REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102411271454
Danilo Henrique Rodrigues Aragão1
Resumo: Este trabalho busca analisar os enunciados nas redações nota mil do Enem, no ano de 2021, disponíveis na “Cartilha a mil 3.0”, que obtiveram a nota máxima na avaliação. Assim, buscou-se compreender como as entonações, necessariamente, precisam estar verbalmente marcadas, tendo em vista um destinatário que buscará elementos nos enunciados dos candidatos indicativos de uma originalidade, subjetividade e criticidade, o qual atribuirá ao texto uma pontuação, cuja preocupação do aluno está no atendimento às expectativas estipuladas pela banca. Nesse sentido, coloca-se, como recorte, os enunciados que tratam de argumentos sustentados pelos artigos da Constituição Federal em uma lógica de entendimento diante da relação entre o sujeito cidadão e o sujeito discursivo, imersos nas relações dialógicas pelas quais o social e o textual se evidenciam. Desse modo, diante dos textos os quais foram atribuídos pelos avaliadores a nota mil, nota-se os indícios de autoria, além da evidência do atendimento à tipologia exigida quanto à presença deste elemento. As marcas linguísticas se deram, em sua maioria, na associação de outros dizeres reenunciados e o posicionamento dos autores diante da problemática apresentada, e isso demonstrou que os candidatos permitiram a nossa análise a manifestações das relações dialógicas, que se dão por meio da interação entre os interlocutores que estão inseridos no processo da enunciação e manifestação de entonações valorativas. Palavras-chave: Dialogismo. Entonações valorativas. Autoria.
INTRODUÇÃO
Os processos seletivos das universidades brasileiras exigem, em muitos casos, a produção de um texto que perpassa os diversos tipos e gêneros discursivos. Sob esse viés, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) – o qual surge com a finalidade de avaliar os índices de desempenho escolar dos alunos do último ano do ensino médio em 1998, posteriormente, em 2009, passa a ser utilizado como forma de acesso às universidades públicas e privadas do Brasil – divide-se em 4 grandes áreas de conhecimento, além dos itens objetivos, o exame propõe uma produção textual como critério avaliativo.
Nesse sentido, ele exige uma tipologia específica, que é a dissertação- argumentativa. Então, há um direcionamento incisivo para a elaboração de texto em que argumentos precisam ser levantados e principalmente a defesa de um ponto de vista. Nessa linha de raciocínio, um questionamento surge a respeito das evidências textuais que marcam as opiniões desses alunos/escritores e como essas erguem entonações de valores sociais acerca de uma dada problemática. Além disso, questiona-se como tais entonações necessariamente precisam estar verbalmente marcadas, tendo em vista um destinatário que buscará elementos nos enunciados dos candidatos indicativos de uma originalidade, subjetividade e criticidade, trata-se aqui no corretor/avaliador que atribuirá ao texto uma pontuação, cuja preocupação do aluno está no atendimento às expectativas estipuladas pela banca.
Dessa forma, este trabalho busca analisar os enunciados nas redações nota mil do Enem, no ano de 2021, disponíveis na “Cartilha a mil 3.0”, elaborada por Lucas Felipe, com 24 redações que obtiveram a nota máxima na avaliação, cujo tema exigido, em 2021, para discussão foi “O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira”. Conforme a solicitação da Competência 2 de que se deve aplicar conceitos das diversas áreas de conhecimento, percebe-se, nas redações, uma diversidade de citações diretas e indiretas que reforçam o posicionamento do autor do texto, as quais servirão de objeto de análise deste estudo, assim, coloca-se como recorte os enunciados que tratam de argumentos que se sustentam baseados nos artigos da Constituição Federal, em uma lógica de entender uma relação entre o sujeito cidadão e o sujeito discursivo que estão imersos nas relações dialógicas pelas quais o social e o textual se evidenciam, uma vez que a Carta Magna trata de assuntos totalmente sociais.
ENTONAÇÕES VALORATIVAS
Embora conceitualmente não tenha sido definido por Bakhtin, as concepções sobre dialogismo têm se mostrado um caminho frutífero no estudo das enunciações, considerando os pressupostos teóricos desenvolvidos pelo círculo bakhtiniano. No Brasil, o dialogismo ganha destaque no aprofundamento dos estudos da linguagem, um olhar que o ciclo integra à constituição do enunciado, uma vez que, na língua, o dialogismo é um fenômeno que atravessa os eixos situacionais da condição humana (Bakthin, 2015 [1930, 1936]).
