REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10249131145
Fernanda Rodrigues Borborema
Resumo
A presente pesquisa relacionou a teoria psicanalítica de Melanie Klein com o filme “Coraline e o mundo secreto” de 2009, escrito por Neil Gaiman. Esta pesquisa trouxe reflexões sobre a figura do seio bom e seio mau, além de elencar a teoria das posições esquizo-paranóide e depressiva, entre outras. O estudo caracterizou-se como uma Revisão de Literatura Integrativa. Foram utilizadas as bases de dados SciELO e PePsic. De modo geral, através dos resultados coligidos, percebeu-se que Coraline possui um ego fragilizado e não totalmente integrado, além de sentir-se constantemente atacada por sua mãe. Com isso, a menina desenvolveu mecanismos, como projeção dos seus desejos pulsionais para suprir aquilo que ela acredita que não é oferecido por sua genitora. No mais, ela também cria idealizações, pois exagera nos aspectos bons de seus pais de mentira, como forma de preencher suas necessidades e desejos não fornecidos pelos pais verdadeiros.
Palavras-chave: Melanie Klein, Coraline, Psicanálise
Introdução
A teoria de Melanie Klein (1926-1945) da ênfase no processo psíquico no qual a criança passará em seus primeiros anos de vida e que definirá grande parte de suas relações no futuro. Essas relações são representações psicológicas de antigos objetos ou partes da pessoa, como o seio da mãe, que tiveram relevância em sua infância. Apesar de suas teorias serem embasadas em Sigmund Freud, Klein considera alguns pontos que os diferem, por exemplo, uma maior importância maternal do que paternal para o desenvolvimento da criança e uma maior relevância nas relações psicológicas e de afeto do que em relações biológicas.
Na posição esquizo-paranóide, Melanie Klein (1946) considera que nos primeiros três meses de vida, o bebê passa por conflitos internos que geram ansiedades, isso ocorre, pois a criança nasce com um conteúdo primitivo de pulsão de vida e morte. O ego também existe nessa posição, mesmo sendo um ego desordenado e arcaico. O bebê enxergará o objeto de amor por partes e esses sentimentos serão transmitidos através do seio materno sendo o seio bom que representa para ele o amor, conforto e prazer (Klein, 1946).
O bebê fantasia devorar, controlar e guardar para dentro de si o seio mau onde fantasia a aniquilação e destruição com ataques sádico-orais. Quando esse conflito intenso é percebido, o ego entra em ação dividindo esses dois desejos, para o bebê o seio perseguidor, seio mau, quer destruir o seio ideal, seio bom, e para protegê-lo utiliza da posição esquizo-paranóide, essa posição permite que o bebê consiga dividir o que é bom do que é mal e, com isso, ele projeta os sentimentos negativos para o seio perseguidor (Klein, 1946).
Quando o bebê chega por volta dos cinco a seis meses de vida, ocorre uma transição da posição esquizo-paranóide para a posição depressiva, o objeto de amor agora não será vista por partes mas sim como todo, considerando o bom e o mau um único objeto, o ego agora será bem mais trabalhado, sentindo o amor e ódio juntos e ao perceber seus desejos anteriores de destruição ocorrerá um medo de perda, esses sentimentos serão transformados em luto, angústias e culpa pelas agressões feitas no passado, gerando uma necessidade de reparação para com a mãe (Klein, 1946).
Assim como outros psicanalistas, Melanie Klein também colabora com a teoria da projeção e identificação projetiva, que consiste na formação do mundo fantasioso interno e externo da criança tornando em um mecanismo de defesa, porém ambos se diferenciam. Segundo Klein, a projeção é o ato que o indivíduo projeta em outra pessoa pensamentos, sentimentos e impulsos no qual ele não consegue reconhecer em si próprio, externalizando essas angústias internas e colocando em outra pessoa, geralmente esta pessoa será alguém mais próximo e no caso da criança esse sentimento é passado para sua mãe, o indivíduo passa a acreditar fielmente que aquilo que ele projetou e que agora está na outra pessoa é real (Klein, 1946).
