REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102411262127
Daniela Tonellotto1
Juliano Silveira De Araújo2
Profa. Dra. Maria Cristina G. Passarelli3
Ms. Lilian Schafirovits Morillo4
Prof. Dr. Wilson Jacob5
Profa. Dra. Leticia Lessa Mansur6
RESUMO
A demência é um problema frequente e cada vez mais prevalente na população idosa. A maioria dos pacientes com demência desenvolve disfagia e têm alto risco de morte por pneumonia aspirativa. Inúmeras são as discussões a respeito da funcionalidade dos idosos com quadros demenciais, todavia, a deglutição não faz parte das escalas de funcionalidade atuais. Objetivos: Traçar o perfil das dificuldades de deglutição em pacientes com demência avançada. Métodos: Foram coletados dados de 107 pacientes do banco de dados do Ambulatório de Comprometimento Cognitivo Avançado. Foram realizadas análises descritivas dos perfis de funcionalidade da deglutição dos sujeitos. Resultados: A disfagia mostrou-se presente em toda a amostra, demonstrando que tal aspecto precisa ser considerado de forma inconteste nesta população. Observou-se maior prevalência de alterações nas fases antecipatória, preparatória oral e oral dos sujeitos, visto que estas fases, são voluntárias e altamente dependentes da cognição. Discussão: A classificação da disfagia nessa população, se mostra complexa, visto que as tradicionais escalas de classificação da disfagia, desconsideram a fase antecipatória e preparatória oral da deglutição, fases essas, gravemente alteradas no comprometimento cognitivo avançado, dado seu caráter volitivo e dependente da cognição. Além de não classificáveis nas atuais escalas de deglutição, a fase antecipatória e a fase preparatória oral, são negligenciadas também, nos exames objetivos da deglutição. Conclusão: Ainda que os perfis de deglutição declinem conforme a funcionalidade global do sujeito, os impactos da cognição e do comportamento na deglutição, precisam ser considerados. O estudo evidenciou que as fases voluntárias da deglutição, sofrem influência da cognição, comprometendo a nutrição e hidratação desses pacientes. Examinar a funcionalidade da deglutição de sujeitos com demência avançada, é essencial na busca de um atendimento integral, ecológico e humanizado.
Descritores: deglutição, doença de Alzheimer, demência, cognição, idoso.
ABSTRACT
Dementia is a frequent and increasingly prevalent problem in the elderly population. Most patients with dementia develop dysphagia and are at high risk of death from aspiration pneumonia. There are many discussions about the functionality of elderly people with dementia, however, swallowing is not part of the current functional scales. Objectives: To outline the difficulties of swallowing in patients with advanced dementia. Methods: Data were collected from 107 patients from the Advanced Cognitive Compromising Outpatient database. Descriptive analyzes were performed on the functional profiles of swallowing of subjects. Results: Dysphagia was present throughout the sample, demonstrating that this aspect must be considered incontestably in this population. It was observed a higher prevalence of changes in the anticipatory, oral and oral preparatory phases of the subjects, since these phases are voluntary and highly dependent on cognition. Discussion: The classification of dysphagia in this population is complex, since the traditional classification scales of dysphagia disregard the anticipatory and preparatory oral phase of deglutition, which are severely altered in advanced cognitive impairment, given its volitional and cognition. In addition to not classifiable in the current swallowing scales, the anticipatory phase and the oral preparation phase are also neglected in the objective examinations of swallowing. Conclusion: Although swallowing profiles decline according to the overall functionality of the subject, the impacts of cognition and swallowing behavior need to be considered. The study showed that the voluntary phases of swallowing are influenced by cognition, compromising the nutrition and hydration of these patients. Examining the functionality of swallowing of subjects with advanced dementia is essential in the search for comprehensive, ecological and humanized care. Keywords: deglutition, Alzheimer’s disease, dementia, cognition, elderly.
INTRODUÇÃO
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2017)1 a composição populacional por grupos etários, indica que o Brasil mantém a tendência de envelhecimento demográfico dos últimos anos e superou a marca dos 30,2 milhões de idosos em 2017.
