DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA PRÁTICA DOCENTE: A MULTISSERIAÇÃO NO CONTEXTO CAMPESINO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102501161653


José Fábio Vieira Gomes1
Adriano Neris da Silva 2
Maria José Alves da Silva3
Tiago Oliveira Pereira4
Elizabete Andrade Souza5


RESUMO

A pesquisa tem como objeto de estudo a prática docente na multisseriação. O estudo consiste em uma pesquisa de campo, realizada na Escola Antônio Sinésio dos Santos, no Sítio Itamatay, localizado no município de Pirpirituba – PB. Como pergunta norteadora, nos questionamos: como acontece a prática docente na multisseriação na referida escola? Para respondermos, traçamos como objetivo geral analisar a prática docente na multisseriação no contexto da Escola Antônio Sinésio dos Santos. Determinamos como objetivos específicos: identificar a compreensão dos docentes da escola sobre a multisseriação; compreender o processo formativo dos docentes e sua relação com a prática docente; verificar a prática docente na multissérie, considerando as condições estruturais da realidade do campo. Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso. Como procedimento de coleta de dados, foram aplicados questionários (LUDKE; ANDRE, 1986) a três (3) professores que atuam na escola, sendo um (1) professor e duas (2) professoras. Como procedimento técnico de análise dos dados, utilizamos a análise de conteúdos, conforme Bardin (2004). A partir da análise dos dados, estabelecemos as seguintes categorias: educação do campo,; organização multissérie,; prática docente e processo formativo. Concluímos esta pesquisa afirmando que a prática docente na organização multissérie da referida escola acontece na perspectiva urbanocêntrica, com formações sem direcionamentos para as especificidades e seus contextos da realidade campesina. Por isso, é necessário que os órgãos competentes venham a concentrar esforços no sentido de olhar para a multissérie como organização de ensino, tecendo outros olhares para além da lógica seriada.

Palavraschaves: Educação do campo. Multissérie. Prática docente. Formação docente. Escola do campo.

INTRODUÇÃO

Essa pesquisa tem como objeto de estudo a prática docente na multisseriação e parte da seguinte problematização: como acontece a prática docente na multissérie da escola Antônio Sinésio dos Santos? Para respondermos, traçamos como objetivo geral analisar a prática docente na multisseriação no contexto da Escola Antônio Sinésio dos Santos, lócus de investigação. Os objetivos específicos do nosso trabalho foram: identificar a compreensão dos docentes da escola sobre a multisseriação; compreender o processo formativo dos docentes e sua relação com a prática docente; verificar a prática docente na multissérie, considerando as condições estruturais da realidade do campo.

O estudo trata de uma pesquisa de campo realizada na Escola Antônio Sinésio dos Santos, no Sítio Itamatay, localizado no município de Pirpirituba – PB. A pesquisa busca contribuir com discussões já existentes no tocante à prática docente na multissérie na escola do campo já citada, bem como fomentar reflexões que possam ressignificar a prática docente no contexto dessa configuração curricular na escola, através das análises da fala dos professores.

Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa de campo Gil (1999), situa-se na abordagem qualitativa Flick (2009), com finalidade exploratória Gil (2002). Consideramos a pesquisa do tipo estudo de caso (Fonseca, 2002), Como procedimento de coleta de dados, tivemos, por razões da pandemia do Covid-19, assim como decretos (estadual e municipal), suspender as entrevistas semiestruturadas, como mais pertinente em uma pesquisa de abordagem qualitativa, substituindo-as por questionários. Como técnica de análise dos dados, utilizamos a análise de conteúdos conforme (BARDIN, 2004).

Nesse cenário, utilizamos algumas categorias necessárias em nossa pesquisa. Para a bem compreensão das categorias de análise dialogamos com alguns teóricos como Molina (2003), Caldart (2004) na construção de educação do/no campo; Hage (2006, 2008, 2009, 2010) e parente (2014), para a compreensão do conceito de multisseriação e, por fim, Silva (2009), Veiga (1989) para a compreensão de prática docente.

