DESVENDANDO O PASSADO: FOTOGRAFIA COMO PORTAL PARA A MEMÓRIA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202507130824


Guido Elias


RESUMO

Este artigo discute a relação entre fotografia e memória, explorando a preservação de lembranças por meio da captura de momentos. Examina a subjetividade da memória em contraste com a objetividade da imagem fotográfica, destacando sua capacidade de resgatar o passado e criar conexões emocionais com eventos distantes. Analisa, por meio de exemplos de fotografias pessoais, como a subjetividade das lembranças pode gerar estranheza diante de representações visuais. Finalmente, conclui com uma reflexão poética sobre a flexibilidade do tempo diante da fotografia e da memória, permitindo reviver o passado em breves instantes.

Palavras-chave: Fotografia, Memória, Subjetividade, Passado, Tempo, Lembranças.

Introdução:

As relações possíveis entre a fotografia e a memória (lembrança) estão postas desde antes até do surgimento da primeira, quando pensamos em sua utilização que por muito tempo foi a mais usual da técnica: o retrato. Isso porque desde os primórdios da arte, em especial da pintura, o retrato já se valia da função de fixação de um pessoa, seja essa um faraó, um nobre ou um burguês. 

Nesse sentido, a fotografia, a partir de sua popularização, tornou-se um elemento indispensável (a câmera) em muitas casas. Como reflete Susan Sontag (2004) “cada família constrói uma crônica visual de si mesma” a partir das inúmeras imagens geradas, muitas vezes sem muita precedência, apenas com o intuito de congelar determinado momento. 

Então me ponho a pensar na casa da minha tia avó,com estantes cheias de porta retratos, como janelas ou coleções de momentos ímpares, que de alguma forma contém o punctum necessário para estar ali de modo solene, com alguma moldura específica ou mesmo rodeada de adornos que podem ou não lhes render um algo a mais. Ou mesmo nos álbuns de família, esses menos cerimoniosos para a escolha de qual imagem estará lá, mas de certa forma, com um poder indiscutível de promover uma viagem temporal, ou uma conversa mais histórica quando visto por mais de um pessoa ao mesmo tempo.

Mas diante do fato que vivemos em um mundo rodeado de imagens, o tempo todo, quase exaustivamente, ainda é possível resgatar a partir de fotografias, momentos passados e quistos a serem guardados de alguma forma da invariável dissipação do tempo? 

Desenvolvimento:

Esta seria não apenas uma possibilidade mas sim a intenção maior quando se pensa no ato de fotografar, mesmo atualmente, quando pensamos na fotografia digital, amplamente difundida. Afinal qualquer smartphone, nesses anos 20 do século XXI possui uma câmera. Mas em contraste com o mais antigo dos atos de retratar, na atualidade essa ação não está mais ligada apenas às classes dominantes, a quem o retrato sempre foi muito caro, por expressar toda sua distinção das classes populares. 

Diante disso, a memória imagética se populariza e toma novos rumos, abarcando agora uma maior quantidade de grupos sociais, mas iniciaremos pelo conceito de memória e sua relação com a fotografia.

A memória, no sentido de lembrança segundo Eugenia Vilela está associada a um fato ocorrido no passado e recordado a partir da memória, tomando isso como ponto de partida, a ação de rememorar é algo que tenta recriar o passado sem poder jamais atingir a perfeição do momento recordado, isso porque, ainda segundo Vilela, a memória ou lembrança recria com elementos subjetivos o fato ocorrido. 

Por outro lado, na fotografia, a partir do quadro escolhido, tudo está lá, considerando ela, uma imagem indicial (BAZIN, 1991), sem adentrarmos nas imagens alteradas, seja analogicamente, seja digitalmente. Se considerarmos a fotografia, ontologicamente, poderemos acreditar, citando Roland Barthes, que “nela o acontecimento nunca se transforma noutra coisa”, atrelando a ela então a “mágica” de congelar o tempo. 

Retorno então à estante, nela encontro de forma pontual uma fotografia que sempre me saltou, como se por um instante só existisse ela, e todo o resto fosse apenas madeira e vazio. Nessa imagem vejo meu pai criança, talvez a única pessoa que reconheci inicialmente, rodeado de adultos e outras crianças, mas o que me chama atenção inicial é seu tom rosado, mesmo que monocromático, a predominância do rosa, sabe-se lá por qual motivo, se escolhido ou ocasional, me capta de forma quase selvagem. 

