DESCOMPASSO DO DIREITO ELEITORAL FRENTE AOS PROCEDIMENTOS RADICAIS DE DEMOCRACIA INCLUSIVA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10248291650


Gerson Augusto Bizestre Orlato1


RESUMO

O objetivo deste artigo é trazer a democracia brasileira para uma nova reflexão acerca das necessidades de readequação e rediscussão no que diz respeito à potencialização da participação e a efetivação do sufrágio, considerando as regras no defasado direito eleitoral, analisada sob a perspectiva da teoria de Habermas.

Destaca-se questões observadas na realidade brasileira relacionadas à representação desproporcional da população, em uma sociedade ainda mais moderna, sob diversos aspectos; sociais, de raça e de gênero, não observados ou distorcidos nos critérios na distribuição de cadeiras, evidenciando discrepâncias no peso do voto e dos eleitos, com prejuízo à democracia.

O artigo empreende fundamentos essenciais da concepção habermasiana, analisando atributos contemporâneos do direito e da sociedade, como a formulação e vitalidade da democracia, a esfera pública e a validade da norma jurídica, e faz a reflexão se seria possível uma democracia mais representativa do povo brasileiro, por meio de diálogos discursivos, fundamentados em racionalidades éticas e morais, princípios renovados pela ideologia da modernidade na perspectiva de Habermas, e uma organização eleitoral mais inclusiva e eficiente, mesmo acerca das cotas.

Palavras-chave: Democracia; representação eleitoral; maximização do direito fundamental.

ABSTRACT

The aim of this article is to prompt a new reflection on Brazilian democracy concerning the need for readjustment and reevaluation regarding the enhancement of participation and the realization of suffrage. This consideration takes into account the outdated electoral law, analyzed from the perspective of Habermas’ theory. The article highlights issues observed in Brazilian reality related to the disproportionate representation of the population in an even more modern society, considering various aspects such as social, racial, and gender disparities not accounted for or distorted in seat distribution criteria. This underscores discrepancies in the weight of the vote and the elected, to the detriment of democracy.

The article employs essential foundations of the Habermasian conception, analyzing contemporary attributes of law and society, such as the formulation and vitality of democracy, the public sphere, and the validity of legal norms. It reflects on whether a more representative democracy for the Brazilian people is possible through discursive dialogues grounded in ethical and moral rationalities, principles renewed by the ideology of modernity from the perspective of Habermas, and a more inclusive and efficient electoral organization, even regarding quotas.

Keywords: Democracy; electoral representation; maximization of fundamental rights.

Entre o direito formal e o cotidiano, observa-se uma discrepância significativa na realidade. Os sistemas democráticos instaurados nos países do Ocidente, decorrem das experiências seculares iniciadas na comunidade Europeia, durante a Antiguidade Clássica, que, sem dúvida, representaram um processo revolucionário, experimentado pela humanidade em sua evolução e organização de poder e sociedade. Ocorre que esse modelo democrático, “democraticamente”, se tornou quase uma unanimidade entre as diferentes nações, moldando-se conforme as necessidades das hegemonias de época e de culturas em cada novo território invadido, sem a devida observância às tradições dos países colonizados.

É necessária a percepção do contexto político, social, e de formação histórica referente à nossa democracia, e a sua realidade atualmente, pois, não foi o primeiro regime político imposto ao Brasil após 1500.

Os poderes e poderosos locais foram se estabelecendo ao longo dos anos, sempre observada a relação de poder econômico e a vontades dos detentores destes poderes, moldando assim, o perfil do futuro democrático, seus membros, e como se relacionaram se relacionariam com a população local e a sociedade em construção.