Nesse sentindo, podemos afirmar que a prática docente na configuração multisseriada da referida escola, acontece na lógica urbanocêntrica; os docentes teoricamente conhecem o conceito, bem como a funcionalidade multissérie, no entanto, suas práticas são em uma perspectiva lógica seriada; e suas formações acontecem sem considerar a especificidade do campo, como também a realidade e seus contextos.

2 EDUCAÇÃO DO CAMPO: A MULTISSÉRIE E SUA PRÁTICA DOCENTE

Antes de começarmos a teorizar sobre a prática docente na multisseriação na escola do campo, vamos traçar, nessa seção, um breve histórico da educação do campo no Brasil. Por isso, precisamos definir os sujeitos que dela fazem parte: são todos aqueles que vivem no campo e que têm uma cultura campesina a ser respeitada. Partimos dos rompimentos que aconteceram durante essa trajetória, como também a conceituação – de educação rural e educação do campo – que possibilitou mudanças favoráveis para os sujeitos do campo, ao longo desse percurso.

Historicamente, o conceito de rural estava vinculado ao homem do campo como atrasado, com uma educação sem qualidade. A educação rural é vista como algo precário, baixo e inferior perante a cidade; a sua conceituação está ligada à lógica do capitalismo, a fim de atender os interesses do mercado. Contudo, esse conceito permanece, e está em dis- puta com a educação do campo que é um projeto que reivindica substituir a educação rural. Para Molina (2003, p. 109), “a ruptura com o paradigma da educação rural está no movimento por uma educação do campo por que recusa a visão de uma educação precária, atrasada com pouca qualidade e poucos recursos, tendo como pano de fundo um espaço rural visto como inferior e arcaico”. Portanto, o conceito de educação do campo é um rompimento com o paradigma rural, justamente por suas precariedades e visão retardada do povo do campo, surgindo um novo conceito que possibilitou caminhos de avanços do homem do campo em sua vida.

Conforme Barros e Lihtnov (2016), em um encontro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra:

[…] em 1987, é criada a setorial de educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Deste encontro afloram algumas propostas para a temática da educação rural, sendo a principal delas melhorar a qualidade do ensino a partir da apreciação das necessidades existentes no campo. Este será o marco de transição entre a Educação Rural e a Educação do Campo (BARROS; LIHTNOV, 2016, p. 32).

Nesse sentido, a busca por melhoria do ensino no campo passou pela ruptura da concepção de educação rural, que tem por base de sustentação o capitalismo agrário com forte influência no agronegócio, tendo uma visão de território como um espaço de produção e lucro, totalmente contrário à concepção de educação do campo.

Por conseguinte, os debates relacionados à educação do campo tiveram uma intensificação a partir de julho de 1997, com o Encontro de Educadores e Educadoras da

Reforma Agrária (I ENERA) no Campus da Universidade de Brasília (UnB), sendo que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que promoveu esse encontro: “juntamente com o Fundo das Nações Unidas para Infância – UNICEF, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura – UNESCO e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB” (SANTOS, 2009, p. 39).

Nesse sentido, surgiram outros encontros que foram necessários para a transformação desse paradigma de rural para o campo, a exemplo da I Conferência Nacional Por Uma Educação Básica do Campo, realizada em Luziânia-GO, de 27 a 31 de julho de 1998. Falando a respeito dessa Conferência sobre educação do campo como importante para a luta pelas escolas do campo, Caldart destaca:

[…] Precisamos aprender a potencializar os movimentos das diversas experiências e transformá-los em um “movimento consciente de construção das escolas do campo” como escolas que ajudem neste processo mais amplo de humanização e de reafirmação dos povos do campo como sujeitos de seu próprio destino, de sua própria história (CALDART, 2004, p. 89-90).

Com isso, tivemos ainda um importante marco na história da educação do campo que foi a aprovação das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo por meio da Resolução do Conselho Nacional de Educação nº 1/2002, de 3 de abril de 2002. Essa resolução estabeleceu princípios concernentes aos sujeitos do campo, como identidade, saberes, cultura e memória coletiva. Além disso, adequou o projeto institucional das escolas do campo às diretrizes nacionais do ensino infantil, fundamental, médio, jovens e adultos, especial, indígena, bem como a educação profissional de nível técnico e formação de docentes de nível médio (BRASIL, 2002).