De acordo com análise de projeções populacionais realizada pelas Nações Unidas2, é esperado aumento significativo na proporção dos brasileiros com mais de 60 anos nas próximas décadas. Em 2070, a estimativa é que a proporção dos cidadãos idosos brasileiros alcance expressivos 35% do total da população.
O envelhecimento populacional é um fenômeno mundial que configura conquista social e reflete a melhoria das condições de vida e saúde de um povo; contudo, resulta em modificações relevantes nos indicadores de morbidade e mortalidade, em função do aumento na incidência de doenças crônicas e incapacitantes.
A demência é uma síndrome representada pelo declínio cognitivo ou do comportamento do sujeito, capaz de comprometer suas atividades profissionais e sociais3,4. Com o avanço da atenção à saúde, a população de portadores de quadros demenciais tem ampliado a expectativa de vida. Assim sendo, há maior contingente de indivíduos com demência em fase avançada a demandar assistência e orientações quanto a cuidados.
Estudos apontam distúrbios da deglutição, como condições altamente prevalentes na população idosa com comprometimento cognitivo avançado5,6.
O estudo justifica-se pelo aumento da longevidade, pela prevalência das síndromes demenciais nessa população e gradativa demanda de cuidados médicos e de equipe multiprofissional da saúde, no atendimento dos pacientes com comprometimento cognitivo avançado.
OBJETIVOS
Traçar o perfil das dificuldades de deglutição em pacientes com comprometimento cognitivo avançado.
FUNCIONALIDADE NO COMPROMETIMENTO COGNITIVO AVANÇADO
Segundo o informe mundial sobre a doença de Alzheimer, World Alzheimer Report7, atualmente, mais de 46,8 milhões de pessoas vivem com demência em todo o mundo e estima-se que este número deva aumentar para 71,7 em 2030 e 131,5 milhões em 2050.
O curso crônico e progressivo das demências acarreta perda de autonomia e comprometimento crescente da funcionalidade. O comprometimento cognitivo avançado é caracterizado pela dependência completa de outrem 4.
A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF, 2003)8, proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS), visa propiciar uma linguagem unificada para a caracterização e documentação da saúde e condições relacionadas à saúde.
Funcionalidade e incapacidade são entendidas de modo amplo e representam diferentes categorias, resultantes da interação entre as condições de saúde da pessoa e seu ambiente8.
Os conceitos contemplam ainda a condição de saúde, transtorno ou doença, funções e estruturas do corpo, fatores pessoais e ambientais e a participação do indivíduo em atividades9.
Em relação à deglutição, a CIF8 inclui observações sobre as fases (oral, faríngea e esofágica) da deglutição, aspectos de captação, sucção mastigação, manipulação do alimento em cavidade oral, salivação, sialorreia e xerostomia e aspiração laringotraqueal.
DEGLUTIÇÃO E DISFAGIA
A deglutição tem a função de conduzir o conteúdo da cavidade oral, como saliva, líquidos, alimentos e medicamentos até o estômago. É uma ação complexa, que depende da integridade das vias neuronais, do sistema ósseo, muscular e articular, além do comando voluntário e da intenção de se alimentar10, 11.
Tradicionalmente, a deglutição é dividida nas fases oral, faríngea e esofágica, porém, quando se considera os momentos que antecedem a deglutição propriamente dita, pode ser dividida em quatro fases, sendo incluída, então, a fase antecipatória12. A fase preparatória oral também tem sido admitida de forma independente, nas descrições sobre o processo de deglutição.
As fases antecipatória e oral são influenciadas pela cognição. A fase antecipatória antecede a introdução do alimento em cavidade oral e inclui estímulos visuais e olfativos, decisões sobre o tipo, a quantidade e o ritmo da ingestão. Abrange o estado de alerta, análise crítica, orientação, além de controle motor13,14,15.
A fase oral, que também é voluntária, consiste no preparo, na organização e na ejeção do bolo alimentar. Nesta fase, o alimento será percebido quanto ao volume, textura, temperatura e sabor. Quando de consistência que dispensa mastigação, o alimento será somente organizado para a ejeção oral, quando requerer mastigação, será misturado com a saliva para a umidificação, coesão e homogeneização do bolo 14,167,17.