Perceber o enunciado é considerar que seu constitutivo abraça as noções de um destinatário, as visões de mundo, os aspectos axiológicos, as percepções subjetivas e o próprio posicionamento de um interlocutor, em que a construção de sentido se dá em condições que permitem emergir nas escolhas estilísticas composicionais temáticas e nos objetivos dos textos. Bakhtin (2015 [1930 1936]) aponta uma influência no discurso a partir e um discurso resposta vindouro, assim, começa-se a perceber nos textos dissertativos-argumentativos, utilizados como parte do processo exame avaliativo do Enem, na condição de redação, a existência de um destinatário cuja clareza e objetividade na leitura do texto permitem uma atitude responsiva que será manifesta por meio das pontuações que o candidato receberá após a avaliação do seu texto.
Em um movimento analítico para os textos produzidos para o Enem, delimita- se uma fronteira entre os interlocutores envolvidos na produção e recepção desse texto. Há enunciados que os compõem, que evidenciam outras enunciações e enunciados, os quais, na visão de Barbosa e Rojo (2015), variam a partir das esferas sociais que enquadram o ato da comunicação. Ainda pelo entendimento das autoras, “a enunciação se define pelas possibilidades deixadas pelas esferas do campo da comunicação que se dá” (2015, p. 77). Ademais, compreendemos ainda a lógica que uma situação concreta de enunciação, a qual habita sujeitos com os quais se estabelece relações, faz surgir nesse entremeio marcas axiológicas. Assim, delineamos um olhar para a condição de que a banca avaliadora do Enem delimita um gênero discursivo a ser produzido, embora a construção desse texto ainda dependa da vontade enunciativa pela qual se dá a elaboração do enunciado, isso condiciona também a escolha lexical na composição desse texto.
Para além disso, compreende-se que tal escrita não se dá, em sua plenitude, de forma inovadora e inédita, ainda que o ato da enunciação ocorra em condições socioespaciais específicas. De forma mais clara, diz-se que cada autor produz seu enunciado em um contexto particular, mas que é atravessado por outros discursos previamente estabelecidos. Outrossim, enfatiza-se um atravessamento do que é dito no momento da enunciação por um discurso de outrem, pelo qual fica evidente o aspecto dialógico da enunciação.
Abarca-se, nessa linha de pensamento, da visão em que os textos dissertativos utilizados pelo Enem se integram aos gêneros discursivos, pois é nítido que o engessamento do exame, além de provocar de forma direta a instituição de uma disciplina específica para a produção textual nas escolas brasileiras, inseriu a tipologia textual cada vez mais latente no seio estudantil dos jovens, pelo qual este precisaria expor suas opiniões diante da temática apresentada. De fato, a redação do Enem é um gênero que funciona na vida cotidiana com o objetivo de debater determinados assuntos e, para Rojo e Barbosa (2015), aquilo que é enunciado no dia a dia é atrelado a um gênero discursivo, pois estão comedidos pela organização comunicativa. Bakthin (2003 [1979] p. 262) afirma que
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque, em cada campo dessa atividade, é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo.
Como os gêneros discursivos se dão em condições de interação social de forma oral ou verbal, reside, nesse âmbito, uma associação com as práticas sociais, em que Rojo e Barbosa (2015) associam a uma práxis, pela qual as ações sociais são previamente racionalizadas, convergindo para um chamamento responsável do indivíduo que se manifeste de forma ética. No que se refere às redações, a aparição de um posicionamento crítico e ético surge pelas pistas verbais que o produtor do texto deixa no seu enunciado, com a finalidade de evidenciar um pensamento racional diante de uma questão político-social da qual o exame exige como discussão.
As diversas análises do campo da linguagem convergem para que ela, como forma de interação, torne-se um instrumento de comunicação que surge com uma expressão do pensamento (Geraldi,1996). Nessa perspectiva, considera-se que o texto é um veículo em que o pensamento ganha materialidade, sendo direcionado por essa visão; percebe-se que os textos que alunos produzem, com a finalidade de alcançar nota 1000 nas redações do Enem, perpassam por estratégias em que outros dizeres são convergidos para a defesa de um ponto de vista, ponderando que o texto do Enem é dissertativo-argumentativo.
