LAW AND OTHER MEDIA: LEGAL ASPECTS EXTRACTED FROM FICTION WORKS IN CINEMA, TELEVISION AND LITERATURE.
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102503021116
Jefferson Ortiz Matias[1]
RESUMO
Verificando a necessidade de inovar na educação jurídica e tomando por base o fato de que diversas obras estão disponíveis em outros veículos, e ainda de serem estes de amplo conhecimento do estudante de direito, a ideia da presente pesquisa foi a de extrair debates jurídicos a partir dos temas apresentados em nestas outras mídias. Assim, nesta pesquisa foi possível aproveitar os elementos acessíveis, tais como filmes, séries, livros e jogos, para que pudessem contribuir para a compreensão e continuidade do debate jurídico. A partir da exibição e análise destas obras em outras mídias, o direito foi debatido, analisado, projetado, comparado e propagado, em reuniões mensais, seguidas de mesas de discussão sobre o tema escolhido. Algumas destas discussões foram compiladas para este artigo. Para a obtenção desta compilação de ideias, reuniões periódicas foram marcadas, com a exibição de uma obra (filme, série, etc), e após esta, abria-se um painel de discussão dos aspectos jurídicos ali constatados, com a participação de alunos e professores. As principais ideias e discussões travadas nas reuniões foram compiladas para este artigo.
Palavras-chave: Direito – Séries – Filmes – Obras de ficção.
ABSTRACT
Checking the need to innovate in legal education and based on the fact that several works are available in other vehicles, and also that these are widely known by the law student, the idea of the present research was to extract legal debates from the themes presented in these other media. Thus, in this research it was possible to take advantage of accessible elements, such as movies, series, books and games, so that they could contribute to the understanding and continuity of the legal debate. From the exhibition and analysis of these works in other media, the legal aspects were debated, analyzed, projected, compared and propagated, in monthly meetings, followed by discussion tables on the chosen themes. Some of these discussions were compiled for this article. In order to obtain this compilation of ideas, periodic meetings were scheduled, with the exhibition of a work (film, series, etc), and after this, a discussion panel of the legal aspects found there was opened, with the participation of students and teachers. The main ideas and discussions from the meetings were compiled for this article.
Keywords: Law – Series – Films – Works of fiction.
- INTRODUÇÃO
A presente pesquisa é fruto das ideias surgidas após as reuniões do projeto “Direito e outras mídias”, no qual eram exibidos filmes, séries de TV, dentre outros, e onde professores e alunos do curso de Direito, e demais interessados, discutiam os temas jurídicos abordados, explicitamente ou não, nestes segmentos. O presente artigo reúne algumas destas discussões sobre algumas das obras exibidas.
A abordagem jurídica por meio de obras de ficção permite análises não convencionais e inovadoras, como algo que deve ser fomentado e amadurecido. Diálogos entre cinema, TV e Direito ampliam a abordagem do conhecimento jurídico para outras esferas não pura e meramente técnicas. O uso de tais abordagem (com potencial não limitado) pode ser utilizado como elemento do processo de ensino aprendizagem de forma otimizada e assertiva
Não é recente a discussão sobre a chamada “crise do ensino jurídico” e tais debates apontam para a necessidade de novas ferramentas de ensino que possam democratizar a compreensão do Direito e acompanhar as tendências tecnológicas e comportamentais contemporâneas.
A tecnologia apresenta e representa o acesso à temas diversos que não estão limitados geograficamente. A internet e as redes sociais colocam questões locais em perspectiva internacional. Diante disso observa-se que a problematização de questões contemporâneas e a chamada crise no Ensino Jurídico, as novas ferramentas digitais e novas tecnologias, a Globalização e o contexto global, tem exigido que os professores juristas procurassem novas formas de trabalhar temas atuais com potencial didático para alcançar diferentes vertentes da sociedade.
Uma preocupação recorrente nos debates sobre o ensino jurídico é a necessidade de se pensar novos mecanismos ou revisitar propostas já consolidadas com algum novo viés, de forma a potencializar a prática docente e alcançar melhores resultados. O objetivo desta pesquisa foi estudar sobre as questões jurídicas apresentadas em diversas mídias em obras atuais ou clássicas, tais como livros, peças de teatro, cinema, histórias em quadrinhos, músicas, séries de televisão, etc., no intuito de melhor compreender as regras e os princípios jurídicos a partir de seus estudos, resultando estes debates em produção científica para fins de publicação.
Verificando a necessidade de inovar na educação jurídica e tomando por base o fato de que diversas obras estão disponíveis em outros veículos, e ainda de serem estes de amplo conhecimento do estudante de direito, a ideia da presente pesquisa foi a de extrair debates jurídicos a partir dos temas apresentados em nestas outras mídias. Assim, nesta pesquisa foi possível aproveitar os elementos acessíveis, tais como filmes, séries, livros e jogos, para que pudessem contribuir para a compreensão e continuidade do debate jurídico. A partir da exibição e análise destas obras em outras mídias, o direito foi debatido, analisado, projetado, comparado e propagado, em reuniões mensais, seguidas de mesas de discussão sobre o tema escolhido. Algumas destas discussões foram compiladas para este artigo.
A metodologia utilizada para a obtenção desta compilação de ideias, reuniões periódicas foram marcadas, com a exibição de uma obra (filme, série, etc), e após esta, abria-se um painel de discussão dos aspectos jurídicos ali constatados, com a participação de alunos e professores. As principais ideias e discussões travadas nas reuniões foram compiladas para este artigo.
