DESPEDAÇAMENTOS DO LIRISMO A CAMINHO DE UMA POIESCRITURA

DISMEMBERMENT OF LYRICISM ON THE WAY TO A POIE-WRITING

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102501231343


Antonio Aílton Santos Silva1


RESUMO

Presencia-se, hoje, uma escritura poética de facetas diversas, denominadas “líricas” por conveniência, e cuja diversidade de manifestações ultrapassa em muito essa noção, gerando uma sensação de precariedade nocional e anacronia conceitual. Levando isso em consideração, este artigo se propõe a refletir sobre as transformações, conflagrações e despedaçamentos do sentido que, desde o Romantismo, emerge do próprio lirismo enquanto fundamento de uma poesia lírica, e esgarça seus influxos. Utilizando-se de material bibliográfico, este artigo, escrito numa linguagem ensaística, fundamenta-se sobretudo na própria teoria da lírica e na crítica poética, refletindo, em sua conclusão, sobre o termo poiescritura como uma noção de abrangência que reúne tanto as diversas escritas do presente, quanto sua relação com a consciência da arte poética, criadora e imaginativa, já expressa na poíesis grega.

Palavras-chave: linguagem poética; lirismo; lírica; poiescritura.

ABSTRACT

Today, we are witnessing different facets of poetic writing, called “lyrical” for convenience, whose diversity of manifestations far exceeds this notion, generating a feeling of notional precariousness and conceptual anachronism. Considering this, this article proposes to reflect on the transformations, conflagrations, and shattering of the meaning that, since Romanticism, emerges from lyricism as the foundation of lyrical poetry and frays its influences. Using bibliographic material, this article, written in an essayistic language, is based mainly on the theory of lyric and poetry criticism, reflecting, in its conclusion, on the term poie-writing (poiescritura) as a notion of comprehensiveness that brings together both the various writings of the present, as well as its relationship with the consciousness of poetic, creative and imaginative art, already expressed in Greek poiesis.

Keywords: poetic language; lyricism; lyric; poie-writing

1 Introdução

Porque se entre os líricos me inserires, tocarei com a fronte as mais altas estrelas [Quod si me lyricis vatibus inseres, sublimi feriam sidera vértice.]

(Horácio, Odes; Carmina, livro 1,1.

Trad. Silveira Bueno)

Porque a meu ver, o céu está caindo aos pedaços.

[Advertência ao leitor. In: Só para maiores de 100 anos.

Nicanor Parra., 2019]

poesia é o nome disso?

[…]

melhor dizendo poesia é o nome [ou é onde e quando se incendeia?]

(Nome disso. In: Manual de flutuações para amadores,

de Marcos Siscar, 2015)

Lirismo, como impulso patêmico e desvelamento entre intimidade, mundo e linguagem sensível, o ser condensado, desnudado na própria pelagem ou mostração do que é dito, não raro na ânsia do sublime, ainda é uma palavra forte entre nós. E não somente por seu suposto arrebatamento às paisagens subjetivas, emotivas, cancioneiras e sugestivas da alma, na tessitura possível dos versos, mas também porque localiza conceitual e genericamente esse dizer. Ele nos dá um chão dentro de um panorama literário, de certo horizonte a que chamamos gênero lírico.

Sopro vital na argila afetiva e afeccional, o lirismo se fez principalmente patêmico, no sentido de um ato discursivo configurado a partir de um pacto com o pathos em disposições emotivas, inclinações, pa[th]decimentos – e, em seu limite desproporcional, entusiasmado e incontrolável, prestes a despencar na beira do patético. Mas sabemos que até este, o patético, obteve o seu lugar, nas mãos de verdadeiros poetas, como provocação irônica.

Lírica. Antilírica. Novo Lirismo. Neolirismo. Lirismo sentimental. Lirismo crítico. Lírica dos restos. Poesia. Poesia pura. apoesia. Antipoesia. Contrapoesia. Poesiamenos. Poesia fezes. Pós-poesia. Não-poema/pós-poema; poema-coisa. Criação [poética] de si, do si. Descriação; delírica. Como lidar com tantos conceitos quantos são hoje e quantos possivelmente serão, muito em breve, todo um mundo não só de concepções, mas também de cada peça escrita que se torna única, singular, em cada poema, lance, organismo ou advento que instaura sua leitura exclusiva e reivindicatória?

A intenção deste ensaio é refletir sobre as transformações, conflagrações e despedaçamentos do senso emotivo-encantatório-subjetivo que emerge do próprio lirismo e esgarça seus influxos, enquanto fundamento de uma poesia lírica. Na verdade, transformando- a em algo que ultrapassa há muito esse conceito, deixa-nos com uma sensação de insatisfação, catacrese ou anacronia conceitual: utilizamos o termo “lírica”, “lírico”, já há muito de forma insatisfatória, para designar o que é contemporaneamente produzido nesse campo inclusive como sua contraposição, justamente porque não possuímos outra palavra para referir ao que temos em mãos, que há muito não é – ou nem sempre é – poesia lírica. A partir dessa emergência, em duplo sentido, podemos pensar a lírica em termos de algo que ultrapassa tanto o lirismo quanto o antilirismo, assim como os limiares do chamado “lirismo crítico” ou da própria antipoesia, e os redimensiona em termos de uma poiescritura.