Nessa lógica, é possível analisar as relações dialógicas que um candidato/aluno/autor mobiliza ao produzir o seu texto, anteriormente sendo mediado por um professor que lapida os seus dizeres de forma que o seu posicionamento esteja evidente no texto. Assim, a compreensão da realidade e a interpretação dela é trabalhada por uma metodologia de ensino que antecede a materialização do enunciado por atividades em sala de aula.
Tomar a linguagem como expressão do pensamento é concordar com Koch (2002) ao afirmar que cada leitor/ouvinte capta a representação mental presente no texto como um produto de reação lógica do pensamento. Para Fuza, Ohuschi e Menegassi (2020 p.15), nessa concepção “não cabe ao ouvinte questioná-lo, mas exercer um papel passivo diante dele de forma apenas a receber suas informações”.
O papel do corretor/leitor é exercido avaliador da redação não convenciona uma interlocução direta entre o autor do texto e aquele que irá lê-lo, nisso há concordância com o pensamento em que a interação está ligada aos elementos comunicativos dos quais o produtor do texto codifica, atribuindo-lhe elementos que evidenciam suas percepções do mundo a partir do posicionamento que assume para si.
Na língua, concebe-se a linguagem a partir da interação na composição de uma realidade final às faces de uma palavra, que podem ser determinadas pelo que vem de outrem, ou ainda o direcionamento para alguém em uma formatação do caráter dialógico (Bakhtin, Voloshinov, 2006 [1929] p. 123). Nesse contexto, os textos de redação do Enem levam em consideração uma proposta temática a qual levanta um debate social sobre problemas contemporâneos, neles verificam-se diversas denúncias de ações que se dão na superfície textual, mesmo que fragmentos enunciativos sejam repetidos (reenunciados) como forma de apresentação e confirmação do posicionamento crítico do autor do texto.
Como a interação é constituinte da noção dialógica do discurso, verifica-se um entendimento argumentativo da língua, haja vista que todo ato enunciativo é dotado de intencionalidade materializada na ação verbal, com a finalidade de provocar no outro o compartilhamento de ideias, isso se converge para orientação de um discurso que busca criar sentidos conclusivos (Koch, 2008). Por esse viés, compreendemos que a escrita do texto dissertativo-argumentativo para o Enem funciona em uma lógica de convencimento, assim, ressalta-se aqui o fato de que muitos textos produzidos para o Enem apresentam uma certa mecânica textual, uma vez que existem critérios a serem atendidos pelos candidatos, como a aplicação de um repertório sociocultural, que será debatido mais adiante, cujos candidatos são, muitas vezes, direcionados taxativamente a atender.
De toda forma, pondera-se a argumentação dentro desses textos marcadas pela presença do discurso de outrem, os quais são atravessamentos discursivos não pertencentes ao enunciador (Bakthin, 2011 [1952,1953]). Observando a condição imposta pelo exame de aplicar outras áreas de conhecimento na escrita, há outros dizeres que são reenunciados na perspectiva de solidificar o posicionamento crítico do autor perante a temática a qual será problematizada. O fenômeno da reenunciação leva em consideração, para Franco, Rohling e Alves (2020), o sujeito compreender para poder orientar esse enunciado, assimila-o – uma filiação ideológica – a transmissão – que considera o interlocutor – e o enquadramento, relacionando este a uma transposição para um novo contexto o discurso de outrem, desse modo, propõem-se uma correlação de um repertório já enunciado com argumentação elucidada pelo aluno/candidato.
Assim, corrobora-se como Fuza, Ohuschi e Menegassi (2020), na perspectiva valorativa dos enunciados, pois os contextos de produção levam em consideração os sujeitos que elaboram o enunciado, além do próprio contexto histórico social. Por isso, decidiu-se analisar as citações utilizadas pelos candidatos que realizam o Enem como forma de aplicação de um repertório sociocultural produtivo, legitimado e pertinente, que integre as diversas áreas de conhecimento e que contribua para a manifestação do posicionamento crítico deste autor, visando a convencer o avaliador de que suas ideias convergem para a defesa de um ponto de vista centralizado em uma tese no texto dissertativo-argumentativo.
