DISCREPANCY IN THE PREVALENCE OF AUTISM SPECTRUM DISORDER DIAGNOSES IN FEMALES IN COMPARISON TO MALES: THE INFLUENCE OF GENDER ROLES ON LATE DIAGNOSIS
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202505212134
Dayra Maria de Sousa Magalhães 1
Isabela Bernardes Bosque2
Resumo
O presente estudo trata-se de uma revisão de literatura acerca da discrepância na prevalência do Transtorno do Espectro Autista (TEA) em mulheres em comparação a homens, destacando a influência dos papeis de gênero nos diagnósticos tardios. Este trabalho tem como objetivo reunir evidências científicas sobre como os estereótipos de gênero afetam negativamente o processo de identificação e diagnóstico de maneira precoce relacionando a necessidade de elaboração de novas pesquisas com amostras maiores e mais diversas de pessoas autistas. O TEA é definido como uma condição do neurodesenvolvimento caracterizada por déficits em interação e comunicação social combinados com padrões comportamentais e de interesses restritos e repetitivos. A prevalência de casos diagnosticados de autismo é maior em homens do que em mulheres, principalmente em casos de nível 1 de suporte. Porém há evidências de razões pelas quais esse dado pode ser considerado defasado sendo elas: a apresentação sintomatológica diferente entre os sexos, pesquisas mais antigas centradas em amostragem majoritariamente masculina, estratégias adaptativas compensatórias para lidar com adversidades sociais, camuflagem de sintomas e presença de comorbidades. É essencial reconhecer e compreender as diferenças na manifestação do TEA em comparação a homens e desenvolver estratégias para melhor o processo de identificação e o diagnóstico precoce.
Palavras-chave: Transtorno do Espectro Autista. Mulheres. Diagnóstico Tardio. Papeis de Gênero.]
Abstract
This study is a literature review on the discrepancy in the prevalence of Autism Spectrum Disorder (ASD) in women compared to men, highlighting the influence of gender roles on late diagnoses. This work aims to gather scientific evidence on how gender stereotypes affect negatively in the process of early identification and diagnosis, referring to the need for new research with larger and more diverse samples of autistic people. ASD is defined as a neurodevelopmental condition characterized by deficits in social interaction and communication combined with restricted and repetitive behavioral patterns and interests. The prevalence of reported cases of autism is higher in men than in women, especially in cases of level 1 support. However, there is evidence of reasons why this data can be considered outdated, such as: different symptom presentation between the sexes, older research focused on a predominantly male sample, compensatory adaptive strategies to deal with social adversities, camouflage of symptoms and the presence of comorbidities. It is essential to consider and understand the differences in the manifestation of ASD compared to men and to develop strategies to improve the identification process and early diagnosis.
Key-words: Autism Spectrum Disorder. Women. Late Diagnosis. Gender Roles.
1 INTRODUÇÃO
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é explicado como uma condição do neurodesenvolvimento caracterizada principalmente por interação e comunicação social deficitárias associadas a padrões comportamentais e de interesses que possuem como característica central serem restritos, repetitivos e inflexíveis (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013). A apresentação da sintomatologia do TEA é persistente e pode acarretar prejuízos significativos na socialização, atividades de vida diária, funções cognitivas e em outros departamentos importantes da vida da pessoa autista. As características do Transtorno do Espectro Autista podem ser identificadas no início da primeira infância – sendo evidenciadas por atrasos ou regressões no desenvolvimento neuropsicomotor, principalmente em aspectos relacionados à linguagem e reciprocidade sócio-emocional.
Dentro do espectro do autismo, tem-se 3 níveis de suporte e a classificação é feita de acordo com a necessidade que o indivíduo possui de obter apoio para executar suas atividades básicas cotidianas e exercer seu funcionamento social. O nível 1 de suporte apresenta as características diagnósticas nucleares, porém tende a ser invisibilizado devido a camuflagem sintomatológica proveniente de estratégias de compensação e ao desenvolvimento de maneiras alternativas de execução de tarefas que preservam a autonomia (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013).
