DOCUMENTAÇÃO E MEMÓRIA DIGITAL: O TRATAMENTO DOS DADOS INDIVIDUAIS NO AMBIENTE DO EXTRAJUDICIAL

DOCUMENTATION AND DIGITAL MEMORY: THE TREATMENT OF INDIVIDUAL DATA IN THE EXTRAJUDICIAL ENVIRONMENT

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10248121702


Frank Wendel Chossani[1]
Solange Teresinha Carvalho Pissolato[2]
Patrícia Lichs Cunha Silva de Almeida[3]


RESUMO: O presente artigo tem por análise e proposição o tratamento da memória digital da pessoa natural, a fim de compreender a viabilidade desse bem móvel como objeto de sucessão causa mortis e doação, no âmbito da via extrajudicial. O dinamismo tecnológico abriu portas para novas formas de relações sociais, e as experiências vividas na dimensão social acompanharam a evolução, culminando em novas maneiras de instrumentalizar, publicizar e preservar tais ocorrências. O direito notarial e registral e as práticas nas serventias notariais e registrais acompanham o desenvolvimento. Em decorrência dos serviços prestados pelos cartórios nacionais, verdadeiros repositórios de uma infinidade de informações e dados inerentes à pessoa natural, mister se faz uma análise do devido tratamento desses bens virtuais nesses espaços de disseminação e de proteção dos dados pessoais. Em que pese a premissa, todos os recursos e a gama de informações constantes nos acervos estão vinculados ao destino legal dos serviços notarias e de registro, ou seja, o respectivo reforço dos atributos próprios do sistema notarial e registral: a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos. O método indutivo foi o empregado, e os resultados apontam à conclusão de que a documentação e a memória digital são passíveis de transmissão causa mortis e doação, considerando que tal repositório é de titularidade dos herdeiros e sucessores. Conclui-se também que, salvo disposição em contrário por parte do titular, a memória digital constante das redes sociais pode ser objeto de partilha ou disposição testamentária na esfera do extrajudicial. O sistema de referência escolhido foi o Law and Economics, partindo de pesquisas bibliográficas e análise legal e normativa.

PALAVRAS-CHAVE: Sucessão e Doação; Memória Digital; Cartórios Extrajudiciais

ABSTRACT: The purpose of this article is to deal with the documentation and digital memory of the natural person in the scope of notes and public records, in order to understand whether or not such digital memory is the object of causa mortis succession. Technological dynamism opened doors to new forms of social relations, and the experiences lived in the social dimension accompanied the evolution, culminating in new ways of instrumentalizing, publicizing and preserving such occurrences. Notarial and registry law and practices in notarial and registry services accompany development. The extrajudicial notaries, as a result of the services performed, are repositories of a multitude of information and data inherent in the documentation and digital memory of the human person. Despite the premise, all resources and the range of information contained in the collections are linked to the legal destination of notary and registration services, that is, the guarantee of publicity, authenticity, security and effectiveness of legal acts. The inductive method was used, and the results led to the conclusion that the documentation and digital memory contained in the collections of extrajudicial notaries are not subject to transmission causa mortis, considering that such repository is owned by the Public Power. It is also concluded that, unless otherwise provided by the holder, the constant digital memory of social networks can be shared in an extrajudicial way. The reference system chosen was Law and Economics, based on bibliographic research and legal and normative analysis.

KEYWORDS: Succession; Digital Memory; Extrajudicial Notary Offices

1 INTRODUÇÃO

No sistema legal pátrio, embora ainda ausente à sua regulamentação, discute-se sobre o procedimento regulatório da memória digital da pessoa natural e o respectivo tratamento de destino desses dados virtuais, no que pertine a viabilidade de transmissão sucessória ou doação em vida, cujos aspectos atinentes a documentação, memória e herança digital requerem acuidade e tratamento no manuseio na via extrajudicial.

A análise e discussões acerca da temática perante a atuação no campo notarial e registral tem sido recorrente à atividade, isto porque, o espaço destinado à orientação e ao tratamento dispendidos aos dados virtuais, alcançam a funcionalidade da segurança jurídica, tanto como verdadeiros repositórios de uma infinidade de dados e informações intrínsecas a memória da pessoa humana, como também, auxilia na disposição futura, no que se refere ao transpasse e manuseio do acervo digital – herança digital -, pela utilização de instrumentos adequados de transmissão do referido acervo.

Percebe-se que, parte da memória digital de um indivíduo estão sob o cuidado dos notários e registradores e, em razão da aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados, referidas informações são respaldadas pelo sigilo que cerca a documentação e os assuntos de natureza reservada aos oficiais que mantém sigilo em decorrência dos deveres pertinentes ao exercício da profissão.

Da mesma forma, quando abordada pela ótica do direito sucessório e/ou pela viabilidade de disposição em vida, a herança digital revela implicações existenciais e, mormente, patrimoniais.

Apesar das implicações mencionadas, nem sempre o aparato legal está preparado para tratar do tema. Diante de tal contexto, as questões que permeiam o presente texto são as seguintes: a documentação e memória digital da pessoa natural constantes do acervo das unidades de notas e registros públicos são objetos de sucessão causa mortis? E no que diz respeito a memória digital contida nos perfis de redes sociais, ela pode ser entendida como patrimônio objeto de partilha ou adjudicação no âmbito do inventário extrajudicial? O texto avança para discutir as questões.

2 OS ALCANCES DA MEMÓRIA DIGITAL

A sociedade tem experimentado ao longo dos anos a migração do ambiente analógico para o universo digital. Em um espaço sem fronteiras, as tecnologias desenvolvidas dão azo a novas profissões, novas técnicas, novos ambientes e a experiências até outrora desconhecidas.

O aprimoramento tecnológico expandiu a comunicação e a maneira como muitas pessoas se relacionam com o mundo, e isso envolve o modo como as informações são divulgadas, armazenadas e preservadas.

Nessa toada, a fotografia “lambe-lambe” abandonou o método arcaico para assumir status digital, afastando na maioria a necessidade de revelação. A imagem, instantaneamente compreendida na tela digital, após um touch é armazenada pelo tempo desejado por seu titular.