Portanto, com essas conquistas e avanços para a educação do campo, caminhos foram traçados, como o Seminário Nacional, realizado em Brasília, de 26 a 29 de novem- bro de 2002, que estabeleceu, de fato, a mudança de educação rural para educação do cam- po, uma vez que serviu para impulsionar debates da II Conferência Nacional por Uma Educação do Campo, que foi realizado em Luziânia – GO, nos dias 2 a 6 de agosto de 2004. Esse rompimento aconteceu conforme nos falam os autores:

Utilizar-se-á campo, e não mais a usual, meio rural, com o objetivo de incluir no processo da conferência uma reflexão sobre o sentido atual do trabalho camponês e das lutas sociais e culturais dos grupos que hoje tentam garantir a sobrevivência desse trabalho […] (KOLLING; NERY; MOLINA, 1999, p. 26).

Migrando de rural para o campo, esse novo conceito de educação do campo abriu também horizontes, possibilitando identificar quem são esses sujeitos do campo, não somente como aqueles que trabalham com a agricultura, mas também novos povos que

sobrevivem nesse espaço e desempenham outras atividades além da agricultura, com uma diversidade do campo. Os sujeitos que a compõe são pequenos agricultores, quilombolas, indígenas, pescadores, camponeses, assentados, reassentados, ribeirinhos, povos das florestas, caipiras, lavradores, roceiros, sem-terra, agregados, caboclos, meeiros, boias frias. A Resolução nº 2 de 2008 no parecer do conselho nacional de educação/câmara de educação básica (CNE/CEB), estabelece no Art.1º

[…] destina-se ao atendimento às populações rurais em suas mais variadas formas de produção da vida – agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados da Reforma Agrária, quilombolas, caiçaras, indígenas e outros. […] (BRASIL, 2008, p. 1).

Essa Resolução, que foi fruto da luta dos movimentos sociais do campo e das organizações surgidas anteriormente, define os sujeitos que pertencem ao campo, que sobrevivem e vivem no campo, e firma um parecer que orienta e garante uma normatividade que favorece os sujeitos do campo. Sendo assim, a educação do campo é gestada pelo sujeito do campo e com os sujeitos do campo, contrariando o projeto da educação rural que é pensado para e não com o homem camponês, mas algo que já vem pronto, preparado, projetando caminhos diferentes ao campesinato. Com a II Conferência, reforçando o que foi discutido na I Conferência, ambas acorridas em Luziânia-GO, buscou- se, cada vez mais, o reconhecimento da especificidade e de suas formas de viver no campo.

Portanto, a educação do campo, comprometida com as lutas dos sujeitos do campo, agora precisa pensar um modelo de escola do campo que leve em consideração as identidades próprias desses sujeitos, de modo a romper com a racionalização típica do sistema educacional urbanocêntrico seriado, tomado como modelo, e assumir as características próprias de escola campesina, que tem função social de emancipar os sujeitos do campo.

Nesse sentido, Hage (2021) percebe que a escola urbanocêntrica ao primar o sistema seriado de ensino como modelo “regular” nas escolas do campo, desconsidera, e desqualifica outras formas de organização, efetivando a exclusão de experiências educativas outras, como a multisseriação. Com isso, a multisseriação é rotulada, adjetivada, e sendo usada para reforçar o modelo seriado, e o fechamento das escolas do campo (PARENTE, 2014).

Para Santos, as turmas multisseriadas são:

Uma forma de organização escolar caracterizada pela oferta do ensino a um grupo de estudantes constituído de vários níveis de aprendizagem (ano, série, grau, ciclo, etc.) e diferentes idades, reunidos em um mesmo espaço (uma sala de aula), geralmente sob responsabilidade de apenas uma professora ou professor (SANTOS, 2015, p. 87).

Considerando que esse fenômeno das turmas multisseriadas tem sua gênese na escola rural, embora estejam presentes também no meio urbano;   nas escolas que com essa forma de organização de ensino, os professores, geralmente, enfrentam essa realidade nas escolas do campo em sua prática docente: lecionam em uma sala multissérie com muitas séries ao mesmo tempo, além do mais, exercem outras funções que não são de sua competência.