2 Do Romantismo ao lirismo moderno

A discussão moderna sobre o lirismo (e antilirismo) fervilha desde Romantismo alemão, quando é encabeçada principalmente por Friedrich Schlegel, discutindo a relação subjetividade-objetividade, propondo que a “forma” lírica é subjetiva, a dramática é objetiva e a épica é objetiva-subjetiva – depois inverterá tais papéis do drama e da epopeia (Genette, 1979, p. 43), questão que será retomada mais tarde pela Estética de Hegel. Schiller, discutindo a questão da poesia ingênua (de um estado de unidade primordial com a natureza) e sentimental (do homem da arte e da cultura, nostálgico ou interessado pela natureza, mas dela cindido), bem como a forma (poética e narrativa) ideal para cada época, embora de forma incipiente em relação ao acabar por trazer à tona o problema da transformação das formas e das regras tradicionais. Novalis, o autor de Pólen (1798 [1988]), por sua vez, é o grande representante da forma fragmentária em poesia e pensamento, que faz parte da autoimagem dos próprios românticos.

O que vemos, portanto, com o Romantismo é uma transformação da manifestação lírica, um revigoramento da configuração sensível, e do redimensionamento do papel do “eu” poético, dando-lhe novas aberturas e possibilidades experienciais, elevando-os a outro patamar de tratamento, e, em termos teóricos, estabelecendo um conceito de lirismo, ao voltar-se para seu aclaramento e questionamento, num estatuto fundacional dentro da modernidade. Porém, é o próprio Romantismo que lança o projeto da liberdade de escrita, das aglutinações e revisões formais de maneira mais consciente e efetiva, das adaptações e revisões de linguagem, e põe a lírica em questão como preocupação filosófica.

Apesar de tais ganhos, Henri Lamaitre (1982) observa que, não obstante ter começado com o Romantismo essa abertura e provocação, este não levou, ou não pôde levar a cabo uma transformação da linguagem. Assim, mesmo com as mudanças efetivadas, e mesmo se encontramos obras como o Aurélia, de Gérard de Nerval (que é diário e ao mesmo tempo narrativa, com reflexões memoriais e “psicológicas”, e também poema); ou, ainda, se encontramos no Romantismo pitoresco, medieval ou fantástico, a fórmula do poema em prosa, que já fazem explodir as formas tradicionais de expressão, de qualquer modo resta a pergunta: “um modo de sentir, para que se torne poesia, não deve engendrar um modo de escrever?”. E complementa:

Or la question des rapports entre poésie et langage reste das le romantisme quelque chose de bien confus […] Dans son ensemble, le romantisme ne s’est pas posé le problème du langage; il a cru, au contraire, bien souvent, que la communication poétique s’établissait d’elle même par le moyen de l’effusion lyrique ou de l’effet dramatique. Or c’est le problème du langage, plus exactement celui de l’originalité du langage poétique, que se posera aux successeurs du romantisme, peut-être, en grande partie, parce-que le romantisme avait introduit dans as poésie une manière de sentir qui imposait l’invention d’un langage2 (Lemaitre, 1982, p. 16 – grifos do autor).

Em outras palavras, o Romantismo abriu o caminho de toda a revolução e da transgressão da lírica, mas deixa a desejar, no aprofundamento e formulação em relação à linguagem. No panorama francês, onde muito provavelmente o mergulho nesse questionamento do “modo de escrever”, dessa escrituração, se dará de maneira mais forte – sem deixarmos de lado Walt Whitman, que já publicava seu Folhas da Relva em versos livres, em 1855, e Edgar Alan Poe, que racionalizava sobre os efeitos construtivos na linguagem do seu poema The Raven [O Corvo], em seu The Philosophy of Composition [Filosofia da Composição], de 1846 –, é começando nas questões levantadas por Baudelaire, que, dentro de um processo consequente, a lírica e o lirismo serão repensados, e mesmo transformados, transgredidos.

Aquele que é reputado não só como o primeiro grande poeta da modernidade, como também o primeiro grande crítico do período, começa justamente por se perguntar: “Qu’est-ce que le romantisme?”, “o que é o romantismo?”. E ele mesmo (se) responde ser a mais recente e mais atual expressão do belo, e: “quem diz romantismo, diz moderno”, considerando, no entanto, que foi exata e contraditoriamente a busca do Romantismo pela sua própria tarefa poética que lhe fez cair no rococó romântico, o mais insuportável de todo o senso contradito, e, por outro lado, que há uma contradição entre [a beleza d]o Romantismo e a obra de seus principais sectários (Lemaitre, 1982, P. 8; 90).


2 Ora, a questão das relações entre poesia e linguagem permanece no Romantismo algo muito confuso […] Em seu conjunto, o Romantismo não se colocou o problema da linguagem; pelo contrário, frequentemente acreditava que a comunicação poética se estabelecia por meio da efusão lírica ou do efeito dramático. Ora é o problema da linguagem, mais exatamente o da originalidade da linguagem poética, que os sucessores do Romantismo terão que enfrentar, talvez, em grande parte, porque o Romantismo havia introduzido na poesia uma forma de sentir que impunha a invenção de uma linguagem.

Baudelaire começa a derrisão desse caráter “rococó” sentimental e pitoresco primeiro por despir o poeta-herói, representado pela voz lírica, mas também alimentado pela ideologia romântica, de sua aura. O autor de As Flores do Mal arrasta a sublimidade heroica, o idealismo humanitário e pitoresco romântico para um espectro irônico, no qual inclui não apenas a visão do poeta, essa máscara feita da linguagem maiúscula, alegórica ou banal, cuja “metáfora desmente a pessoa lírica e penetra no texto como um desmancha-prazeres” (Benjamin, 1994, p. 95). Ainda segundo Benjamin (1994, p. 171), Baudelaire “põe em questão a possibilidade mesma da poesia lírica”. O poeta disponibiliza o papel do herói que pode apenas representar, mas também rebaixa (leia-se: humaniza) e nivela o (falso, hipócrita, demasiado humano) leitor como seu “amigo”, seu “igual”, seu “irmão” (irmão desse sujeito que se manifesta no centro da experiência poética):

