REGISTRO DOI:10.69849/revistaft/th10241010846
Newton de Oliveira Lima[1]
Wilson Seraine da Silva Neto[2]
Lirton Nogueira Santos[3]
1. INTRODUÇÃO
A Ética, em todas as suas conjecturas e dimensões, direcionadas principalmente para o estudo sobre a inter-relação humana[1], corresponde, possivelmente, o objeto de estudo mais debruçado pelos filósofos e uma das temáticas nucleares da preocupação, e inquietação, filosófica. É nesse cenário, correlacionado à ética, que emerge a reflexão sobre valor(es), objeto desde os gregos antigos, mas que, sem olvidar as contribuições cristã-medievais e da modernidade oitocentista, é no início do século XX que obtém o seu maior destaque com a elaboração e aprofundamento da filosofia dos valores, a qual exerceu forte influência no campo político e jurídico-constitucional europeu.
Sem negar os aspectos, sobretudo metafísicos, dos valores, Schmitt analisa a delimitação conceitual de valor atribuída pela sociedade industrial do século passado, marcada pelo antagonismo entre a filosofia capitalista e a filosofia anticapitalista, na qual reflete uma mercantilização da vida e do social. Nesse cenário, valor é essencialmente um elemento pertencente à categoria econômica, de modo que, como qualquer objeto de valor numa sociedade de mercado, é suscetível de valoração, não estando imune a isso mesmo aquele que antes lhe era conferido um status de valor superior ou elevado.
Dessa forma, utilizaremos, para nossa exposição sobre valor(es) em Schmitt, essencial e majoritariamente, mas não exclusivamente, a fonte primária sobre o tema, qual seja, o ensaio “A Tirania dos Valores”[2], na sua versão espanhola de 2009 publicada pela editora argentina Hydra, com tradução de Sebastián Abad[3].
Ressalta-se, pois, a iniciativa dos autores em explorar ao máximo o trabalho schmittiano, com análises e apontamentos realizados diretamente do texto, na tentativa de se ater estritamente a investigação empreitada por Schmitt, sem olvidar dos contributos da parte introdutória escrita por ele, em 1967, que integrou, juntamente com o ensaio, a coletânea em homenagem ao sexagésimo e quinto aniversário de Ernst Forsthoff.
2. O QUE PARA UM É O DIABO, PARA O OUTRO É DEUS”[4]: (TRANS)VALORAÇÃO E VALIDEZ DO(S) VALOR(ES) COMO IMINÊNCIA DO CONFLITO POLÍTICO
2.1. O (s) valor(es), o (s) não-valor (es) e a (trans)valoração
Um primeiro desafio que se encara ao refletir sobre valor é compreender, incialmente, os significados e conceitos que existem dentro do seu caráter polissémico e ambíguo. Todavia, dentre tantos sentidos e noções, e vertentes que surgem de cada um destes, Resweber talvez seja quem tenha lhe dado, em uma simples frase, uma melhor compreensão, ao menos de partida para suscitar o debate: “o valor é uma figura do desejável”[5].
Contudo, apesar de outros desdobramentos dessa definição, inclusive de cunho kantiano, ela reflete, principalmente, um entendimento e interpretação de uma leitura marcadamente economicista de valor.
Pois, a partir da Revolução Industrial e do avanço, e consolidação, do modelo capitalista, bem como das respostas teóricas das filosofias anticapitalistas[6], a semântica predominante de valor passou a ser essencialmente económica[7]. E é nesse sentido que valor é majoritariamente compreendido, e exercido na praça pública, no estado atual de uma sociedade múltipla, hiperdesenvolvida, globalizada, pluralista e heterogénea, onde inúmeros grupos de interesses antagónicos e diversos buscam que seus valores, transvestidos de bens, metas e ideais, concretizem-se em categorias jurídicas, o que, na verdade, numa seara democrática e diversificada, acaba por converter tais valores em moeda de negociação a fim de calcular a distribuição do produto social9.
Contudo, para além dessa dimensão[8], resultante de uma mercantilização da vida, há a determinação do valor no esteiro da moral e da noção ética. Aqui é onde se vislumbra a importância de Kant para o entendimento de valor, de maneira que, como afirma Resweber, é a partir dele que se encontra as noções preliminares da filosofia dos valores, compreendendo valores como “figuras do desejável, despojadas de toda a reinvindicações de completude (…) símbolos de tarefas abertas a um crescimento indefinido: inscrições de um ideal inesgotável”[9].