E a partir de então, observa-se a migração do homo, ao percorrer um espaço definitivamente homo eletronicus (um espectador em um espaço global) para um ser em definitivo caracterizado homo digitalis, alguém que aponta certa singularidade, preservando a sua individualidade, que se comunica por meio de redes, construindo, ao mesmo tempo, material de mídia e a sua própria memória digital.

Neste vasto contexto, essa troca de paradigma, na visão de Byung-Chul Han (2018), faz nascer uma mídia digital de presença, com temporalidade imediata, onde a fluidez da comunicação digital, independe de filtros e de intermediadores, sendo cada vez mais dissolvida e fluída.    

Essa fluidez, ou melhor, esse dinamismo similar é visto em arquivos de voz, filmes, músicas e demais documentos, fatores que permitem perceber que a memória tem se transformado no decorrer do tempo. Anota-se, a memória não diz respeito apenas ao registro de dados e informações relativas à pessoa. Além disso, a memória é tida como “[…] uma representação daquelas experiências vividas por homens numa dimensão social” (DIEHL, 2002, p. 121).

No trilhar desse pensamento, é importante considerar os apontamentos de Goulart e Perazzo (2015, p.6), no que se refere a memória:

como uma faculdade que alguns sistemas, sejam eles naturais ou artificiais, têm de conservar ou acumular informações com o objetivo de criar ou processar as imagens. Nos seres humanos, a memória se caracteriza pela propriedade de conservar certas informações, que, por nos remeter a um conjunto de funções psíquicas, permite-nos atualizar impressões e informações passadas ou que representamos como passadas. 

A atual sociedade da informação supervaloriza o rápido, fácil e organizado, tal contexto nos leva a refletir sobre mudanças pretéritas que já reportavam que:

o turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: grandes descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem no universo e do lugar que ocupamos nele […] ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança[…] ser moderno é fazer parte de um universo no qual como disse Marx, ‘tudo que é solido desmancha no ar’ (Berman 1986, p.15).

Neste sentido, como ensina Grimaldi et al. (2019, p. 63)

Por meio desse pensamento, alguns autores da área de Ciência da Informação contribuíram com importantes estudos, principalmente no que se refere à memória caracterizada como recurso social e econômico voltada à construção do presente, possibilitando desenvolvimento e avanço social com forte associação ao elemento da informação.

Acompanhando essa linha de raciocínio, o ponto de origem a lembrança das pessoas, de um grupo ou de uma sociedade reporta que: “essas lembranças ou informações traduzem-se em representações ou símbolos, cuja expressão material se visualiza no patrimônio cultural: monumentos, edificações arquitetônicas, documentos pessoais, fotografias etc. (Goulart; Perazzo, 2013, p.109).

Outrora as pessoas eram identificadas e os objetos e bens catalogados, diante de determinadas relações sociais e negociais, por meio de instrumentos e recursos corpóreos, que permitiam a confecção e a organização de fichários e o acúmulo de arquivos físicos.

Os documentos pessoais eram instrumentalizados exclusivamente por cédulas físicas, cabendo aos seus titulares o porte às apresentações de praxis; no entanto, a partir da evolução tecnológica, as experiências vividas na dimensão social e negocial rumaram ao desenvolvimento, culminando em novas maneiras de instrumentalizar, publicizar e preservar tais ocorrências, estando inserido neste contexto a memória digital.

Os cartórios extrajudiciais acompanham o dinamismo, e os sistemas de fichas e livros físicos abriram oportunidade para uma gama de soluções digitais, de modo que as unidades de serviços operam com a utilização de inúmeros recursos tecnológicos, contendo, por consequência, parte da memória digital das pessoas.

Pontua-se que para alguns o tema da memória digital não está adstrito apenas ao armazenamento de informações em mídias digitais.  Neste sentido, Petry (2015, p. 112) partindo de uma perspectiva bergsoniana, reconhece a memória digital a partir da relação dos usuários, funcionando as mídias como indutoras de lembranças, e logo reconhecidas como memórias digitais.

O fato é que a memória digital ganhou proporções, sendo uma realidade inclusive no âmbito da adoção de políticas e recursos empregados pelo Poder Público, como se percebe, por exemplo, através da implantação de documentos digitais, como aqueles oferecidos pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, órgãos do Governo brasileiro, que, através da “Rede Nacional de Governo Digital” – Rede GOV.BR -, integra e coordenar iniciativas comuns de transformação digital no setor público (BRASIL, 2023).

A Carteira Nacional de habilitação, o título de eleitor, o Cadastro da Pessoa Física, dentre outros, são documentos essenciais já existentes em formado digital, representando dados relevantes da identificação, e compondo parte da memória digital dos indivíduos em mãos do Poder Público.

Acerca de tal memória digital, que estabelece uma relação do indivíduo com o Estado, não há que se falar em transmissão por sucessão, haja vista a necessidade de domínio de tais informações pelo Poder Público.

Por outro lado, é cediço que a memória digital abarca também elementos que extrapolam as informações de identificação atinentes a relação indivíduo-Estado, ficando, muitas vezes, restrita ao campo das relações privadas.

As chamadas “redes sociais” são exemplos da premissa acima. As redes agregam bilhões de usuários, em um ambiente em que é possível compartilhar fotos, vídeos, músicas e inúmeras outras manifestações e dados, formando um vasto acervo, ou seja, uma memória digital que pode ter implicações econômicas, patrimoniais e existenciais.

Todo o cenário apontado demanda tratamento diante do passamento do titular dos documentos ou arquivos digitais, uma vez que a normativa pátria não tem ainda diretrizes e regras estabelecidas, o que pode culminar em imbróglios ao sistema.

3 DOCUMENTAÇÃO E MEMÓRIA DIGITAL NO ÂMBITO DO DIREITO EXTRAJUDICIAL

No âmbito dos serviços de notas e de registros públicos, no passado, o repositório documental era constituído por meio de livros e documentos físicos, em regra preenchidos, organizados e arquivados, e embora toda informação fosse armazenada com a observância de elementos legais e normativos, a informação muita das vezes não estava simplesmente disponível.

Com os meios digitais a coleta, o tratamento e o armazenamento de dados e imagens, o cenário passou a contar com novos instrumentos e subsídios de conservação de documentos e formalização de atos; justificado, a realidade do espaço digital, onde o tempo situado parece congelar, tornando-se atemporal.   