Este artigo está estruturado 4 capítulos distintos, incluindo esta introdução, onde são explicados os objetivos, problema de pesquisa e objetos do presente estudo. A segunda parte trata da análise individual das obras aqui expostas e seus respectivos temas jurídicos, quais sejam: BLADE RUNNER E O DIREITO À VIDA; DISTRITO 9: RACISMO E REFUGIADOS NA SOCIEDADE ATUAL; A SAGA STAR WARS E OS REGIMES DE ESTADO; GAME OF THRONES E A CULTURA DE ESTUPRO. Em seguida, temos as considerações finais do trabalho, com um resumo das principais ideias extraídas das discussões e, por fim, as referências utilizadas na elaboração deste artigo.
2. DIREITO E OUTRAS MÍDIAS
No presente trabalho, apresentaremos algumas ideias retiradas das discussões realizadas após a exibição de filmes e séries durante o projeto “Direito e outras mídias”, onde alunos e professores debateram sobre os aspectos jurídicos de obras de ficção e sua correlação com o panorama político, econômico e social da atualidade.
Neste texto abordaremos as discussões colhidas sobre quatro obras: BLADE RUNNER E O DIREITO À VIDA, DISTRITO 9: RACISMO E REFUGIADOS NA SOCIEDADE ATUAL, A SAGA STAR WARS E OS REGIMES DE ESTADO e GAME OF THRONES E A CULTURA DE ESTUPRO.
2.1 BLADE RUNNER E O DIREITO À VIDA
“Eu quero mais vida, pai!” (Roy Batty)
O primeiro caso desta análise jurídica em outras mídias está no filme “Blade Runner: o caçador de androides” (EUA, 1982). Nesta obra, adaptação de um conto de ficção científica de Phillip K. Dick, o filme mostra não só um debate sobre o direito à vida, mas uma súplica pelo direito de viver mais. Assim, o direito à vida, contraditoriamente, é limitado pela sua finitude, representada no caso dos replicantes (réplicas quase perfeitas de seres humanos): sua programação genética não permitia que vivessem mais do que quatro anos, justamente por serem mais fortes ou tão inteligentes do que seus programadores.
A trama foca nos replicantes revoltosos Nexus 6, os modelos mais avançados, que, ao saberem de sua “falha genética”, com a contagem regressiva da morte aberta, passaram a lutar ou a buscar uma forma de retardar o “envelhecimento precoce”, a finitude da vida. Em termos práticos, os replicantes desejavam obstruir o mecanismo que lhes provocava “falência múltipla dos órgãos”. Porém, à certa altura, Roy, o líder dos insurgentes, diz ao dono da empresa que os criou “Eu quero mais vida, pai!”.
Os replicantes deixam claro ao longo do filme que não se contentam com aquilo que seus programadores lhes deram, bem como não se contentam com a visão que o resto da humanidade tem de sua raça. Pris, a replicante companheira de Roy (“um modelo criado para a satisfação sexual de clubes militares), quando o principal engenheiro genético da Tyrell Corporation (empresa que criou os replicantes) J. F Sebastian disse que queria uma demonstração do que eram capazes, respondeu: “Eu penso, Sebastian, logo existo“. Ao que Roy reafirma: “Não somos computadores, Sebastian, somos seres vivos“.
A fim de fazer um contraponto sobre a fragilidade e efemeridade da vida, Sebastian vive isolado, e cria seus próprios (e únicos) amigos, ou seja, “brinquedos”, autômatos que ele mesmo fabicava, como hobby. Além disso, a grande ironia só se completaria levando-se em conta que Sebastian sofria da Síndrome de Matusalém, ou seja, “decrepitude precoce”. Assim, mesmo que sua condição humana seja inegável, Sebastian também vivia sob a ameaça do fim iminente de sua vida, colocando-o em perfeita sintonia com os anseios dos replicantes, seus novos amigos artificias.
O próprio criador dos replicantes, e dono da corporação que leva seu nome, Tyrell profetiza, ao seu abordado por Roy e Sebastian: “Os mais brilhantes são os que se apagam mais cedo“. Ao informar a Roy sobre a impossibilidade de reversão de sua condição de morte iminente, Tyrell definira a morte como “fatos da vida” e chamara Roy de “o filho pródigo“. Momentos depois, sua própria vida lhe era retirada pelas mãos de Roy, aquele que ele mesmo se referia como uma de suas maiores criações.
A sociedade retratada no filme, desde o primeiro momento, deixa claro que, naquele contexto, algumas vidas importam mais do que outras, fazendo com que a morte de seres vivos como os replicantes não seja encarada como impactante, mas sim como algo natural e aceitável. Na cena em que o detetive Deckard é recrutado de sua aposentadoria, não lhe é dada nenhuma alternativa: “Quem não é da polícia é gentalha“, lhe diz o capitão de polícia Bryant. Por sua vez, Bryant se referia aos replicantes como “bonecos” (Skin-jobs), o equivalente racista, nos EUA, ao se xingar “negros” de “crioulos”.
Em sua procura pelos replicantes fugitivos, o policial-caçador é informado de que existem replicantes que acreditam serem humanos, e que os mesmos possuem fotos de família bem como implantes de memória para ratificar essa crença, mesmo que os replicantes já “nascessem adultos”. Quando foi aplicar o teste na empresa, o próprio Tyrell lhe sugeriu que usasse a máquina em Rachael, uma replicante ainda não sabia o que era, mas desconfiava. Deckard pergunta a Tyrell: “Como alguém não sabe o que é?” Uma pergunta crucial, já que posteriormente a própria Rachael pergunta a Deckard se ele já havia aplicado o teste em si mesmo.