Em breve análise, o valor ético ganhou inúmeras contribuição de escolas filosóficas modernas, como a utilitarista inglesa, de Bentham e Stuart Mill, que desenvolveram, sob inspiração dos epicuristas, a oposição entre agradável e desagradável, criando uma noção aritmética do valor; ou, na senda dos estoicos, o entendimento de valor como coragem, bravura, de uma atitude heroica sem “cálculo mesquinho”, como defendia Th. Carlyle; ou, “uma interpretação religiosa do valor, fundado sobre o dom de si, o mérito e a eleição”, como defendia os neokantianos Ritschl, Schleirmacher, Harnack e Höffding[10].
A vastidão da temática e a limitação do espaço nos impede de explicitar as contribuições sobre valor a partir de outras compreensões, como a leitura do valor, no campo da ontologia, como bem (sobretudo na filosofia platônica) e como virtude, numa esteira mais teológico-cristã[11].
Contudo, a despeito dessas breves considerações conceituais históricofilosóficas, Schmitt afirma que, em razão da disputa entre o capitalismo e o socialismo anticapitalista, o valor é orientado para uma compreensão pertencente ao âmbito econômico[12].
Nesse sentido, ele denomina de valor extraeconômico[13] aquele que não está localizado na economia, no mercado e na bolsa de valores, mas que está situado como uma superestrutura, no mesmo sentido marxista – no qual Schmitt admite o êxito de Marx na leitura dessa realidade16.
Importante, ademais, salientar um ponto que Schmitt elenca: a relação entre a filosofia da vida – na esteira do que leciona Wilhelm Dilthey, e sua contraposição à filosofia como metafísica – e a filosofia do valor, na qual para aquela a vida é um valor, ao menos, elevado17. Nesse sentido, tal entendimento filosófico levou, segundo Schmitt, a uma “secularização generalizada”[14], onde transforma a vida em um valor – renegando o seu caráter de dignidade.
Assim, no contexto da economização19 da vida – como, por exemplo, do trabalho que se transforma em uma mercadoria20 -, os valores são mensuráveis e susceptíveis de valoração, o que abre a possibilidade de um valor antes superior (v.g., religioso-espiritual) seja revalorizado em troca da ascensão de um valor material. Isso ocorre porque, numa acepção económica, todo valor, primordialmente, integra um sistema de valores, onde cada qual possui uma localização, seja superior ou inferior. Logo, essa sistematização permite que cada valor seja revalorizado, emergindo, assim, uma imparável (trans)valoração[15]. Nas palavras de Schmitt:
o decisivo é que todos os valores, desde o mais elevado até o mais abaixo, encontram-se no trilho dos valores. A posição e a ocupação das localizações são secundárias em importância; a lógica do valor funciona primeiramente a partir do valor e só secundariamente a partir da sua localização.[16]
Nesse cenário schmittiano, portanto, primeiro se elege os valores que integrarão um sistema, estipulando, apenas em seguida, qual o mais elevado, de modo que todos são valores, apenas, e podem assim ser realocado em posições diversas continuamente. No entanto, cada sistema escalona sistematicamente seus próprios valores, o que implica, necessariamente, a não inserção de certos valores pertencentes a um sistema diverso (ou a nenhum). Nesse sentido, Schmitt ressalta que o valor que não consta em um sistema é, portanto, um não-valor, devendo ser “excluído do sistema de valores, já que a negação absoluta de um não-valor é um valor positivo”[17].
Como se pode deduzir, cada sistema de valor há sua própria formação histórico-cultural que permite eleger este, e não aquele, um valor. Assim, como ilustra Schmitt, no sistema cristão, por exemplo, Deus é o valor mais elevado (mas apenas isto, nada mais), enquanto no sistema de valores ateu, Deus é um absoluto não-valor24. A partir dessa compreensão, Schmitt alerta que, diferentemente da objetividade e cientificidade dos valores econômicos, os valores extraeconômicos possuem um caráter negativo, no qual a valoração de um valor supremo ocorre a partir da decretação de um não-valor[18], isto é, como afirma Heinrich Rickert, “a referência à negação é o critério para determinar se algo pertence ao âmbito dos valores”[19].