Nessa fotografia, a qual inicialmente reconheço meu pai, com o tempo a partir de histórias contadas, se desvela uma constelação de pessoas e significados particulares para cada um que fora congelado nessa imagem. Nela está também meu bisavô, meu tio avô e minha tia, criança. Não os reconheço de cara, aliás jamais reconheceria meu bisavô e meu tio avô, pelo simples motivo de não os ter conhecido, mas de alguma forma, nesse momento eles são impressionantemente familiares a mim, quase tanto quanto meu pai. A permanência dessa fotografia, durante anos, no mesmo local, cria em mim uma relação com aquelas pessoas, de tal modo que não importa mais se os conheci de fato, até porque, não estive com nenhuma das pessoas presentes na fotografia, se não apenas com o que elas vieram a ser, no momento seguinte à minha existência. 

Desse modo, sua operação (da fotografia) junto à memória é de tal forma que a imagem ali posta aciona gatilhos subjetivos quase infinitos quando esta se relaciona de algum modo com seu observador. Logo, seria próprio associar tão simplesmente a fotografia com a memória e/ou lembrança. Por outro lado, e apenas se não existir em algum momento, a viagem no tempo, essa seria uma das formas mais perenes de acessar passados caros de um espectador. 

Abordando André Bazin, também podemos considerar as imagens fotográficas como algo atrelado à realidade:

Daí o fascínio das fotografias de álbuns. Essas sombras cinzentas ou sépias, fantasmagóricas, quase ilegíveis, já deixaram de ser tradicionais retratos de família para se tornarem inquietante presença de vidas paralisadas em suas durações, libertas de seus destinos, não pelo sortilégio da arte, mas em virtude de uma mecânica impassível; pois a fotografia não cria, como a arte, eternidade, ela embalsama o tempo, simplesmente o subtrai à sua própria corrupção. (BAZIN, 1991, p.24)

De tal modo que essa relação quase direta, faz com que a fotografia contenha em si própria a realidade. Para Bazin, a fotografia paralisa o tempo, contendo assim ela própria. Ante isto, a fotografia seria o modo mais acertado de congelamento temporal, por meio de um fragmento da realidade. Esse fragmento como uma possibilidade de acesso ao passado, cria assim uma espécie de janela temporal. 

Retorno às minhas fotografias e em específico, agora as fotografias de minha avó, não mais presente ninguém além de mim e dela, uma fotografia que fui descobrir só depois de sua morte, a qual me fez reviver de forma arrebatadora o passado, não aquele  momento, obviamente, mas lembrança de momentos que compõem aquele, na imagem, é possível entender a situação, quase rotineira de brincadeira, revivo esse sentimento maternal que ela tinha por mim, quase como um abraço no vazio espacial da lembrança. A partir da imagem, tudo vem como uma avalanche de memórias. A rotina quando das vezes que dormia em sua casa, e momentos fugazes como o café da manhã antes mesmo do primeiro passo fora da cama.

Interessante pensar que diversas fotografias ficaram esquecidas na casa depois de sua morte, quase como se quisesse esquecer o que fora aquela família ou mesmo aquela senhora. De fato, foi um momento conturbado dada a situação litigiosa posterior. Porém não me fugiu a análise de que esse esquecimento, aparentemente ocasional, ameaçou apagar diversos momentos registrados em fotografias e guardados por ela em vida com a mesma solenidade da estante da minha tia avó.

Esse interesse pela fotografia, justamente relaciona nossa intenção de salvaguardar a memória, de modo que a imagem pensante, acionando Etienne Saiman, articula diversos pensamentos através de sua existência, claramente por suscitar uma ou várias memórias. 

“Sem chegar a ser um sujeito, a imagem é muito mais que um objeto: ela é o lugar de um processo vivo, ela participa de um sistema de pensamento. A imagem é pensante.” (SAIMAN, 2012)

Retorno então para Barthes, com uma passagem que ilustra bem esse quase retorno que a fotografia nos põe por meio das lembranças múltiplas nela congeladas:

“ao contemplar, uma foto em que ela me aperta nos braços, quando eu era pequeno, posso despertar em mim a doçura do crepe da China e o perfume do pó-de-arroz.[…] E, diante da foto, tal como no sonho, é sempre o mesmo esforço, o mesmo trabalho de Sísifo: subir, tenso, até à essência, voltar a descer sem a ter contemplado e recomeçar.” (BARTHES, 2015 p.75).

Logo, percebe-se que a atração da fotografia com a memória é algo relacionado e de certo modo esperado quando trata-se de imagens com relação a quem as vê. Essa relação se torna mais forte quando feito esse exercício. Afinal a fotografia se ocupa do congelamento de um momento. 