La sottise, l’erreur, le péché, la lésine,
Occupent nos esprits et travaillent nos corps,
Et nous alimentons nos aimables remords,
Comme les mendiants nourrissent leur vermine
[…]
C’est l’Ennui ! — l’œil chargé d’un pleur involontaire,
Il rêve d’échafauds en fumant son houka.
Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat,
Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère !3

(Baudelaire, 1985[1861], p. 8; 9, grifos meus)

Baudelaire também descortina a vida moderna através desse lirismo simbólico, ao mesmo tempo irônico e “enfermo”, relacionando os estados da alma e as correspondências universais ao espaço experiencial da vida urbana, da metrópole emergente e, bem o sabemos, a imagem da multidão e do flâneur − o andarilho “deslocado”, o amante da cidade, o “detetive amador”, o qual, quando consciente, torna-se capaz de descortinar esteticamente a realidade da cidade, em seu brilho fascinante e no chamariz de suas vitrines, suas guerras e cicatrizes, onde a poesia se torna esgrima. Porém, quando estagnado em sua estupefação, perdendo sua individualidade e diluindo-se como multidão, também o sabemos, “o flâneur torna-se um basbaque” (BENJAMIN, 1994, p. 69)4. E embora deva certo tributo aos românticos e seu painel burguês, esse “pintor da vida moderna” traz, portanto, para a lírica, o prosaico da urbis:


3 Sempre tolice e error, culpa e sovinaria,/ Trabalham nosso corpo e ocupam nosso ser,/ E aos remorsos gentis, nós damos de comer/ Como o mendigo nutre sua piolharia;/ […] É tédio – os olhos seus que a chorar sempre estão,/ Fumando o seu huka, sonha com o cadafalso/ Tu o conheces, por certo o frágil monstro, ó falso/ Leitor, amigo meu, meu igual, meu irmão! (Baudelaire, 1985, p. 81; 83, tradução de Jamil Almansur Hadadd).

As Flores do Mal é o primeiro livro a usar na lírica palavras não só de proveniência prosaica, mas também urbana. Com isso, não evita expressões que, livres da pátina poética, saltam aos olhos pelo brilho do seu cunho. Usa termos como quinquet (candeeiro), wagon, omnibus, e não se atemoriza diante de bilan (balanço [financeiro]), reverbere (lampião), voire (lixeira). Assim se substitui o vocabulário lírico no qual, de súbito, e sem nenhuma preparação, aparece uma alegoria. Se o espírito linguístico de Baudelaire pode ser apreendido em algum ponto, é nessa brusca coincidência (Benjamin, 1994, P. 97).

Uma terceira investida de Charles Baudelaire é a pesquisa formal e estética, correlacionada ao ato de sentir. Ele concebe, primeiro, uma unidade inerente a todas as artes, que como “as cores e os perfumes” também se correspondem – e não podem se tornar poéticas senão a partir dessa correspondência universal –, a pintura, a música, as palavras, os ritmos, as alegorias, e, assim como escreve sobre Edgar Alan Poe ou Théophile Gautier , ele também trata da música de Richard Wagner ou da pintura de Eugène Delacroix (Curiosités esthétiques). Os, por sua vez, sentidos se tornam, assim, órgãos da alma que, na relação com o corpo e o mundo exterior tocam o insólito, o bizarro – ou são por estes atravessados – deflagrando uma festa de imagens estranhas, sonhos, florações estranhas e doentias, numa “floresta de símbolos”.

Propondo uma poética da recusa, Baudelaire – o maior crítico de seu tempo – também se volta tanto contra o positivismo quanto contra a teoria burguesa da utilidade da arte, defendendo uma arte filosófica. E, ao mesmo tempo em que recusa “arte pela arte” parnasiana, defende, como ideal da ‘arte pura’ “un art de la communication directe avec l’interieur de l’âme, une sorte de lyrisme absolu, et c’est là, profondément, ce que Baudelaire entend par spiritualisme”(Lamaitre, 1982, p. 27)5.

Nesse caso, a poesia, como a encarnação da própria beleza fundada por uma espiritualidade estética, só é possível dentro de uma estética da recusa a todo tipo de conformidade, seja com o utilitarismo, com o moralismo, com o idealismo sentimental, com a naturalização da natureza (“a natureza é um Templo”, diz ele em Correspondences), com o próprio formalismo. Assim ele se manifesta, por exemplo, contra a ideia do utilitarismo:

Il y a des mots, grands et terribles, qui traversent incessamment la polémique littéraire: l’art, le beau, l’utile, la morale. Il se fait une grande mêlée; et, par manque de sagesse philosophique, chacun prend pour soi la moitié du drappeau,  affirmant  que  l’autre  n’a  aucune  valeur.  […]  Moralisons!


4 Discuto este assunto em SILVA, 2018, p. 58, 59 – a ideia de uma flâneurie também desenvolvida pela anima urbs contemporânea, ou no contemporâneo.

5 “Uma arte da comunicação direta com o interior da alma, uma espécie de lirismo absoluto, e aí está, profundamente, o que Baudelaire entende por espiritualismo”.

Moralisons! s’écrient [l’école bourgeoise et l’école socialiste] avec une fièvre de missionaires. Naturellement l’une prêche la morale borgeoise et l’autre la morale socialiste. Dès lors l’art n’est plus qu’une question de propagande. (Baudelaire apud Lemaitre, 1982, p. 94)6

Baudelaire se estabelece, portanto, nessa dobra do lirismo rumo à interrogação de suas (im)possibilidades e desterramentos, e dentro de uma estética analítica da linguagem, das concepções, ideologias e atitudes que a intimam. Sua proposta de transgressão do lirismo e recusa [irônica] do sentimentalismo sem cair na determinação positivista; sua dinamização poética da imaginação criadora através do complexo papel dos sentidos; sua captação das instâncias bizarras e imperfeitas, do tédio mundanal e da imediaticidade temporal, das vivências urbanas, com seus corpos fugazes e sua flanêrie, na construção alegórica da linguagem universal da beleza e na afirmação da “pureza inútil” do objeto artístico, lançam-no nesse limiar de uma escritura poética desconfiada, autocrítica, ansiosa pelo controle dos seus meios fugidios. E não obstante seja considerado por Walter Benjamin o grande “lírico no auge do capitalismo”7, Baudelaire anuncia o que podemos tratar não como expressão do lirismo, a lírica, mas como poiescritura.

