outro pé. Ouvi falar várias coisas dos ciganos. E ele não tem as más qualidades que propalam. Parece que este cigano quer hospedar-se no meu coração. No início receei a sua amisade. E agora, se ela medrar para mim será um prazer. Se regridir, eu vou sofrer. Se eu pudesse ligar-me a ele!

Ele tem dois filhos. O menino acompanha-me sempre. Se eu vou lavar roupas, ele vai comigo, senta ao meu lado. Os meninos da favela têm inveja quando me vê agradando o menino. Agradando o filho, hei de conseguir o pai (Jesus, 1960, p. 134).

É válido destacar que durante todo o relato de Carolina Maria de Jesus ela só faz alusão ao coração como metáfora do amor, nessa fala destacada na citação anterior. A mulher não estava se sentido segura com a situação e já percebia que estava envolvida com o andarilho, sentindo ciúmes e alimentando ilusoriamente uma crença de que caso eles ficassem juntos, o cigano mudaria o comportamento, vivenciado a liberdade do amor dos dois pelo o mundo. 

O senhor Raimundo chegou. Veio chamar os filhos.

Olhou as crianças jantando. Eu lhe ofereci jantar. Ele não quiz. (…) Pensei: se eu estivesse sozinha dava-lhe um abraço.

Que emoção que eu sentia vendo-o ao meu lado. Pensei: se algum dia eu for exilada e este homem indo na minha companhia, ele há de suavizar o castigo. (…) O Raimundo disse-me que vai embora para a sua casa. E que se um dia a favela acabar, para eu procurá-lo. Fez o mesmo convite a Rosalina. Eu não apreciei. Não foi egoísmo. Foi ciúme. Ele saiu e eu fiquei pensando. Ele não estaciona. É o seu sangue cigano. Pensei: se algum dia este homem for meu, hei de prendê-lo ao meu lado. Quero apresentar-lhe o mundo de outra forma. (Jesus, 1960, p. 134-135).

Entretanto, as intenções do cigano eram diferentes daquilo que a autora esperava, pois, aparentemente o que o homem buscava era uma empregada.

O meu pensamento começou a desvendar a sordidez do cigano. Ele tira proveito da sua beleza. Sabe que as mulheres se iludem com rostos bonitos. Ele atrai as mocinhas, dizendo que casa com elas. Satisfaz seus desejos e depois manda elas ir embora. (…) Agora eu compreendia os seus olhares com a mocinha. Isto me serve de advertência. Nunca hei de deixar a Vera na casa de quem quer que seja. Olhei o rosto do cigano. O rosto bonito. Mas fiquei com nojo. Era um rosto de anjo com alma de diabo. (…) Vim para o meu barraco. Eu estava pondo os cadernos em cima da mesa, quando senti que alguém me pegava pelas costas.

Era o cigano que me abraçava. Beijou-me na boca. Os seus braços me apertavam tanto. Disse-me:

— Eu vou-me embora. Deixo as minhas roupas. Você lave-as para mim. Quando eu voltar dou-te uma máquina de costura. Eu não faço conta de dinheiro. Sei que você vai pensar em mim e sei que você vai sentir falta de mim. Sei que vou ser hospede do teu coração. E você ainda vai ter oportunidade de dormir nos meus braços (Jesus, 1960, p. 136-137).

Com base nos relatos de Carolina sobre o cigano, podemos verificar que apesar de todo um aparente amor demonstrado pelo homem, na verdade ele usava da conquista sentimental para conseguir favores domésticos e sexuais das mulheres com quem ele se envolvia. Assim, o mito do amor romântico dá espaço para uma realidade cruel e bastante dolorosa para a autora, que passou a sentir receio em deixar a filha com outros homens por medo do que poderia acontecer algo com a integridade física e mental da mocinha.

No decorrer das análises, podemos verificar que os amores da escritora estão interligados às inspirações dos valores da manifestação literária do romantismo, em que, as idealizações, as diferenças de classes, bem como o amor impossível são marcas preponderantes e que também se destacaram nos relatos da escritora. Entretanto, é válido destacar que o olhar realista assim como as próprias experiências vivenciadas por Carolina Maria de Jesus, enquanto mulher, negra, catadora de papel e mãe solteira atribuem a base e o norte para os caminhos que seus relacionamentos irão percorrer.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando vamos pensar sobre Carolina Maria de Jesus é necessário localizá-la no contexto social e cultural, pois a sua literatura fala sobre as pessoas que estão na subalternidade, nessa gente cujo corpo é visto como um corpo colonial ou mais “modernamente” como um sujeito neocolonial, portanto, o seu discurso como escritora deve estar pautado para a liberdade em relação ao corpo, ela precisa se libertar deste corpo posto nela, que é um corpo da colonialidade. E essa tentativa de libertação com os meios que ela tem, que vai impulsioná-la a ponto de podermos dizer que é esse instinto de liberdade que podemos chamá-la de uma escritora decolonial. Então ela é decolonial no sentido de querer escapar desse invólucro na qual ela vivia, porque muitos se conformam vivendo dentro desse contexto.

Mediante isso, o presente artigo refletiu sobre as relações amorosas de Carolina Maria de Jesus a partir dos seus relatos em busca de compreender como se deram as suas conexões com homens brancos, pais de seus filhos. Concluímos que as vivências amorosas da autora iam transformando a sua identidade enquanto mulher, negra, catadora de papel e mãe solteira. 

Nas suas relações, a sobrevivência foi um elemento basilar de resistência para que Carolina pudesse viver e criar os filhos, utilizando-se das trocas de favores sexuais e afetivas como forma de subsidiar um suporte para a família.

O amor que a autora nutria pela liberdade e pela escrita se revelou mais forte e mais profundo do que qualquer sentimento que brotasse naquela situação. Aqui, mais uma vez, chamamos a atenção para os aspectos reveladores da tendência romântica pela qual a escritora foi influenciada. 

REFERÊNCIAS

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CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In: ____. O discurso e a cidade. 2 ed. São Paulo: Duas Cidades, 1998 (123-152).

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Ed. 9. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

CARDOSO, Lourenço. O branco ante a rebeldia do desejo:um estudo sobre a branquitude no Brasil. Araraquara: Appris Editora, 2014.

DORNELLAS, Déborah. Por cima do Mar. Romance. 1ª ed. São Paulo: Patuá, 2018, 344 p.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira . – Salvador : EDUFBA, 2008.

GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. Rio de Janeiro: B. L. GARNIER, 1985.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

JESUS, Carolina Maria de. Casa de Alvenaria, volume 1: Osasco – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2021. – (Cadernos de Carolina, 1)

JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. Sacramento: Editora Bertolucci, 2007.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada.São Paulo: Livraria Francisco Alves (Editora Paulo de Azevedo), 1961.

NASCIMENTO, Beatriz. A mulher negra e o amor. In: Uma história feita por mãos negras: Relações raciais, quilombos e movimentos. Organização Alex Ratts. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

ROUGEMONT, Denis. A história do amor no ocidente. São Paulo: Ediouro, 2003.


¹Doutoranda em Letras pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte. doralicefreitas@hotmail.com
²Doutorando em Letras pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte. abmonteiro27@outlook.com
³Doutoranda em Letras pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte. daysarego@gmail.com
4Doutoranda em Letras pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte. angelaviana@alu.uern.br