Dados acerca da prevalência do autismo em homens e mulheres aparentam uma certa inconsistência, com a razão sexo masculino: feminino variando de 1.33:1 a 16:1 de acordo com uma ampla revisão de estudos compreendidos entre 1966 e 2008 (CHESLACK-POSTAVA & JORDAN-YOUNG, 2012). Em um contexto mais atual, a distribuição reportada de casos de TEA por sexo é de 3 meninos para cada 1 menina (LOOMES, HULL & MANDY, 2017). No entanto, quando se trata de autismo de nível de suporte 1 (também citado como autismo de alto funcionamento) a estimativa é de 15,7 meninos para cada 1 menina diagnosticada (MOSELEY, HITCHINER & KIRBY, 2018).
Em concordância com o supra-exposto, o objetivo do presente estudo é reunir evidências científicas que explicam motivações para discrepância na prevalência entre sexos de casos diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista e como estereótipos atrelados aos papeis de gênero podem influenciar para o subdiagnóstico e diagnóstico tardio de mulheres autistas.
2 REVISÃO DA LITERATURA
Tradicionalmente, nas décadas anteriores as pesquisas sobre autismo estavam centradas em meninos e homens. Sendo que, em sua maioria, mulheres que foram diagnosticadas no passado geralmente possuíam TEA classificado como nível 3 de suporte e que em grande partes dos casos vinha acompanhado de deficiência intelectual (KANNER, 1943). Hans Asperger (1991) discorreu sobre o que hoje conhecemos como autistas de nível 1 de suporte, apresentação do transtorno que foi nomeada por ele como “Psicopatia Autista” e posteriormente se tornou conhecida como “Síndrome de Asperger” (termo que atualmente está em desuso). Em seus estudos datados, ele trouxe algumas ideias um tanto quanto caricatas da apresentação do TEA, inclusive relacionando a condição à traços de aparência física. Além disso, suas pesquisas tinham como grupo de estudo indivíduos majoritariamente do sexo masculino – o que torna os estudos enviezados. O perfil da pessoa autista advindo dessas pesquisas foi formulado com base nos meninos que participaram da amostra dos estudos, portanto o autismo historicamente foi compreendido como uma afecção quase exclusivamente masculina onde mulheres geralmente não se encaixam nos critérios diagnósticos (HAPPÉ, RONALD & PLOMIN, 2006).
Acerca da diferença de prevalência de diagnósticos de Transtorno do Espectro Autista entre os sexos, pesquisas indicam que um dos fatores primordiais para essa ocorrência é a maneira particular como o transtorno se apresenta em mulheres – especialmente as classificadas como autistas de alto funcionamento ou nível 1 de suporte (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013). Diversos trabalhos trazem essa apresentação utilizando o termo “fenótipo da mulher autista”, que vem sendo uma área crescente de estudos recentemente. Em comparação aos homens, mulheres tem tendência a desenvolver uma reciprocidade sócio-emocional mais elaborada desde a infância através de brincadeiras de jogo simbólico/”faz-de-conta”, imitação de comportamentos adquiridos por observação e desenvolvimento de estratégias para lidar com adversidades – como a camuflagem de sintomas ou masking (KREISER & WHITE, 2014). Em adição, ao contrário dos homens, que possuem hiperfoco/interesse restrito em objetos; mulheres frequentemente são atraídas para temáticas relacionadas a pessoas e animais (LAI & BARON-COHEN, 2015). Além disso, pesquisas reforçam que mulheres possuem menos dificuldade que homens para aprender comunicação não verbal por meio de observação, entender regras de convivência e seguir roteiros nas interações sociais – mesmo que não seja algo inerente, elas conseguem aprender com observação e calcular para executar por meio de imitação para se adequarem ao contexto que estão inseridas (LAI et al., 2011). Um aspecto pouco discutido é a vulnerabilidade a se tornar uma vítima de abuso, seja físico, psicológico, emocional ou sexual. Essa chance aumentada de vitimização vem da passividade comportamental, baixa assertividade e elevada ingenuidade associadas a vontade de se encaixar socialmente depois de anos convivendo com o sentimento de não-pertencimento (BARGIELA, STEWARD & MANDY, 2016).