3 A lírica: precariedades de um termo

Abordei em Martelo & Flor: horizontes da forma e da experiência na poesia brasileira contemporânea (2018) os horizontes poéticos ali tratados como pertencentes à “lírica contemporânea”, correspondendo à abrangência de uma “larga lírica”, na possibilidade de enfeixar nessa proposta tanto o lirismo quanto o chamado antilirismo e os espectros cambiantes da poesia. Por um lado, reconhecendo o próprio acolhimento de linguagens do termo “lírico” e, por outro, pela reconhecida precariedade de sua definição.

Deixava “em suspenso” a contraposição ou dicotomia “lírica” x “antilírica”, que considera a lírica como expressando uma poesia subjetiva, de efusão romântico-sentimental, tomada, constantemente, de maneira depreciativa e caricatural, e a antilírica como uma manifestação poética que se deseja e se apresenta como objetiva e racional, de feição crítica e comedida. Isso pensando a lírica como uma manifestação nuançada, e não dividida em dois extremos contrapostos, uma vez que a literatura abarca tanto sua vida quanto sua morte, sua contradição, entremeios e não-lugares. Aqui, recorrendo a uma visada desse processo da escrita poética, trato de encarar essa ideia direcionando-o para uma nomeação mais pertinente.


6 Há palavras, grandes e terríveis, que atravessam incessantemente a polêmica literária: a arte, o belo, o útil, a moral. Faz-se uma grande confusão; e por falta de sabedoria filosófica, cada um toma para si a metade da bandeira, afirmando que o outro não tem nenhum valor. […] Moralizemos! Moralizemos! exclamam [a escola burguesa e a escola socialista] com uma febre de missionários. Naturalmente, uma prega a moral burguesa e a outra moral socialista. Portanto, a arte é não será mais que uma questão de propaganda.

7 Alusão à obra de Benjamin (1994) sobre o poeta francês.

No percurso da lírica até os nossos dias houve, a cada momento ou uma orientação para um determinado fazer (sobretudo no caso dos modelos), ou uma preocupação com as questões temáticas ou formais. Aristóteles não tratou diretamente da poesia lírica e Horário também não, apesar de também ser um lírico e de suas poéticas terem um forte impacto sobre a produção clássica – assim as proposições do autor do tratado Do Sublime, cujo autor alguns consideram como tendo sido Dionísio Longino, Cassio Longino, ou simplesmente ser obra anônima.

Elevar a metáfora à condição de ampliação do dizer a realidade e da apreensão das semelhanças e analogias, como o faz Aristóteles, além das questões da configuração mimética e retórica; buscar a perfeição do trabalho, o “labor limae” e a poesia como engenho, distinguindo o poeta como artista e não como artífice, entendendo o poema como elaboração formal e buscando a representação do poeta perfeito, como o fez Horácio em sua Ars Poetica; ou produzir o assombro e o êxtase não pela oratória inflada da retórica, mas utilizando esta e suas figuras pelo caminho do simples, conciso e eficaz, como o faz Longino, são algumas das grandes contribuições que levaram Dante e Petrarca a encontrar o caminho da arte que fizeram. Não podemos esquecer também que muitas das questões que nos parecem tão contemporâneas podem ser encontradas já no campo medieval tardio, do trobar leu e tobar clus, cuja linguagem enigmática (esta palavra de recorrência tão atual) leva aos problemas de sua recepção e às adaptações de sua face, o trobar ric. Claramente, toda essa reminiscência, juntamente com as demais já expostas, deve nos alertar para não nos apressarmos em encontrar somente na lírica atual uma criticidade, embora, como o faz Jean-Michel Maulpoix (2009), possamos conceber uma linha dominante do lirismo moderno-contemporâneo como “lirismo crítico”.

Mallarmé, Verlaine, Rimbaud e Valéry, bem como Lautréamont, Laforgue, Rilke e outros, na estrada que prosseguirá com as revoluções das vanguardas a T. S Eliot e Ezra Pound, são responsáveis por redesenhar esse caminho de uma poesia em crise após Baudelaire, no pórtico da modernidade poética.

Mallarmé, como mestre virtuose teve a honra de um cenáculo criado por seus seguidores ainda no século XIX, põe em evidência essa questão não apenas em seus tenazes estudos, definindo novos pressupostos estéticos e proclamando a crise do verso, mas também no corpo de sua poesia, cujo emblema é o “lance” de Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, publicado em 1897, cujas linhas ou palavras lançadas já não seriam versos, mas subdivisões

prismáticas no fundo branco de um profundo e cósmico silêncio, representado na página, numa obra pura que elimine o autor. Assim, sob a “desaparição elocutória do autor”, que cede iniciativa às palavras e que estas, mobilizadas como “virtual rastro de fogo sobre pedrarias”, eliminassem a respiração sentida no antigo sopro lírico, para estabelecer, segundo ele, “o suspense, disposição fragmentária com alternância e reciprocidade” (Mallarmé, 2010, p. 171). Por sua vez, a eliminação de um discurso narrativo, a comunicação indireta, a fragmentação, a introdução da palavra-símbolo e, mais ainda, da palavra-prisma, ressaltando, diríamos, um aspecto semiológico; a evocação do abstrato pela ambiguidade ou polissemia das associações; o fim filosófico, tudo isso imprime no poema um cerramento hermético, seu caráter de poesia-enigma que passa a criar também outra relação com o leitor, com a recepção.