Schmitt, ainda, observa que as doutrinas puramente formais do valor, e seu exacerbado subjetivismo e relativismo, gera uma impressão de uma ilimitada tolerância[20] que possibilitaria a coexistência de infinitos sistemas de valores em uma sociedade ultra heterogénea e diversa. Contudo, Schmitt, ao citar a afirmação de Scheler de que “a negatividade pertence (…) aos axiomas (…) de toda ética material de valor”[21], apresenta-nos a lógica agressiva do valor para adquirir validez, uma vez que, para se tornar válido, um valor tem que negar e superar um não-valor, que, no entanto, é um valor de outro sistema[22]. Não obstante, na atual realidade, submersa numa globalização de riscos[23], cuja ação de um país, especialmente na seara político-econômica, impacta sobre todos os demais, testemunha-se a tendência de sobreposição de determinados sistemas de valores sobre outros, com a respectiva negação destes, gerando uma tensão conflituosa, que, como em alguns casos vigentes, já se avançou para um combate bélico.
2.2. Bellum omnium contra omnes: a imposição como premissa de validez do (s) valor (es)
O maior perigo desse sentido economicista e sistemático de valor(ação) reside na pergunta “quem é que define, e valora, os valores?”. Utilizando-se da reflexão de Max Weber, Schmitt responde que é o “indivíduo humano quem, em completa liberdade para decidir de modo puramente subjetivo, define os valores”[24].
Contudo, essa liberdade puramente subjetiva de definir e sistematizar os valores, conforme sua própria visão de mundo, leva a uma eterna luta entre os valores e as cosmovisões[25], tendo em vista que cada unidade (pessoa ou grupo) possui, naturalmente, uma ideia divergente do que é o valor e em qual grau de superioridade deverá estar em um sistema. Assim, Schmitt encontra nesse cenário uma guerra de todos contra todos, no qual os valores são os catalizadores de lutas e de inimizades[26].
Mesmo as tentativas de Max Scheler – que classificava os valores de útil a santo – e Nicolai Hartmann – que valorava os valores de inorgânico a espiritual – de buscarem alternativas ao subjetivismo, construindo uma filosofia objetiva e material de valor, Schmitt afirma que determinados valores, independente se sejam altamente superiores, santos ou espirituais, apenas valem para alguém.
Ademais, observa-se que o valor não tem um lugar de Ser, mas sim de Validez, isto é, para que algo seja um valor, não basta que alguém acredite que o seja, ele tem que necessariamente o “fazer valer”, sob pena de se ter uma aparência vazia[27]. Nas palavras de Schmitt, “quem afirma sua validez tem que fazer valer. Quem diz que vale sem que um homem os faça valer, engana-se”[28]. Logo, um valor apenas o é se for imposto e se possui sua validez continuamente atualizada, pois, ao contrário, caso não seja dotado desta validez, será substituído ou decrescido por um outro valor que detém uma maior validez e que deteve uma maior imposição[29].
Portanto, compreende-se que a filosofia do valor, bem como a ética do valor, não diz respeito a ideias, categorias ou princípios, mas sim a um sistema de perspectivismo puro (sistema de referência), pois é uma filosofia que vale o ponto de observação/vista/posicionamento de quem define algo como valor. Assim, “se algo tem valor, e quanto, se algo vale a pena, e em que medida, só se pode determinar desde o ponto onde estamos parados ou desde onde vislumbramos”[30].
Nesse sentido, na sociedade complexa atual coexistirá sistemas que possuem como valor supremo seja a liberdade individual e o homem, ou Deus, ou uma sociedade sem classes, ou etc. de acordo com o que é defendido por aqueles que o definiu[31]. Por conseguinte, ao passo que esse ponto de posicionamento muda, em decorrência da alteração dos planos que direcionam sua perspectiva, vislumbrase a transvaloração dos valores no sistema, ocorrendo a variação do grau de superioridade entre eles, ou, até mesmo, a exclusão ou a adição de um valor[32].
A ilustração do ponto de posicionamento, numa primeira hora, leva-nos a ter uma impressão de relativismo, tolerância ampla e de neutralidade do valor, olvidando-se da sua necessária imposição para se ter validez[33]. Max Weber, nesse cenário, desenvolveu o termo ponto de ataque o qual expõe que a “ilimitada multiplicidade de tomada de posição valorativa”[34] repercute na agressividade que há para a execução concreta do valor. Dessa forma, encontramo-nos diante de um ambiente onde “determinados homens fazem valer os valores frente a outros homens igualmente determinados”[35].
