DOENÇAS VIRAIS EM FELINOS SELVAGENS NATIVOS DO BRASIL

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202410211208


Allana Karla Vanderlei Gomes; Darci Sebastião Pereira da Silva Filho; Tamires dos Reis Silva; Wanderleya Stephany Damasceno Rodrigues; Orientador: Pedro Enrique Navas-Suárez.


RESUMO

Este estudo teve como objetivo evidenciar as doenças virais que afetam os felinos selvagens nativos do Brasil por meio de uma revisão bibliográfica de artigos publicados entre 1994 e 2023. Entre os principais vírus identificados estão o vírus da imunodeficiência felina (FIV), o vírus da leucemia felina (FeLV), o vírus da cinomose (CDV), os adenovírus e o vírus da raiva, entre outros. Algumas dessas doenças são detectadas com frequência significativa. Os adenovírus, por outro lado, foram relatados em apenas um caso de acometimento de felinos selvagens no Brasil, não sendo um problema nos dias atuais; contudo, essa ocorrência é suficiente para considerá-los uma ameaça futura em potencial. Visto que os agentes virais apresentam incidência, sintomatologia e comportamentos de transmissão distintos, devem ser estudados levando em consideração suas particularidades. A degradação da natureza pelas ações humanas e a interação desses felinos com animais domésticos são fatores que aumentam o risco de surtos. A compreensão da incidência e causa dessas doenças é essencial para o desenvolvimento de estratégias de manejo e conservação.

Palavras-chave: felinos selvagens; doenças virais; Brasil.

ABSTRACT

The aim of this study was to highlight the viral diseases affecting Brazil’s native wild cats through a literature review of articles published between 1994 and 2023. Among the main viruses identified are feline immunodeficiency virus (FIV), feline leukemia virus (FeLV), distemper virus (CDV), adenoviruses and rabies virus, among others. Some of these diseases are detected with significant frequency. Adenoviruses, on the other hand, have only been reported in one case involving wild cats in Brazil and are not a problem today; however, this occurrence is enough to consider them a potential future threat. Since viral agents have different incidences, symptoms and transmission behaviors, they should be studied taking their particularities into account. The degradation of nature by human actions and the interaction of these cats with domestic animals are factors that increase the risk of outbreaks. Understanding the incidence and cause of these diseases is essential for developing management and conservation strategies.

Keywords: wild cats; viral diseases; Brazil.

INTRODUÇÃO

Os felinos selvagens nativos desempenham um papel fundamental nos ecossistemas, sendo essenciais para a manutenção do equilíbrio ecológico. Assim como os gatos domésticos, esses felinos são vulneráveis a diversas doenças virais que podem comprometer sua saúde e sobrevivência. A crescente destruição de seus habitats naturais, causada por atividades humanas, os obriga a buscar alimento em áreas compartilhadas com animais domésticos, aumentando sua exposição a patógenos aos quais normalmente não estariam expostos. Um exemplo disso é a cinomose, cuja transmissão para espécies selvagens pode ocorrer pelo contato com cães (Alessandra et al., 2009). O estudo das doenças virais em felinos selvagens é crucial, não apenas para entender as ameaças que essas espécies enfrentam, mas também contribuir para o desenvolvimento de estratégias eficazes de conservação.

OBJETIVO

Evidenciar as principais doenças virais encontradas em felinos selvagens nativos do Brasil e os impactos causados na saúde desses animais.

MÉTODOS

Este trabalho foi elaborado por meio de uma revisão bibliográfica, com a análise de artigos científicos publicados entre 1994 e 2023, em inglês e português, obtidos em bases de dados de referência, como PubMed, Scielo, ScienceDirect. Foram incluídos estudos que abordam a identificação de agentes virais, os impactos na saúde dos felinos, os fatores de risco envolvidos e as estratégias de prevenção.