Um fechamento que se relaciona, nessa concepção, ao próprio dizer poético como diferencial de outras literaturas, e como elevação.

É nesse sentido que se estabelece também, para além da ideologia utilitária dentro do processo capitalista de materialidade, produção e consumo, denunciada por Baudelaire, e que impacta a recepção da poesia, já em crise, outra restrição no grupo de leitores, praticamente provocando uma circulação quase exclusiva a pares e “iniciados”.

Benjamin (1994, p. 103-105) já se referia a esse processo, quando diz que as condições de receptividade, já para Baudelaire se haviam tornado desfavoráveis, e cita algumas razões para isso: O poeta não é mais o “aedo”, tornou-se um especialista; depois do poeta de As Flores do Mal nunca mais houve um êxito em massa da poesia lírica, a bem dizer, desde Victor Hugo, na França, ou Heirich Heine na Alemanha; o leitor tornou-se esquivo mesmo em relação à poesia lírica que lhe fora transmitida no passado e só excepcionalmente a poesia lírica mantém contato com a experiência do leitor.

Todos esses pontos encontrarão a radicalização mais intensa e com os rumos impactantes de Rimbaud, com suas proposições do poeta como vidente, pária iluminado e da experiência da vertigem e da alucinação, do desregramento e da revolta, do momento bruto, numa linguagem ao mesmo tempo mística e sensual, de descrição precisa e visionária, decomposição e desdobramento do “eu” e do mundo, sob uma feição metonímica e uma “materialidade” de perfumes, sons, cores dos vocábulos. A exploração das imagens violentas, visões e associações inusitadas fazem dele, juntamente com Lautréamont, precursor do surrealismo, no caminho que ultrapassa o simbolismo para tocar as vanguardas: “il faut être absolument moderne”, diz em Une saison en enfer (1873), escancarando as portas de tantos outros possíveis da modernidade ao contemporâneo.

Outros rumos dessa abertura da escrita poética e da escritura do poético que se tornam vigentes de forma permanente e transformadora será a continuidade da pesquisa mallarmeana através de Paul Valéry, que instaura com suas límpidas reflexões praticamente uma episteme da criação poética, evidenciando que a poesia não fica de fora daquele que talvez seja o mais forte vetor da modernidade: o paradigma da razão. É dentro de uma racionalidade analítica que Valéry se preocupa com os interstícios da linguagem poética entre forma e fundo, subjetividade e objetividade, o som e o sentido, conforme defende:

entre a forma e o fundo, entre o som e o sentido, entre o poema e o estado de poesia, manifesta-se uma simetria, uma igualdade de importância, de valor e poder que não existe na prosa; que se opõe à lei da prosa – a qual decreta a assimetria dos dois constituintes da linguagem. O princípio essencial da mecânica poética, isto é, das condições de produção do estado poético pela palavra é, ao meu ver, esta permuta harmônica entre a expressão e a impressão. (Valéry, 1995, p. 80)

Embora Valéry não descarte a “aventura interior”, busca a poesia pura pela via do intelecto, a exatidão, a perfeição do poema como espelho do Espírito, e essa preocupação vibra, passa a ressoar, desde o campo do poetar, dentro das escrituras que optam por uma compleição de construtividade e objetividade – tal como, em nossa literatura, sua recorrência na reflexão poética que alicerçam seja João Cabral, seja o Concretismo brasileiro e grande parte das poéticas mais recentes –, até as discussões teóricas e críticas do campo acadêmico. Ele e Mallarmé como as figuras talvez mais proeminentes de todas essas discussões nos últimos cinquenta anos.

Marcos Siscar observou que essa “crise” que emerge no interior da lírica e que vai da produção à recepção, embora seja recorrência o uso de tal palavra no discurso crítico-teórico principalmente dos anos 1980 para cá (crise da poesia, crise da teoria, crise da crítica), e para, exatamente, refutar a ideia de uma (agora) poesia em crise, devemos reconhecê-la como um processo que tem realmente como fonte essas transformações que vão para mais de um século. Diz ele:

O sentimento de crise deve ser reconhecido como um traço característico, de natureza ética, da constituição do discurso literário moderno. A poesia está em crise; de certo modo continua em crise. Para que poesia, afinal, ‘em tempos de pobreza’? Creio que a pergunta não é uma questão entre outras, mas um dos fundamentos do discurso poético, desde o século XIX pelo menos, incluindo aí até mesmo as eufóricas vanguardas do século XX, que precisaram antes de mais nada estabelecer um clima de ruína na cultura para poder justificar a necessidade de transformação. […] Não se trata, portanto, de uma mera circunstância, porém de algo que envolve a própria identidade do discurso poético (Siscar, 2010, p. 32).

Na linha de escritura da lírica, as vanguardas assumem, por sua vez, o papel de transgressão e reviravolta que, buscando alinhá-la aos novos aspectos da história e da sociedade, também revolucionam suas formas e procedimentos de maneira tão radical, inventiva e experimental, que a própria obra de arte, ou no caso da poesia, sua própria noção e pertença ao estatuto do poético pôde ser posta em dúvida. Mas ela, com a capacidade de contemplar e sua própria morte e ironizá-la, buscou seus meios de sobrevivência, através do compósito das linguagens.

Por outro lado, poetas como T. S. Eliot, que retoma uma narratividade – do despedaçamento, é bem verdade – numa proposta de autonomia do texto literário, aclaramento do sentido, comunicação mais direta e discursiva com o leitor, emprego das imagens poéticas e descrições “diapositivas”, evocativas, com a técnica do “close reading”; ou como Ezra Pound (2006), em cujo paideuma resgata inclusive grandes trovadores e a alta poesia da tradição latina, que apresenta novas propostas de valorização, construção, disposição formal, imagética e musical, e, principalmente, buscando aplicar as noções do ideograma oriental utilizado na poesia chinesa e japonesa à poesia através do movimento do Imagismo, reafirmam as possibilidades, as metamorfoses e várias faces em que a poesia pode se manifestar.