No entanto, aponta Schmitt, houve uma institucionalização dos valores, especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial, que buscou concretizar o texto constitucional a partir da filosofia dos valores, transformando a Constituição, as suas normas e as decisões judiciais em um sistema executório de valores[36], introduzindose um caráter objetivo aos valores.
Porém, como afirma Schmitt, “nada pode valorar sem desvalorizar, valorizar ou pôr em valor. Quem define valores se confronta com os não valores”[37]. Logo, essa busca pela superação do niilismo científico-positivista do séc. XIX através da elevação dos valores como topos jurídico-político acarreta num momento de autodefesa na luta das valorações, pois a estipulação de certos valores implica na subjugação (ou negação) dos valores daqueles que pensam diferente.
A partir disso, Schmitt aborda o conceito da Tirania dos Valores que consiste na valoração imposta dos valores, onde o valor mais elevado tem o direito e o dever de submeter o valor mais baixo, aniquilando o não-valor[38]. No mesmo sentido, Nicolai Hartmann explica:
todo valor tem a tendência – uma vez ganhado poder sobre a pessoa – de erigir-se em único tirano do ethos humano em sua totalidade e, de fato, a custo de outros valores, inclusive aqueles que não o opõe diretamente (…). Tal tirania dos valores já é claramente visível nos tipos unilaterais da moral vigente e na concebida impaciência frente a uma moral estranha (incluso quando é diferente); é ainda mais visível quando uma persona individual está possuída por um único valor[39]
Dessa forma, na linha de Hartmann, conclui-se, apesar da melhor intenção que há – v. g., de proteger a democracia, de combater a desigualdade, de preservar a liberdade de expressão, de desenvolver economicamente o país ou de eliminar a fake news – que a realização de um valor se dá, necessariamente, pela destruição de um outro valor[40]. Pois, em uma sociedade complexa e diversa como a atual, a assunção de um sistema de valor, seja pelo poder político dominante, ou pelas instituições da república, leva, por conseguinte, à uma sobreposição a outros sistemas de valores, atiçando e incrementa, portanto, a eterna luta das convicções e interesses[41]. Nesse sentido, Schmitt afirma que “o não-valor carece de direitos perante o valor e nenhum preço é demasiado elevado para imposição do valor elevado. Em consequência, aqui só há aniquiladores e aniquilados”[42].
Assim, ressaltando-se o contexto de disputas entre capitalismo e socialismo, numa Alemanha pós-guerra, e que o Zeitgeist se centralizava na filosofia dos valores como chave para superar o niilismo oitocentista, a visão schmittiana consistia num prenúncio fático na qual a concretização jurídico-político do valor, lido como elemento essencialmente pertencente à esfera econômica, desembocaria na instauração de um conflito político entre os diversos sistemas de valores que coexistem numa sociedade pluralista como a atual.
3. KANT E O FORMALISMO EM ÉTICA
O ponto fundamental do caráter diferenciador das teorias do valor contemporâneas é o aprofundamento entre o diferencial da materialidade dos valores em Scheler e sua crítica a Kant e o formalismo da ética deontológica, desenvolvida, principalmente, na opus magna de Scheler (2013) de 1913, “O formalismo em Ética e a Ética material dos valores”, onde Scheler (2013) ataca da racionalidade prática de Kant e sua validade formal que circunscreve o próprio valor como produto de uma racionalidade finalística formal, técnica e abstrata, típica do subjetivismo projetor da mente burguesa moderna. Não há qualquer fundamento ou essência na valoração kantiana, segundo Scheler (2013), ela é eminentemente formal para uso do sujeito gnosiológico e detentor do poder das formas, o que contraria a verdadeira essência metafísica ideal/espiritual, objetiva, hierárquica, permanente, dos valores, e sua manifestação concreta nas relações humanas efetivas. Há um conteúdo a priori de valores ligados ao lado emocional da psiquê humana, que interfere em nossa conduta, e que se fundamenta numa essência de valores ideal/espiritual. Não é o conceito ou a forma que esgota o conteúdo essencial do valor, embora possa tocar em algo dele.