A fase preparatória oral é aquela na qual o sujeito, consciente e orientado, por ação voluntária e intenção de se alimentar, prepara seu organismo para receber o alimento. São percebidas nessa fase, a aparência, a forma, a apresentação e o aroma do alimento12,16,17 que determinam ajustes osteomusculares necessários para a captação do alimento, de acordo com o utensílio que será utilizado, com o tipo de alimento e sua consistência, e, assim como na fase anterior, depende do nível de consciência e da intenção de se alimentar14,16,17.
No momento da deglutição, a cavidade oral deverá estar pressurizada por meio da ação dos lábios, das bochechas e da língua de encontro ao palato. Ocorrerá a apneia da deglutição, o complexo hiolaríngeo se elevará e o bolo alimentar será ejetado16,17.
Nessa fase, é imprescindível a eficaz coordenação respiração-mastigação-deglutição, para que não ocorra escape posterior prematuro do alimento, comprometendo a segurança da deglutição14,16,17.
Simultaneamente à ejeção oral do bolo alimentar, inicia-se a fase faríngea da deglutição, que é reflexa e se dá por meio de ação peristáltica. Para que ocorra de forma segura, é necessário que todo o processo esteja coordenado e o bolo alimentar siga pela faringe em direção à transição faringoesofágica com total proteção das vias aéreas. Em seguida, o bolo alimentar seguirá do esôfago até o estômago, por meio de ondas peristálticas reflexas14,16,17.
Qualquer alteração no mecanismo da deglutição, como as desordens de contenção do alimento em cavidade oral ou no mecanismo de proteção das vias aéreas, acarretará disfagia, que é a falha no transporte do conteúdo da cavidade oral até o estômago, em qualquer uma de suas fases.
As consequências da disfagia incluem desnutrição, desidratação, isolamento social, broncopneumonias e morte17,18,19.
COGNIÇÃO E DISFAGIA NO COMPROMETIMENTO COGNITIVO AVANÇADO
Nas demências, a disfagia denomina-se neurogênica, visto que se dá, por conta de alteração dos mecanismos neurológicos implicados na deglutição, por acometimento dos neurônios do sistema nervoso central (SNC)20.
O envelhecimento, por si só, causa impacto no funcionamento estomatognático, pela redução de papilas gustativas, de tônus e de força dos lábios, língua e bochechas, redução salivar, maior frequência de falhas dentárias, edentulismo e uso de próteses mal adaptadas 22.
Estudosque avaliaram pacientes com DA14,21 e demência na doença de Parkinson23 têm apontado a existência de correlações significativas entre funções cognitivas e disfagia. O maior impacto ocorre nas fases antecipatória, preparatória oral e oral da deglutição, fases voluntárias, exigem maior controle cognitivo e de funções executivas. O comprometimento destas fases implicará desde o prejuízo no reconhecimento e a percepção do alimento, por déficit sensorial, até falhas no planejamento e na coordenação dos movimentos necessários para o processo de deglutição.
As fases faríngea e esofágica, parecem ser menos propensas de serem afetadas pelo comprometimento cognitivo, graças à sua natureza não volitiva14,21,23.
Outros estudos verificaram a correlação positiva entre cognição e deglutição, além do impacto do comprometimento sensorial na função de alimentação. Concluíram que pacientes com DA apresentaram tempo de trânsito oral aumentado, enquanto pacientes com DV tiveram maior dificuldade na formação do bolo alimentar e na mastigação de alimentos, pior excursão hiolaríngea, pior desempenho na movimentação epiglótica e maior ocorrência de aspiração silente. Em ambos os casos, os pacientes apresentaram reflexo de deglutição tardio, configurando déficits tanto nos mecanismos de contenção oral, quanto nos de proteção das vias aéreas, no processo de deglutição24.
Os autores consideraram ainda, como preditores independentes de disfagia, a fraqueza muscular e as alterações motoras25.
Na DCL, a disfagia e principalmente a aspiração silente, parecem ser fatores de impacto no prognóstico reservado destes pacientes, enquanto que os pacientes com DLFTvc frequentemente apresentam compulsão alimentar e maior comprometimento do mecanismo de contenção oral, com perda posterior precoce do bolo alimentar, durante a mastigação17,18.