Diante disso, não se ignora a questão da perenidade, outrora pensada como objetivo do aprimoramento do sistema atual de preservação, todavia, em algumas situações, a conservação era prejudicada em decorrência de fatos eventuais e fortuitos que acabavam por comprometer a integridade dos livros e demais documentos físicos e, por consequência, a memória neles contida.

Ao considerar a possibilidade fática de comprometimento do arquivo físico, a legislação previu mecanismos da restauração de assentos, a fim de preservar os dados e elementos de informações.

Se outrora o direito notarial e registral apontava interesse na preservação física da memória registrada nos livros das notas e registros, no agora, o desenvolvimento de instrumentos tecnológicos permitiu a implementação de procedimentos para a formação do acervo digital.

Nesse sentir, a Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, no uso de suas atribuições legais e constitucionais, editou a Recomendação n.º 9, de 07 de março de 2013, para recomendar os titulares e os responsáveis pelas delegações do serviço extrajudicial a manterem cópias de segurança em microfilme, ou arquivo em mídia digital dos livros obrigatórios atinentes a cada especialidade (CNJ, 2013).

A normativa alerta à necessidade de formação e manutenção de “backup” em mídia eletrônica, digital ou outro método hábil de preservação dos documentos eletrônicos do acervo e indica que o arquivo de segurança integrará o acervo da respectiva serventia.

A medida exigiu investimentos de recursos dos notários e registradores para a adoção de prática e políticas, e implicou em vantagens para os cidadãos e para o Estado, considerando a importância da memória constante nos registros públicos.

Ao prezar por segurança na preservação da memória, a ação possibilita um maior tráfego de informações, agilizando vários procedimentos, e implicando em impactos econômicos; além de livros físicos e eletrônicos, e arquivos digitais as unidades extrajudiciais detêm, da mesma forma, plataformas eletrônicas, que integram a memória digital.

No âmbito do Tabelionato de Notas, por exemplo, o Provimento n.º 100, de 26 de maio de 2020, do Conselho Nacional de Justiça possibilita a lavratura de ato notarial eletrônico através da plataforma e-Notariado, com a realização da videoconferência notarial para captação da vontade das partes e coleta das assinaturas digitais (CNJ, 2020).

A obrigatoriedade do uso da videoconferência, bem como o lançamento das assinaturas junto a um cadastro nacional – CNN, ficam armazenadas e disponibilizadas na plataforma digital, visando o resguardo e segurança, tanto para os usuários do sistema quanto para os operadores jurídicos.

Na esfera de atuação do Registro Civil das Pessoas Naturais, o Provimento n.º 46/2015, do Conselho Nacional de Justiça foi o responsável por tratar sobre a Central de Informações de Registro Civil das Pessoas Naturais – CRC, com vistas a interligar tais ofícios e permitir “[…] o intercâmbio de documentos eletrônicos e o tráfego de informações e dados” (artigo 1º, inciso I), bem como objetiva, no inciso II, “aprimorar tecnologias para viabilizar os serviços de registro civil das pessoas naturais em meio eletrônico” (CNJ, 2015).

Aponta-se, outrossim, a existência da Central Nacional de Serviços Eletrônicos dos Tabeliães de Protesto de Títulos – CENPROT, em referência ao Provimento n.º 87/2019 e do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis – SREI, disponibilizado pelo Provimento n.º 89/2019, ambos editados pelo Conselho Nacional de Justiça.

Como visto, todos os recursos indicados englobam parte da memória digital das pessoas naturais, mas a gama de informações está vinculada ao destino legal dos serviços notarias e de registro, ou seja, a garantia da publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

Frisa-se que “além dos fins expressos no art. 1º, da lei de registros públicos, cumprem a essencial função de assegurar, enquanto serviços de organização técnica e administrativa dos direitos a que se referem, a publicidade dos atos jurídicos” (CENEVIVA, 2010, p. 55).

O sistema representa uma maior eficiência e adequação dos serviços, possibilitando a agilidade no armazenamento da memória digital, e acarretando o maior tráfego de informações, fatores que deságuam em bem-estar social e cooperar para o desenvolvimento econômico.

3.1 OBJETO DE SUCESSÃO CAUSA MORTIS?

Na contingência de fazer breves considerações sobre a evolução de alguns temas, até porque, para entender determinados institutos, é indispensável conhecer suas matrizes históricas. Por tal viés, são feitas algumas incursões ao passado, mas somente para avaliar situações presentes e se ter uma ideia da exponencial evolução, tendo como um dos marcos da evolução a escrita que:

Nasceu como uma serva da consciência humana, mas pouco a pouco se tornou sua senhora. Nossos computadores têm dificuldade para entender como Homo sapiens fala, sente e sonha. Portanto, estamos ensinando Homo sapiens a falar, sentir e sonhar na linguagem dos números, que pode ser entendida por computadores. Computadores podem acabar por superar os humanos nas mesmíssimas áreas que fizeram do Homo sapiens o governante do mundo: inteligência e comunicação. O processo que começou no vale do Eufrates há 5 mil anos, quando os sumérios ‘terceirizaram ‘o processamento de dados do cérebro humano para tabuletas de argila, culminaria no Vale do Silício, com a vitória dos tablets.  

Esses postulados sinalizam para mudanças, onde “Humanos ainda estariam por aqui, mas não conseguiriam mais entender o mundo. O novo governante do mundo seria uma longa fileira de zeros e uns”, cingidos pelas lentes de um código binário.

Transbordando as fronteiras da invisibilidade do cidadão, a vida passa pelo cartório – argumento que se revela sob o fundamento de que, os principais fatos inerentes a existência da pessoa natural, bem como o seu perecimento, tudo tem ingresso nos registros públicos.

O nascimento, casamento e a morte, além de outros fatos, são objetos de registro, conforme dispõe a lei. No registro civil das pessoas naturais estão as primeiras informações elementares do indivíduo, e tais informações são indispensáveis para a promoção de políticas públicas e a tutela dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Por esta perspectiva o cidadão é titular dos direitos de personalidade positivados no Capítulo II do Código Civil, arts. 11 ao art.21. Tem-se assim, no reconhecimento do patrimônio moral, indelevelmente ligado à existência da pessoa:

seus direitos personalíssimos físicos (a vida, o corpo- em sua totalidade e em suas partes, eventualmente seu cadáver, sua imagem ou efígie, seu tom de voz, etc), seus direitos personalíssimos psíquicos (sua integridade psicológica, sua integridade emocional, sua intimidade, sua liberdade de crença religiosa, filosófica e política, como exemplos), seus direitos personalíssimos morais (seu nome, sua honra, sua privacidade, suas criações intelectuais, entre outras) (Mamede e Mamede, 2022, p. 10).