Um primeiro ataque contemporâneo à posição de Scheler é o do jusfilósofo alemão Robert Alexy (2011) em 1979, que nega que valores possam ser acessíveis com segurança e objetividade pelo espírito através do método intuicionista de Scheler; apenas através do discurso é que se pode captar qualquer aspecto social válido sobre valores, e relevantes intersubjetivamente, essa posição já foi inclusive referenciada por Habermas (2014) em “Conhecimento e Interesse” em 1968, frisando a consciência e sua singularidade como ponto de convergência do valor e sujeito; inclusive Habermas ataca a posição platônica de valores em que se faz a adesão a uma idealidade essencial metafísica de valores como projeto de uma filosofia da consciência metafísica (Habermas, 2002), não discursiva e não empírica e histórica, assim, os valores são objetos construídos discursivamente, o que converge com a posição de Rawls (2019;2005) em “Uma Teoria da Justiça” (1971) e no “Construtivismo moral e político kantiano” (1980), onde se defende que apenas na razão pública discursiva se tem a formação de valores politicamente válidos; para Habermas (1997) apenas na racionalidade crítica e comunicativa os valores fazem sentido como projeção de linguagem válida e normativa, e não como intuição de irreais essências metafísicas.
Nesse diapasão de resgate discursivo de valores, onde a subjetividade é ordenada pelo discurso, o que para Habermas (2016) reforça a racionalidade prática de Kant e seu apelo à definição subjetiva de querer como livre-arbítrio e livre-fruirestético, mas que encontra na teoria dos juízos a objetividade de um quadro conceitual universal; seguindo a ‘Fundamentação da Metafísica dos Costumes’ de Kant (2009), Habermas (2016) a coloca como fonte de conceito de ordenação discursiva de valores, como a autonomia e a autotelia como fontes da dignidade humana, sua incomensurabilidade moral e sua valoração maior que as coisas e objetos; então, no lugar de uma hierarquia essencial de valores, como em Scheler, pode-se cogitar em valor da dignidade humana superior ao valor de objetos ou relacionados a objetos, para Kant, portanto, a essência dos valores está na ideia racional de ser humano como autor das próprias leis (autonomia) e dador dos próprios fins (autotelia), e seu dever de autodefesa da autonomia e autotelia sendo a prova de sua liberdade e dignidade (III seção da Fundamentação, Kant, 2009).
Kant (2009) transforma a noção aristotélica de essência de valor ou da eticidade, retomada por Scheler (2013) no orbe ideal/espitirual, em procedimento racional de organização e identificação de valores a partir do sujeito, é este que põe os parâmetros de valor, justificando-os ou não em seu valer, através de uma tábua racional de validade a partir da referência universal formal da liberdade, dignidade e autonomia do sujeito, e como sentir os valores. A razão prática de Kant é que põe as formas de valor, do que é tomado como fim do sujeito possível de valorar (Kant, 2016), e a razão pura a ideia da fonte formal dos valores, o sujeito transcendental e sua racionalidade possível de revelar os objetos na cognição, o a priori da racionalidade gnoseológica em suas categorias (Kant, 2015).
Esse pressuposto no sujeito gnosiológico não torna Kant um individualista moral, pois a formação do valor já é sua projeção de fins universais e de proteção da
Ideia da Humanidade como fim dos fins de todos os seres humanos (o “Reino dos Fins”, II seção da “Fundamentação”, Kant, 2009). É a comum e natural passagem que Kant defende da razão pura para razão prática. Ou seja, pensar como ser autônomo já é ser digno de respeito por todos e definir por si quais os fins a seguir por sua própria decisão e não ser meio de qualquer vontade.