O perfil da mulher autista possui uma característica fundamental para a discussão da invisibilidade do TEA em mulheres além do viés de gênero das pesquisas, a capacidade de camuflagem do sintomas (também conhecida como masking). A camuflagem é uma das estratégias compensatórias para lidar com as adversidades, podendo se manifestar por conta de intervenções terapêuticas ou em decorrência da pressão para se adequar às expectativas sociais gerais e as relacionadas aos papeis de gênero. Ela atua de modo a ocultar comportamentos associados ao TEA, tentando tornar sua apresentação similar a da pessoa neurotípica em contextos sociais e não transparecer possuir dificuldades de interação social (HULL et al.,2017). Mulheres tendem a camuflar sintomas mais frequentemente do que homens e geralmente internalizam suas dificuldades, ao passo que homens externalizam (CARPENTER et al., 2019). Dentre algumas características da camuflagem, tem-se como exemplos: forçar contato visual calculando pausas, imitar gestos e expressões faciais, observar quando o grupo ri para rir também e utilizar frases ensaiadas para se comunicar (LAI et al., 2017). Mascarar os sintomas na tentativa de adequação social não é algo exclusivo das mulheres autistas, porém mulheres possuem menor dificuldade que homens em emular comportamentos e reações – por trabalhar o desenvolvimento de reciprocidade sócio-emocional desde a infância com os jogos simbólicos, por cobranças sociais impostas às mulheres e por questões relacionadas à teoria da mente. O termo teoria da mente trata-se de da habilidade sociocognitiva de identificar algo que uma pessoa externa ou o próprio sujeito está expressando claramente ou subjetivamente em um contexto de interação social – estados mentais, emoções, pensamentos, desejos, crenças e intenções (JOU & SPERB, 1999). Apesar de mulheres apresentarem menos dificuldade de exercer camuflagem de sintomas, isso não significa que seja fácil ou que não traga consequências. Atuar com uma persona diferente de si própria exige intenso esforço cognitivo, o que gera exaustão, sintomas ansiosos, sintomas depressivos e poder levar ao aumento da vulnerabilidade de ser manipulada por terceiros a fazer coisas que normalmente não faria (BARGIELA, STEWARD & MANDY, 2016).
Com base na plataforma de Descritores em Ciências da Saúde, papeis de gênero são formados por construções sociais que abrangem crenças e expectativas relacionadas ao modo de pensar e se comportar de acordo com o sexo biológico, sendo macho ou femêa. Esses padrões variam de acordo com o contexto histórico, com a cultura e com o meio que o indivíduo está inserido. Tradicionalmente, para mulheres, existem muitas expectativas de êxito de funcionamento social, empatia, postura inclinada à timidez, ser mais introspectiva que os homens, apaziguar/solucionar situações caóticas etc. Portanto, quando uma mulher apresenta comportamentos incluídos no Transtorno do Espectro Autista de nível 1 de suporte juntamente a camuflagem como estratégia de enfrentamento para as adversidades torna-se mais difícil realizar a identificação inicial de sintomas e indícios de TEA (HULL et al.,2017). De acordo com pesquisas recentes, uma crescente de pessoas do sexo feminino não sentem que se adequam a essas expectativas de expressão do genêro feminino, tanto relacionadas ao autismo quanto a outros aspectos da vida (KANFISZER et al., 2017) – dentre outras questões, tendo mais dificuldades de autorregulação, reciprocidade e masking socio-emocional (GLIDDEN et. al., 2016; VAN DER MIESEN et. al, 2016). De maneira mais sucinta, isto quer dizer que muitas pessoas autistas do sexo feminino possuem disforia de gênero e se identificam como homens trans ou pessoas não-binárias (GEORGE & STOKES, 2018).