Fica explícito, portanto, na linha fundamental das transformações poéticas que seguem da segunda metade do século XIX à primeira metade do século XX, na qual toda a poesia contemporânea está implicada, que a poesia da linguagem e da metalinguagem acabou por ampliar o espectro do dizer poético, para uma “escritura” poética. Se, conforme já apontara Roland Barthes (1971, p. 23), tratando de aspectos críticos mais gerais, a escritura se localiza entre a língua e o estilo, entre a Forma e o Valor (sic), sendo… “uma função: é a relação entre a criação e a sociedade, é a linguagem literária transformada por sua destinação social, é a forma apreendida na sua intenção humana e ligada assim às grandes crises da História”, há uma consequência daquele investimento na linguagem e da consciência das formas que é inseparável do fazer poético [contemporâneo], mesmo quando essa poesia inclui a participação e o engajamento. Ela já não se deslinda, de nenhuma forma, de aspectos que constroem entre a experiência e o “estilo”.

Deparamo-nos assim num outro horizonte do criar poético: o horizonte de uma escrituração que transporta e alimenta em suas espessuras já mostrativas da linguagem e das experiências nela configuradas, antes mais “acomodadas”, naturalizadas, essa instância embreante tanto de autoquestionamento e reflexividade crítica, como de uma continua relação objetivante com os discursos estéticos que permeiam, em primeiro lugar, o ato de produzir e, num  sentido  mais  amplo,  o  próprio  logos  da  modernidade,  incluindo  o  momento

contemporâneo. Na proposição de Maulpoix (2009, p. 32), trata-se de um “lirismo crítico”, característico da modernidade, que pode ser entendido tanto de maneira intensiva, ao voltar-se ansiosamente para si mesmo para acusar seus logros e limites, quanto de maneira extensiva, valendo para o lirismo em geral, percebido como um estado crítico do sujeito e da língua. Ele estende, então, para o lirismo, essa condição, “crítico por aquilo que coloca em obra, por aquilo que ele põe em crise”:

Le lyrisme porte en lui sa réflexivité propre, il s’éxamine, se place sur surveillance, et se met lui même en question: c’est un trait caractéristique des écritures modernes. Mais l’expression lyrique met également le langage en situation critique chaque foi qu’elle l’enfièvre et lui fait courir le risque de l’enflure ou de l’emphase (Maulpoix, 2009, p. 32)8.

Percebamos que, mesmo tratando de uma situação moderna que repercute no contemporâneo, Maulpoix parece evocar, ou mesmo trazer à atualização, nessa colocação, a questão interposta desde as escolas retóricas e Longino, que vimos anteriormente, no que diz respeito à oposição entre um belo simples, disciplinado, relacionada à alma como mestra dela mesma, e o estilo inflado, colorido, enfático. Há, sem dúvida, um ultrapassamento para uma recorrência da questão, mas a modernidade a redimensiona e a leva ao limite, a uma radicalidade que esfacela. Colocá-la no território crítico é um gesto de “agravá-la”, mas também de dinamizá-la. Talvez por isso o poeta-[teórico]crítico Marcos Siscar – tocando também na relação entre poesia e prosa, prosa em poema e poema em prosa, ou de uma “poesia à espera da prosa” conforme reflexionado por Jean-Marie Gleize – veja no acréscimo do adjetivo “crítico” feito por Maulpoix ao termo “lírico”, um “gesto aparentemente defensivo” (Siscar, 2016, p. 19 – grifo meu). Todavia, as colocações de Siscar nesse mesmo ensaio ampliam bastante o problema para além dessa fronteira. Diz ele:

Quando Alféri fala da prosa como horizonte, como perspectiva da escrita; quando Maulpoix fala do aspecto crítico ou mesmo das tentativas recentes de ‘agravação”, quando Gleize acelera a questão poética até que a poesia perca seu nome; quando Deguy extrema sua concepção poético-filosófica de mundo, até que venha a ombrear a questão ecológica – temos aí alguns exemplos daquilo que me parece um movimento da poética moderna, que é o de levar determinadas situações às últimas consequências, ou seja, leva-las ao limite (ao confronto com a morte, com o fim, com seu vazio, com seu vazio, com sua fragilidade ou cm sua própria ineficácia) (Siscar, 2016, p. 19, 20).


8 O lirismo carrega em si sua própria reflexividade, autoexamina-se, coloca-se em vigilância e se põe em questão: este é um traço característico das escritas modernas. Mas a expressão lírica põe a linguagem igualmente em situação crítica toda vez que a tensiona e a faz correr o risco de inchaço ou de ênfase.

É nesse “confronto com a morte” e com os próprios meios de sua recepção e divulgação que Siscar vê produtores, meios e leitores no centro de uma “contrapoética”, como parte de uma discussão que se manifesta fora dos dispositivos tradicionais de poesia, e propõe que a questão se localiza dentro de uma “contrapoesia”, em cujo drama cada “contrapoeta” precisa assumir uma postura e localizar-se com relação ao “ridículo da poesia” : este “ridículo” que se coloca, conforme a discussão do autor, no horizonte da militância antipoética de Jean- Marie Gleize (a cujo termo Siscar prefere contrapoética), mas que o crítico reconhece pulsar desde Baudelaire, quando este evocava o velho poeta que ainda pretendia se adornar com o velho prestígio da poesia.