A visão dos direitos políticos no Brasil é excessivamente restrita, limitando-se principalmente à participação periódica nas seções eleitorais para exercer o voto, com períodos de mais ou de menos pessoas inseridas no sufrágio. Essa abordagem, impacta negativamente a plenitude democrática e fortalece um modelo eleitoral predominantemente patrimonialista. Torna-se urgente, portanto, uma mudança de mentalidade que envolve a adaptação da interpretação jurídica ao contexto histórico atual, e uma nova dinâmica cidadã e de legislação eleitoral mais inclusiva e humanizada.

Em um cenário de ampla tentativa de disseminação da informação e, prevalência da desinformação, da valorização do individualismo, é crucial que todos os cidadãos se sintam verdadeiramente participantes dos processos democráticos, como uma maneira de superar os desafios da “pós-modernidade”. Nesse sentido, o eleitor não deve mais ser relegado a um papel secundário, mas sim assumir o protagonismo no cenário eleitoral e democrático, na estrutura da esfera pública.

O sufrágio representa a possibilidade de participação popular nas decisões do poder, com efeito pacificador e de satisfação social, mas, em termos e tempos atuais, não representa o “empoderamento” do povo, nem tampouco, uma democracia inclusiva, ou uma radical mudança para efetivação de uma nova democracia.

É imperativo interpretar os direitos políticos com uma perspectiva mais humanizada, considerando simultaneamente tanto o texto constitucional quanto a dignidade da pessoa humana, e os fatos históricos. Essa abordagem é essencial para assegurar a eficácia social necessária desses direitos.

Vale dizer que, diante do momento de terraplanismo, de fake news e de negacionismo à ciência e à democracia, as instituições brasileiras têm reagido no sentido de preservação do regime. O TSE e o STF garantiram nos últimos tempos as eleições democráticas e o regime legalmente constituído no país, e, a lisura dos processos eleitorais.

Na decisão da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.543[1], o tribunal afirmou a inconstitucionalidade da impressão de votos no Brasil, sustentando que essa prática representaria uma ameaça ao sigilo do voto e violaria outros direitos fundamentais. Tal decisão poderia ser interpretada como um possível retrocesso democrático. Embora a ADI tenha sido autuada em 2011, e decidida em 2014, o tema tem requentado os debates políticos, em tentativas de colocar em xeque o sistema de urnas eletrônicas. Recentes episódios ocorreram nas eleições presidenciais de 2014[2], e em 2022[3].

O TSE tem destinado servidores no combate às Fake News eleitorais[4] em razão da crescente onda de propagação de notícias falsas, decorrente do uso, sem regulamentação, de redes sociais e aplicativos de comunicação.

De acordo com diagnósticos da nova mudança estrutural da esfera pública levada a cabo pelo progresso tecnológico da comunicação digitalizada, Habermas não acredita que se tenha contribuído positivamente para o agir comunicativo e para a qualidade discursiva das deliberações. “Essa grande promessa emancipatória é hoje abafada, ao menos parcialmente, pelos ruídos selvagens em câmeras de eco fragmentadas e que giram em torno de si mesmas.” (HABERMA, 2023 pág. 61)

Um movimento de descredibilizar a justiça eleitoral[5] e o discurso de desconfiança do processo de apuração de resultados de urnas eletrônicas, por meio de um discurso irracional, fez com que parte da população fosse investigada na AÇÃO PENAL 1.505[6], instaurada contra os envolvidos nos atos antidemocráticos ocorridos em 08/01/2024, que, por paixão político partidária, não admitiram o resultado da eleição presidencial e atentaram contra as instituições, o patrimônio público, e, o regime democrático, em uma tentativa de golpe.

As reflexões breves apresentadas neste início têm como propósito iniciar uma análise das teorias da ação comunicativa e da ética discursiva, fundamentos cruciais na concepção habermasiana. Isso implica examinar características contemporâneas do direito e da sociedade, como a formulação e vitalidade da democracia, a esfera pública e a validade da norma jurídica.

Adicionalmente, busca-se ponderar sobre a viabilidade de uma democracia mais representativa para o povo brasileiro, por meio dos propostos diálogos discursivos embasados em racionalidades éticas e morais, princípios renovados pela ideologia da modernidade na perspectiva de Habermas, e uma necessária reorganização do sufrágio no Brasil.