CINOMOSE

A cinomose é uma doença contagiosa causada por um vírus de RNA de fita simples, pertencente à família Paramyxoviridae e à ordem Mononegavirales. Essa doença representa um risco global para os cães e, embora não afete de forma significativa os gatos, foi evidenciado que outros felídeos são suscetíveis a essa enfermidade. Um acontecimento marcante que trouxe a cinomose em grandes felinos para o centro das atenções foi um surto epizoótico da doença em felídeos do gênero Panthera, mantidos em cativeiro na América do Norte. Esse evento ocorreu entre 1991 e 1992 e resultou na morte de 17 animais, incluindo leões, tigres, leopardos e uma onça-pintada (Appel et al.,1994).

Em 1994, o Parque Nacional do Serengeti localizado na Tanzânia teve uma redução significativa em sua população de leões, no qual a cinomose foi identificada como a causa, os animais que vieram a óbito apresentavam encefalite e pneumonia. A disseminação da doença foi tão grande que em agosto de 1994, cerca de 85% dos leões do Serengeti tinham desenvolvido anticorpos para CDV (Roelke-Parker et al., 1996).

Em 2009, foi publicado um estudo com a primeira evidência desse vírus em felídeos brasileiros de vida livre (Alessandra et al., 2009). As amostras da pesquisa foram coletadas entre 1999 e 2005, provenientes do Parque Estadual Morro do Diabo (SP) e do Parque Estadual do Ivinhema (MS), duas regiões da Mata Atlântica brasileira.

No total, foram analisadas 19 onças-pintadas (Panthera onca), nove onças-pardas (Puma concolor) e duas jaguatiricas (Leopardus pardalis), resultando na identificação do vírus da cinomose (CDV) em seis onças-pintadas e uma onça-parda. O estudo também testou 111 cães das proximidades, com soropositividade em 45 amostras, um indicativo de que os cães podem ter transmitido o vírus para os felídeos.(Filoni et al., 2006).

Um estudo publicado em 2013 teve como objetivo identificar doenças virais em onças-pintadas e carnívoros domésticos de vida livre. As amostras foram coletadas entre 2000 e 2010, totalizando 31 onças, 174 cães e 35 gatos domésticos, testados para os vírus da raiva, cinomose, imunodeficiência felina (FIV) e leucemia felina (FeLV). Os resultados para CDV indicaram 11 onças positivas, todas provenientes do Pantanal brasileiro (Furtado et al., 2013). Além disso, foi identificada uma distribuição significativa de cães soropositivos para CDV, sugerindo uma possível exposição natural ao vírus ao longo da vida, já que grande parte desses cães não havia sido vacinada.

Essa publicação reforça que uma das formas de prevenção da transmissão de cinomose para felinos selvagens é a vacinação de cães, além da proibição de animais domésticos em zonas de conservação e restrição da movimentação de animais domésticos ao redor de reservas. Os felinos afetados pelo CDV podem manifestar sintomas neurológicos, respiratórios e gastrointestinais, embora em 60% dos casos registrados apenas sintomas neurológicos são evidenciados, tais como convulsões, tremores, desorientação, fraqueza, ataxia, paraparesia, hiperrreflexia e coma. Outros sintomas que podem ocorrer são anorexia, letargia, descarga nasal e ocular mucopurulenta, diarreia sanguinolenta (Filoni et al., 2006).

RAIVA

A raiva é uma doença causada por um vírus de RNA de fita simples negativa, pertencente ao gênero Lyssavirus, da família Rhabdoviridae. Esse vírus afeta o sistema nervoso do hospedeiro e, em seu ciclo de vida, é eliminado principalmente pela saliva. A transmissão ocorre através de mordidas e arranhões, pelos quais o vírus é introduzido na corrente sanguínea (Albertini et al., 2011). O período de incubação é influenciado pelo comportamento patogênico do vírus, que se desloca ao longo dos nervos periféricos, do local da inoculação até o cérebro (Frymus et al., 2009). Quanto maior a distância entre o sistema nervoso central (SNC) e o local da lesão, maior será o período de incubação. Tecidos com maior densidade de inervação também promovem uma propagação mais rápida, encurtando o período de incubação (Frymus et al., 2009).