Na parte jurídica de sua obra, Kant deixa claro todo o abandono ao individualismo e a adesão a uma reforma gradual jurídica e moral da natureza humana em direção à paz e a dignidade universais como valores centrais a serem buscados historicamente (dependente apenas da vontade humana, e não de valores divinos como queria Scheler) há um republicanismo ético universal de valores para Kant (2012). O Direito e o Estado controlam a liberdade externa, jurídica e política, e são reguladores da Política, embora o conflito ínsito àquela jamais cessará na natureza humana, o que ele denominou de “sociabilidade insaciável” (Kant, 2022). Portanto, dedutivamente, em Kant (2009), a moral vale mais que a economia e a utilidade, a função do Direito é a defesa da liberdade jurídica e da moral (Kant, 2005), sendo assim um valor intermediário, mas ainda assim dependente da moral racional, haja vista que não pode ser obrigado nenhum cidadão a cumprir ordem manifestamente ilegal, ou seja, explicitamente imoral (Kant, §52, 2005). Quanto ao valor mais importante do Direito, para Kant, há na justiça uma clivagem: justiça pública legal, desenvolvida pela autonomia pública e nos limites do pacto político e sua constituição jurídica; e a justiça ética, subjetiva, que aparece da II parte de “A Metafísica dos Costumes” (Kant, 2005), onde a justiça é uma ideia de perfeição moral pessoal em atos não deontológicos, mas de cunho sentimental e personalista, dependentes do arbítrio pessoal se decide ou não em continuar com o ato relacional de conduta, mas geralmente submetidos ao Imperativo Categórico da Moral racional.
Já existe na II seção da “Fundamentação” um núcleo antropológico moral de valor, onde se proíbe a mutilação, desrespeito e maus-tratos contra o ser humano (Kant,2009).
Apesar da tese da primazia da vontade moral comandada por uma lei formal da razão, o Imperativo Categórico, e ideia de valor de Kant permanece presa à sentimentalidade como fricção subjetiva de valor (no caso da Estética) do belo, e na política a ideia de bem comum é racionalizada pelo Direito, mas Kant (2005) não nega a luta política inerente à natureza humana, seu conflito entre boa e má vontade (Kant, 2009) e que legitima a República na escolha dos representantes do povo no parlamento, motivada por interesses e sentimentos, embora haja sentimentos ou boas inclinações naturais (I seção da “Fundamentação”, Kant, 2009).
Assim, as agruras da II guerra mundial e o renascimento dos valores jurídicos e dos direitos humanos com Radbruch, fizeram com que a ideia de moralidade jurídica como avaliação moral do Direito levasse a pensar em valores jurídicos que servem à Metaética jurídica (Lima, 2024), quais sejam: segurança, utilidade, bem comum, finalidade, paz, justiça, na acepção de Radbruch, dentro de sua definição do Direito como atividade que deve servir a valores jurídicos e a Moral de um modo teleológico (Lima, 2024).
No pós-II guerra retoma-se, outrossim, o contratualismo como Rawls, na década de 70, e assim o pensamento de Kant revigora-se, dentro da matriz de cunho liberal-contratual e republicana, tanto que o projeto de Kant (2012) na ‘Rumo à Paz Perpétua’ (1795) de uma republicanização cosmopolita é a base da construção de teses jusmoralistas internacionais (Habermas e Rawls), portanto defensora de valores universais humanitários, sem base metafísica ou transcendente-religiosa.
É mais factível pensar no sequestro do pensamento irracional sobre os valores no início do século XX pelos movimentos extremistas e ideológicos da política, do que deixar de considerar a importância do Estado social e liberal e da ética humanitarista na reconstrução do mundo no pós-II guerra. Ao relativismo objetivo e racional dos valores em Kant, está em oposição o absolutismo essencialista de Scheler. Contra o personalismo ético de fundo religioso metafísico scheleriano, está o humanismo criticista kantiano, onde se vê que a pretensão de
Scheler de destituir a autonomia “burguesa” de Kant, fez que em sua época, o início do século XX, a defesa do pensamento kantiano fosse tomada pelos neokantianos culturalistas, mas praticamente a ideia de destruição da categoria ontológica da moralidade por uma moral da facticidade em Heidegger (2015) em “Ser e Tempo” (1927), colocou em suspenso a luta axiológica entre essencialistas fenomenológicos e culturalistas histórico-relativistas, vindo esse debate a ser retomado no pós-II guerra.
A volta da Justiça Política como diz Höffe (2006), é a prova de que valores laicos e universais só valem se produzidos construtivamente (pelo discurso público e vinculante juridicamente). Estamos, então, novamente no coração do pensamento kantiano sobre valores, embora o conflito político e a guerra sejam mazelas que assolam a humanidade com toda a força.