Como pode se constatar, os cartórios extrajudiciais constam ainda inúmeras outras informações que ultrapassam as questões existenciais. Relações patrimoniais são observadas em transações escrituradas pelos tabeliães de notas; da mesma forma a dimensão patrimonial é observada a partir da verificação de bens imóveis registrados nas serventias imobiliárias; sem esquecer dos cartórios de protestos, por sua vez, possuem elementos que indicam aspectos relativos ao crédito da pessoa para fins de relações comerciais. 

Do exposto se nota que os cartórios extrajudiciais contêm grande acervo, formado em parte por documentos físicos e em parte por documentos digitais. É dizer que parcela da memória digital das pessoas estão sob os cuidados dos notários e registradores, respondendo tais profissionais pela segurança, ordem e conservação dos livros e documentos sob sua guarda, independentemente do formato em que dispostos.

Neste ponto, ainda que se diga de passagem, não há de se olvida que o direito notarial e registral possui como um dos seus princípios a publicidade. A publicidade está estampada no artigo inaugural da Lei Federal n.º 8.935, de 18 de novembro de 1994, que regulamenta o art. 236 da Constituição Federal de 1988, dispondo sobre serviços notariais e de registro, e da mesma forma tem repercussão na Lei dos Registros Públicos.

O efeito publicitário é, portanto, um efeito jurídico inerente aos registros públicos, o que significa que “[…] o ato ou fato registrado, com exceções, é acessível ao conhecimento de todos, interessado e não interessados” (CENEVIVA, 2010, p. 56).

Assim está atrelado à seara extrajudicial o relevante efeito publicitário que, a princípio, garante o acesso de todos as informações depositadas nas serventias.

Independentemente das características ou o fim dos assentamentos mencionados pela LRP, devem estar os registros permanentemente abertos – com poucas exceções – ao integral conhecimento de todos. A publicidade está no rol dos instrumentos legais de garantia dos atos jurídicos submetidos a registro (CENEVIVA, 2010, p. 89).

A publicidade ocorre, em regra, através da emissão de certidões, ficando vedado o apontamento de elementos revestidos pelo sigilo legal. Todavia, registra-se, a Constituição Federal de 1988, ao tratar dos Direitos e Garantias Fundamentais, no artigo 5º, inciso LXXIX, incluído pela Emenda Constitucional n.º 115, de 2022, assegura, “nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais” (BRASIL, 1988).

Erigido está, portanto, como direito fundamental a proteção de dados, o que abarca a memória digital. A lei a ser cotejada com o texto constitucional referido é a Lei Federal n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018 – conhecida como “Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais” – LGPD. O Conselho Nacional de Justiça ao publicar o Provimento n.º 134, de 24 de agosto de 2022 estabeleceu, em seu artigo 1º, que os responsáveis pelas serventias extrajudiciais devem atender às disposições da LGPD, devendo obedecer além dos fundamentos, os princípios e obrigações concernentes à governança do tratamento de dados pessoais.

Um dos principais objetivos da LGPD foi trazer maior conscientização e a possibilidade de o titular controlar o uso que é feito dos seus dados pessoais. Isso, porém, não significa que a nova lei veio para ameaçar o funcionamento das empresas e dos órgãos públicos sujeitos a ela. Muito pelo contrário! A lei traz uma série de diretrizes para que os agentes de tratamento utilizem dados pessoais de maneira mais responsável e eficiente, com transparência para seus titulares e maior segurança para todos (COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL – CONSELHO FEDERAL, 2021, p. 8).

Embora a publicidade seja inerente a atividade, não se ignora o quanto a memória pode revelar aspectos econômicos para terceiros, sobretudo considerando as múltiplas informações sobre as pessoas.

Diante da realidade observada, percebe-se que a LGPD funciona como instrumento para preservar os dados contidos em amplo aspecto, a todos os dados oriundos do ambiente digital, visando tutelar e guardar informações particulares dos usuários (COSTA; CUNHA; TORRES, 2022, p. 1041).

A presença de um fator de interesse econômico decorrente das múltiplas informações, representada pela memória digital constante das serventias extrajudiciais, não faz com que tais dados ou memória digital figurem como patrimônio de titularidade do falecido,

A atividade dos notários e registradores, embora exercida em caráter privado, corresponde a uma atividade pública, de modo que a memória digital presente nas unidades de serviço extrajudicial, conquanto apresente elementos de identificação da pessoa natural e o armazenamento de informações e relações sociais e patrimoniais, pertence em parte ao domínio público, em virtude da preservação dos interesses do Estado e a proteção dispensada ao cidadão.

Os livros e arquivos, fichas, documentos, papéis, microfilmes, sistemas de computação e todos os demais elementos que compõem os acervos das serventias extrajudiciais, sejam físicos ou virtuais, permanecem sob a responsabilidade do notário ou do registrador, sendo responsabilidade dos delegatários o zelo pela ordem, segurança e conservação deles. Neste sentido, inclusive, é a previsão do item 9 do capítulo XIII das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo (Provimento n.º 58/89 – Cartórios Extrajudiciais – Tomo II).

Assim, para fins sucessórios não há que se falar em transmissão da documentação e memória digital do indivíduo armazenada nos cartórios extrajudiciais, ou seja, a documentação e memória digital da pessoa natural no âmbito das notas e registros públicos não são objetos de sucessão causa mortis.

A Recomendação n.º 9/2013, do Conselho Nacional de Justiça, nos termos do contido em seu artigo 4º, indica expressamente que, o arquivo de segurança é integrante do acervo da serventia e deve ser transmitido ao novo titular da delegação em caso de extinção de delegação anterior.

A transmissão mencionada no ato normativo não está encampada pelo direito sucessório. O texto transmite a ideia de que o acervo não pertence ao titular do cartório, mas sim ao Estado, de modo que todo aquele que assumir a Serventia por sua competência legal, terá o arquivo à sua disposição.