A própria natureza humana de Deckard é colocada em questão, a depender da versão a que se assista do filme. Na versão do diretor, lançada em 1992, o policial tem um sonho com unicórnio branco, a mesma figura deixada em seu apartamento (na forma de um origami) pelo policial Gaff, notório desafeto do protagonista. A “coincidência” serve como um indicativo de que Deckard também é um replicante que não tem noção de sua verdadeira natureza e, por isso, não anseia revoltar-se contra o sistema por mais tempo de vida. A condição de Deckard, no entanto, aparenta ser de pleno conhecimento dos policiais que o recrutaram de volta de sua aposentadoria (que sequer sabemos se realmente existiu).
Após o confronto físico de Roy e Deckard, o replicante fugitivo depara-se com sua inevitável natureza e se dá conta de que tem poucos minutos de vida, independentemente do resultado final da luta. Assim, diante de seu oponente e algoz, Roy lhe diz: “Viver com medo é uma experiência e tanto, não é? É o mesmo que ser escravo. (…) Vi coisas nas quais vocês nunca acreditariam. Vi a luz do farol cintilar no escuro no portal de Tannhüser. Todos esses tormentos se perderam no tempo como lágrimas na chuva. HORA DE MORRER” (grifou-se).
Mais importante ainda do que o discurso final de Roy, são as questões deixadas para Deckard após a sua morte. Afinal, mesmo tendo vencido o confronto com seu caçador, optou por salvar-lhe a vida, ainda que não pudesse salvar a sua própria. Deckard percebeu o gesto humanista do androide, divagando para si mesmo: “Eu não sei porque ele salvou a minha vida. Talvez naqueles momentos finais ele amou a vida mais do que nunca. Não apenas a vida dele, a vida de qualquer um. A minha vida.”
Perdido nessas reflexões, Deckard chega à conclusão de que aquele replicante, ao lutar tão desesperadamente pelo seu direito à vida, tornou-se tão humano quanto qualquer outro, e se deparou com as mesmas questões cruciais da humanidade, mesmo que tenha partido antes de poder respondê-las: “Tudo que ele queria era o mesmo que o resto de nós quer. De onde venho? Para onde vou? Quanto tempo eu tenho? E tudo que eu pude fazer era sentar ali e vê-lo morrer.”
No art. 5º, caput, da Constituição Federal consta: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se (…) a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…).
Na visão de Herkenhoff (2011), o direito à vida é o direito mais primordial direito humano, e que deve ser concedido diante de sua dimensão que abrange o direito de nascer, o direito de permanecer vivo, o direito de alcançar uma duração de vida comparável com os demais cidadãos, e o direito de não ser privado da vida por meio de pena de morte.
Os replicantes no filme não estão defendendo apenas seu direito de estarem vivos, mas, mais profundamente, o direito de não morrerem precocemente, em comparação aos demais seres humanos. É, sobretudo, uma luta pelo direito de igualdade.
Aliás, a súplica dos replicantes encaixa-se perfeitamente com os anseios do cidadão para com os deveres estatais. No entendimento de Alexandre de Morais (2015), o Estado deverá assegurar o direito à vida considerando primeiramente o direito de permanecer vivo, e também, o direito a ter uma vida digna, promovendo sua subsistência. Ou seja, é dever do Estado não só manter o cidadão vivo como assegurar que o mesmo tenha condições dignas de vida, exatamente o que buscavam os replicantes fugitivos.
Ao final, percebe-se ao longo do filme, uma inversão de papéis, de androides em humanos e da caça em caçador. Os replicantes morreram para provar sua luta por reconhecimento, neste caso, pelo reconhecimento do direito à vida.
Na expressão de um dos mais influentes filósofos e militantes da Teoria Crítica dos Direitos Humanos, Joaquin Herrera Flores afirma que o problema não é de como um direito se transforma em direito humano, mas sim como um “direito humano” consegue se transformar em direito, ou seja, como consegue obter a garantia jurídica para sua melhor implantação e efetividade (FLORES, 2009).
Logo, é visível a questão ética e/ou jurídica, ou seja, jurídica porque envolve um Estado, direitos, deveres e envolve a lei, óbvio que há uma questão política e econômica no filme que é a justiça ou a injustiça autoritária, que gerou a revolta dos androides e a “legitimidade” da polícia em eliminá-los ou “aposentá-los”. O que nos faz humanos? O que faz dos replicantes menos humanos? O que é a dignidade da pessoa humana redigida no III inciso do Art.1º da Constituição Federal? Quem pode reclamar o direito à vida? Os animais têm direitos humanos? Todos os seres humanos têm direitos humanos? Desde quando? Desde a concepção ou o aborto é uma possibilidade? Podemos praticar a eugenia (selecionar o sexo dos nossos filhos, a cor dos olhos, a inteligência) ou não? Podemos manipulá-los geneticamente? Podemos manipular células tronco embrionárias? Podemos pegar esses embriões congelados e descartar/jogar no lixo? Ou esses embriões congelados já são pessoas? Um embrião humano/feto humano é uma pessoa?
Estas não são simplesmente questões bioéticas, nem tampouco questões futurísticas a serem resolvidas pelas próximas gerações, mas sim questões jurídicas revestidas de cunho bem atual, e que devem ser amplamente discutidas nos dias de hoje.