ASPECTOS AXIOLÓGICO E UM DESTINATÁRIO PRESUMIDO
Em diversos contextos situacionais da vida, as entonações valorativas podem ser observadas quando um interlocutor assume para si um determinado posicionamento discursivo ideológico. Volóchinov e Bakhtin (2006 [1926]) destacam que uma parte do discurso é realizada em palavras no texto, e outra parte institui-se por meio do extraverbal das interações sociais que caminham por condições históricas e discursivas. Desta forma, os autores russos associam a entonação a fatores verbais e extras verbais na constituição de marcas textuais em que o produtor evidencia em sua escrita. Menegassi e Cavalcante (2020) também apontam aquele a quem se destina o texto, cuja alteridade possibilita ao destinatário a avaliação e a valoração no processo enunciativo, pelo qual as palavras representam a materialização da entonação dada pelo locutor.
Para além da elaboração de um texto dissertativo-argumentativo, a apreciação dele precisa prosseguir, considerando uma conexão idiossincrática na relação comunicativa entre o gênero discursivo e a sua finalidade, pois se tem, nessa simetria, a assunção de efeitos de sentido (Gomes, Ohuschi, 2021). Esse nexo realça o foco deste trabalho na preeminência de uma carga intencional que o autor criador estabelece, direcionada ao seu interlocutor na busca de uma atitude responsiva. Nesse meandro, concebe-se as entonações axiológicas as quais se dão pela seleção lexical e estilística, o que ratifica o pensamento saussureano de que o signo é ideológico, pois a presença de um signo presume a presença do aspecto ideológico (Volóchinov, 2017 [1929]).
Logo, a escrita da redação para o Enem possui marcas que, embora seja sua estrutura genérica em detrimento do foco centralizado na obtenção da nota máxima, apresenta valores sociais que desencadeiam efeitos de sentido que devem estar visíveis ao leitor, haja vista a ele importar que esses pontos estejam evidentes no texto. Por isso, o destinatário que recebe o texto para apreciação importa ao leitor, não pela funcionalidade do texto em uma situação comum de interação, mas porque, para o processo seletivo, implica os mecanismos usados para convencer o leitor/avaliador da opinião e coerência dos fatos apresentados.
Não se instrui a construção desse texto somente pela função social, mas sim pelo que se pretende alcançar com ele a partir da nota que se recebe. Assim, organizar o conjunto de ideias presume um foco: o avaliador, de modo que os critérios exigidos pelas bancas estejam todos contemplados e visíveis ao corretor. É nessa estratégia que o trabalho põe em foco também aquele que lê a redação e atribui a nota ao considerar que o destinatário integra a teoria dialógica do círculo de Bakthin, seja ele real ou hipotético, o que leva a assumir a noção de um destinatário presumido de quem se espera uma responsividade, isso tende a ser antecedido pela imagem que se faz do interlocutor sob o qual tem-se a influência da construção do enunciado. Sob essa ótica, Bakthin (2006) mostra que
A quem se destina o enunciado, como o falante (ou quem escreve) percebe e representa para si os seus destinatários, qual é a força e a influência deles no enunciado – disto depende tanto a composição quanto, particularmente, o estilo do enunciado. Cada gênero do discurso em cada campo da comunicação discursiva tem a sua concepção típica de destinatário que o determina como gênero. (Bakthin p.301).
A interação desses sujeitos está entreposta pelo enunciado instituído em uma dada situação comunicativa, em que o efeito de sentido se dá pela materialização verbal e também pelas inferências (2013 [1926]). Dessa forma, o destinatário possui papel fundamental na redação, dado que o gênero discursivo está integrado a uma esfera de atuação humana, implicando na variação dos enunciados.