As espécies felinas selvagens não são consideradas reservatórios da raiva, mas podem atuar como vetores e transmitir o vírus para humanos e outras espécies (Garcés-Ayala et al., 2022). No Brasil, um estudo descobriu a presença de anticorpos contra o vírus da raiva em espécies como a Panthera onca , indicando sua exposição no Parque Nacional das Emas e no Pantanal (Furtado et al., 2013). Amostras de sangue foram coletadas por punção de veia femoral, e foi realizada sorologia para detecção de anticorpos contra o vírus da raiva. 

As onças-pintadas (Panthera onca) com resultado soropositivo não apresentaram sinais clínicos, indicando que nenhuma delas estava letalmente infectada (Furtado et al., 2013). A transmissão do vírus ocorre pela mordida de animais infectados; no entanto, considerando que a onça é um dos carnívoros no topo da cadeia alimentar, a forma mais provável de infecção é por meio da predação de animais infectados e da subsequente ingestão de suas carcaças (Ramsden e Johnston, 1975 apud Furtado et al., 2013).

FeLV

O FeLV (Vírus da Leucemia Felina), do gênero Gammaretrovirus, é um vírus que afeta diversos felinos ao redor do mundo. Seu material genético é codificado por um genoma de RNA, e a primeira etapa do ciclo replicativo viral envolve a transcrição reversa do RNA em DNA, realizada pela enzima transcriptase reversa, que permite a integração do DNA viral ao genoma da célula hospedeira. Esse processo é auxiliado pela enzima integrase. O provírus fica integrado no genoma da célula ao longo de sua vida e, após a divisão celular, é ativado, resultando na produção de novas partículas virais e na disseminação do vírus. Essa capacidade de integração dificulta a erradicação completa dos retrovírus, permitindo a infecção de forma latente (Willett; Hosie, 2013).

A transmissão do FeLV ocorre por meio do contato direto entre animais, como pela saliva, urina, fezes e leite materno. Após a exposição, o vírus invade o organismo e infecta as células do sistema imunológico, como os linfócitos T. O vírus se replica dentro dessas células e se espalha para outros tecidos e órgãos. A resposta imunológica do hospedeiro tem um papel crucial na defesa contra a infecção por FeLV. Alguns animais conseguem eliminar o vírus e se recuperar, desenvolvendo imunidade, enquanto outros podem permanecer cronicamente infectados e desenvolver doenças associadas. Em alguns casos, o DNA viral do FeLV pode integrar-se ao genoma das células hospedeiras, resultando em uma infecção latente. Nesse estado, o vírus permanece dormente, mas pode ser reativado em situações de estresse ou imunossupressão (Willett; Hosie, 2013). O diagnóstico da infecção pelo vírus da leucemia felina envolve a detecção do antígeno viral p27, sendo a PCR recomendada como teste confirmatório para detectar o material genético (Westman et al., 2019).

No Brasil, estudos mostraram que alguns felinos selvagens em cativeiro e em vida livre testaram positivo para a FeLV, no Parque Zoológico de São Paulo, foram identificados em dois jaguarundis (Puma yagouaroundi), que apresentaram sinais clínicos sugestivos de infecção ativa pelo vírus. As amostras de sangue, soro, tecido e saliva desses animais continham DNA proviral e RNA viral do FeLV em quantidades significativas. As amostras de sangue foram coletadas por punção venosa femoral e submetidas a testes de PCR para detecção do FeLV. O sequenciamento de DNA das amostras positivas revelou alta identidade com sequências específicas do FeLV, confirmando a presença do vírus. Na região do Pantanal, Brasil, foi identificado que uma onça-pintada (Panthera onca) de vida livre, com 8 anos de idade, apresentou resultado positivo para o Vírus da Leucemia Felina. As amostras de sangue foram obtidas por punção venosa femoral; o diagnóstico foi realizado utilizando testes de PCR, e o sequenciamento de DNA revelou alta similaridade com sequências específicas do FeLV. (Amarante et al. 2016).