Nesse contexto de esquecimento, a multisseriação revela muitos descasos presen- te nas escolas do campo, entre eles, os descasos relativos à prática docente, bem como às condições de trabalho. Parente diz que:

A multisseriação é uma prática que incomoda. E vem incomodando cada vez mais porque é a partir dela que são expostos muitos dos históricos problemas educacio- nais: escassa infraestrutura material, pedagógica, administrativa e de recursos hu- manos; condições precárias de trabalho e de formação docente (PARENTE, 2014, p. 58-59).

A prática docente nessa configuração de ensino, torna-se desafiador, e um desafio. Segundo Fagundes e Martini (2013), sobre essa realidade da docência na multisseriação nas escolas do campo, há limitações que os professores dessas escolas enfrentam em suas práticas, como o acúmulo de cargos, sendo que além de professor de uma classe com diferentes séries, assume funções de merendeiro, faxineiro, diretor, secretário, etc.

Conforme Hage (2006, p. 309), uma das dificuldades docentes na sala multisseriada consiste no fato de que “os professores enfrentam dificuldade em realizar o planejamento nas escolas multisseriadas por que trabalham com muitas séries ao mesmo tempo, envolvendo estudante de diversas faixas etárias, interesses e níveis de aprendizagem […]” (HAGE, 2006, p. 309, grifo nosso).

Nesse caminho, outro entrave é a formação (inicial e continuada) dos professores das classes multisseriadas, fator a ser considerado, pois muitos possuem formações deficitárias, atuando em áreas distintas da que foram formados. Há, também, casos em que a inexistência de formações agrava ainda mais tal situação. Na formação continuada, os professores e pais e toda comunidade se sentem sem apoio das secretarias, que deveriam dar um suporte formativo e um acompanhamento pedagógico para os docentes do campo; no entanto, percebe-se o quanto não se tem assistência por parte dos sistemas, deixando os docentes do campo privados de orientação, a sós (HAGE, 2008).

Concernente ao processo formativo, temos o currículo descontextualizado distante do campo, sem considerar a cultura dos sujeitos. Diante disso, a escola do campo precisa de um currículo que esteja voltado para sua realidade. Com um currículo centralizado oriundo da cidade, a cultura campesina fica desprovida de direitos, de uma educação que trabalhe com suas identidades. Nesse contexto, Hage (2008, p. 10, grifo nosso) diz que: “as escolas multisseriadas têm assumido um currículo deslocado das culturas da população do campo, situação que precisa ser superada caso se pretenda enfrentar o fracasso escolar e afirmar as identidades culturais das populações do campo”.

Outro aspecto que dificulta a prática docente das classes multisseriadas refere-se aos materiais didáticos que os professores do campo utilizam em suas aulas, os quais não são preparados para a realidade campesina e nem para a organização multisseriada. Essa ação vai refletir, também, em uma prática docente igual à organização seriada, restando: “seguir as indicações do livro didático, sem atentar com clareza para as implicações curri- culares dessa atitude, uma vez que esses manuais didáticos têm imposto a definição de um currículo deslocado da realidade […]” (HAGE, 2008, p. 03).

Além disso, uma preocupação que desestimula o exercício docente são as estrutu- ras físicas em estados de precariedade. Muitas delas não têm as mínimas possibilidades para funcionar. Os móveis escolares, como quadros e carteiras, geralmente, se encontram danificados, e, ainda, muitas das escolas do campo com essa organização de ensino não têm prédio próprio, passando a funcionar em casas de professores, igrejas e barracões de festas ou prédios alugados.

Conforme Hage (2009, p. 27), “[…] muitas escolas constituem-se em um único es- paço físico e funcionam em salões paroquiais, centros comunitários, varandas de residên- cias, não possuindo área para cozinha, merenda, lazer, biblioteca, banheiro, etc.”. Com isso, “o processo de ensino-aprendizagem é prejudicado pela precariedade da estrutura física das escolas multisseriadas […]” (HAGE, 2009, p. 27).

Elaboramos, a partir do questionário aplicado com os docentes, um quadro de análise caracterizando o perfil do corpo docente da escola, que recebeu pseudônimos, sendo denominado como Professor (a): (A), (B), (C).