Os autores citam ainda, a dificuldade no manejo clínico da disfagia dos pacientes com comprometimento cognitivo moderado a grave, dada a impossibilidade de seguir orientações e comandos, frequente dependência total na situação de alimentação e o impacto do comprometimento cognitivo como fatores negativos na reabilitação da deglutição17,18,26.
A correlação positiva entre menor desempenho cognitivo e alterações da deglutição foi verificada inclusive entre idosos da comunidade, sem diagnóstico conhecido, onde menores escores de deglutição foram associados a escores cognitivos mais baixos27.
Soma-se a isso maior prevalência de comorbidades em sujeitos idosos, além dos efeitos colaterais advindos do uso de medicamentos e sua ação no SNC, na transmissão neuromuscular, além dos efeitos miotóxicos20.
MÉTODO
Trata-se de estudo retrospectivo transversal, realizado por meio de consulta ao banco de dados e prontuários do Ambulatório de Comprometimento Cognitivo Avançado (ACCA) do Serviço de Geriatria da Divisão de Clínica Médica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).
O projeto foi aprovado pela Comissão de Ética para análise de Projetos de Pesquisa CAPPesq da Diretoria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) (nº 2.071.296).
Critérios de elegibilidade
Inclusão
Foram incluídos neste trabalho, os dados de 107 pacientes admitidos no ACCA no período de janeiro a dezembro de 2016, avaliados na ocasião da admissão, pela equipe médica e pela equipe de fonoaudiologia.
Exclusão
Foram excluídos os dados dos pacientes que por critérios médicos, não puderam ser avaliados pela equipe de fonoaudiologia e/ou os dados dos pacientes cujo acompanhante na ocasião da primeira consulta não fosse o cuidador principal e/ou se recusaram a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Procedimentos
O banco de dados do ACCA foi composto a partir dos dados oriundos das avaliações médicas e fonoaudiológicas. Para a análise do presente estudo, foram considerados somente os dados da avaliação fonoaudiológica que incluiu entrevista, aplicação de protocolo institucional para avaliação estrutural dos órgãos fonoarticulatórios e avaliação funcional da deglutição.
Na entrevista, foram obtidos os dados de identificação do paciente, histórico alimentar, ocorrência de perda de peso e pneumonia recente, hábitos e preferências alimentares, número de refeições por dia, adaptações necessárias, volume, ritmo e utensílios utilizados para a oferta de alimentos, sinais clínicos sugestivos de penetração/aspiração laringo-traqueal, aspectos salivares e higiene oral.
Por meio de protocolo institucional, foram realizadas as avaliações estrutural dos órgãos fonoarticulatórios e funcional da deglutição.
Na avaliação estrutural foram analisados força e mobilidade dos órgãos fonoarticulatórios, presença e aparência dos elementos dentários, uso e adaptação de próteses dentárias, elevação laríngea, ausculta cervical e brônquica, pulso e saturação de oxigênio.
Para a avaliação funcional da deglutição, o cuidador foi convidado a realizar a oferta de alimento, nas condições mais próximas da rotina do paciente, o que incluiu, as consistências alimentares, ritmo, volume e utensílios habituais do paciente.
Foram observados, ainda, o comportamento do paciente durante a situação de alimentação, assim como habilidades e inabilidades do cuidador, tanto no preparo das consistências dos líquidos espessados, quanto o manejo geral da situação de alimentação.
A escala ASHA NOMS, foi utilizada para classificação da deglutição do paciente. Essa escala auxilia a observação do estado da deglutição, indicando as possibilidades de consistências mais adequadas. O paciente classificado no nível 1, não poderá receber nada por via oral, enquanto o paciente no nível 7 poderá receber dieta geral.
A análise das variáveis categóricas qualitativas foi feita por estatística descritiva: distribuição de frequência simples, médias (DP), medianas e intervalo interquartil (IQ 25-75).
Na análise inferencial, foram utilizados testes compatíveis com a distribuição normal da amostra.