A identificação projetiva segue a mesma linha de raciocínio da projeção, porém ambas se diferem, pois na identificação projetiva o indivíduo pega este material projetado e internaliza e volta para dentro de si, essa atitude tanto pode ser prejudicial quanto boa para quem a introjetar. No caso do bebê este ato será correspondido através de objetos, como o seio materno, partes do corpo da mãe e depois com os brinquedos (Klein, 1946).
Melanie Klein teve uma importante contribuição a respeito do complexo de édipo, notou-se que ele poderia se desenvolver muito antes do que Freud especulava. Para o teórico, esse complexo se desenvolve somente na criança por volta dos cinco anos de idade, mas, segundo Klein, o superego aparece antes do complexo de édipo e com isso Klein cria os estágios iniciais do conflito edipiano e afirma que as fases psicosexuais: fase oral, fase anal, fase fálica, período de latencia e fase genital, também existirão precossemente na criança em seus primeiros anos de vida. Sendo assim o complexo de édipo surgirá no período em que ocorre o desmame, tornando um período confuso e instável para a criança, com isso seu ego será desorganizado (Klein, 1948).
O superego aparecendo tão precoce cria um édipo arcaico, com isso, a relação que o bebê terá com objeto de amor será extremamente intensa, com o desejo de destruí-lo ou tendo totalmente para si. Essa relação gera no bebê uma ansiedade, terror e medo da punição vinda desse objeto, tendo a impressão de que serão devorados e cortados em pedaços, as fases sádico-orais e sádico-anais terão maior ênfase nesse período, porém essa relação será diferente entre meninos e meninas, enquanto que para os meninos a fase genital terá maior influência considerando o objeto de penetração a posse do penis, para a menina essa relação com a fase genital levará ao medo da castração (Klein, 1948).
Com isso a fase da feminilidade também ocorrerá mudanças entre os sexos, o menino terá um desejo intenso de possuir um órgão reprodutor assim como a mãe e a destruição de do penis do pai, já para a menina a destruição do pai não ocorrerá, pois deseja ter um bebê com seu pai. Tanto os meninos quanto as meninas sentem a mesma necessidade de ter um bebê e consideram que suas fezes podem ser uma representação, ambos também apresentam ódio do irmão mais novo e desejo de destruição (Klein, 1948).
Desenvolvimento
Relação entre Coraline e o Mundo Secreto e a teoria psicanalítica de Melanie Klein
Coraline vive dividida entre dois mundos, onde no primeiro ela vive uma relação disfuncional, principalmente, com sua mãe “verdadeira” já, no segundo mundo, a menina vive uma relação fantasiosa com a sua mãe “de mentira”. Relacionando a teoria de Melanie Klein ao filme, a primeira mãe seria uma referência ao seio mau, aquele que não acolhe e que não alimenta. Em uma cena do filme, a menina comenta com sua boneca: “Acha que estão tentando me envenenar?”, referindo-se à comida não saborosa que foi preparada pelos seus pais (Scatolin & Cintra, 2017).
Contudo, no segundo mundo, Coraline, a princípio, têm uma relação agradável com a mãe “de mentira” que simboliza o seio bom, aquele que ama e nutre. Logo, a menina prefere permanecer mais no mundo ideal do que no mundo real. Segundo a psicanalista, Melanie Klein (1946), o bebê vivencia a pulsão de morte de forma intensa e acaba projetando os impulsos destrutivos para o seio mau como uma maneira de proteger o seio bom, porém, no caso de Coraline, o seio mau refere-se a sua mãe verdadeira, com isso, a pulsão de vida é projetada no objeto ideal, ou seja, sua mãe de mentira.
Em relação à Coraline, por ser uma pré-adolescente, seu ego é mais maduro e, durante o filme, é perceptível que ela tenta lidar com as exigências do seu id e de seu superego, por exemplo, na cena onde ela compreende que o mundo fantasioso não é tão ideal como parecia e ela tenta, a todo custo, voltar para o seu mundo real. Melanie Klein (1945) afirma que é necessária uma certa quantidade de ansiedade para a formação de símbolos e fantasias, para que o ego aprenda a lidar com a ansiedade de uma maneira mais adequada.