2.2 DISTRITO 9: RACISMO E REFUGIADOS NA SOCIEDADE ATUAL.
“Havia muita pressão internacional sobre nós… o mundo estava olhado para Joanesburgo. Tínhamos que fazer a coisa certa.” (MNU – Multinacional Unida)
A segunda análise jurídica versa sobre outro filme de ficção científica, mas que não se passa em um momento futuro, e sim na atualidade. Distrito 9 narra a situação de um grupo de alienígenas cuja espaçonave fica “encalhada” sobre a terra e, após serem “resgatados” de seu interior, seus integrantes, se vêem obrigados a aceitar a “ajuda humanitária” terrestre.
Chegando na Terra, a humanidade acaba segregando os alienígenas em um grande gueto na África do Sul, comandado por grupos de traficantes (casualmente também estrangeiro). No desenrolar da história, 20 anos depois de sua chegada, novos assentamentos são criados para remoção desses alienígenas para local mais distante.
Com a desculpa de transferir os indesejados alienígenas para acomodações melhores, o Governo da África do Sul Estado em questão monta uma grande operação, com forte apoio policial, para remover “espontaneamente” os habitantes do gueto. Na verdade, as reais intenções dessa remoção é de simplesmente afastar os indesejados de sua maior cidade, onde já se tornaram um incômodo, bem como se apropriar de sua tecnologia.
Ao longo dos 20 anos vivendo no gueto, os alienígenas, encontram-se totalmente alienados, à mercê das ordens e das migalhas que recebem dos humanos. Além disso, ao que tudo indica, esses alienígenas não possuem direitos, uma vez que são os outros, os diferentes (os estrangeiros, os outsiders, os imigrantes), que vivem em condições bem abaixo da linha da dignidade.
Muito embora seja categorizado como um título de ficção científica, este filme trata de assuntos reais e atuais de nossa sociedade. Pode-se facilmente substituir os alienígenas por imigrantes ilegais (estrangeiros, os outros, os indesejados) que possuem algum tipo de riqueza que desperta o interesse geral e que não conseguem, ou não lhe são permitidos, explorar.
Esta condição marginal pode perfeitamente se adequar a outras igualmente contemporâneas, tais como usuários de drogas que ocupam áreas urbanas e no sistema carcerário, utilizado para higienização social e visual, prevalecendo o modo de vida dos mais abastados nos centros urbanos.
Ao retratar a realidade como se fosse ficção científica, Distrito 9 pinta um quadro tristemente real e assustador da nossa sociedade, no qual o sistema penal tem lugar privilegiado na determinação de nossa política microeconômica.
Na lição de Arisa Ribas Cardoso e Danielle Annoni (2015, p.152-153), a questão da migração de populações em todo o mundo “existem desde os primórdios da história da humanidade”, mas a atenção para os fluxos de refugiados surgiu especialmente nos últimos séculos. A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados foi concluída e assinada em 1951, porém, ainda hoje se faz necessário a compreensão de quem pode ser reconhecido como refugiado. No Brasil, nos termos da Lei 9.474, de 22 de julho de 1997, será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: devido a fundados temores já destacados encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país. Também inclui que será aquele que não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior. Por fim, também se considera aquele que devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.
Não bastassem as mazelas de mudar-se para uma terra estrangeira, o refugiado ainda é alvo de preconceitos e discriminações de diversas naturezas, como discriminação linguística, cultural, negação, até atitudes de hostilidade e violência. No filme, o processo de desocupação dos alienígenas é marcado por atos de violência, tais como destruição dos ninhos alienígenas que contêm “ovos” em processo de gestação, assim como fraudes ao se forjarem assinaturas de concordâncias por parte dos alienígenas, bem como confisco de bens.
O filme mergulha em uma inversão de papeis, centrada no protagonista, Wikus, que subitamente se vê em processo de transformação de humano em alienígena (chamados aqui de “camarões”, pelos humanos), sentindo na pele as violências sofridas pelos alienígenas refugiados e eventualmente eles mesmo indo se refugiar nos distritos alienígenas.
A ironia é a de que Wikus, trabalhando para a MNU – Multinacional Unida (uma clara alusão à ONU), era um dos funcionários responsáveis pela remoção dos alienígenas e, de repente, passa a ser vítima das mesmas perseguições sofridas por eles. Observa-se como a experiência de se colocar (literalmente) no lugar do outro promove transformações entre ambos, especialmente em Wikus, que passa a ter que trabalhar em conjunto com os alienígenas para tentar reverter sua situação.
O filme representa a literalidade do exercício de se colocar no lugar no outro, vivenciando os problemas, preconceitos, estigmas e a negação de garantias, ao transformar Wikus em um alienígena, sofrendo também as mazelas vividas pelos “aliens”, que aqui representam a realidade de muitos grupos de refugiados.
É possível identificar no filme a crítica aos discursos demagógicos de entidades internacionais quando questionadas sobre a situação dos refugiados. Representantes do governo chegam a dar explicações sobre a remoção dos alienígenas dizendo: “Havia muita pressão internacional sobre nós… o mundo estava olhado para Joanesburgo. Tínhamos que fazer a coisa certa”.
Discursos de ódio, armas (potencialmente) gera violência, segregação (espaços para humanos). Os alienígenas passam a se tornar um inimigo comum. Virus seletivo. Expulsão. Não humanidade. “Direito penal do inimigo”. Observa-se que o “Distrito 9 então acaba por virar uma caótica sociedade e foco de uma agressiva criminalidade, que pode fazer estourar uma guerra civil entre a população, criminosos e alienígenas. Uma referência clara ao apartheid” (PEREZ, 2009). Curiosamente, se passando a trama no mesmo país o de a expressão teve origem.