Portanto, a memória digital de um indivíduo, que é parte componente do acervo das unidades extrajudiciais (cartórios), não pode ser objeto de sucessão em decorrência da morte da pessoa natural, não implicando assim em parte do patrimônio do falecido.

3.2 MEMÓRIA DIGITAL COMPONENTE DE REDES SOCIAIS – PATRIMÔNIO OBJETO DE PARTILHA OU ADJUDICAÇÃO NO ÂMBITO DO INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL?

Os elementos de informações acerca da pessoa humana, para além do aspecto existencial, podem ter repercussões econômicos e patrimoniais – fator que demanda atenção do legislador.

Diferente do acervo digital inerente ao indivíduo que é de acesso público e apresenta-se sob a guarda do Estado para a implementação, cumprimento e controle de políticas e diretrizes que regem a relação vertical, ou ainda de elementos que garantem a publicidade a fim de preservar direitos de terceiros, a exemplo do que ocorre nas unidades dos serviços extrajudiciais, os perfis de redes sociais implicam em relações privadas.

Imbuídos nesta relação entre memória e redes sociais digitais, destaca-se a contribuição da advogada Karina Nunes Fritz (2024, p.1), que observa que “bem digital é tudo aquilo que armazenamos, em vida, na internet[…] e se se impedir a herança digital, seremos o primeiro país a fazê-lo, e deixaremos o patrimônio mais existencial do ser humano nas mãos das plataformas digitais”.

Segue a professora ao tecer comentário sobre o projeto de lei do novo Código Civil, argumentando que é necessário “disciplinar a matéria especificamente posto que, a legislação estabelece que: todo os bens do falecido vão para os herdeiros, não faz sentido excluir da regra o conteúdo digital. O inverso, a negativa de transmissão, só deveria ocorrer se a pessoa deixar expressa a proibição” (Fritz, 2024, p.2).

Em concordância com este raciocínio, “a atriz Whoopi Goldberg revelou, em entrevista recente, que sua imagem não será reproduzida em holograma digital após sua morte, decisão está documentada em testamento” (Peck, 2023, p.1).

Em regra, a memória digital das pessoas naturais que fazem uso de redes sociais, como o Instagram, Twitter, Facebook, YouTube, Snapchat, dentre outras, é confiada a empresas do setor privado. Há assim um contrato entre o usuário da rede social em que o perfil é criado e a empresa detentora da plataforma. Além disso, dentre os recursos possíveis, o compartilhamento de fotos, a publicação de textos e vídeos, músicas e inúmeras outras manifestações e dados, representam vasta memória digital, que, por consequência, pode ter, além das implicações existenciais, interesses patrimoniais e econômicos.

A princípio, os bens digitais poderiam ser protegidos por direitos autorais, patentes, marcas registradas ou outras formas de proteção legal. Os detentores desses direitos têm o direito exclusivo de reproduzir, distribuir ou exibir esses bens, e podem exigir que outras pessoas obtenham sua autorização antes de usá-los. Ocorre, que com a crescente digitalização de informações e a popularização da internet, os bens digitais têm se tornado cada vez mais importantes na economia e na sociedade em geral, exigindo uma regulamentação e proteção adequadas (LANA; FERREIRA, 2023, n.p.).

Questão a ser atacada é se memória digital representada por perfis de redes sociais deve ser entendida como patrimônio para fins de partilha ou adjudicação no âmbito do inventário – no caso especificamente do presente texto – no âmbito extrajudicial.

Tecnologias recentes permitiram a acumulação de verdadeiras fortunas armazenadas virtualmente, nos mais variados formatos. Entretanto, enquanto a transmissão patrimonial após a morte é um fenômeno milenar, a herança digital apenas recentemente passou a ser considerada como objeto do direito das sucessões, ainda deixando dúvidas sobre a possível caracterização de tais bens como patrimônio (COSTA FILHO, 2016, p. 188).

Sobre o tema, emblemático caso diz respeito a uma garota morta no metrô de Berlim – Alemanha. A mãe da jovem ajuizou ação contra o Facebook para ter acesso ao conteúdo do perfil criado na rede social a fim de investigar os possíveis motivos da morte.

Diante da condenação o Facebook disponibilizou à autora da ação um arquivo constando “[…] mais de 14 mil páginas de conversas, fotos, nomes de emissores e receptores, datas, horários e outros dados referentes à conta da menina (FRITZ, 2021, n.p.).

Outros casos foram destaques no exterior, a exemplo do ocorrido em 2017 na Pensilvânia – Estados Unidos – ocasião em que um tribunal considerou as contas de redes sociais um modelo de propriedade, e por consequência os pais tiveram acesso ao perfil em decorrência da morte do filho. Por outro lado, ainda nos Estados Unidos, o Yahoo negou acesso por parte da família a um soldado morto no Iraque, sob o argumento de violação da política de privacidade (LANA; FERREIRA, 2023, n.p.).

No Brasil tramitava, no Congresso Nacional, o Projeto de Lei (PL) 4099/2012 – Câmara dos Deputados – que objetivava incluir o parágrafo único no art. 1.788 do Código Civil, para estabelecer a transmissão aos herdeiros de todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais que pertenciam ao autor da herança.

Visando o ajuste do direito às realidades observadas na sociedade hodierna, dentre as quais a herança digital está presente, a iniciativa para a inclusão legal, repercutiria na pacificação social do tema, considerando que a omissão legislativa pode dar azo a várias demandas que nem sempre serão interpretadas da mesma maneira.

É preciso que a lei civil trate do tema, como medida de prevenção e pacificação de conflitos sociais. O melhor é fazer com que o direito sucessório atinja essas situações, regularizando e uniformizando o tratamento, deixando claro que os herdeiros receberão na herança o acesso e total controle dessas contas e arquivos digitais (BRASIL, 2012).

Todavia a matéria foi arquivada em razão de arquivamento no Senado Federal ao final da legislatura. Contudo, em que pese o arquivamento referido, o assunto demanda tratamento diferenciado e referenciado pelo direito privatista. Para alguns a herança digital pode ser objeto do direito das sucessões, e está compreendida no patrimônio do indivíduo, devendo a ideia de patrimônio abarcar novas situações decorrentes do avanço social e suas relações.