QUADRO 01 – Perfil dos professores

SUJEITOPERFIL DOS RESPONDENTES
    Professora ASérie/Ano que leciona: Educação Infantil I e II, e 1º ano For- mação: Não respondeu à questão Tempo de atuação em sala de aula: 18 anos Mora na Comunidade: Não
    Professora BSérie/Ano que leciona: 2º e 3º anos Formação: Não respondeu à questão Tempo de atuação: 11 anos Mora na Comunidade: Não
    Professor CSérie/Ano que leciona: 4º e 5 º anos Formação: Licenciatura em Geografia Tempo de atuação em sala de aula: 17 anos Mora na Comunidade: Não

Fonte: Elaborado pelos autores.

3  DIÁLOGOS CRUZADOS: A FALA DOS PROFESSORES

Nesta seção, apresentamos e analisamos os dados da pesquisa empírica a partir das falas dos docentes coletadas por meio dos questionários sobre as categorias: conceituação sobre multisseriação, processo formativo considerando a especificidade do campo, bem como, a prática docente na realidade da escola.

3.1  Conceito sobre multissérie no campo: invisibilidade e esperanças futuras

Embora a multisseriação seja tão frequente nas escolas do campo, é bem menor a sua quantidade na cidade, sendo que a sua real significação é desconhecida por muitos profissionais da educação, gestores, secretários. A maioria conhece na prática, poucos por definição. O fato é que a multisseriação, conforme Teixeira e Lima (2011), é uma realidade que está no campo, onde uma turma com um único professor leciona para várias séries no mesmo espaço.     Portanto, achamos pertinente o professor conhecer o conceito de multissérie, para dar fundamento e direção à sua prática docente.

Nas respostas aos questionários aplicados nessa pesquisa com os professores sobre a concepção de multisseriação, como resposta tivemos:

Sala multisseriada é onde se pode agrupar duas ou mais série para se trabalhar de formar contextualizada os diferentes níveis de aprendizagem, apresentando um tema (projeto ou conteúdo) para todos com objetivos e atividades diferenciadas de acordo com as capacidades e níveis das crianças (Professora A, 2020).

É a forma de ensino onde o professor trabalha com sua turma com discentes de diferentes séries. […] trabalhar com a turma heterogênea no que diz respeito a séries diferentes do ensino fundamental e infantil (Professora B, 2020).

A multisseriação é uma mistura de várias séries em uma mesma sala de aula, isso não quer dizer que em uma sala normal não haja uma multisseriação (Professor C, 2020).

Nas respostas, observa-se que os professores, pelas suas respectivas respostas, têm clareza sobre a multissérie. A prática vivenciada no cotidiano permite falar com mais propriedade. Para a professora A, ao falar sobre o que entende por multissérie, colocou uma palavra diferente em relação aos outros, e que chamou atenção, que na sala multissérie é preciso: “trabalhar de forma contextualizada os diferentes níveis de aprendizagem”. Destacamos que essa fala é importante, pois é necessário que o currículo da escola do campo possa ser contextualizado para contemplar a configuração multissérie, bem como as identidades dos sujeitos, a fim de ter “[…] intenções educativas” que “[…] contribuem para a construção das identidades de nossos/as estudantes” (MOREIRA; CANDAU, 2007, p. 18).

Para a professora B, um elemento importante presente nas salas multisseriadas é a presença da heterogeneidade e a diversidade de níveis de aprendizagem, consideradas como uma gama de culturas de cada sujeito em suas vivências e que cada um carrega em si conhecimentos de mundo. O professor C, falando a respeito da multissérie, nos diz que é uma mistura de várias séries na mesma sala, porém, em uma sala “normal”, ou seja, seriada, pode ter multisseriação; com essa fala, o docente, de uma forma implícita, mostra a heterogeneidade das turmas seriadas regida pelo contexto “homogêneo”. Para Freitas (2010, p. 394), a heterogeneidade, sendo uma característica das classes multisseriadas, “[…] ganha força, quando o(a) professor(a) compreende-a como fator importante para as interações que devem ocorrer nas classes multisseriadas”.