Apesar de a liberdade de participação ser um dos pilares da democracia, o diálogo social só será legítimo se todos puderem participar em igualdade de oportunidades. Como alcançar essa igualdade? Uma sociedade livre de opressão e submissão deve, necessariamente, considerar a participação em uma dimensão equânime e inclusiva.

Diante do cenário político-social e jurídico, e da problemática apresentada, surgem algumas hipóteses e questionamentos: (i) do ponto de vista da formação da população brasileira, há representatividade no legislativo e igualdades de oportunidade; (ii) a população brasileira está inserida no debate; (iii) a legislação brasileira contribui para a inclusão do indivíduo e a ampliação da participação para a consecução final do exercício de poder político no Estado Brasileiro, (iv) o direito eleitoral se apresenta como instrumento hábil para ser inclusivo e transformador da democracia.

Adotaremos como metodologia a revisão bibliográfica e da legislação, bem como de dados de resultados eleitorais tabulados por órgãos institucionais e de governo, com um olhar crítico necessário à transformação.

Ao longo da história e em termos normativos, o direito regula e reconfigura a interação entre a facticidade e a validade, aproximando essas duas categorias fundamentais de maneira intrínseca. Na obra “Direito e Democracia”, Habermas direciona sua análise para as questões constitucionais e a função dos tribunais, oferecendo uma abordagem para examinar a legitimidade e legalidade das normas.

Esse posicionamento proporciona uma mudança analítica, algo similar a uma virada normativa, ao argumentar que as ordens institucionais legais em sociedades modernas são legítimas em sua organização, desde que atendam a determinados critérios democráticos e princípios discursivos.

Em um Estado Democrático de Direito, a legitimidade está vinculada à ordem social, sendo efetivamente legítima quando elabora suas leis (constituição, legislação comum), as normas de sua aplicação (administração pública) e os meios de controle (judiciário) por meio de argumentação, caracterizando os discursos teóricos, éticos e práticos.

No Brasil, o processo de conquista do direito ao sufrágio ocorreu em diferentes e lentas etapas ao longo da história. Do Período colonial até a independência do Brasil, em 1822, não podemos falar de sufrágio, pois, escravos, negros e mulheres não tinham direito ao voto. A participação política era restrita aos brancos proprietários de terras.

Após a independência do Brasil em 1822, e promulgação da Constituição de 1824, foi concedido o direito de voto somente a homens livres, maiores de 25 anos e com renda mínima. A escravidão ainda estava em vigor e os escravos não tinham direitos políticos. Na Constituição de 1844, o direito de voto foi novamente restringido, excluindo-se os analfabetos e estabelecendo-se critérios de renda para poder votar. A escravidão continuava em vigor, e os escravos não tinham direitos políticos.

Com a Proclamação da República em 1889, a Constituição de 1891 foi promulgada, estabelecendo o sufrágio universal masculino. Isso significava que todos os homens, independentemente de raça ou propriedade, tinham o direito de votar. No entanto, a segregação racial e as práticas discriminatórias tornaram difícil para os negros exercerem efetivamente esse direito. Mulheres ainda não votavam. Apenas na Constituição de 1934 foi permitido o voto feminino.

O Código Civil de 1916 estabelecia a incapacidade civil das mulheres casadas, considerando-as legalmente subordinadas aos maridos. Isso significava que, sob a ótica da legislação da época, as mulheres casadas não tinham capacidade plena para exercer seus direitos, incluindo o direito de voto.

Embora o Código Eleitoral de 1932 tenha concedido o direito de voto às mulheres brasileiras, ainda existiam algumas restrições. Por exemplo, as mulheres precisavam atender aos mesmos requisitos exigidos dos homens, como idade mínima e alfabetização, para poderem votar.