Não se ignora, todavia, que a questão não é pacífica, havendo quem justifique que a transmissão automática da memória digital aos herdeiros viola direitos fundamentais da liberdade e da privacidade […] naqueles casos em que o bem digital é uma projeção da privacidade e não houve declaração expressa de vontade ou comportamento concludente do(a) titular do acervo autorizando qualquer pessoa, familiar ou terceiro, a acessar e gerir tais bens digitais (FROTA; AGUIRRE; FERNANDES E PEIXOTO, 2018, p. 600).

E, de longa data, os tribunais brasileiros, vem manifestando posição negativa de natureza indenizatória, sendo que em 2021, segundo informação da 31ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, confirma decisão negando pedido compensatório (dano moral) de genitora cujo perfil da sua filha falecida fora excluído de rede social (em referência ao acórdão, Apelação n° 1119688-66.2019.8.26.0100, da Egrégia Corte Bandeirante).

Segundo veiculado, nos termos da referida manifestação do relator do acórdão:

[…] ao criar seu perfil, a filha da autora aderiu aos Termos de Serviço e Padrões da Comunidade da plataforma, disponibilizados aos usuários quando ingressam na rede social. Nesses termos, o internauta possui duas opções em caso de óbito: transformar o perfil em memorial ou optar previamente pela exclusão da sua conta, sendo a segunda a preferência da filha (EXCLUSÃO…,2021, n.p.)

Se observa do caso concreto, que a decisão respeitou a preferência da filha formalizada no contrato com a empresa detentora da plataforma, quando da aceitação dos termos.

A decisão vai na linha do que alguns defendem, pois na carência de legislação específica no Direito brasileiro, os arquivos armazenados de forma virtual em serviços como perfis de redes sociais, conta de e-mail, e outros, devem seguir as políticas contratadas. Inúmeras discussões têm surgido sob a alegação de que a aceitação dos termos figuraria como contrato de adesão, muitas vezes não compreendido pelo usuário consumidor, hipossuficiente na relação.

A respeito do tema sob a ótica do direito comparado, na Espanha a lei que trata sobre proteção de dados e direitos digitais, estabelece que os familiares do falecido ou as pessoas de fato a ele ligadas, e os herdeiros, têm o direito de suceder o usuário, salvo disposição em contrário do falecido ou ainda previsão legal em outro sentido. Na Alemanha o cenário é parecido (FRITZ, 2021, n.p.).

Na prática, o assunto ainda carece de maiores elementos para que tal patrimônio seja objeto de partilha. Isso porque, em regra, quando da celebração do contrato entre o usuário da rede social em que o perfil é criado e a empresa detentora da plataforma, há uma cláusula em que o usuário opta por qual destino dar a memória digital componente daquele perfil em caso de perecimento do usuário.

Na hipótese, o herdeiro comprovado ou ainda o inventariante nomeado pode notificar a empresa detentora da plataforma, para que a mesma indique a presença ou não de disposição de vontade acerca do destino do acervo.

Destaca-se,  o inventariante pode ser nomeado antes mesmo do início da escritura de inventário, conforme prevê a Resolução n.º 35, de 24 de abril 2007, do Conselho Nacional de Justiça, que disciplina a lavratura dos atos notariais relacionados a inventário, partilha, separação consensual, divórcio consensual e extinção consensual de união estável por via administrativa. O inventariante nomeado poderá representar o espólio, inclusive para ter acesso a esse tipo de informação.

Em eventual caso de recusa da empresa detentora da rede social, o interessado poderá recorrer a via judicial para que se determine a indicação; de todo modo, caso a empresa não indique, acredita-se pela possibilidade da memória digital constante da rede social figurar no inventário extrajudicial, devendo, o interessado (herdeiro) comprovar, sem grandes formalidades, que determinado perfil era de titularidade do falecido.

Lembra-se, mormente que, nos moldes da resolução outrora mencionada (Resolução n.º 35/2007, do Conselho Nacional de Justiça), a escritura pública de inventário e partilha não depende de homologação judicial, configurando título hábil para a transferência de direitos, como dispõe o artigo 3º, da referida normativa.

Ponto a ser considerado diz respeito ao intuito do herdeiro diante da memória digital constante do perfil da rede social. Se a intenção é apenas o acesso ao conteúdo para a preservação da memória afetiva, não estará caracterizado cunho econômico e patrimonial.

Recurso que possibilita a minimização de discussões é a elaboração de codicilo para o cumprimento da vontade do falecido, conforme autoriza o artigo 1.881 do Código Civil.  A elaboração do documento pode conter as senhas e descrições dos perfis criados e utilizados pelo usuário, de modo que, o herdeiro, diante da senha, terá acesso ao conteúdo.

Da mesma maneira que o instrumento jurídico do testamento, por possuir a característica de ser personalíssimo, também, o respectivo instituto se mostra apto para os fins aludidos.

Essa transmissibilidade seria aceita se o(a) autor(a) da herança autorizasse por testamento ou de outra forma em vida que um ou mais herdeiros, cônjuge ou companheiro(a) sobrevivente, legatário ou terceiro pudesse(m) custodiar e (ou) acessar integral ou parcialmente tais arquivos e contas digitais (FROTA; AGUIRRE; FERNANDES E PEIXOTO, 2020, p. 599).

O contexto permite compreender que, nos casos em que não há indicação expressa do usuário quanto ao destino da memória digital, ou ainda nos casos em que adesão do termo é judicialmente desconsiderada, o inventário e partilha pode ser manejado na via extrajudicial, uma vez preenchido os demais requisitos legais e normativos, para compreender a memória digital do indivíduo.

As Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo (Provimento n.º 58/89 – Cartórios Extrajudiciais – Tomo II) no capítulo XVI (Tabelionato de Notas) quando traz disposições referentes ao inventário, ao tratar sobre os bens, recomenda que nos casos de bens móveis se exija o documento comprobatório de domínio e valor, se houver, além da descrição com os sinais característicos.

Da mesma forma, a demonstração do domínio de bem imóvel ou direitos sobre ele deve ser documentada, frente a comprovação da titularidade ou dos direitos sobre qualquer bem, seja móvel ou imóvel, corpóreo ou incorpóreo, é essencial no inventário.