Nesse sentido, os professores conhecem a definição dessa organização de ensino, precisando que tudo isso seja agregado para uma prática docente, considerando o contexto heterogêneo, metodológico e organizacional. Percebemos que o tanto que os professores conhecem sobre a multisseriação é fruto de experiências da prática em sala de aula buscando metodologias, pois, muitas vezes, não recebem suporte da coordenação pedagógica, ficando em uma situação que “[…] aponta-se enquanto retratos da exclusão ao qual estão submetidos os campesinos” (TEIXEIRA; LIMA, 2011, p. 1).

3.2  Docência e processo formativo na multissérie: uma questão em aberto

Com a descrição no quadro um (1) percebemos que a formação inicial dos profes- sores não é condizente para lecionar no ensino fundamental I, bem como na especificidade do Campo, e para lhe dar com a multisseriação. Nesse sentido, passamos agora para a for- mação continuada, considerando o conjunto específico da realidade do campo da escola pesquisada. As respostas foram as seguintes:

Sim. As escolas participam anualmente de formações na universidade, em Bana- neiras (Professora A, 2020).

Sim, sempre acontece (Professora B, 2020).

Sim (Professor C, 2020).

Conforme a professora A, as formações são realizadas e acontecem na universidade em Bananeiras, mas, apenas anualmente. Para a professora B, as formações acontecem, dando ênfase no “sempre”, referindo que as formações não deixam de acontecer; na fala do professor C, encontramos a mesma resposta dos outros, confirmando a coerência entre as três falas, pois o mesmo respondeu que “sim”. Nesse sentido, podemos inferir que na referida escola a formação continuada é realizada, pois, nas falas dos professores, todos são unânimes em suas respostas. No entanto, segundo a fala da professora A, é realizada “anualmente”, já na da professora B, acontece “sempre”, o que nos leva a entender que são realizadas, porém não periodicamente. Dessa forma, a periocidade é necessária, porém se torna importante quando a temática da formação leva em consideração a questão da multisseriação e a educação do campo.

Para Hage (2008), percebemos que a falta de formação dos docentes do campo pa- ra as turmas multisseriadas é motivo de reclamações por parte dos pais e familiares, os quais “[…] afirmam ser estas discriminadas em relação às escolas da cidade, que têm prio- ridade em relação ao acompanhamento pedagógico e formação dos docentes” (HAGE, 2008, p. 03, grifo nosso). Por consequência, o desprezo com que os professores são trata- dos em detrimento dos da cidade, em matéria de formação continuada, é preocupante. Por não serem realizadas periodicamente, e em sua especificidade acabam deixando lacunas. De curta duração, tal formação não é ideal para uma formação de qualidade, que exige uma preparação que se adeque ao caminho formativo dos docentes (NÓVOA, 1992).

3.3  A prática docente na multissérie: a fala dos docentes a partir da realidade campesina

A prática docente, para Silva (2009), é uma dimensão da prática pedagógica que configura um elemento fundamental no trabalho do professor. Sendo um polo da prática pedagógica, a prática docente não precisa ser algo pragmático, utilitarista, mas, reflexiva e capaz de ser crítica. Está imbuída de intencionalidades políticas, econômicas, educacionais, bem como sociais (VEIGA, 1989). Portanto, se entende a prática docente: “[…] por profissional do ensino, cuja ação, seja ela sistemática ou assistemática, dá-se sempre no ambiente escolar” (BANDEIRA; IBIAPINA, 2014, p. 113).

Nesse sentido, no âmbito das classes multisseriadas, a ação docente precisa tecer um olhar crítico que possibilite, em sua prática na multissérie, um trabalho especificado para essa configuração, rompendo com a lógica seriada imposta como modelo que deve ser seguido. Com base nessas premissas, a fala dos professores, no tocante às suas atuações na sala multisseriadas, foram:

Procuramos fazer da melhor forma, para que o aprendizado aconteça, é um desa- fio constante (Professora A, 2020).

Organizo as turmas por série, ou seja, divido assim, 1ºano/2ºano/3ºano, divido a sala em parte (Professora B, 2020).

Isso é complicado, a gente tenta nivelar os alunos de acordo com sua capacidade. (Professor C, 2020).