Com a promulgação da CF 88, o sufrágio passa a ser universal.

Nesta perspectiva de construção da sociedade, o primeiro Censo do Brasil, de 1872, retratou um Brasil de maioria negra e indígena, e com a maioria da população analfabeta[7], e uma divisão proporcional, quase igualitária entre homens e mulheres, como se repete no senso de 2022[8].

Ademais, dados do grupo de trabalho do Observatório Equidade no Legislativo[9] do Senado Federal, na análise da 56ª legislatura, apontou que entre os 513 deputados federais eleitos, havia 436 homens e 77 mulheres, o que representava um aumento da representação feminina de 10% para 15% em relação à legislatura anterior. Quando se analisada a composição étnico-racial dos deputados federais eleitos para a mesma legislatura, 125 autodeclaram-se negros (104 pardos e 21 pretos), o que correspondia a 24,3% do total. Os brancos chegam a 75%. Como se sabe, essa discrepância, como se sabe, se repete em todos os Três Poderes, em suas estruturas. Em 2020, no nível hierárquico mais alto dos cargos de assessoramento e direção da Administração Pública Federal (DAS-6), a composição de gênero e raça era a seguinte: 65% de homens brancos, 15,4% de mulheres brancas, 13,3% de homens negros e 1,3% de mulheres negras (SILVA; LOPEZ, 2021, p. 13).

Estas estatísticas confirmam que não existe representatividade no legislativo e na política no que tange à ocupação proporcional entre raça e gênero. O reflexo disso poderia ser a falta de inserção da população brasileira no debate, na esfera pública.

Para uma melhor estrutura de esfera pública e de política, ao contrário de seus predecessores, Habermas mantém a crença no poder do diálogo e na razão comunicativa que surge entre os participantes de uma situação discursiva, onde prevalece o melhor argumento e a busca pelo entendimento mútuo.

Na perspectiva habermasiana, a esfera pública é concebida como uma instância deliberativa e legitimadora do poder político, assemelhando-se ao parlamentarismo. A proposta de Habermas amplia o alcance do conceito, argumentando que qualquer tema de relevância pública, seja da burguesia, da classe operária ou de outros grupos, enfim, da coletividade, deve passar por uma abordagem crítica. Existe um entrelaçamento da política liberal e republicana em um contexto de institucionalização das formas de comunicação, visando produzir resultados racionais no estado democrático.

A teoria do discurso toma elementos de ambas as partes e os integra no conceito de um procedimento ideal de deliberação e de tomada de decisões. Esse procedimento democrático estabelece uma conexão interna entre considerações pragmáticas, compromissos, discursos de autocompreensão e discursos relativos a questões de justiça e fundamenta a suposição de que sob tais condições obtém-se resultados racionais e equitativos. Conforme essa concepção, a razão prática se afastaria dos direitos universais do homem (liberalismo) ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade (comunitarismo) para se situar naquelas normas de discurso e de formas de argumentação que retiram seu conteúdo normativo do fundamento de validade da ação orientada para o entendimento e, em última instância portanto, da própria estrutura da comunicação linguística. (HABERMAS, 2012)

Em outros períodos, a legitimidade era assegurada por fontes como Deus, natureza, autoridade do Estado, tradição e prática cotidiana. Com a introdução da ideia do discurso, que implica a suspensão da validade dessas fontes legitimadoras, a validade e legitimidade de uma norma ou lei passam a depender de processos argumentativos democráticos, livres de coação, nos quais todos têm acesso aos processos comunicativos.

Isso implica na desconstrução da estrutura weberiana[10] e na ratificação do pensamento habermasiano de faticidade e validade, e democracia. Somente após superar dúvidas e questionamentos de todos os interlocutores é que a fala cotidiana se restabelece, e a nova legitimidade pode ser implementada.

A radicalidade democrática de Habermas coloca os indivíduos diante de normas e leis que, até recentemente, não necessitavam ser validadas por meio de discursos teóricos e práticos.