Para esse avaliador, não interessa se é afim ou não dos posicionamentos ideológicos a tese defendida pelo escritor, de modo que ambos pertençam à mesa filiação discursiva, como assevera Volóchinov:
A palavra é orientada para o interlocutor, ou seja, é orientada para quem é esse interlocutor: se ele é integrante ou não do mesmo grupo social, se ele se encontra em uma posição superior ou inferior em relação ao interlocutor (em termos hierárquicos), se ele tem ou não laços sociais mais estreitos com o falante (pai, irmão, marido etc.). Não pode haver um interlocutor abstrato, por assim dizer, isolado […]. Na maioria dos casos, pressupomos um certo horizonte social típico e estável para o qual se orienta a criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos; isto é, para um contemporâneo da nossa literatura, da nossa ciência, da nossa moral, das nossas leis. (Volóchinov, 2017 [1929], p. 204-205, grifos do autor)
Sendo assim, é evidente que a o contexto imediato e a relação entre os interlocutores constituem elementos da enunciação, o que converge para escolha de conteúdo e a forma composicional do enunciado, pois há uma imposição subjacente que, discursivamente, orienta o enunciado dentro deste campo da atividade humana. Tal cenário deixa evidente que o sujeito/pessoa que lerá o texto não pode ser estabelecido, mas há, de fato, um destinatário cuja preocupação do escritor durante sua escrita o condiciona a partir da presunção deste avaliador e seus critérios de correção.
A AVALIAÇÃO DO TEXTO E OS INDÍCIOS DE AUTORIA
Antes de observar as manifestações valorativas que se dão na produtividade dos repertórios aplicados nos textos de redação nota mil, cabe destacar que esses textos possuem avaliações enquadradas em 5 competências. Dessas, a competência I avalia se o texto cabe à estrutura dissertativa-argumentativa, ao tema proposto e à aplicação de conceitos das diversas áreas de conhecimento (repertório sociocultural). Nesse último item, nota-se que muitos candidatos utilizam mecanismos textuais na aplicação desses enunciados com, por exemplo, discurso direto e indireto. Ademais, a competência III diz respeito ao percurso argumentativo mobilizado na defesa de um ponto de vista, cujos indícios de autoria – marcações de opinião e originalidade – são objetos de avaliação.
A produção destes textos se dá em um caráter formal, cujas marcas de oralidade são polidas pelos escritores. Esse fato gera uma série de interferências na produção do texto, uma vez que necessariamente tem-se um planejamento prévio do que vai ser escrito, possibilitando a lapidação dos dizeres para clareza e objetividade das informações ali apresentadas, ou seja, não há uma “espontaneidade”. Nesse contexto, os sujeitos produtores das redações desempenham um papel crítico social, de modo que a problemática proposta para discussão esteja sob domínio desse candidato, isso quer dizer que, para obter a nota máxima, a redação precisa apresentar objetividade, clareza e ideias que convençam o destinatário de que a tese a qual decidiu defender está de acordo com as lógicas argumentativas apresentadas, bem como a coerência na aplicação de conceitos das outras áreas de conhecimento.
É interessante destacar que o destinatário, o qual se presume por meio da noção de que o texto será avaliado por ele, não entra numa lógica de preocupação do locutor relacionado a sua filiação ideológica. Tal fato se faz interessante pontuar pela ciência, assegura Menegassi e Cavalcante (2020), embora a entonação deva ser atribuída ao enunciado e esteja ligada ao destinatário, não há obrigatoriedade de os interlocutores integrarem a mesma comunidade discursiva, cabendo ao locutor a produção de um texto que realize sua função de apresentar um ponto de vista e defendê-lo.
Passemos ao primeiro texto a ser analisado:
Prova disso é a escassez de políticas públicas satisfatórias voltadas para a aplicação do artigo 6º da “Constituição Cidadã”, que garante, entre tantos direitos, a saúde. Isso é perceptível seja pela pequena campanha de conscientização acerca da necessidade da saúde mental, seja pelo pouco espaço destinado ao tratamento de doenças mentais nos hospitais. Assim,infere-se que nem mesmo o princípio jurídico foi capaz de garantir o combate ao estigma relativo a doenças psíquicas. (Aécio Filho).
O candidato do excerto acima coloca como argumento ausência de políticas públicas, devendo essas irem ao encontro da satisfação daqueles que as enxerguem como primordiais. O elemento “escassez” é uma das marcas de autoria que devem ser percebidas. Poder-se-ia ter usado a expressão ausência, falta, entre outras, mas o aspecto valorativo ressaltado pela escolha lexical evidencia não somente o que não se tem, mas também pela ideia de que o que se tem é insuficiente diante de uma necessidade humana.