Ainda sobre a Convenção dos Refugiados, adotada em 1951, uma característica importante foi a restrição ao poder Estatal na questão da expulsão de estrangeiros. Seu artigo 33 é carregado da influência dos direitos humanos, ao proibir a expulsão ou o “trazer à força” um refugiado para um local em que ele possa sofrer ameaças seja por raça, religião, nacionalidade, grupo, opinião ou outro fator qualquer.
Assim, sem condições mínimas de Direitos Humanos, os alienígenas são vistos (e passam a agir como) criaturas violentas e animalescas. Como aplicar os Direitos Humanos para não humanos que agem sem humanidade aparente? A discussão dos refugiados flerta com essas reflexões visto que os refugiados encontrados em situações precárias aparentemente perdem seus traços de humanidade (ainda que na essência nunca deixaram de sê-lo). Assim, metaforicamente, o “processo de imigração, especialmente de imigrantes considerados de ‘raças’ diferentes, e que ainda são vistos com o mesmo racismo imperialista e colonialista” e, simbolicamente “nesse contexto (…) desenvolve a xenofobia na forma como a vulgarizamos hoje, ou seja, o medo dos estrangeiros” (LEITE, 2010).
Não é necessária a aplicação dos direitos humanos a todos os indivíduos conscientes? Não é absurdo observar a negação da humanidade para o outro apenas pela sua diferença física, cultural e linguística. É irônico mesmo pensar que a realidade apresenta situações de negação de direitos humanos para humanos ao mesmo tempo que existem processos de luta por ampliação dos direitos humanos para os animais não humanos (animais sencientes). Afinal, é mais fácil a descaracterização da humanidade, a fim de justificar a falta de empatia e do respeito aos direitos humanos, do que efetivamente lutar para que esses direitos sejam cada vez mais abrangentes.
2.3 A SAGA STAR WARS E OS REGIMES DE ESTADO
“Então, é assim que a liberdade morre…com estrondosos aplausos” (Padmé Amidala).
A terceira análise será da Saga Star Wars. Mais precisamente na mudança de regime, que transformou uma democracia em um império totalitário e suas profundas ligações com os regimes adotados em nosso planeta, bem como o desrespeito aos direitos individuais.
A saga interplanetária Star Wars encaixa-se perfeitamente no imaginário dos movimentos sociais atuais, na medida em que enfatiza a necessidade de rebelião, ou pelo menos, o potencial rebelde. Segundo seu criador George Lucas, “Só a ameaça de rebelião impede que muitos no poder façam certas coisas inomináveis”.
Encontramos a galáxia (muito distante) em um momento político crucial. A república vigora há milhares de anos e o regime democrático é preponderante na maioria de seus planetas. Contudo, há uma conspiração para derrubar o sistema vigente e implantar um outro mais centralizador, totalitário e erguido à base do medo.
Assim, Star Wars aponta para a política o problema da concentração do governo em uma única pessoa. A República Galáctica, desmilitarizada, era um sistema federal, em que as unidades da Federação possuíam ampla autonomia interna – talvez um pouco como a primeira Constituição dos Estados Unidos no século XVIII ou como a Confederação Argentina do século XIX antes do fortalecimento de Buenos Aires –, cada qual com sua forma própria de governo.
No nível federal, o sistema de governo era o parlamentarismo, com o primeiro-ministro, chamado chanceler supremo, sendo escolhido pelos membros do Senado Galáctico, onde se concentrava o Legislativo, com representantes de todos os sistemas planetários. Os senadores representavam os entes federativos, tal como no Brasil ou nos Estados Unidos. Cada parlamentar poderia contar com assessores e conselheiros, que teriam direito a voz, mas não a voto. As sessões na Casa eram presididas pelo vice-chanceler, que organizava as votações e dava a palavra aos parlamentares, além de trabalhar proximamente do chanceler supremo na definição da agenda legislativa.
A Federação do Comércio (que nesta galáxia tinha até representação no Senado, dada sua influência econômica) reagiu a mudanças na legislação da tributação de certas rotas comerciais, prejudiciais a seus interesses e, com isso, realizou um bloqueio de naves de guerra para interromper todos os carregamentos para o planeta Naboo. A intenção era pressionar o Senado, uma vez que o bloqueio, embora problemático não era ilegal.
Pressões, negociações e lobbys são processos comuns no parlamentarismo, sistema de governo em que a destituição do chefe de governo independe de qualquer malfeito, bastando ser o desejo da maioria parlamentar, o que é muito diferente do impeachment no presidencialismo. Assim, a formação do novo governo, ocorre no parlamentarismo por meio da negociação entre as bancadas partidárias para a formação de uma coalizão que tenha a confiança da maioria dos representantes. Assim ocorreu na República Galáctica, por meio de votação individual pelos pares, a partir de um voto de desconfiança contra o Chanceler, que foi destituído.
O Senador eleito para assumir as funções foi o representante de Naboo, justamente o planeta que originara a discussão e que agora estava sendo ilegalmente invadido pela Federação do Comércio. Depois de eleito, o agora Chanceler Palpatine dispôs de mais de uma década de popularidade no Senado, mantendo seu cargo inabalável por todo este período, tal qual os Primeiros-Ministros do Parlamentarismo moderno.
Posteriormente, Palpatine precisou lidar com movimentos separatistas que eclodiam em diversos recantos da Galáxia e que estavam na iminência de se tornar uma guerra efetiva, caso medidas drásticas não fossem tomadas. A solução para enfrentar a crise residia na ampliação pelo Senado dos poderes executivos do chanceler supremo, delegando a ele poder de emergência para que pudesse aprovar a criação de um exército. A proposta de ampliação de poderes ao Chanceler foi discutida, porém, muitos consideravam que o Senado só poderia aprovar o uso de tal força militar caso o exército separatista atacasse. Palpatine conseguiu que o suplente de Amidala na cadeira de Naboo, Jar Jar Binks, fizesse a proposta, em sessão do Senado.