Nesse contexto, nenhuma vontade individual ou de grupos pode ser imposta; pelo contrário, as vontades individuais precisam ser transformadas em uma vontade geral construída de maneira racional. Em resumo, a esfera pública é um fenômeno social fundamental, sendo descrita como uma rede propícia para a comunicação de conteúdos, tomadas de posições e opiniões.

Sociedades modernas são integradas não somente de valores, normas e processos de entendimento, mas também sistematicamente, através de mercados e do poder administrativo. Dinheiro e poder administrativo constituem mecanismos da integração social, formadores de sistema, que coordenam as ações de forma objetiva, como que por trás das costas dos participantes da interação, portanto não necessariamente através da sua consciência intencional ou comunicativa. A “mão invisível” do mercado constitui, desde a época de Adam Smith, o exemplo clássico para esse tipo de regulamentação. Ambos os meios ancoram-se nas ordens do mundo da vida, integrados na sociedade através do agir comunicativo, seguindo o caminho da institucionalização do direito. (HABERMAS, 2012:61)

A autonomização das esferas estabelece um debate aberto, livre de preconceitos, sobre as concepções de mundo dentro do subsistema cultural. A autorreflexão e a crítica impõem à ciência, à moral e à arte o desafio de fornecer novos modelos interpretativos do processo de transformação, fundamentados na razão comunicativa e libertos da coerção monológica de concepções preestabelecidas.

Habermas abordou a questão do Direito como um instrumento de mediação e integração social, destacando que leis e normas só seriam legítimas e válidas se fossem formuladas e respeitadas por meio de argumentação fundamentada na racionalidade. Enquanto as normas podem e devem passar por um procedimento discursivo para adquirir validade, os valores precisam ser examinados no âmbito do mundo vivido e do subsistema cultural.

Nesse contexto, é crucial que se desvinculem de conceitos preconcebidos para alcançar uma validação universal. A modernidade, segundo Habermas, não deve ser apenas interpretada no sentido estrito, mas como um processo de transformação ética e moral individual orientado pela racionalidade.

Assim, o papel do Direito como instrumento de mediação e integração social é analisado à luz da sua legalidade e legitimidade, sendo orientado por vias discursivas e pela racionalidade, em consonância com as transformações sociais, marcadas pela era da modernidade. A abordagem da modernidade não se restringe apenas ao sentido estrito, mas propõe um processo de transformação ética e moral individual.

O direito eleitoral, no decorrer dos anos tem sofrido alterações em suas tentativas de ampliar a participação e representatividade nos poderes Executivo e Legislativo. Contudo, sem a devida inserção da população no debate, as medidas, em mina opinião se mostram vazias, e nada eficazes. O aumento de mulheres e negros eleitos não ocorrem de forma radical, tem sindo lento e gradativo, pois o instrumento legislativo brasileiros para isso não é inclusivo, e não atinge o objetivo final, qual seja, o exercício do poder por esta parcela da população.

Digo que a legislação brasileira não contribui para isso, adotando como paradigma, as diferentes políticas de cotas, instituídas também no âmbito eleitoral.

A decisão que confirmou a constitucionalidade das cotas raciais nas universidades brasileiras ocorreu em 2012, a ADPF 186 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) foi proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 2009, e o julgamento ocorreu em abril de 2012. A decisão do STF foi favorável à constitucionalidade das cotas raciais nas universidades, permitindo sua adoção como uma política afirmativa para promover a inclusão e a igualdade racial.

O direito fundamental de sufrágio refere-se ao direito de votar e ser votado em eleições políticas. É um direito fundamental das pessoas em uma democracia, pois permite que os cidadãos participem do processo de tomada de decisões políticas e exerçam influência sobre os governantes e representantes eleitos. Está associado ao princípio da igualdade política, que preconiza que todos os cidadãos devem ter o mesmo direito de participar das eleições e ter sua voz ouvida, e é protegido por várias declarações e convenções internacionais. Assim como o direito ao Ensino.