4. KANT E SCHMITT: CONFLITO E DIGNIDADE
O embate Kelsen e Schmitt no início do século XX foi uma aproximação do embate entre religião política e laicidade humanista atual. A formação kantiana de Kelsen o fez defender uma forma pura objetiva do Direito e uma subjetividade axiológica que separou radicalmente o valor na psiquê do sujeito e na relatividade histórica da vivência social das nações e dos povos, de um Estado de Direito válido como construção a partir da consciência transcendental do sujeito gnosiológico kantiano; Schmitt (1996), principalmente na sua obra “Teologia Política” (1922), atacou Kant e Kelsen como destruidores da visão autônoma do Estado sobre o Direito e na ideia de que a soberania passa a ser jurídica e não política (como na tradição) e que isso destituiria o Direito de sua força institucional, axiológica, calcada na vontade do povo de modo concreto, histórico e essencial ligado no movimento de laicização a partir da autorização da Igreja Católica de concessão de poder ao ente estatal desde do fim da Idade Média.
O fundamento dos valores para Schmitt (2012) em “Posições ante ao Direito” (1933) é a ideia de valores concretos, integrados à comunidade e com fundamento último de validade espiritual, por isso a religião fundamenta a política e esta o Direito; esse absolutismo axiológico schmittiano se contrapôs ao relativismo psicológico e culturalista kelseniano, e ao relativismo humanista cultural de Radbruch.
Após a II Guerra, todavia, Schmitt (2009) faz uma reflexão humanitarista em “A Tirania dos Valores” (1960), um texto onde ele defende a primazia prática do valor da dignidade humana, mesmo mantendo a concepção de conflituosidade dos valores entre si, herdada da primeira fase de seu pensamento, a famosa dicotomia do amigo x inimigo, os extremos existenciais sem conciliação refletidos principalmente em oposição política inconciliável; para o pensamento kantiano, os valores também estão em conflito existencial não propriamente em oposição dualista como em Schmitt, mas na luta de sentimentos e interesses através da concepção antropológica da “insociável sociabilidade”, base comum da antropologia liberal de Kant, Kelsen e Adam Smith.
Enquanto a oposição schmittiana de valores é de origem metafísica e religiosa, a kantiana é antropológica, imanente e histórica, porém a dignidade das pessoas, o valor moral intangível da pessoa humana é colocado por ambos numa posição mais alta na prática político-histórica e como garantia jurídica mor, podendo ser um local de discussão para a cessação de conflitos; termina-se por reconhecer a primazia de um núcleo de direitos humanos assimilado por Radbruch em sua teoria pós-II guerra (Lima, 2024), ponto de contato entre Schmitt e Kant.
5. CONCLUSÃO
Numa comunidade global marcada pela diversidade, na qual emergem diferentes concepções de valores que refletem a identidade e a característica de cada grupo ou nação, Schmitt percebe que, para um sistema ou um valor ter validez, é necessário a sua imposição sobre os valores de um outro sistema que, na verdade, consiste, perante aquele, um sistema de não-valores, ou o inimigo político, seu contrário existencial. Portanto, essa tríade formada pelas figuras do valor, do não-valor e da transvaloração permite um ambiente inter-relacional de iminente conflito.
O ponto da política conflitiva e seu choque de valores é comum aos três autores, Kant, Kelsen e Schmitt, mas este último assumiu a política como ordem concreta de valores que se liga aos valores comunitários na sustentação do ente estatal; já Kelsen quis isolar a política do Direito construindo este através da norma lógica fundamental; Kant propõe o exercício da política nos limites da moral e do Direito, com fins de uma construção da cosmopoliticidade republicana universal, que atualmente Habermas (2012) interpretou como sendo não os entes estatais seu núcleo, mas a dignidade da pessoa humana e seus direitos morais.
Em decorrência da laicidade mais ampla durante todo o século XX e do pensamento pós-metafísico proveniente da reviravolta linguístico-pragmática da década de 30 do século XX em diante, a ideia de reforço dos direitos humanos somada à virada linguística da filosofia reforça o apego não a sistemas absolutistas e teístas, mas de valores humanitários e ético-pragmáticos. A possibilidade de conflito é sempre inerente a humanidade, porém é a institucionalização do Direito comum cosmopolita e o comércio mundial que aproximam os povos e arrefecem as diferenças culturais (como previu Kant, 2012), e no valor da dignidade humana como ponto irrenunciável de não violação, pode-se convergir o pensamento de valores ‘absolutos’ ou ‘fortes’ e ‘fracos’ ou ‘relativos’ como proclama Rawls (2005), buscando aproximar as diferenças conflitivas políticas e axiológicas, principalmente se forem trabalhadas discursivamente no âmbito da razão pública, utilizando o construtivismo moral e político kantiano, e não concepções absolutistas ou irracionais (sentimentais e intuitivas) de valor.