Ovacionado pela maioria, o chanceler supremo abraçava o Poder quase ilimitado com um discurso conciliador, típico dos ditadores: “É com grande relutância que concordei com este chamado. Eu amo a democracia, eu amo a República. O poder que vocês me deram eu deixarei assim que a crise tiver sido debelada.”
Já em seu primeiro ato com essa nova autoridade, Palpatine criou o Grande Exército da República, “para conter as crescentes ameaças dos separatistas”, em clara alusão ao ocorrido na Alemanha em 1933, quando o parlamento (Reichstag) aprovou democraticamente a Lei Habilitante, que concedia plenos poderes ao chanceler Adolf Hitler, delegando a ele o poder de legislar sem precisar de aprovação parlamentar.
A guerra, porém, era inevitável e o Senado Galáctico pediria a Palpatine que permanecesse no cargo depois de expirado o seu mandato, durante toda a extensão do conflito que ficou conhecido como Guerras Clônicas.
Após o fim do conflito, o Alto Conselho Jedi entendeu que, dado o fim da guerra, Palpatine deveria abdicar de seus poderes. Um de seus membros, Ki-Adi-Mundi, considerava que, caso ele não fizesse isso pacificamente, deveria ser “destituído” do cargo. Mace Windu, que havia sido escolhido por seus pares como o Mestre (líder) do Alto Conselho Jedi, considerou que os Jedi deveriam “assumir” o Senado para “assegurar uma transição pacífica”.
Ao provar aos seus pares que sofrera um atentado à sua vida pelas mãos do Alto Conselho Jedi, Palpatine, dispondo de ampla simpatia e popularidade, dissolveu o Conselho e decidiu transformar a Galáxia em um Império, tendo a si mesmo como Imperador Galáctico, tudo em nome da segurança da população.
O relato da perda da liberdade que ficou consagrado na fala de Padmé Amidala, em A Vingança dos Sith, encaixa-se com perfeição: “Então é assim que a liberdade morre…com estrondosos aplausos”.
A exemplo de outros regimes autoritários, como a ditadura que vigorou no Brasil após o golpe civil-militar de 1964, o Império Galáctico manteve algum arcabouço legal, inclusive o funcionamento do Senado, rebatizado como Senado Imperial. A casa legislativa funcionava, por exemplo, rejeitando agressões contra missões diplomáticas e humanitárias. Palpatine, agora chamado Imperador, seguiu a escalada militarista, investindo pesadamente na indústria bélica, tendo construído secretamente uma gigantesca estação espacial blindada. A similaridade com as políticas adotadas pelas repúblicas militares entre os anos 60 e 80 não é mera coincidência.
Com o fim da Ordem Jedi, a religião deixou de fazer parte da ideologia que legitimava o Império, tal como ocorria na extinta república. Ou seja, paralelamente ao horror da cassação de direitos civis e políticos, ocorreu também a efetivação de um Estado laico, a separação entre Estado e religião.
Um dos pilares no novo regime imperial, Darth Vader, antes conhecido com Anakin Skywalker, outrora membro do Conselho Jedi e herói das Guerras Clônicas, já compactuava das ideias de Palpatine, a quem considerava um mentor.
É fácil verificar esta tendência na afirmação de Anakin em resposta a Padmé Amidala: ”Nós precisamos de um sistema em que os políticos possam se sentar e discutir o problema, e concordem sobre o que é do interesse do povo em geral, para então atuar.”, quando então Padmé lhe pergunta: “E se eles não o fizerem?”, ao que Anakin responde: ”Então eles devem ser forçados a fazê-lo”.
Mil anos de estabilidade democrática na Galáxia, portanto, foram trocados, em vez do seu aperfeiçoamento, com maior participação e menor poder do capital, por uma solução autoritária e centralizadora, derivada da criminalização da política, da despolitização em nome de uma cruzada contra a corrupção, e do desprezo pelo debate democrático, visto como um elevado custo de transação.
O Império galáctico não conseguiu sobreviver a mais de duas décadas, um tempo médio para a maioria das ditaduras do século XX neste planeta. Em Star Wars, a solução não levou ao fim da corrupção ou à melhoria da sociedade, mas a duas décadas de instabilidade, rupturas democráticas, perda de direitos, repressão política, bem como a criação de um levante rebelde, que, ao fim, conseguiu suplantar as forças imperiais.
A revolução ou golpe que efetivou a tomada ao poder encerra-se em um ciclo. Toda tomada abrupta de poder leva a uma ruptura com a sociedade, que reage à altura, mesmo levando décadas para tal, gerando conflitos e instabilidades e sendo responsável, assim como nos ensina a Ciência Política e a Teoria geral do Estado, pela transformação e pela formação dos estados atuais. O conflito gera mudanças, cria regimes, derruba impérios e pode garantir ou suprimir direitos individuais, a depender de como agirão seus vencedores, seja aqui ou em uma galáxia muito, muito distante.
2.4 GAME OF THRONES E A CULTURA DE ESTUPRO
A Quarta análise jurídica será centrada na série televisiva Game of Thrones, onde um mundo fictício é retratado com ambiente semelhante ao período medieval e onde a trama central reside nas constantes disputas de poder entre os líderes de uma sociedade violenta e decadente.