A Lei 10.304 de 2009, que alterou a Lei 9.504/97, trouxe a obrigatoriedade de que cada partido ou coligação preencha no mínimo 30% e no máximo 70% para candidaturas de cada sexo.

A diferença de eficiência da política de cotas para universidades e da cota eleitoral, está em seu resultado.

No caso das Universidades, as cotas são reservadas e ocupadas, usufruídas, no direito eleitoral, isto não ocorre, existindo uma sub representatividade.

A referência da citada ADPF das cotas, deixa claro o tratamento diferenciado dos sistemas de cotas, tanto em uma perspectiva legal e jurisprudencial, quanto de lugar de debate na sociedade, e demonstra a aceitação pela sociedade, de políticas afirmativas, apenas quando estas efetivamente se consumam, em relação àquelas que não modificam o plano da realidade. A sociedade brasileira é racista, e machista, sobretudo para a preservação de direitos de uma elite.

Se a perspectiva da sociedade em relação às políticas de cotas fosse a mesma, e se tivéssemos uma racionalidade comunicativa em questão de enfrentamento à política e a democracia, como proposto por Habermas, acredito, teríamos nesta situação dois caminhos a serem adotados, uma ADPF para questionar as efetividades das políticas de cotas com a necessidade de se implementar critérios diferenciados para garantir a eleição e posse de mulheres e negros, ou, em um processo de deliberação no debate público, a legislação seria alterada. Não há validade da norma eleitoral em uma perspectiva democrática mais moderna e abrangente.

O atual Código Eleitoral – Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 remonta uma época de comunicação e de convivência social que não compactua com os dias atuas, assim como, a já ultrapassada lei eleitoral.

É preciso diferenciar o direito de eleição do sistema de apuração eleitoral democrático no Brasil, referência em termos de democracia com apuração informatizada do resultado das eleições.

A manutenção do instrumento de participação política através dos critérios de elegibilidade adotados não é suficiente para reverter em curto prazo a sub representatividade, e, nem tampouco, garantir a existência da democracia em tempos atuais.

As populações de mulheres e as de negro, além dos indígenas, tem sido historicamente submetida a um processo sistemático de exclusão. Esses grupos sociais atravessaram períodos de escravidão e de restrições políticas em toda a nossa história, e enfrentaram restrições aos seus direitos mesmo após a promulgação de uma constituição dita cidadã, mas com cunho liberal, e foram estigmatizados como inferiores por políticos que buscavam estabelecer uma população predominantemente branca, e dominante por homens.

Essa realidade persiste na atualidade, conforme evidenciado por numerosos estudos sociológicos e históricos que apontam para as consequências discriminatórias enfrentadas por estes grupos, mantendo-os em uma condição de marginalização constante.

Presencia-se aqui, em um atual contexto brasileiro, um claro exemplo de questão de facticidade e validade, relacionadas a uma realidade social, originada simultaneamente de processos históricos e sociais “espontâneos”, cuja normatividade pode ser atribuída ao sentimento comunitarista e à tradição, e práticas normativas deduzidas da legislação vigente, que restringem o exercício democrático de poder. Habermas inverte a relação entre legitimidade e legalidade, e questiona a compreensão weberiana a partir da facticidade de uma ordem social.

Essa facticidade e validade só teriam validade ética e jurídica se as normas e leis que a regem fossem elaboradas discursivamente, conforme os critérios descritos e dentro de uma racionalidade proposta.

Essa interpretação concebe a modernidade como um fenômeno cultural, caracterizado por um processo de transformação no qual se materializou a ação comunicativa orientada pela racionalidade, fato que, na democracia brasileira não se consolidou.