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[1] Leia-se ética entre os seres humanos no esteio do que afirma Giogio Agambem ao dizer que a amizade (philia) consiste numa das temáticas essenciais, se não a própria essência, da filosofia. Ademais, completa o autor, é tão forte essa ligação entre amizade e a definição de filosofia, que, sem aquela, esta não seria possível, pois até mesmo no próprio nome – philos – leia-se amigo. (AGAMBEN, Giorgio. Friendship. In: Contretemps, n. 5, 2004, pp. 2-7, p. 2).
[2] O ensaio “A Tirania dos Valores” foi apresentado orginalmente num encontro ocorrido em 1959, em Ebrach, Alemanha, tendo sido publicado no ano seguinte numa edição privada destinada aos participantes do evento. Apenas em 1967, no livro em homenagem a Forsthoff – a obra Säkularisation und Utopie. Ebracher Studien: Ernst Forsthoff zum 65 -, o ensaio foi disponibilizado para o público geral, acompanhado de uma introdução.
[3] SCHMITT, Carl. La tiranía de los valores. Trad. Sebastián Abad. Buenos Aires: Hydra, 2009. Esta tradução foi feita a partir da edição alemã do ensaio (e da introdução) publicada em 1979.
[4] Ibid., p. 130
[5] RESWEBER, Jean-Paul. A filosofia dos valores. Coimbra: Almedina, 2002, p. 13.
[6] SCHIMITT, op. cit., p. 99
[7] Ibid., p. 98 9 Ibid., p. 95-96.
[8] Semanticamente, valor detém inúmeros outros sentidos para além do valor moral (usualmente religioso) e do valor econômico ou mercantil. Por exemplo: valores matemáticos (sinais algébricos ou algoritmos); valores culturais (signos, palavras, regras, além de, segundo Husserl, fins, objetivos e normas); valores linguísticos (que exprimem as diferenças que há numa língua a partir do modo de referências); valores autênticos (música, pinturas e outros valores típicos da produção artística) Cf. RESWEBER, op. cit., p. 21-22.
[9] RESWEBER, op. cit., p. 16
[10] Ibid., p. 18
[11] Ibid., p. 14.
[12] SCHIMITT, op. cit., p. 102
[13] Ibid., p. 98 16 Ibid., p. 98-99. 17 Ibid., p. 102.
[14] Ibid., p. 103 19 Ibid., p. 99 20 Idem.
[15] Ibid., p. 104
[16] Ibid., p. 104
[17] Ibid., p. 105 24 Idem.
[18] Ibid., p. 112
[19] Apud SCHMITT, op. cit., p. 112
[20] Idem.
[21] Ibid., p. 113
[22] Ibid., p. 114
[23] BECK, Ulrich. Sociedade de risco mundial: em busca da segurança perdida. Lisboa: Editora 70, 2021, p. 9
[24] SCHMITT, op. cit., p. 129
[25] Idem
[26] Ibid., p. 130
[27] Ibid., p. 131-132
[28] Ibid., p. 132
[29] Idem
[30] Ibid., p. 132
[31] Ibid., p. 133
[32] Ibid., p. 133-134
[33] Ibid., p. 135
[34] Apud SCHMITT., op. cit., p. 134
[35] Ibid., p. 136
[36] Ibid., p. 109.
[37] Ibid., p. 138
[38] Ibid., p. 139-140
[39] Apud SCHMITT., op. cit., p. 140
[40] Ibid., p. 141
[41] Idem
[42] Ibid., p. 144
[1] Professor permanente do PPGCJ da UFPB. Líder do grupo de pesquisa “Filosofia do Direito e Pensamento Político”.
[2] Doutorando em Ciências Jurídico-Económicas e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas, menção em Direito Constitucional, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Advogado.
[3] Professor da Universidade Estadual do Piauí. Mestre em Teoria Geral e Filosofia do Direito. Juiz de Direito do TJ-PI.