Por outro lado, quando diante de uma fotografia pessoal, estamos diante de uma infinidade de significações, muitas delas as quais nos moldam de forma intensa durante a vida. Às vezes diante de uma fotografia, mesmo que familiar, é possível nos causar alguma inconsistência a partir da interpretação memorialista de tal imagem. A partir do conceito do “Infamiliar” de Freud, no qual nos apresenta a ideia de uma estranheza quase de horror a partir de uma imagem, aqui utilizo a imagem dada a temática abordada, mas pode ser qualquer objeto que represente algo que se tenta replicar, como por exemplo estátuas. O exemplo original são as estátuas dos deuses gregos, dupla de algo existente. Sua função inicial de replicar, de ser o “duplo” de algo que se tenta manter estável através do tempo, se remodela para algo que nos causa a dita estranheza, isso por que não os reconhecemos mais como fora intencionalmente criado. 

Utilizo desse conceito para uma análise breve de uma fotografia minha, quando recém nascido, talvez a primeira fotografia existente minha, na qual diversos significados estão presentes, desde o pequeno tamanho daquele bebê prematuro, as roupas improvisadas de um boneco de pelúcia do desenho “Bananas de Pijamas”, dado o pequeno tamanho incomum. 

Essa fotografia me é quase que ordinária, por sua existência perene em minha vida, contrário é sua ação causada em mim, a qual não consigo de forma alguma me identificar com aquele ser, quase como se fosse qualquer outra coisa que não eu mesmo. Apesar de ser certo de que sou eu, aquele jamais serei eu.

Esse estranhamento com a representação do duplo, parte justamente de que o tempo e a memória, mesmo as implantadas, não estão sempre em consonância com o factual. É real, existiu e continua a existir a memória, lembrança bem como a fotografia (quando preservadas) mas de maneira alguma está comprometido com o fato ali retratado, dada a subjetivação da lembrança e suas camadas sobrepostas a partir das vivências e histórias. 

Desse modo, a fotografia resgata o que fora vivido e retorna ao seu modo, no passado registrado. Isso ocorre também com as fotografias sociais, como de eventos importantes para dado grupo, assim como as particulares, isso porque o tempo, sempre abordado por poetas, é implacável, e tentamos de formas possíveis tentar vencê-lo.

A fotografia também, tal qual a poesia, se ocupa de trazer para seu interlocutor, de forma curta, uma variedade de significados (MONTEJO NAVAS, 2017). Dilatando dessa forma o tempo contido em si, ela se transforma em uma pequena fenda de vastas subjetivações, já que “a imagem fotográfica autoriza todas as leituras e releituras” (MONTEJO NAVAS, 2017), tal qual a poesia, sendo assim uma fotografia tanto quanto de lembrança, vive de significado e subjetivação para assim conseguir de alguma forma, e fugidia, vencer o tempo.

Conclusão:

Encerro então com uma canção de Aldir Blanc e Cristovão Bastos, que pode talvez ser uma forma sucinta de representar a relação do tempo com a fotografia (e por que não, a memória assim representada pela técnica):

E o tempo se rói
Com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Pra tentar reviver
No fundo é uma eterna criança
Que não soube amadurecer
Eu posso, ele não vai poder
Me esquecer
(BLANC; BASTOS, 1998, faixa 1)

O tempo apesar de infalível, torna-se maleável, de certa forma, quando em embate com a fotografia e a memória, podendo assim se dilatar no espaço e nos fazer retornar, mesmo que num instante derradeiro o que fora o passado guardado.

Referências bibliográficas:

BAZIN, André. O Cinema. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.

BARTHES, Roland. A Câmara Clara: Nota sobre a Fotografia. Lisboa: Edições 70, 2015.

BLANC, Aldir; BASTOS, Cristovão. Resposta ao Tempo. Intérprete: Caymmi, Nana. No álbum: Resposta ao Tempo. Gravadora: EMI Music Brasil Ltda, 1998.

FREUD, Sigmund. O Infamiliar [Das Unheimeliche]. Edição Bilíngue. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

MONTEJO NAVAS, Adolfo. Fotografia & poesia (afinidades eletivas). São Paulo: Ubu Editora, 2017

SAIMAN, Etienne. As peles da fotografia: fenômeno, memória/arquivo, desejo. VISUALIDADES, Goiânia, v.10, n.1, p. 151-164, jan-jun 2012. Disponível em: https://revistas.ufg.br/VISUAL/article/download/23089/13635/0#:~:text=As%20fotografias%20s%C3%A3o%20mem%C3%B3rias%2C%20hist%C3%B3rias,escondem%20dentro%20de%20uma%20carteira.. Acesso em: 16 fev. 2023.

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

VILELA, Eugénia. Do Testemunho. In: Princípios: Revista de Filosofia. Natal, v. 19, n. 31, p. 141-179, jan-jun 2012. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/principios/article/view/7497. Acesso em: 16 fev. 2023.