Ao analisarmos a fala do professor C, percebemos que ele procura identificar os níveis de aprendizagem de cada sujeito, algo que da parte do docente é um anseio que procura melhores possibilidades para facilitar o ensino-aprendizagem; no entanto, tal anseio é feito em uma perspectiva da escola seriada. Ao passo que o professor percebe que é complicado fazer tal ação, podemos perceber que a lógica seriada está presente na sua fala, pois a lógica seriada é o modelo que se tem e sair desse modelo é de uma complexidade, por isso, é preciso: “[…] transgredir à “precarização do modelo seriado urbano”, que constitui o traço identitário dominante das escolas multisseriadas (HAGE, 2010, p. 25)

A fala da professora B endossa o que foi analisado anteriormente, pois, ao organizar a sala por séries, reproduz o modelo seriado; o que acontece é que a sala é multisseriada, mas todas as ações pedagógicas são dentro de um paradigma seriado, querendo homogeneizar a turma, negando sua diversidade. Analisando a professora A, se encontra em sua fala, a preocupação com a aprendizagem dos sujeitos, bem como as dificuldades nesse processo. Isso fica evidenciado quando fala que “é um desafio constante” ao referir-se à aprendizagem nessa organização de ensino.

Os três docentes, ao responderem, trazem em suas respostas uma impregnação das escolas organizadas em seriação, fator que pode ter acontecido pela formação inicial e continuada, pois a realidade multisseriada é invisibilizada nessas formações, tendo como consequência a prática docente orientada na perspectiva seriada. Santos (2015, p. 322) diz que tais práticas são: “[…] ancoradas no paradigma da seriação, que vai ser tomado como orientador da organização didático-pedagógica em sua sala de aula […].

4  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa buscou problematizar a prática docente na multissérie na Escola do Campo Antônio Sinésio dos Santos, localizada no município de Pirpirituba-PB, considerando as realidades do campo e seus entraves. Nosso propósito consistiu em auxiliar na reflexão dos docentes, contribuindo para fortalecer suas práticas pedagógicas com essa configuração de ensino na escola.

Ao analisarmos os questionários aplicados com os professores, identificamos que, apesar de os docentes terem uma conceituação sobre multissérie, a reprodução da seriação é seguida como modelo padrão estabelecido na cidade, negando a especificidade da multissérie em seu fazer pedagógico. Compreendemos que os professores carecem de formação inicial voltada para a especificidade do campo, sendo que a formação continuada é deficitária por não acontecer periodicamente. Além disso, verificamos que os docentes sentem dificuldades para lecionar nas turmas multissérie, bem como para organizar o espaço, uma vez que o modelo de escola segue uma lógica urbanocêntrica seriada.

Afirmamos que a prática docente na organização multisseriada da escola Antônio Sinésio dos Santos acontece entre muitos entraves e que os professores, em seu fazer docente, reproduzem o modelo urbanocêntrico de organização seriada. Apesar de seus esforços para um processo de ensino-aprendizagem eficaz, a multissérie é vista como negativa e é negligenciada por parte dos órgãos públicos competentes.

Portanto, concluímos esta pesquisa afirmando que a prática docente na organização multissérie na referida escola acontece no ângulo da lógica urbanocêntrica, com formações sem direcionamentos para as especificidades e seus contextos da realidade campesina, necessitando que os órgãos competentes viabilizem esforços no sentido de olhar para multissérie como organização de ensino, tecendo outros olhares para além da lógica seriada.

REFERÊNCIAS

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1 Graduado      em      Pedagogia-UFPB,      Especialista      em      Educação      do      Campo-UFPB.                        E-mail: fabiogomes3333@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2244-3171.

2 Graduado em História-UEPB, Graduando em Pedagogia-Educare. E-mail: Adrianoneridasilva@gmail.com

3 Graduada em Pedagogia-UNESA. E-mail: Mariaalves0657@gmail.com.

4 Licenciatura em Educação Física-UEPB, Bacharelado em Educação Física-UEPB, Licenciatura em Pedagogia-Uninter. E-mail: tiagooliveirapereira98@gmail.com .

5 Graduada em Pedagogia – Universidade São Judas Tadeu. E-mail: beta.aline@hotmail.com.