Neste contexto, o papel da mulher é quase sempre diminuído à subserviência marital ou mesmo eterna vítima de abusos físicos e sexuais por parte da sociedade patriarcal. Aqui, vamos estudar os aspectos à cultura de estupro retratada na série e do papel das personagens femininas na trama.
Destacamos três personagens e seus respectivos episódios de estupro na série.
No primeiro episódio de “Game of Thrones” já somos expostos a uma cena de violência sexual: as núpcias de Daenerys e Khal Drogo. A Targaryen chora, enquanto Drogo a despe e a posiciona de quatro repetindo a palavra “não”. Lembro-me de ter assistido a cena com um grande desconforto. Há no episódio uma breve explicação de como a violência sexual faz parte da cultura do povo Dothraki, fazendo com que a personagem e o público se preparem para o que estava por vir.
Outro momento foi durante o velório de Joffrey Baratheon em que sua mãe, Cersei Lannister, foi violentada por seu irmão e amante. Apesar de dizer que não queria ter relações com ele diante do corpo do filho morto e ressaltar ser um momento de dor (para ambos), Jaime a ignorou e fez o que desejava.
Em seguida, a personagem de Sansa Stark que, após resistir na Corte de Porto Real, aos Lannisters, fugir para o Vale, ser entregue aos Bolton em Winterfell, casou-se e foi violentada em suas núpcias pelo esposo.
A violência sexual contra Sansa foi nas mãos do sádico Ramsay Snow, já rebatizado como Ramsey Bolton. Obrigada a se casar com ele, Sansa foi estuprada em um contexto que, ao mesmo tempo em que horrorizava o público, retratava o fato com algo natural para a trama, correndo o risco de transmitir, assim, a ideia de que o estupro não é algo condenável.
Notadamente, a utilização do estupro na série não se trata de mera liberalidade dos autores (do livro e da série) como exemplo de inferioridade feminina. Ao contrário, as personagens estupradas assumem posteriormente uma atitude mais madura e forte, com nítido empoderamento a partir da terrível experiência. Mesmo Cersei, sendo a mais experiente das três, mostra uma mudança de comportamento quanto ao irmão após o ocorrido, o que a levaria a uma série de escolhas importantes no futuro. As outras duas, ambas adolescentes, fizeram dos eventos a base para construir sua fortaleza posterior e traçar seu próprio caminho rumo à vingança, cada uma a seu modo, porém todos de maneira extremamente violenta. Apenas a vingança de Sansa foi contra seu estuprador efetivo.
Os autores, então construíram um mito, ou uma justificativa, questionável de que se a personagem não tivesse sofrido o que sofreu, teria continuado sem se desenvolver. Ou seja, como se o estupro fosse a razão do amadurecimento e fonte de poder de uma mulher. Essa justificativa pode até atender às pretensões narrativas da série, porém deve ser tratada com muito cuidado, no que se refere a algo necessário e positivo para o desenvolvimento de uma personagem.
Nos livros que deram origem à adaptação televisiva, nos capítulos de ponto de vista de Arya, os quais possibilitam ter noção de como a guerra afeta o povo em Westeros, há menções do tratamento dado pelos soldados a mulheres consideradas agradáveis aos olhos. Sem mencionar que a própria Arya precisou se disfarçar de menono para que também não sofresse abusos.
Voltando a Sansa Stark, há uma reviravolta na construção da personagem, que lutou por sua sobrevivência na corte, chegou a pedir para ser morta, e que depois foi acometida de uma fome de vingança. O ápice do “empoderamento” dado a Sansa, depois da violência sofrida, foi a morte de Ramsay. Completando o eterno ciclo da violência.
Não há na série qualquer menção a pessoas respondendo pelo crime de estupro, um sinal de que o Direito Penal vigente em Westeros não direcionava sua atenção para este tipo de crime, mantendo a figura feminina como a mais vulnerável, inclusive em termos de igualdade de direitos.
Aparentemente, este empoderamento dado às três mulheres após a violência sofrida resulta na máxima de que violência e poder são elos da mesma corrente. As três se tornaram as personagens mais poderosas de Westeros. Porém, a pergunta é: seria o estupro sofrido absolutamente necessário para o desenvolvimento das personagens? O empoderamento dado pelos autores só foi possível graças a trauma sofrido?
O fato de que o empoderamento foi agregado à série por meio de um evento traumático de estupro só reforça que o ato criminoso foi utilizado não por ser o único, mas por ser o mais atrativo à narrativa da série, o que faz constatar a presença inegável de uma cultura de estupro no desenvolvimento do programa.
- CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cinema e a TV, assim como a literatura, jogos e música, oferecem grande capital que, se bem utilizados, podem potencializar os debates jurídicos garantindo uma melhor compreensão do alunado sobre os temas propostos. Muitas situações fáticas e fictícias podem ser utilizadas em uma película para reflexão do Direito. Esse potencial é identificável em uma perspectiva real ou mesmo para um Direito hipotético, por exemplo, o exercício imaginativo e filosófico de se pensar Direitos Humanos aplicados para alienígenas apenas vagamente humanoides.
Das obras aqui apresentadas e discutidas, várias lições, sejam elas jurídicas ou não, podem ser tiradas.
Das reivindicações das replicantes em Blade Runner, onde pugnavam pelo seu direito de viver mais do que seus programadores previam. Mesmo os modelos mais avançados não conseguiam fugir de seu destino, e, ao saberem de sua “falha genética”, com a contagem regressiva da morte aberta, passaram a lutar ou a buscar uma forma de retardar o “envelhecimento precoce”, a finitude da vida. O clamor pelo direito à vida era claro quando, à certa altura, Roy, o líder dos insurgentes, diz ao dono da empresa que os criou “Eu quero mais vida, pai!”.