Em um estudo realizado no Centro de Pesquisa em Vida Selvagem da Itaipu Binacional, foi identificada a presença de DNA proviral do vírus da leucemia felina (FeLV) em uma jaguatirica (Leopardus pardalis) macho nascida em cativeiro. Amostras de sangue foram coletadas, e o DNA foi extraído e produzido com origem na cadeia da polimerase (PCR) para detecção do FeLV. A presença de DNA proviral do FeLV sugere que esse animal foi exposto e infectado pelo vírus em algum momento de sua vida. A transmissão do FeLV em felinos selvagens pode ocorrer por contato direto com outros animais portadores do vírus, como gatos domésticos, que são os principais reservatórios do FeLV em todo o mundo.

FIV

O vírus da imunodeficiência felina (FIV) possui uma estrutura composta por três camadas distintas. Internamente, há uma camada contendo o material genético viral e enzimas essenciais para o ciclo de replicação viral. A camada intermediária é composta por proteínas de capsídeo, que ajudam a proteger e transportar o material genético viral dentro das células hospedeiras. Por fim, a camada externa é feita por glicoproteínas que desempenham um papel importante na ligação do vírus às células hospedeiras e na interação com o sistema imunológico do hospedeiro. (Westman et al., 2019).

A infecção por FIV passa por três fases: inicialmente, o vírus infecta células do sistema imunológico, seguido por uma fase assintomática onde o vírus se replica sem sintomas aparentes. Com o tempo, o sistema imunológico do animal deteriora progressivamente, levando à fase de infecção secundária, onde sintomas clínicos podem surgir devido à imunossupressão. O vírus se integra no genoma das células infectadas, resultando em uma infecção crônica, cuja evolução varia entre os felinos (Westman et al., 2019). A transmissão ocorre por meio de mordidas profundas durante confrontos entre felinos, quando o vírus está presente na saliva do animal infectado. A transmissão também pode ocorrer da mãe para os filhotes durante a gestação, no momento do parto ou através da amamentação (Furtado et al., 2017). O diagnóstico da infecção é feito utilizando testes sorológicos que detectam anticorpos específicos contra o vírus. Estes testes identificam anticorpos contra proteínas virais como a glicoproteína transmembrânica (gp40), a proteína da matriz (p15) e a proteína do capsídeo (p24). Além dos testes sorológicos, existem também testes moleculares baseados na detecção do material genético viral, como o PCR, que serve para confirmar a presença do vírus em estágios iniciais da infecção ou em felinos com resultados sorológicos inconclusivos. (Westman et al., 2019).

Foi detectada a presença do FIV em um puma (Puma concolor) de vida livre no Brasil, através de coletas que foram feitas por punção da veia femoral, cefálica ou jugular em tubos a vácuo com anticoagulante EDTA. O diagnóstico foi realizado por meio de testes moleculares em amostras de sangue. A análise genética do FIV encontrado no puma (Puma concolor) mostrou similaridade com outros lentivírus descritos em pumas, sugerindo a presença de uma cepa específica de FIV nessa espécie.

Na região da Bacia do Rio Tietê, no estado de São Paulo, Brasil, amostras de sangue de 27 pumas (Puma concolor) de vida livre foram testadas para detectar o vírus da imunodeficiência felina (FIV). Dos animais analisados, três foram identificados como positivos para o FIV por meio de testes de ELISA, que é uma técnica sensível e específica para identificar a presença de anticorpos contra o vírus.

Na região de Barão de Melgaço, Mato Grosso, também foi detectada a presença de anticorpos para o Vírus da Imunodeficiência Felina (FIV) em um puma (Puma concolor), que sugere exposição prévia ao vírus, indicando que o animal pode ter entrado em contato com o vírus em algum momento da sua vida.