A questão que levanto neste texto é se todas essas faces e definições, razoáveis em sua proposição, não caberiam no âmbito maior do que poderíamos chamar de uma poiescritura. Neste caso, estaríamos falando não apenas desse caminho a que a poesia chegou, uma produção poética que põe sempre à frente o fantasma ou o discurso de sua crise e sua morte, de sua circulação entre especialistas, seu traço crítico ou objetivamente logocentrado, sua ridicularização (isto é, a ridicularização de determinados aspectos e fazeres e sua respectiva concepção), ou mesmo a metanoia da poesia para sua prosificação – fato que exigiria uma discussão mais ampla, além deste breve texto. Estaríamos falando também de uma poesia que, na concepção de Rodriguez (2003) toma como sua base um pacto lírico como configuração discursiva e interação afetiva, e mesmo ato comunicativo, capaz de engendrar outras experiências de leitura e aproximação. Ou da experiência de uma poesia que, muito distante de uma ingenuidade ou daquele manto do ridículo, ainda se afirma como expressão e partilha estética-ética-política do sensível9, voz de memória comunitária carregada nos corpos, co- narratividade, partilha de experiências íntimas. Não podemos decretar a morte das vozes que teimam na sobrevivência não atestada da poesia. E, no entanto, ciente que não é, de que não pode ceder ao anacronismo da velha lírica, também se entende como uma experiência de escritura (em outros casos, oralitura10) do poético: o que só se cria, inventa e reinventa, só se produz dentro de uma linguagem, e que aí se afirma como ato negativo ou afirmativo daquilo mesmo que é produzido, essa é uma poiescritura, a poiescritura.

A relação poiescritural possibilita, portanto, tratarmos de algo que já não pode ser entendida como “lírica”, no sentido estrito do termo, mas que nem por isso pode recusar ou negar sua possibilidade ou sua validade. E não somente dentro de um aspecto estético, ético ou político, ou, ainda, imaginário (imaginativo), mas também, e sobretudo, patêmico.


9 Aludo, evidente, ao trabalho do filósofo Jacques Rancière e sua concepção das políticas ou da “partilha do sensível”, implicando modos de sentir, formas de subjetividades políticas, atividades, tempos e lugares constituídos (Rancière, 2009).

10 A noção de “oralitura” envolve suas próprias marcas e questões (sem abandonar sua implicação, mais que inter- relação, com a poiescritura), a serem levantadas dentro de outras discussões.

Uma heterogeneidade tal de trabalhos, processos e propostas criativas não pode ser trata como uma indiferenciação ou como uma parcialização excludente do que não se alinha ao que podemos entender como “alta literatura”, o cânon que criamos como referência. Assim, sofremos essa metanoia da lírica para seu pendor lógico-crítico; para sua fuga ou fusão de papéis, espaços e performances da apoesia, nos termos do indecidível entre presença e ausência (Pucheu, 2014); para a objetividade-limite da “coisa”, como em Ponge; para a suspeita de sua continuidade, no sentido de uma pós-poesia no projeto estético de Jean-Marie Gleize; para a sua “vontade de pensamento”, sendo já também projeto pensamental e ensaio [linguístico- filosófico], com Michel Deguy (Siscar, 2004); da sua ridicularização e contradição na antipoesia de Nicanor Parra; ou para sua “pós-humanidade”, o ciborgue, a exemplo da poesia de Alexandre Guarnieri. No entanto, ao mesmo tempo, como já comentado anteriormente, nos deparamos, só para mencionar alguns exemplos, com a poesia americana “pé-na-estrada”, ou marcada pelo texto bíblico (Louise Glück), com os processos de decolonialização poética via Américas, inclusive por resgates, revitalização e vetorialização de um estilo em ethos poético, o (neo)barroco (Agustín Cadena); com a soma da poesia vitalista, marginalista e o performatismo da rua ou do vídeo (Miró da Muribeca) que na verdade ainda consegue se comunicar com leitores não especializados, ou uma poesia-combate marcada pela partilha linguagem-política; com os cantos co-narrativos eivados de reivindicação e de recuperação da memória e do corpo, na poesia afro-brasileira, como na proposta de Conceição Evaristo11, engendrando também as chamadas “escrevivências” (Barossi, 2018)12

Por outro lado, talvez não seja a antipoesia ou a contrapoesia o assombro da poesia, mas que venha ocorrendo justamente o contrário. É possivelmente neste sentido que Nicanor Parra, sempre irônico, espicaça de um lado e do outro as duas “doutrinas”. Neste sentido, então, ele assume o verdadeiro papel de antipoeta, por definição autorreflexivo. Desse modo, em um momento, em versos prosaicos, ele diz: “como é sujo escrever versos”; ou: “Nós sustentamos/ Que o poeta não é um alquimista/ O poeta é um homem qualquer/ Um pedreiro que constrói seu muro/ Um construtor de portas e janelas.// Nós conversamos/ Na linguagem do dia a dia/ Não acreditamos em signos cabalísticos” (Parra, 2019, p. 87) e em outro momento, limpando mais ainda a essência ou a razão do poético, declara: “1. Na antipoesia se busca a poesia, não a eloquência […] 3. O poema passa – a antipoesia , também” (Parra, 2019, p. 174 ). Assim, pois, o que está sendo posto não é uma cruzada contra a poesia, é uma reflexão em prol de sua elevação, projeção de sua constante “potência de refinamento”, que põe a descoberto as contradições dos discursos que nos margeiam, porque na verdade estamos no centro do que se pode acentuar como uma escrita poética que não dispensa o labor, a ética, crítica, a política, expressiva forma da poíesis, conforme apresentada no decorrer dessa discussão.


11 Não se excluem aqui, conforme defendi em minha tese, horizontes tensivos como o de Salgado Maranhão e Edimilson de Almeida Pereira, que claramente “conversam” com as questões formais e da linguagem, de propostas poéticas como a de Mallarmé e Valéry, por exemplo, e uma vez que cada poema e cada obra também podem responder por si.