Desse modo, sendo a herança o patrimônio transmitido aos herdeiros e considerando a ideia expressa pelo código de 2002 de que o patrimônio inclui o complexo de relações jurídicas dotadas de valor econômico de uma determinada pessoa, percebe-se que arquivos digitais dotados de tal valor (sites, músicas, filmes, livros, bens virtuais, etc.) devem fazer parte da partilha (COSTA FILHO, p. 188-189)

Uma vez indicada a conta criada na rede social a ser objeto de tratamento na escritura pública, ao(s) interessado(s) cabe ainda a atribuição de valor para fins de formalização dos procedimentos necessários, inclusive para a incidência de eventual imposto de transmissão causa mortis.

Quando finalizada a partilha, ou a adjudicação – se for o caso, os interessados devem remeter o documento para a empresa titular da rede social, para que ela cumpra o definido na escritura, pois a escritura pública de inventário e partilha não depende de homologação judicial, configurando título hábil para a transferência de direitos.

No caso de eventual não cumprimento do estabelecido na escritura pública, o interessado poderá se valer do Poder Judiciário, para a adoção das medidas cabíveis.

CONCLUSÃO

A evolução tecnológica e o acesso crescente das pessoas ao aparato digital têm implicado na expansão de um grande acervo composto pela memória digital das pessoas naturais.

Parte de tal memória é de interesse e acesso direto do Estado e dos entes e entidades a ele diretamente vinculados, uma vez que é instrumento apto a colaborar com a adoção e promoção de políticas públicas.

A memória digital inerente ao indivíduo, embora carregue dados sensíveis e personalíssimo, tem por ora, o acesso do Estado, com o objetivo exclusivo de implementação, cumprimento e controle de políticas e diretrizes que regem a relação vertical, ou ainda de elementos que garantem a publicidade a fim de preservar direitos de terceiros, como ocorre nas unidades dos serviços extrajudiciais, não sendo objeto de sucessão.

Portanto, no que se refere ao tratamento e salvaguarda da memória digital relacionada aos dados dos indivíduos é fundamental estabelecer que, as referidas informações são partes componentes dos acervos das unidades extrajudiciais (cartórios), sendo, até presente momento, inexiste a viabilidade de ser objeto de sucessão em decorrência da morte da pessoa natural, não implicando assim, o direito a total disponibilidade dessa parte do patrimônio do falecido.

Contudo, quanto à possibilidade da memória digital componente de redes sociais figurar como objeto de partilha na via extrajudicial – a chamada herança digital -, relevante salientar, embora possa possuir conteúdo econômico, mister se faz que se verifique junto a empresa detentora da rede a existência ou não de indicação expressa do usuário quanto ao destino da memória digital em caso de perecimento do usuário.

Nos casos em que não há indicação expressa do usuário quanto ao destino da memória digital, ou ainda nos casos em que a adesão do termo e políticas é judicialmente desconsiderada, ou ainda nas situações em que a empresa detentora se nega a fornecer a informação, entende-se pela possibilidade do inventário e partilha na via extrajudicial, uma vez preenchido os demais requisitos legais e normativos, para compreender a memória digital do indivíduo.

REFERÊNCIAS

BERGAN, Marshal. Tudo que é solido desmancha no ar: a aventura da modernidade; Tradução: Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letra, 1986.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 4099/2012. Altera o art. 1.788 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que “institui o Código Civil”. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2012. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=548678. Acesso em: 28 jul. 2023.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília–DF: Presidência da República, 2023. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 02 jul. 2023.

BRASIL. Lei Federal n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Brasília–DF: Presidência da República, [2023]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm. Acesso em: 01 jul. 2023.

BRASIL. Lei Federal n.º 8.935, de 18 de novembro de 1994. Regulamenta o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro. (Lei dos cartórios). Brasília–DF: Presidência da República, [2022]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8935.htm. Acesso em: 01 jul. 2023.

BRASIL. Lei Federal n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília–DF: Presidência da República, [2019]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 28 jul. 2023.

BRASIL. Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Governo Digital. Brasília–DF. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/transformacao-digital/rede-nacional-de-governo-digital. Acesso em: 12 jul. 2023.

CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e registradores comentada: (lei n. 8.935/94). 9 ed. rev. e atual – São Paulo: Saraiva, 2014.

CENEVIVA, Walter. Lei dos registros públicos comentada. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL – CONSELHO FEDERAL. Cartilha orientativa LGPD. 2021. Disponível em: https://www.notariado.org.br/wp-content/uploads/2021/06/CNB_CF-Cartilha-LGPD.pdf. Acesso em: 28 jul. 2023.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação n.º 9 de 07 de março de 2013. Dispõe sobre a formação e manutenção de arquivo de segurança pelos responsáveis pelas serventias do serviço extrajudicial de notas e de registro. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/1733. Acesso em: 20 jul. 2023.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução n.º 35 de 24 de abril de 2007. Disciplina a lavratura dos atos notariais relacionados a inventário, partilha, separação consensual, divórcio consensual e extinção consensual de união estável por via administrativa. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/179. Acesso em: 20 jul. 2023.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n.º 46 de 16 de junho de 2015. Revoga o Provimento 38 de 25/07/2014 e dispõe sobre a Central de Informações de Registro Civil das Pessoas Naturais – CRC. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2509. Acesso em: 20 jul. 2023.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n.º 87 de 11 de setembro de 2019. Dispõe sobre as normas gerais de procedimentos para o protesto extrajudicial de títulos e outros documentos de dívida, regulamenta a implantação da Central Nacional de Serviços Eletrônicos dos Tabeliães de Protesto de Títulos – CENPROT e dá outras providências. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3008. Acesso em: 20 jul. 2023.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n.º 89 de 18 de dezembro de 2019. Regulamenta o Código Nacional de Matrículas – CNM, o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis – SREI, o Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado – SAEC, o acesso da Administração Pública Federal às informações do SREI e estabelece diretrizes para o estatuto do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico – ONR. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original173255201912195dfbb44718170.pdf. Acesso em: 20 jul. 2023.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n.º 100 de 26 de maio de 2020. Dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos utilizando o sistema e-Notariado, cria a Matrícula Notarial Eletrônica-MNE e dá outras providências. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3334. Acesso em: 20 jul. 2023

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 134 de 24 de agosto de 2022. Estabelece medidas a serem adotadas pelas serventias extrajudiciais em âmbito nacional para o processo de adequação à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1413072022082563078373a0892.pdf. Acesso em: 20 jul. 2023

COSTA FILHO, Marco Aurélio de Farias. Herança digital: valor patrimonial e sucessão de bens armazenados virtualmente. Revista Jurídica da Seção Judiciária de Pernambuco, n. 09, 2016. Disponível em: https://revista.jfpe.jus.br/index.php/RJSJPE/article. Acesso em: 20 jul. 2023.