CALICIVIRUS

O calicivírus é um grupo de vírus pertencente à família Caliciviridae, que inclui vários tipos de vírus capazes de infectar diferentes espécies de animais, como gatos, coelhos e humanos. Cada espécie de calicivírus é específica para um hospedeiro. O calicivírus felino (FCV) é um vírus de RNA de fita simples e é uma das principais causas de doenças respiratórias em gatos. Este vírus é altamente contagioso e pode causar uma variedade de sintomas, podendo ser brando ou até levar a morte (Radford, 2007 apud Henzel et al.,2015).

A infecção por calicivírus felino (FCV) ocorre principalmente pelo contato direto com secreções de gatos infectados, como saliva e secreções nasais e oculares, ou indiretamente através de objetos e superfícies contaminadas. O vírus entra no organismo do gato pelas mucosas orais, nasais ou conjuntivais, onde se replica inicialmente. O período de incubação varia de 2 a 6 dias, após a infecção, os felinos podem apresentar sintomas como febre, secreção nasal e ocular, espirros frequentes, úlceras na boca e língua, dificuldade para comer, salivação excessiva, letargia e, em casos mais graves, pneumonia. O tratamento de eleição para o calicivírus felino (FCV) é de suporte, já que não há um antiviral específico aprovado para gatos, inclui fluidoterapia, antibióticos para infecções bacterianas secundárias, cuidados nutricionais para garantir a ingestão adequada de nutrientes, uso de anti-inflamatórios para alívio da dor e inflamação, isolamento para impedir a propagação do vírus, e hospitalização em casos graves. A vacinação é essencial como medida preventiva contra o FCV. No entanto, o vírus sofre mutações genéticas durante a replicação e responde rapidamente às pressões de seleção do hospedeiro e do ambiente, o que compromete a eficácia das vacinas (Henzel et al., 2015). Foram avaliados 159 felídeos neotrópicos e 51 exóticos de 28 ambientes de cativeiro no Brasil para diversos patógenos, incluindo vírus como FeLV, FIV, FHV-1, FCV, FPV e FCoV, além de bactérias e protozoários. Identificaramse prevalências variadas de exposição a esses agentes infecciosos, com destaque para altas taxas de anticorpos contra FCV e FPV. A pesquisa sugere que a captura de animais selvagens e as condições de cativeiro podem contribuir significativamente para a disseminação desses patógenos, afetando tanto a saúde dos felídeos quanto os programas de conservação.

PANLEUCOPENIA FELINA

A panleucopenia felina, também conhecida como “parvovirose felina” é uma doença viral altamente contagiosa e potencialmente fatal causada pelo Parvovírus Felino (FPV). Este vírus afeta principalmente felinos, tanto domésticos quanto selvagens, e é especialmente perigoso para gatos jovens não vacinados (Cruz et al.,2023). Os sintomas da panleucopenia felina incluem febre, letargia, perda de apetite, vômitos, diarreia grave (as vezes acompanhadas com sangue), desidratação e uma diminuição acentuada no número de glóbulos brancos no sangue (leucopenia), deixando os animais mais vulneráveis a infecções secundárias. A doença pode ser transmitida através do contato direto com fluidos corporais infectados, fezes contaminadas ou por contato indireto através de objetos contaminados. A prevenção é crucial e pode ser alcançada através da vacinação adequada contra o FPV. A vacinação deve ser feita logo na infância dos felinos e é repetida ao longo da vida para garantir a proteção contínua. A rápida detecção e o tratamento de suporte são essenciais para aumentar as chances de recuperação, embora a taxa de mortalidade em casos severos ainda possa ser significativa, especialmente em felinos jovens não vacinados (Greene e Addie, 2006 apud Castro et al.,2014).