Cabe também destacar o termo “satisfatória”, o qual podemos associar seu efeito de sentido à primeira palavra apresentada nesse fragmento, que, juntas, dão conta de uma entonação que o autor coloca no seu argumento, enfatizando o posicionamento de uma problemática existente, alimentada por políticas que, embora existentes, são insuficientes e não atendem aos seus objetivos.
Os vocábulos usados pelo candidato funcionam como operadores argumentativos, pelos quais contribuem para os efeitos de sentido dentro deste evento enunciativo, indicando as intenções discursivas do interlocutor (Koch, 2008). Esses enunciados performativos revelam o grau de engajamento do escritor com os valores sociais que são estabelecidos pela Constituição Federal, e são violados, cuja motivação também se apresenta no texto por outro modalizador – “pequena campanha de conscientização”, demonstrando a insatisfação diante de um princípio que é violado, ainda que a lei seja suprema.
No entanto, apesar da Constituição Federal de 1988 determinar como direito fundamental do cidadão brasileiro o acesso à saúde de qualidade, essa lei não é concretizada, pois não há investimentos estatais suficientes nessa área. Diante dos fatos apresentados, é imprescindível uma ação do Estado para mudar essa realidade. (Aline Soares)
Inicialmente, os conectivos “no entanto” e “apesar de” já saltam aos olhos por, na construção dos períodos compostos, ideias que se sucederam de forma opositiva. Esses dados dialogam com uma concepção hierárquica dos argumentos direcionados a uma dada conclusão assinalada pelo autor, a qual Koch (2008) evidencia que esse escalonamento das ideias apresentadas permitem efeitos de sentido. Na perspectiva dialógica, essas marcas textuais denotam um juízo de valor presumido, tendo em vista que o sujeito escritor parte de problemas sociais reais que os enxerga como pontos críticos e tece seus argumentos acerca disso, pondo em análise os elementos extraverbais, assim, a entonação permite a ligação com o verbal, cujo discurso vai além das delimitações textuais (Menegassi, Cavalcante, 2020).
Não obstante, a presença de “concretizada” elucida a escolha lexical para demostrar a autoria no candidato, cujo dizer sinaliza um firmamento forte, todavia inexistente, são dizeres marcadores de autoria, conforme Possenti trata:
Por um lado, deve-se reconhecer que, tipicamente, quando se fala de autoria, pensa-se em alguma manifestação peculiar relacionada à escrita; em segundo lugar, não se pode imaginar que alguém seja autor, se seus textos não se inscreverem em discursos, ou seja, em domínios de “memória” que façam sentido; por fim, nem vale a pena tratar de autoria sem enfrentar o desafio de imaginar verdadeira a hipótese de uma certa pessoalidade, de alguma singularidade. (Possenti, 2009, p.95).
Outro elemento que se sobressai nesse mesmo texto diz respeito a “insuficiente”, dialogando com as ideias levantadas no texto anterior, e “é imprescindível”. Essa sentença é tratada por Koch como oração modalizadora pela qual se explicita um enunciado performativo do aspecto declarativo, cuja função é “assinalar explicitamente a força ilocucionária inerente a todo e qualquer ato de fala” (p.137). Nesse viés, Sobral (apud Menegasi, Cavalcante, 2020) destaca que o tom avaliativo pode ser expresso pelas modificações verbais, jogo de interação entre os interlocutores no ato da enunciação. A lógica disso perpassa as condições temporais da produção da redação, pois este momento enunciativo condiciona a realização comunicativa, em que a escolha vocabular precisa evidenciar as entonações valorativas.
Segundo a Constituição Federal, o governo tem a obrigação de garantir a igualdade de tratamento entre os cidadãos, independente de quaisquer condições pré-existentes. Porém, essa justiça não é comprida como deveria, já que milhares de indivíduos sofrem com preconceito associado a condições mentais. Tal fato está relacionado à falta de centros dedicados a receber denúncias e a punir os agressores, carência essa mais evidente nas zonas rurais. Com isso, milhares de brasileiros mentalmente doentes permanecem desamparados, indo contra as ideias de igualdade da Constituição. (Juan Sampaio)
O discurso polifônico é marcado pela apresentação do texto constitucional, na forma da manifestação do conteúdo composicional, inscrito na conjunção conformativa, pela qual o autor precisa dominar o conteúdo do enunciado para, assim, reenunciá-lo, qualificando-o. Embora o excerto da Constituição não traga taxativamente o termo “obrigação” no artigo 5º, que trata da igualdade de todos
perante a lei, a entonação que o aluno atribui a esse discurso perpassa o extraverbal na condição em que sua afirmação está pautada nos princípios constitucionais, os quais garantem direitos mínimos aos cidadãos, cabendo ao Estado a efetivação plena de tais garantias.