Os replicantes não se contentavam com o tempo que lhes foi dado e nem com a visão que o resto da humanidade tinha de sua raça. “Eu penso, Sebastian, logo existo“, diria Pris. “Não somos computadores, Sebastian, somos seres vivos“, diria Roy.
O detetive Deckard percebeu o gesto humanista do androide, divagando para si mesmo: “Eu não sei porque ele salvou a minha vida. Talvez naqueles momentos finais ele amou a vida mais do que nunca. Não apenas a vida dele, a vida de qualquer um. A minha vida.”
O direito à vida é o direito mais primordial direito humano, e que deve ser concedido diante de sua dimensão que abrange o direito de nascer, o direito de permanecer vivo, o direito de alcançar uma duração de vida comparável com os demais cidadãos, e o direito de não ser privado da vida por meio de pena de morte. Assim, Os replicantes no filme não estão defendendo apenas seu direito de estarem vivos, mas, mais profundamente, o direito de não morrerem precocemente, em comparação aos demais seres humanos. É, sobretudo, uma luta pelo direito de igualdade.
Já em Distrito 9, ao retratar a realidade como se fosse ficção científica, o filme pinta um quadro tristemente real e assustador da nossa sociedade, no qual o sistema penal tem lugar privilegiado na determinação de nossa política microeconômica, chamando a atenção para os fluxos de refugiados e os recorrentes casos de racismos dele decorrentes. Uma referência clara ao apartheid.
O filme mostra que é mais fácil a descaracterização da humanidade, a fim de justificar a falta de empatia e do respeito aos direitos humanos, do que efetivamente lutar para que esses direitos sejam cada vez mais abrangentes.
Já na mudança de regime de governo na Saga Star Wars, o chanceler supremo abraçava o Poder quase ilimitado dado a ele pelo Senado com um discurso conciliador, típico dos ditadores. Porém, já em seu primeiro ato com essa nova autoridade, Palpatine criou o Grande Exército da República, “para conter as crescentes ameaças dos separatistas”, em clara alusão ao ocorrido na Alemanha em 1933, quando o parlamento (Reichstag) aprovou democraticamente a Lei Habilitante, que concedia plenos poderes ao chanceler Adolf Hitler, delegando a ele o poder de legislar sem precisar de aprovação parlamentar.
Tudo isso era a preparação para o golpe que se avivava. E assim que ele efetivamente aconteceu, não houve qualquer sinal de resistência, no relato da própria Senadora Amidala: “Então é assim que a liberdade morre…com estrondosos aplausos”.
A revolução ou golpe que efetivou a tomada ao poder encerra-se em um ciclo. Toda tomada abrupta de poder leva a uma ruptura com a sociedade, que reage à altura, mesmo levando décadas para tal, gerando conflitos e instabilidades e sendo responsável, assim como nos ensina a Ciência Política e a Teoria geral do Estado, pela transformação e pela formação dos estados atuais. O conflito gera mudanças, cria regimes, derruba impérios e pode garantir ou suprimir direitos individuais, a depender de como agirão seus vencedores, seja aqui ou em uma galáxia muito, muito distante.
Na série Game of Thrones, o papel da mulher é quase sempre diminuído à subserviência marital ou mesmo eterna vítima de abusos físicos e sexuais por parte da sociedade patriarcal.
As personagens femininas foram estupradas em um contexto que, ao mesmo tempo em que horrorizava o público, retratava o fato com algo natural para a trama, correndo o risco de transmitir, assim, a ideia de que o estupro não é algo condenável.
Notadamente, a utilização do estupro na série não se trata de mera liberalidade dos autores (do livro e da série) como exemplo de inferioridade feminina. Ao contrário, as personagens estupradas assumem posteriormente uma atitude mais madura e forte, com nítido empoderamento a partir da terrível experiência.
Aparentemente, este empoderamento dado às três mulheres após a violência sofrida resulta na máxima de que violência e poder são elos da mesma corrente. As três se tornaram as personagens mais poderosas de Westeros. Porém, a pergunta é: seria o estupro sofrido absolutamente necessário para o desenvolvimento das personagens? O empoderamento dado pelos autores só foi possível graças a trauma sofrido?
O fato de que o empoderamento foi agregado à série por meio de um evento traumático de estupro só reforça que o ato criminoso foi utilizado não por ser o único, mas por ser o mais atrativo à narrativa da série, o que faz constatar a presença inegável de uma cultura de estupro no desenvolvimento do programa.
Da experiência geral deste projeto, que resultou no presente artigo, percebe-se que a democratização dos debates jurídicos, e a facilidade com que o cinema e a TV alcançam todas as classes sociais, permite fazer com que as reflexões acadêmicas possam ser traduzidas em linguagem acessível (bem como imagens) possibilitando que a didática jurídica possa ser aplicada com pessoas que estão em pleno desenvolvimento do aprendizado das ciências jurídicas.
4. REFERÊNCIAS
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– STAR WARS – EPISÓDIO IIII: a vingança dos sith. Roteiro de George Lucas. Lucasfilm: 20th Century Fox, 2005. (140 min.). son., color. Legendado. Português.
[1] Doutor em Ciências pela USP/FEA, Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA, Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, Professor da Pós-graduação (especialização) em Direito Público da UEA, integrante do programa de doutorado em Direito Civil pela Universidade Federal de Buenos Aires (ARG), Agente Técnico Jurídico no Ministério Público do Estado do Amazonas, com Graduação em Direito pela Universidade Federal do Amazonas, onde também fez especialização na área de Direito Processual Civil.