O Transtorno do Espectro Autista é uma condição que frequentemente se manifesta acrescida de outras afecções psiquiátricas. Há evidências que cerca de 70% das pessoas diagnosticadas com TEA apresentam ao menos um transtorno comórbido, sendo que 40% dessa respectiva população apresenta dois ou mais (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013). Dentre as comorbidades mais comumente associadas, tem-se: Transtornos Depressivos, Transtornos de Ansiedade, Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, Transtornos Obsessivo-Compulsivo e Transtornos Alimentares (LUGNEGARD. HALLERBACK & GILLBERG, 2011). Tratando-se de mulheres autistas diagnosticadas tardiamente, em alguns casos, as comorbidades podem estar relacionadas ao estresse adquirido ao longo da vida tentando se adequar às expectativas sociais (LAI & BARON-COHEN, 2015). Dentro das possibilidades de falha em diagnóstico, existem possibilidades: 1. nenhuma condição neuropsíquica ser identificada; 2. receber diagnóstico de TEA, porém ofuscado pelos profissionais em detrimento de outro transtorno comórbido que será considerado a principal causa sintomatológica (ex: Transtorno de Ansiedade Social sendo o transtorno base para explicar a manifestação de déficits de interação e comunicação social ao invés do Transtorno do Espectro Autista); 3. casos onde as características do TEA podem ser confundidas e ocorre o diagnóstico errôneo como outro transtorno (ZENER, 2019). Em consonância, dentre os diagnóstico mais frequentemente recebidos por mulheres autistas de alto funcionamento não identificadas de forma correta, tem-se: o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) o Transtorno de Ansiedade Social (“Fobia Social”), o Transtorno de Personalidade Borderline (TPB), o Transtorno Depressivo Maior (TDM), o Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), o Transtorno de Anorexia Nervosa entre outros (MCPARTLAND & VOLKMAR, 2013). Quanto ao TAG, o TDM e a Ansiedade Social; existem casos onde há a possibilidade da paciente apresentar um ou mais destes transtornos em decorrência do sofrimento experienciado por conta de viver com TEA não diagnosticado e consequentemente sem recursos terapêuticos para lidar com os sintomas provenientes (LAI & BARON-COHEN, 2015). Porém, existem também situações onde a paciente possui TEA sem estas comorbidades e obteve esse diagnóstico equivocado porque foi avaliada parcialmente ou camuflou alguns sintomas. Em relação ao TPB, pode haver confusão porque esta condição engloba dificuldades de funcionamento social, vínculos frágeis/efêmeros, relacionamentos intensos e baixa tolerância à frustração (DELL’OSSO et al., 2018). A Anorexia Nervosa pode ser confundida com TEA por conta de similaridade na restrição e recusa alimentar (no autismo relacionada a questões sensoriais, na anorexia por distúrbios de autoimagem e necessidade criada de perder peso corporal), desinteresse em interações sociais e questões emocionais (TCHANTURIA et al., 2013). O TOC pode ser confundido por ser similar ao TEA em relação aos padrões de comportamento e interesses restritos, repetitivos e ritualísticos. Além disso, ambos podem ser constituídos por pensamentos obsessivos e comportamentos compulsivos (ZENER, 2019).
3 METODOLOGIA
O presente trabalho consiste em uma revisão bibliográfica que visa identificar produção científica em torno de razões que explicam a discrepância na prevalência de diagnóstico de TEA em mulheres, tendo como objetivo relacionar papeis de gênero estabelecidos socialmente com a dificuldade de identificação e diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista em nesta população.
A questão norteadora para a pesquisa foi formulada através da estratégia PICO (População, Intervenção/Interesse, Comparação e Outcome/Desfecho): P= meninas e mulheres autistas; I= diferenças comportamentais e de manifestação sintomatológica do TEA; C= meninos e homens autistas; O= diferenças atreladas a papeis de gênero dificultando o diagnóstico. Após a construção da PICO, formulou-se a pergunta “Como as diferenças comportamentais e de manifestação sintomatológica do TEA atreladas a papeis de gênero dificultam o diagnóstico em meninas e mulheres em relação a meninos e homens?”.
Foram utilizadas as bases de dados Portal de Periódicos da CAPES, Google Acadêmico e Pubmed – com a obtenção de dados ocorrendo durante o primeiro trimestre de 2025. Dentro da estratégia de busca foram utilizados os Descritores em Ciências da Saúde/Medical Subject Headings (DeCS/MeSH) associados a operadores booleanos “Autism Spectrum Disorder” AND “Women” AND “Delayed diagnosis” AND “Gender role”.
Como critérios de inclusão foram escolhidos para o estudo artigos escritos na língua inglesa, que possuem pelo menos três descritores obtidos por meio da plataforma DeCS/MeSH, com data de publicação dentro dos últimos 10 anos e que acrescentam a temática deste trabalho. Foram desconsiderados trabalhos com publicação anterior ao ano de 2015, produções consideradas como “grey literature”, com menos de três descritores selecionados através da plataforma DeCS/MeSH e que fogem da temática central desta pesquisa.