Nas condições de autoria, “como deveria”, “sofrem”, “carência” e “desamparados” são representações de insatisfações diante de valores sociais que não deveriam ser violados, seus sentidos despontam uma relação emotiva com esse fato, haja vista o verbo “sofre” pressupõem também a existência da dor, de uma agressão constante. Retomamos aqui o papel social do produtor desse texto que não se distancia do indivíduo social, uma vez que ele escreve a partir de situações problemas do mundo real e do lugar que ocupa enquanto cidadão, tais expressões modificam o enunciado em suas significações, sento a entonação apresentada neste excerto uma “criatividade produtiva nos seus aspectos sociais e discursivos” (Menegasi, Cavalcante, 2020, p. 108). Além disso, constata-se a inexistência de algo necessário, dialogando com o fato de um desamparo, resultante de uma condição que retoma a voz presente no texto da carta magna por meio da sua violação.
Sob essa ótica, sua tentativa de criar um país fictício com os mesmos entraves do Brasil é ratificada, sobretudo no que tange ao precário engajamento estatal para com as doenças mentais, uma vez que a saúde é um direito previsto pela Constituição Cidadã e tal cláusula não é garantida de forma efetiva. Isso ocorre devido ao caráter esporádico de campanhas de conscientização a respeito da necessidade do diagnóstico e do tratamento das enfermidades psíquicas, que se apresentam restritas aos meses de destaque ao combate da depressão e do suicídio, por exemplo. (Larissa Cunha)
Da mesma forma que o texto de Áecio Filho ressalta causa e consequência, este parágrafo também se vale dessa estratégia, todavia com enfoques na culpabilidade do Estado que se converge para a não efetivação da lei. Desse modo, a autora tem a preocupação de acentuar tal argumento no que ela enquadra como engajamento, também é possível analisar, pelas marcas linguísticas, a existência de ações para que ocorra o cumprimento da norma, mas elas não se dão de modo desejoso nas condições existentes. Não só isso, destaca-se ainda o fato de as campanhas não terem uma certa continuidade temporal, ratificando o posicionamento da autora.
A reenunciação no parágrafo manifesta-se naquilo que o legislador, o qual marca um exemplo de discurso de outrem, coloca como princípios a serem zelados
pelo Estado, de modo que a autora mobiliza esse pensamento com o intuito de acentuar axiologias intrínsecas ao texto constitucional que são violadas, haja vista a Constituição se preocupar com condições mínimas de existência humana, possibilitando observar como o locutor percebe seu papel social e o conhecimento de mundo sobre a questão em evidência. Não obstante, essa reenunciação – concordando com Franco, Rohling e Alvez (2020) – traz a essa cena enunciativa um novo acontecimento caminhando pela técnica do enquadramento, possibilitando ao escritor a aplicação do seu juízo de valor.
[…]cabe destacar que a saúde é um direito assegurado constitucionalmente a todos os cidadãos brasileiros. Nesse viés, é pertinente trazer o discurso do escritor Gilberto Dimenstein, de seu livro “Cidadão de papel”, no qual ele conceitua os cidadãos de papel—indivíduos cujos direitos constitucionais não são garantidos na prática. Dessa forma, depreende-se que os tratamentos precários oferecidos pelo Estado ferem os direitos da parcela da população que necessita de atendimento psiquiátrico adequado, deixando-a na condição inaceitável descrita por Dimenstein. (Ludmila Coelho)
Koch (2008) ressalta que há expressões relacionadas aos estados psicológicos do locutor, vinculados aos enunciados. Antes de analisar esse aspecto, cabe destacar o adjetivo “precário”, que modifica o sentido do termo “tratamentos”. Tal construção conduz para um efeito de sentido que aponta a subjetividade diante daquilo que o escritor percebe existir, os tratamentos, de forma deficitária, podendo qualificá-lo de forma neutra. A postura do escritor assume atitude responsiva pela qual o locutor opõe-se contra a palavra nesse processo de interação (Bakhtin, Volochinov, 2006). Essa atitude se presume pela necessidade de um posicionamento crítico cujas mazelas sociais são um ponto essencial para manifestação do posicionamento.