Uma onça-pintada (Panthera onca) de aproximadamente três meses foi encontrada à beira de uma estrada no Cerrado mato-grossense, com suspeita de atropelamento. Após resgate e tratamento inicial, o animal foi transferido para um hospital veterinário terciário, onde diversos testes foram realizados, todos negativos. Dois meses depois, apresentava-se saudável e foi transferida para um recinto maior, onde começou a manifestar sintomas graves, incluindo anorexia e diarreia. Exames revelaram leucopenia grave e o animal faleceu no dia seguinte. A necropsia indicou infecção por parvovírus, confirmada por PCR, e observou-se enterite necrótica e depleção de tecido linfoide. O estudo destaca a vulnerabilidade de grandes felinos ao FPV e a importância de medidas preventivas rigorosas para evitar contato com animais domésticos.

ADENOVÍRUS

Os adenovírus são patógenos notórios por sua resistência e especificidade quanto ao hospedeiro. Com um genoma de DNA de fita dupla, eles se destacam pela habilidade de sobreviver em condições ambientais desfavoráveis, o que os torna altamente persistentes fora do corpo de um hospedeiro. A transmissão pode ocorrer tanto por contato direto com secreções infectadas quanto de forma indireta, por meio de superfícies contaminadas. A pesquisa sobre adenovírus em carnívoros selvagens no Brasil é um campo de estudo crucial para entender a dinâmica de doenças entre animais silvestres e domésticos, uma questão cada vez mais relevante devido às atividades humanas, que promovem a transformação da paisagem e facilitam a disseminação de patógenos. Em 2022, um estudo teve como objetivo identificar a presença de adenovírus em carnívoros selvagens de vida livre no Brasil, foi realizada a necropsia de 52 animais provenientes de São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul. Uma jaguatirica (Leopardus pardalis) testou positivo para adenovírus em amostras de DNA retiradas do cérebro, músculo esquelético, baço, linfonodo mesentérico, estômago e duodeno (Navas et al., 2022). As amostras obtidas a partir de um novo hospedeiro podem indicar o surgimento de uma nova espécie do vírus, como dito pelo próprio autor.

NOROVÍRUS

O gênero Norovírus (NoV) representa um grupo vasto de vírus geneticamente relacionados que pertencem à família Caliciviridae, é responsável por causar surtos de gastroenterite aguda em todo o mundo. Esses vírus têm um genoma constituído por RNA de cadeia simples, organizado em três sequências de leitura abertas (ORF): ORF1, ORF2 e ORF3. A ORF1 codifica proteínas não estruturais, incluindo a RNA polimerase. As proteínas da cápside, VP1 e VP2, são codificadas pelas ORF2 e ORF3, respectivamente. Os NoV apresentam alta diversidade genética e são classificados em cinco genogrupos (GI-GV), subdivididos em genótipos. Os genogrupos GI, GII e GIV estão associados a infecções humanas, enquanto os demais genogrupos são encontrados apenas em animais.

Nas regiões do Pantanal do Mato Grosso Sul, foi identificado a presença de norovirus em onças de vida livre. Nove animais foram capturados e amostras de swabs retais foram coletadas. Foi realizado a reação em cadeia da polimerase de transcrição reversa (RT-PCR) específica para noroplastia. O resultado descreve seis animais positivos para o genótipo Gll 11 do vírus. A detecção desses vírus em animais selvagens sugere um risco para espécies ameaçadas, pois eles podem atuar como disseminadores ou reservatórios desses agentes infecciosos (Silveira et al., 2018). A interconexão entre a saúde animal e a saúde humana é cada vez mais evidente à medida que estudos revelam a presença de vírus comuns em gatos domésticos, como o vírus da leucemia felina (FeLV) e o vírus da imunodeficiência felina (FIV), em espécies selvagens como as onças-pintadas (Panthera onca). Essa descoberta ressalta a importância de considerar a ocorrência de coinfecções em estudos futuros, uma vez que a coexistência de múltiplos patógenos pode ter implicações significativas para a saúde e a sobrevivência das espécies afetadas. A transmissão de norovírus (NoV), que pode causar infecções em carnívoros e está associada a casos de enterite hemorrágica, destaca o papel dos animais selvagens como reservatórios de patógenos zoonóticos que têm o potencial de se espalhar para outras espécies, incluindo humanos. A destruição de habitats naturais e a incursão humana em ambientes selvagens não só ameaçam a biodiversidade, mas também aumentam o risco de emergência de doenças infecciosas, pois os animais são forçados a entrar em contato mais próximo com humanos e animais domesticados, criando oportunidades para a transmissão de patógenos.