12 Embora não seja o foco, aqui, é necessário considerar a importância dessa noção de “escrevivência: uma montagem de memória, história, experiência e poética” (Barossi, 2018, p. 140)

4 O que emerge: Poiescritura

No que diz respeito ao termo, isto é, à poiescritura, estou retomando aqui duas noções fundamentais ao mergulho da poesia nos processos de sua produção, crítica e escrita, noções de base que, de um lado remetem ao sentido do trabalho de produção, o labor que não inclui uma instrumentação e um “pensar a linguagem”, recursos e tensionamentos subjetividade-objetividade ao mesmo tempo em que se ligam ao sentido de re/criar a beleza, senão o espanto, que requer um aspecto epifânico e imaginativo; e, de outro lado, estão implicadas nas práticas da escrita, que se estabelecem entre a enunciação, pertencente a uma pragmática e paleta de valores, e o enunciado, o texto, o discurso nele produzido, com suas espessuras, provocações e seus efeitos de sentido, ou até não-sentido. E nestes se esboça o sujeito poético, sujeito de um pacto escritural – eis os sentidos que agregam as noções de poíesis e de escritura e que mobilizamos, dinamizamos, ao invocá-las.

A poíesis/poíese (do grego poiein + sis, ação de criar) diz, portanto, respeito ao processo produtivo, formador, que pressupõe a técnica, mas a ultrapassa como “ação criadora” de realidades sensíveis, de obras de arte, e que, de certo modo, evoca a excelência do fazer (NUNES, 1999, p. 9). Sua raiz, poiein, que é o criar, confeccionar, compor, referia-se também, mais estritamente, à composição do poema. Heidegger, que vai deslindar da poíesis o sentido da técnica, em sua conferência A questão da técnica ([1953] 2007), interpreta aí uma ação de “pôr a descoberto”, “desabrigar”, “fazer irromper”, que ele abstrai da seguinte passagem de O Banquete, de Platão: “Todo ocasionar para algo que, a partir de uma não-presença sempre transborda e se antecipa numa presença, é ποίησις, produzir” (Heidegger, 2007, p. 379)13. Nesse mesmo ponto ele declara que a poíesis iguala o que o homem pode compor àquilo que a natureza já faz espontaneamente em sua irrupção e advento: “Também a physis, o que a partir de si emerge, é um produzir, é poíesis – a physis tem em si mesmo a irrupção do produzir – por exemplo, no advento da flor”.


13 Na tradução de O Banquete da coleção Os Pensadores, temos assim a mesma passagem: [Sabes que “poesia” é algo múltiplo; pois] toda causa de qualquer coisa passar do não-ser ao ser é “poesia” (PLATÃO, 1991, p. 37).

Em relação à escritura, ela tem respaldo nas relevantes e variadas abordagens já levantadas no campo da literatura, da filosofia e da linguagem, com variadas e relevantes abordagens desde o advento da linguística, da pragmática e da análise do discurso, sendo o próprio sujeito lírico (aqui entendido como sujeito poético, que é também poiético, poiescritural) um sujeito que atravessa a enunciação, quando não simplesmente entendido como um puro sujeito da enunciação – questão que é colocada por Dominque Combe (2005) em seu artigo La référence dédoublé – Le sujet lyrique entre ficcion et autobiographie [A referência desdobrada – O sujeito lírico entre ficção e autobiografia]. Esse autor comenta as correntes críticas inspiração saussuriana que colocam o “sujeito lírico” como um puro sujeito de enunciação, mas que é preciso considerar as próprias fissuras da enunciação, os aspectos intersticiais da ficção e da história, que não excluem (podem não excluir) o sujeito empírico, a questão fenomenológica da emergência e presença desse sujeito, enfim, à ideia de que esse sujeito está em perpétuo “tornar-se”: “o ‘sujeito lírico’ não existe, ele se cria” (Combe, 2005, p. 63).

O sentido de escritura, aqui, está não em uma hipotética escrita ingênua, ou sua preconização, dado que, como sabemos, toda linguagem está impregnada de valores mesmo quando aparenta transparência, realismo, objetividade e limpidez, principalmente no universo da literatura, da arte, porém no de por em ação valores sobre uma forma, escolha de um tom, de um ethos que engajam e individualizam, que parte de uma reflexão do escritor sobre o uso social da forma e as escolhas que ele assume, como já apontado em Barthes (1971), ao cunhar esse termo. A escritura é, pois, essa ranhura no seio da configuração de uma realidade poética, esse alerta de consciência do escrever (Maupoix: vigilância crítica; Siscar: contrariedade, contradição) que se coloca sobre um uso ingênuo da linguagem e sobre um lirismo ingênuo ou pretensamente “puro”.

Entretanto, ao carregar essa ranhura também como pathos, a poiescritura a estende para todas as formas poéticas do sensível, no que diz respeito a uma realidade que já gozou seus ideais e sofre seus despedaçamentos. “O céu está caindo aos pedaços”, resume Parra, e vemos os cacos desse corpo cujo nome continuará, a despeito de tudo, respondendo pela poesia, mas não pela “sublime lírica”, esgotada.

Poiescritura é um possível para o nome disso, do lugar onde chegamos, de uma “lírica” que, enquanto conceito, sempre que se manifesta precisa, de antemão, formular um pedido de licença para sua anacronia. A poiescritura é onde somos lançados quando precisamos lidar com os caminhos de produção e contraprodução, quando a poesia precisa acolher seus possíveis e seus contrários, porque, embora seus lugares minguem, seu pedido de razão e sua existência se amplia cada vez mais.

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1 Doutor em Letras/Teoria Literária, pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: ailtonpoiesis@gmail.com