Seguindo estes critérios de inclusão e exclusão, foram selecionados 48 trabalhos. Para refinar esta amostra pré-selecionada foi realizada a leitura dos títulos e dos resumos de todos os trabalhos. Após esta análise, a amostra foi reduzida e foram selecionados 23 artigos para leitura na íntegra. Destes, foram selecionados 15 que possuem relevância considerável para compor a pesquisa acerca do tema de estudo. Para a realização do trabalho foram acrescidas algumas fontes externas quando houve necessidade de estudar algo que os artigos não contemplavam de maneira aprofundada.
4 RESULTADOS E DISCUSSÕES
Por meio da análise dos aspectos que englobam o problema central, que é a discrepância de diagnósticos eficazes de Transtorno do Espectro Austita em mulheres em relação a homens, foi possível identificar os motivos que fazem com que essa questão persista mesmo em épocas atuais. A seguir apresentam-se os principais resultados obtidos através do estudo da literatura e reflexão acerca das razões que levam a disparidade quantitativa da prevalência de casos entre os sexos.
Dentre eles, tem-se o enviesamento de gênero das pesquisas acerca do TEA, cuja origem se deu na utilização de amostras majoritariamente masculinas e o perfilamento da pessoa autista foi formado através de características limitadas aos grupos estudados (constituídos em sua maioria de meninos autistas de nível 2 e 3 de suporte e minoria de meninas autistas de nível 3 de suporte, comumente com prejuízos de linguagem e com deficiências intelectuais associadas – até então, os níveis eram classificados em leve, moderado e severo). Em adição, algo importante a se levar em consideração é a frequência em que meninos são encaminhados para avaliação diagnóstica com suspeita de Transtorno do Espectro Autista: a cada dez meninos, somente uma menina é encaminhada para ser avaliada por especialistas capacitados (WILKINSON, 2008).
A respeito da apresentação sintomatológica do TEA em mulheres, o perfil da mulher autista vai em contramão às expectativas de manifestação do transtorno classicamente. Através de estereótipos e expectativas de comportamentos performativos dentro de papeis de gênero, mulheres apresentam menor dificuldade de expressar reciprocidade sócio-emocional em relação aos homens. Mulheres têm maior tendência a desenvolver estratégias adaptativas para lidar com essas questões, como observação comportamental de terceiros (personagens da mídia ou pessoas do seu contexto social) que resulta em imitação de comunicação verbal e não-verbal, seguir roteiros de como agir dentro das situações de maneira adequada e identificar regras de convivência comuns aos pares quase que inerentemente sem aviso prévio verbal. Com base em pesquisas em torno de gênero e autismo, podemos formular a hipótese de que por ter mais dificuldade de desempenhar o papel tipicamente feminino e expressar habilidades sociais, algumas pessoas do sexo feminino podem se identificar mais com características frequentemente expressadas pelo sexo oposto e se sentirem disfóricas em relação ao gênero que lhes foi atribuído ao nascimento – o que pode estar causando a crescente de casos de homens trans e pessoas não binárias. Nos últimos 5 anos, há um significativo aumento de estudos abrangendo essa questão.
Outro importante fator a ser discutido é a camuflagem de sintomas, que é uma estratégia compensatória principalmente para as dificuldades de interação social. Este ato de colocar uma “máscara-social” a fim de interagir de forma adequada e a se encaixar no contexto social (se assimilando a uma pessoa neurotípica) acaba inviabilizando alguns sintomas, fazendo com que a identificação inicial e o diagnóstico correto sejam dificultados isso ocorre porque essa camuflagem oculta alguns sintomas centrais do TEA. Apesar de conseguirem ter êxito nessa performance, devido a internalização de sintomas e esforço constante para se encaixar nos grupos, mulheres autistas tendem a apresentar com mais frequência que homens sintomas como: exaustão, subdiagnóstico, vulnerabilidade a sofrer abusos, sofrimento psíquico e comorbidades associadas ao TEA. A camuflagem apesar de ter utilidade em situações dotadas de uma certa previsibilidade, pode não ser suficiente frente a situações novas onde torna-se mais difícil calcular e roteirizar a expressão da sua personalidade, comportamentos e reações.