A evidência da autoria se substancia por meio do termo que, vale pontuar, é exigido para fins de qualificar esse texto o mais próximo possível da pontuação máxima. No que diz respeito à associação entre o estado psicológico do enunciador, a “condição inaceitável” tem uma relação mais afinca com a visão polifônica do parágrafo o qual se institui por vozes advindas dos repertórios aplicados pelos candidatos (citação de Gilberto Dimenstein e a Constituição), de modo que a interdiscursividade entre as citações permite ao escritor a emissão de um juízo de valor do fato visto como não passivo de aceitação.
Nessa lógica, ainda que o artigo 196 da Constituição Federal assegure a saúde e o acesso aos serviços e ações que a promovam, o Poder Público inoperante não proporciona o pleno desenvolvimento dos cidadãos acometidos por essas enfermidades pela escassez de aplicações financeiras nos projetos, acentuando o impasse, que precisa ser mitigado. (Ramon Ribeiro)
A utilização de marcadores é acentuada por Koch como “um modo de significar diferente daquele sob o qual é veiculado o conteúdo proposicional” (2008, p.139). Nesse sentido, ao colocar o Poder Público em foco, o candidato o qualifica como inoperante, ainda que a informação principal não seja sobre esse sujeito em si, mas a ação que lhe cabe enquanto agente mantenedor dos direitos civis, que, por sua vez, não os cumpre em sua totalidade, corroborando, assim, para aquilo que o autor enxerga como de difícil resolução na condição de impasse. Vale ponderar também o termo “escassez”, que aqui se faz presente tal como no texto de Áecio Filho, buscou enfatizar essa pouca ação que são discutidas nos textos. De toda forma, compreendemos, portanto, que o fato de a expressão estar presente em textos distintos, tem-se nela uma marca valorativa que acentua a opinião dos escritores.
A recorrência de repertórios semelhantes, bem como as expressões que marcam os indícios de autoria são recuperados entre os discursos produzidos e reproduzidos nas redações, além de serem esperados, pois estes indivíduos se preparam para o Exame Nacional do Ensino Médio anualmente, buscando construir diversos conhecimentos que os possibilitem dissertar quaisquer assuntos. Nessa conjuntura, a finalidade discursiva do texto se propõem a isto: ao tomar a palavra, o sujeito enunciador assume um papel de crítico social, em que todo o conhecimento adquirido durante seu período de preparação precisa ser mobilizado na finalidade sua percepção de mundo que dialogue com elementos verbais, extraverbais e o destinatário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao buscar nos textos os quais foram atribuídos pelos avaliadores a nota mil os indícios de autoria, ficou evidente o atendimento à tipologia exigida quanto à presença desse elemento. As marcas linguísticas se deram, em sua maioria, na associação de outros dizeres reenunciados e o posicionamento dos autores diante da problemática apresentada. Isso demonstrou que os candidatos permitiram a nossa análise a manifestações das relações dialógicas, que se dão por meio da interação entre os interlocutores que estão inseridos no processo da enunciação.
Outrossim, a obrigatoriedade das manifestações de indícios de autoria leva em consideração um leitor que não se sabe de fato quem seja o sujeito, mas se presume ao entender que este será alguém da área de letras, para quem os elementos constituintes do texto, como os termos elucidados na apresentação, bem como seus efeitos de sentido, precisam convergir dentro de uma lógica coerente na qual o ponto central da crítica levantada esteja em harmonia com o mundo real. Ainda que os textos redigidos para o Exame Nacional do Ensino Médio obedeçam uma lógica estrutural, há mecanismos linguísticos que permitem ao candidato expressar seu posicionamento diante das filiações ideológicas as quais ele está assujeitado.
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1 Danilo.aragao@ufpa.ilc.br Mestrando em estudos linguísticos – PPGL (UFPA)