Esse processo é orientado pelos sociólogos e filósofos, que atuam como intérpretes, racionalizando os valores dos agentes à medida que o mundo vivido e o mundo sistêmico se transformam. Habermas, em sua teoria da ação comunicativa e em sua teoria discursiva do direito, advoga por uma democracia radical, aplicada em todos os níveis e setores do mundo vivido e sistêmico. Estamos desta forma de frente a radicalidade democrática de Habermas coloca os indivíduos diante de normas e leis que, até recentemente, não necessitavam ser validadas por meio de discursos teóricos e práticos.

Nesse espaço, os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, convergindo para a formação de opiniões públicas em torno de temas específicos. A esfera pública também fortalece aspectos relacionados à intelectualidade, ao passo que a separação entre opiniões compartilhadas evita a indiferença da orientação leiga, e as obrigações concretas da ação contribuem para o processo de formação de opinião.

É importante ressaltar que a esfera pública não pode ser representativa no sentido estatístico, não constituindo um agregado de opiniões individuais pesquisadas uma a uma ou manifestadas privadamente. Dessa forma, ela não deve ser confundida com meros resultados de pesquisas de opinião. Do ponto de vista normativo, a esfera pública estabelece um critério para a legitimidade da influência exercida por opiniões públicas sobre o sistema político.

Isso cria uma interseção crucial entre o cidadão do Estado, titulares da esfera pública política e os membros da sociedade. Assim, a esfera pública desempenha o papel de integradora dos indivíduos na formação do seu exame crítico de valores éticos e morais. Inicialmente, Habermas parte da questão moral como ponto central de sua análise. Diante das múltiplas mudanças sociais, surge a necessidade de distinguir entre moral e ética.

Como seres históricos e sociais, somos moldados e nascemos em um mundo de vida linguisticamente estruturado, onde a linguagem serve como um meio coletivo facilitador do entendimento entre os indivíduos. Nenhum participante individual pode controlar isoladamente os processos de entendimento e autocompreensão. A consciência e a capacidade de tomar posição emergem dos processos interativos mediados pela linguagem.

Quando aspectos sensíveis da natureza humana, como cláusulas pétreas, estão em jogo, torna-se imperativo um amplo debate na sociedade para renegociar o que pode ser considerado lícito e regulamentar o que escapa à esfera do individual e da moralidade interpessoal. Com a ética discursiva e a teoria do direito discursivo, novos valores e normas exigem a abertura de debates práticos na esfera pública para institucionalizá-los e regulamentá-los por meio de diálogos, integrando os indivíduos na formação do seu exame crítico de valores éticos e morais.

Todos os subsistemas seriam compartilhados independentemente de classe social e nível intelectual, surgindo assim mediadores de princípios discursivos e racionais necessários para estabelecer uma nova ordem normativa aceita por todos, a fim de regular valores comuns a todos. Desse modo, no contexto da crise do Estado de bem-estar social, os processos de democracia radical propostos por Habermas poderiam redefinir fundamentalmente a continuidade da modernização econômico-social. Reconstruir racionalmente.

“Uma teoria da democracia, portanto, não precisa se submeter a tarefa de formular os princípios de uma ordem política justa por si só, ou seja, construí-los e justificá-los para torna-los pedagogicamente presentes aos cidadãos; em outras palavras, não precisa ser entender como teoria projetada normativamente. Em vez disso, sua tarefa consiste muito mais reconstruir racionalmente tais princípios a partir do direito vigente e das respectivas expectativas intuitivas e das concepções de legitimidade dos cidadãos. Ela precisa explicitar o significado fundamental das ordens constitucionais historicamente encontradas e comprovadas, ou seja, explicitar as ordens constitucionais suficientemente estáveis e explicar as razões justificadoras que produzem, na consciência dos cidadãos, a força efetivamente legitimadora da dominação exercida fanaticamente e que, , portanto, também podem garantir sua participação. Essa teoria política, na medida em que explicita a consciência implícita da massa de cidadãos participantes da vida política, e, por sua vez, pode novamente moldar sua auto compreensão normativa, não é mais incomum do que o papel da história acadêmica contemporânea (…) É por isso que, para mim, a política deliberativa não é um ideal elevado a partir do qual teríamos de medir a realidade desprezível, mas sim, na sociedades pluralistas, um pré-requisito para a existência de qualquer democracia digna desse nome. Depois quanto mais heterogêneo forem as situações sociais, as formas de vida culturais e os estilos de vida individuais de uma sociedade, tanto mais a falta de um consenso de fundo existente a fortiori precisará ser compensada pelo caráter comum da formação pública da opinião e da vontade.” (HABERMAS, 2023 pág. 36)