O NoV, conhecido por sua resistência a vários fatores ambientais e por sua baixa dose infecciosa, pode ser transmitido através do contato fecal-oral por meio de alimentos e água contaminados, bem como pelo contato direto com superfícies ambientais contaminadas. Indivíduos infectados podem excretar o vírus por até três semanas, muitas vezes sem apresentar sintomas, o que facilita a disseminação silenciosa do vírus e a infecção de outras espécies. A detecção do genogrupo II.11 NoV, associado a humanos e porcos, em águas subterrâneas na Coreia e em moluscos no Japão, exemplifica a ampla distribuição geográfica do vírus e sua capacidade de contaminar diversos ambientes aquáticos.

No Brasil, a presença de NoV em onças-pintadas (Panthera onca) pode ser um indicador de contaminação ambiental, particularmente em áreas com saneamento básico deficiente. A falta de infraestrutura adequada para o tratamento de esgoto em muitos municípios brasileiros contribui para a contaminação de rios e outras fontes de água, aumentando o risco de disseminação de patógenos. A detecção de diferentes genogrupos de NoV em amostras de água de superfície e esgoto, tanto tratado quanto não tratado, reforça a necessidade de melhorias no saneamento básico e na gestão de resíduos para proteger tanto a saúde humana quanto a saúde animal e preservar a biodiversidade. A implementação de medidas eficazes de saneamento é crucial para prevenir a propagação de doenças infecciosas e para garantir um ambiente saudável para todas as espécies.

CONCLUSÃO

A pesquisa revelou uma relação clara entre as ações humanas e a exposição dos animais silvestres a agentes virais, pois a destruição de seus habitats naturais os força a se aproximar de áreas habitadas por humanos e animais domésticos. Essa proximidade eleva as oportunidades de infecção, tornando imprescindíveis ações como a vacinação de cães e gatos e a proteção de áreas naturais para preservar a saúde das populações de felinos selvagens. As medidas de conservação devem incluir estratégias que reduzam o impacto humano no ambiente, promovendo um ecossistema saudável e diminuindo o risco de surgimento de doenças. Entre as enfermidades analisadas, a cinomose é especialmente preocupante, pois seus sintomas podem ser agressivos e levar à morte do animal. Embora os animais soropositivos para raiva não tenham apresentados sintomas, seu controle é fundamental, já que é uma doença extremamente letal que pode ser transmitida a outras espécies. Da mesma forma, FIV e FeLV requerem monitoramento rigoroso, pois são doenças que podem ser facilmente compartilhadas entre felinos domésticos e selvagens.

Os vírus do gênero calicivirus, frequentemente encontrados nas amostras analisadas, são agentes responsáveis por doenças respiratórias e se disseminam rapidamente no ambiente. Portanto, a desinfecção e o controle de doenças devem ser priorizados em cativeiros. O estudo da análise molecular do vírus da panleucopenia em onças destaca a vulnerabilidade dessa população a tais agentes virais, sublinhando que essa situação é uma consequência da degradação ambiental. A vacinação de felinos domésticos é, portanto, uma medida crucial para a prevenção e conservação das espécies selvagens.

Além disso, felinos que testaram positivo para norovírus mostraram-se assintomáticos, mas isso não diminui os riscos, já que o vírus continua sendo potencialmente prejudicial. Essas espécies podem se tornar reservatórios e atuar como disseminadores da doença.

O caso de adenovírus relatado nesta pesquisa é o primeiro documentado no Brasil e o segundo no mundo. No entanto, a ocorrência dessa doença em felinos selvagens demonstra a necessidade de mais estudos para minimizar possíveis problemas futuros que podem impactar a conservação dessas espécies.

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