Porém, mesmo tendo um ego quase que totalmente integrado, Coraline ainda vive uma relação cindida com seus pais verdadeiros e, por causa dessa vulnerabilidade, a menina passa a buscar uma gratificação através dos objetos externos originados pelos seus desejos pulsionais para que atendam às suas necessidades do seu inconsciente. Para Marcella Pereira (2007), o bebê precisa de mecanismos de defesa para lidar com o ego fragilizado e um desses mecanismos, Coraline utiliza com muita frequência, que é a idealização. A menina exagera os aspectos bons de sua mãe de mentira para atender aos seus desejos que não foram supridos pela sua mãe verdadeira.
Ao final do filme, Coraline percebe que escolheu o mundo errado para viver. A mãe de mentira mostra o seu lado perverso e a menina se arrepende de ter deixado sua família no mundo real. Coraline tenta, a todo custo, reparar suas escolhas para não perder seus pais verdadeiros. De acordo com Melanie Klein (1946), na posição maníaco-depressiva, o bebê teme perder o objeto que ama, por causa de sua destrutividade. O bebê se sente desamparado em relação ao objeto ideal, com isso, utiliza de defesas maníacas para lidar com a situação. No caso do filme, a menina perdeu o contato com a realidade, sendo assim, também perdeu o contato com os seus pais. Porém, Coraline sente culpa e tenta restituir a relação com o mundo ideal e com sua família.
Considerações Finais
Embora seja apenas um filme de animação, “Coraline e o Mundo Secreto” trouxe algumas simbologias que acaba remetendo à teoria de Melanie Klein, como a representação de uma mãe de mentira simbolizando o seio bom e uma mãe de verdade, representando o seio mau. Coraline é uma menina muito esperta, porém com um ego fragilizado e não totalmente integrado, com isso, sente-se atacada por seus pais, pois ambos são desatentos e insensíveis com ela. Para lidar com toda essa situação, ela utilizou de mecanismos, como projeção dos seus desejos pulsionais para suprir aquilo que ela acredita que não é oferecido por sua mãe verdadeira.
Coraline também utilizou o mecanismo de idealização, pois ela exagera os aspectos bons de seus pais de mentira, como forma de preencher suas necessidades e desejos. Contudo, ao final do filme, vemos que Coraline fortaleceu o seu ego ao perceber que o mundo ideal era perigoso e, através de tudo que passou, a menina consegue ressignificar sua relação com seus pais e vizinhos. Além disso, Melanie Klein destacou a ambivalência como um aspecto central das relações infantis, onde sentimentos de amor e ódio coexistem e, no filme, isso é evidente na relação da protagonista com seus pais, que alternam entre serem atenciosos e negligentes, refletindo o conflito interno de Coraline em relação a eles.
Coraline utilizou da fantasia como uma forma de escapar de sua insatisfação com a vida cotidiana. O mundo paralelo ofereceu uma fuga de suas frustrações, mas também funcionou como um espaço onde seus medos e desejos inconscientes se manifestam. O desmoronamento desse mundo de fantasia representou a necessidade de Coraline de confrontar a realidade e lidar com suas ansiedades de maneira mais madura e integrada. Ao final, Coraline emergiu mais madura, tendo confrontado e superado seus medos internos, simbolizando um avanço no desenvolvimento emocional conforme descrito por Klein.
Referências Bibliográficas
Klein, M. (1945). Amor, culpa e reparação e outros trabalhos. Volume I das obras completas de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago.
Klein, M. (1946). Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. In: M. Klein (Org.), Obras completas de Melanie Klein, v. III (pp. 17-43). Rio de Janeiro.
Klein, M. (1948). Contributions to psycho–analysis. London: Hogart Press.
Pereira de O. M. (2007). Melanie Klein e as fantasias inconscientes. Winnicott e-prints, 2(2), 1-19.
Scatolin, H.G & Cintra, E. M.U. (2017) O superego arcaico na concepção de Melanie Klein: Um estudo a partir da posição esquizo-paranóide. Disponível em www.revista espacios.com/a17v38n55/a17v38n55p30.pdf