Nestes moldes, se faz necessário a reformulação do direito eleitoral para que se apresente como um instrumento hábil para ser inclusivo e transformador da democracia, possibilitando que efetivamente tenhamos a representatividade da população brasileira dentro da democracia, e vivenciarmos de fato uma democracia.

A justificação para a ação afirmativa pode basear-se numa perspectiva de justiça restaurativa, particularmente quando se consideram as obrigações legais das agências governamentais para eliminar todas as formas de marginalização. Os múltiplos papéis desempenhados pelo governo brasileiro na opressão dessas minorias políticas exigem que o governo brasileiro tenha a responsabilidade moral e legal de promulgar iniciativas que revertam os problemas que causou por direito próprio às injustiças democráticas históricas.

Esta política pública não só cria uma sociedade mais integrada, como também serve como mecanismo para aumentar a participação de grupos minoritários em posições de prestígio e poder. A influência do discurso democrático no debate sobre a ação afirmativa obscurece muitas vezes os objetivos que a política procura alcançar. Os críticos argumentam que isso pode promover a racialização da sociedade brasileira e minar a moralidade pública de igualdade de tratamento entre grupos raciais.

O hibridismo de poder pode ser considerado um objetivo desejável da sociedade brasileira, e as cotas tornam-se uma ferramenta importante para atingir esse objetivo. Quer sejam mecanismos compensatórios ou meios promocionais, estas medidas permitem concretizar os ideais democráticos.

A ação afirmativa cria as condições para que os grupos minoritários participem no processo de tomada de decisão e promove a sua participação nas decisões que afetam todos os sectores da sociedade. Os casamentos mistos nos centros de poder tornaram-se, portanto, um passo necessário para a integração social de um segmento da população que se encontrava numa posição subordinada desde a fundação do país.

Bibliografia

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SIMIONI, Rafael Lazzarato. Direito e Racionalidade Comunicativa. A teoria Discursiva do Direito no Pensamento de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá, 2016.

MOREIRA, A. Miscigenando o Círculo de Poder (artigo)


[1] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4019347

[2] APURAÇÃO DE ELEIÇÃO N° 1578-04.2014.6.00.0000 TSE

[3] https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2018/Outubro/tse-determina-exclusao-de-video-em-que-jair-bolsonaro-critica-urnas-eletronicas

[4] https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Julho/justica-eleitoral-oferece-ferramentas-para-combater-a-desinformacao-286936

[5] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/09/partido-de-bolsonaro-questiona-urnas-as-vesperas-da-eleicao-mas-faz-jogo-duplo-e-acena-a-tse.shtml

[6] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6671505

[7] https://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo?id=225477&view=detalhes   https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/1o-censo-do-brasil-feito-ha-150-anos-contou-1-5-milhao-de-escravizados

[8] https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/?utm_source=ibge&utm_medium=home&utm_campaign=portal

[9] https://www12.senado.leg.br/institucional/responsabilidade-social/oel/observatorio-de-equidade-nos-legislativos-federal-e-estaduais

[10] A teoria weberiana considera as organizações como sistemas burocráticos, que constituem o ponto de partida para sociólogos e cientistas políticos no estudo das organizações.


[1] Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito Sul de Minas FDSM e-mail g.orlato@gmail.com