COSTA, Ricardo Alexandre; CUNHA, Carlos Renato; TORRES, Dennis José Almanza. O direito fundamental à proteção de dados pessoais no âmbito dos serviços notariais. Revista Argumentum – RA, Marília–SP, v. 23, n. 3, p. 1035-1050, set.-dez. 2022. e ISSN 2359-6889. Disponível em: http://ojs.unimar.br/index.php/revistaargumentum/article/view/1713/1024. Acesso em: 31 jul. 2023.

DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação. São Paulo: EDUSC, 2002.

FRITZ, Karina Nunes. Corte alemã e TJ/SP caminham em direções opostas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/german-report/345287/heranca-digital-corte-alema-e-tj-sp-caminham-em-direcoes-opostas. Acesso em: 28 jul. 2023.

FRITZ, Karina Nunes. Novo Código Civil pode entregar herança digital a plataforma, alerta Karina Nunes Fritz.  Migalhas 13 de maio de 2024.Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/407093/analise-novo-codigo-civil-pode-entregar-heranca-digital-a-plataformas . Acesso em 13 de maio de 2024.

EXCLUSÃO de perfil de filha falecida em rede social não gera dever de indenizar. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=63570&pagina=2. Acesso em: 28 jul. 2023.

FROTA, Pablo Malheiros da Cunha; AGUIRRE, João Ricardo Brandão; FERNANDES E PEIXOTO, Maurício Muriack de; Transmissibilidade do acervo digital de quem falece: efeitos dos direitos da personalidade projetados post mortem. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2018, v. 10, n. 19, p. 564-607, jul.-dez. 2018. Disponível em: https://abdconstojs.com.br/index.php/revista/article/view/192. Acesso em: 27 jul. 2023.

GOULART, Elias Estevão.; PERAZZO, Priscila F. HiperMemo: a hipermídia e a memória no mundo digital. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, 2015. Disponível em: http://revista.ibict.br/liinc/article/view/3616. Acesso em: 8 maio 2024.

GOULART, Elias Estevão; PERAZZO Priscila F. Sujeito social, memória e comunicação: a experiência hipermidiática do sistema HiperMemo. In: PESSONI, Arquimedes; PERAZZO, Priscila F. Neorreceptor no fluxo da comunicação. Porto Alegre: EDUPCRS, 2013. Disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/Ebooks/Pdf/978-85-397-0403-3.pdf. Acesso em: 10 maio 2024.

GRIMALDI, S. S. L. et al. O patrimônio digital e as memórias líquidas no espetáculo do Instagram. Perspectivas Em Ciência Da Informação, v. 24, n. 4, p. 51–77, out.-dez. 2019. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-5344/3340. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pci/a/q5jjt6BT3CZbmpxLZmrLNrK/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 01 ago. 2023.

HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas digitais. Petrópolis: Vozes, 2018.

HARARI, Yuval Noah. Uma breve história da humanidade; tradução Janaína Marcoantonio – Porto Alegre, RS: L&PM, 2020. 592.p.

LANA, Henrique Avelino; FERREIRA, Cinthia Fernandes. A herança digital e o direito sucessório: nuances da destinação patrimonial digital. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1989/A+heran%C3%A7a+digital+e+o+direito+sucess%C3%B3rio%3A+nuances+da+destina%C3%A7%C3%A3o+patrimonial+digital. Acesso em: 20 jul. 2023.

MAMEDE, Gladston; MAMEDE, Eduarda Cotta (b). Divórcio, dissolução e fraude na partilha de bens: simulações empresariais e societárias. 5. ed. – Barueri [SP]: Atlas, 2022.

PECK, Patrícia. Herança digital: Advogada explica como ficam os bens após a morte. Migalhas, 25 de julho de 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/390556/heranca-digital-advogada-explica-como-ficam-os-bens-apos-a-morte . Acesso em: 03 de maio 2024.

PETRY, Daniel Bassan. Memórias digitais: além do armazenamento. In Anais da III Jornada de Pesquisas sobre Tecnologias Comunicacionais Contemporâneas. Suely Fragoso, Fátima Régis (Coordenadoras). — Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, 2015. 145p. Disponível em: https://www.ufrgs.br/3ajornada/wp-content/uploads/2016/01/Anais-da-III-Jornada-de-Pesquisas-sobre-Tecnologias-Comunicacionais-Contempor%C3%A2neas-1.pdf. Acesso em: 02 jul. 2023.

SÃO PAULO. Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo. Provimento n.º 58/89 – Normas de serviço cartórios extrajudiciais – Tomo II. Disponível em: https://api.tjsp.jus.br/Handlers/Handler/FileFetch.ashx?codigo=149028. Acesso em: 28 jul. 2023.


[1] Doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Marília – UNIMAR/SP. Oficial Registrador de Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Município de Populina, Comarca de Estrela D’oeste, Estado de São Paulo. Professor Universitário. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-0379-4742. Lattes iD: http://lattes.cnpq.br/3435773506900749.  E-mail: fchossani@gmail.com.

[2] Doutoranda e mestre em Direito pela Universidade de Marília – UNIMAR/SP. Advogada militante no extrajudicial. Professora Universitária. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1447-5045 Lattes iD: http://lattes.cnpq.br/1179800249211528.  E-mail: solangepissolato@gmail.com.   

[3] Doutora e mestre em Direito pela Universidade de Marília – UNIMAR/SP. Oficiala Registradora de Pessoas Naturais e Tabeliã de Notas do Município de Santa Salete, Comarca de Urânia, Estado de São Paulo. Professora Universitária. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-4094-4976. Lattes iD: http://lattes.cnpq.br/5522757486165755.  E-mail: patriciadealmeida3110@gmail.com.