Em concomitâncias com o Transtorno do Espectro Autista, em grande parte dos casos apresentam-se comorbidades – sendo as mais frequentes inseridas nos grupos de Transtornos do Neurodesenvolvimento, Depressivos, de Ansiedade ou Alimentares. Em alguns casos, as comorbidades podem ser falsamente consideradas como a explicação base para alguns sintomas que na realidade advém do autismo. Também tem a possibilidade do TEA ser confundido erroneamente com outra condição que apresenta algumas particularidades similares. Por fim, existe ainda a opção de o paciente (geralmente, com experiências em camuflagem de sintomas) não obter nenhum diagnóstico mesmo possuindo os critérios diagnósticos para o transtorno. As comorbidades podem vir como consequência ao estresse, ansiedade e desconforto ao se esforçar frequentemente para performar como uma persona criada para emular comportamentos de uma pessoa neurotípica.
Por meio desta revisão de literatura foi possível traçar um perfil de como o Transtorno do Espectro Autista frequentemente se apresenta em mulheres inseridas na classificação de nível 1 de suporte. O que fundamental a teoria de que existem diferenças na manifestação do autismo em relação ao sexo biologico e ao papel gênero incumbido ao ser pela socialização. Em adição foram explicitadas questões que podem dificultar o diagnóstico – adquirindo este conhecimento é possível prestar mais atenção na identificação de características que antes poderiam passar despercebidas pela não familiaridade com o assunto ou pela camuflagem de sintomas por parte da paciente. Tornou-se evidente que existem falhas diagnósticas significativas em quesito de identificação de mulheres autistas de alto funcionamento, sendo por diagnóstico errôneo, ofuscamento do TEA e atribuição sintomatológica a outros transtornos comórbidos ou realização do diagnóstico de maneira tardia.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Em suma, o processo de avaliação é composto por entrevistas com responsáveis/cuidadores, observações comportamentais do paciente, avaliação segundo critérios de manuais diagnósticos, aplicação de testes/escalas específicos para o Transtorno do Espectro Autista, avaliação neuropsicológica e acompanhamento multiprofissional com profissionais capacitados (FERNANDES, TOMAZELLI & GIRIANELLI, 2020). Porém, apesar de contemporaneamente ser constituído por mecanismos e etapas com maior aplicabilidade e dotado de maior tecnicidade (e consequentemente, melhora na sensibilidade e especificidade), o processo de diagnóstico necessita ser atualizado para não deixar passar despercebidos casos onde a expressão sintomatológica pode estar parcialmente ocultada por alguma razão. Isso porque é fundamental a identificação do TEA de maneira precoce a fim de fornecer o suporte e tratamento terapêutico adequado ao indivíduo com objetivo de mitigar os prejuízos e sofrimento psíquico que ele possa vir a apresentar.
Faz-se necessário reconhecer que assim como demais estudos, este trabalho também possui limitações. Dentre elas, tem-se a pequena quantidade de artigos provenientes do Brasil nas bases de dados. Portanto, grande parte dos materiais trabalhados são internacionais – sendo majoritariamente estadunidense e inglês, refletindo em dados obtidos por amostragens destas respectivas nacionalidades. É imprescindível a elaboração de estudos mais recentes e aprofundados nos sub-temas possíveis de serem encontrados dentro do grande grupo de Transtorno do Espectro Autista em meninas e mulheres, especialmente os que englobam amostragem ampla e diversa principalmente em termos de: sexo, identidade de gênero, sexulidade, faixa etária, diferentes níveis de suporte, nacionalidades e culturas. Estas pesquisas são importantes para atualização de critérios diagnósticos, elaboração de ferramentas de rastreio e avaliação, e posteriormente para a formulação de terapêutica personalizada de acordo com as necessidades de cada indivíduo.
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1 Discente do Curso Superior de Medicina da Universidade Federal do Tocantins (UFT) Campus Palmas e-mail: dayramagalhaes@gmail.com
2 Docente do Curso Superior de Psicologia do Centro Universitário Maurício de Nassau (UNINASSAU), Campus Palmas. Especialista em Neuropsicologia e Psicologia Clínica. e-mail: quepsicologa@gmail.com