Resultados
Foram analisados os dados de 107 pacientes, dos quais 67% eram do gênero feminino e 34% do gênero masculino. A média de idade dos sujeitos foi de 83 anos, sendo 33% com idade igual ou menor que 80 anos e 68% com idade maior que 80 anos. O nível de instrução formal foi de zero a oito anos de escolaridade em 84% e nove anos ou mais em 16% da amostra.
Tabela 1 – Dados da avaliação fonoaudiológica estrutural
Os dados sobre a avaliação fonoaudiológica revelam do ponto de vista estrutural, a maioria dos pacientes apresentou redução de força e mobilidade de lábios, língua e bochechas, assim como redução da elevação laríngea, ausência ou falhas dentárias ou uso de próteses mal adaptadas, higiene oral e aspectos salivares adequados.
Tabela 2 – Dados da avaliação funcional da deglutição
Os dados da avaliação funcional da deglutição mostram comprometimento do mecanismo de contenção oral nos 107 sujeitos (100% da amostra) e comprometimento de proteção de vias aéreas superiores em 79 (74%) dos sujeitos. Constata-se ainda que 91 (85%) dos sujeitos passaram a se alimentar de dieta adaptada e nove (8,4%) precisaram fazer uso de via alternativa de alimentação (VAA).
Tabela 3 – Consistências Alimentares
As adequações utilizadas para a alimentação foram: dieta pastosa (dieta batida homogênea e/ou heterogênea) para 56 (52,3%) pacientes; dieta pastosa (dieta batida homogênea e/ou heterogênea) em 35 (32,7%) de dieta branda ,(alimentos bem cozidos acrescidos de molhos e/ou caldos engrossados, carne moída ou desfiada e pão bisnaga) Nove pacientes (8,4%) alimentavam-se por via alternativa de alimentação (gastrostomia ou sonda nasoenteral) e 7 (6,5%) recebiam dieta geral (todas as consistências alimentares, sem restrições). Do total, 21 sujeitos (19,6%) necessitaram de espessamento dos líquidos, para segurança da ingestão.
Os cuidadores receberam orientação verbal e escrita para a assistência segura nas situações de alimentação.
Discussão
O objetivo deste estudo foi traçar o perfil das dificuldades de deglutição em pacientes com comprometimento cognitivo avançado. Para isso, foram coletados dados de prontuário de 107 pacientes com comprometimento cognitivo avançado.
Os dados referentes a avaliação fonoaudiológica estrutural, descritos na tabela
1, apontaram alterações estruturais de força e mobilidade dos órgãos fonoarticulatórios, redução da excursão laríngea e alterações na dentição na maioria dos pacientes.
O impacto das alterações estruturais, é observado na avaliação funcional da deglutição.
O envelhecimento, por si só, causa impacto no funcionamento estomatognático, redução de papilas gustativas, de tônus e de força dos lábios, língua e bochechas, redução salivar, falhas dentárias, edentulismo e próteses mal adaptadas22.
Na tabela 2 demonstrou-se que a maioria dos pacientes, apresentou comprometimento dos mecanismos de contenção oral e de proteção das vias aéreas em decorrência das alterações estruturais. Foi descrita também, a classificação da disfagia, distúrbio da deglutição presente em 100 (93,4%) dos 107 sujeitos avaliados.
Na avaliação funcional da deglutição, observou-se prevalência de alterações nas fases antecipatória, preparatória oral e oral dos sujeitos, o que era esperado, visto que estas fases são conscientes e altamente dependentes da cognição.
A fase oral foi impactada por alterações estruturais como a ausência de elementos dentários, falhas dentárias e/ou próteses mal adaptadas, além de redução da força e mobilidade dos órgãos fonoarticulatórios. A fase faríngea e os mecanismos de proteção sofreram os efeitos negativos da redução da excursão laríngea.
O comprometimento das fases iniciais da deglutição, implicará em prejuízo no reconhecimento e na percepção do alimento por déficit sensorial, e falhas no planejamento e na coordenação dos movimentos necessários para o processo de deglutição15,22.
A tabela 3 demonstrou o nível de adaptação das consistências alimentares necessário para a deglutição segura da maioria dos sujeitos, de modo que somente 7(6,5%) dos 107 participantes, puderam receber dieta geral de forma segura, ainda, assim, observadas as orientações do avaliador.
A classificação da disfagia nessa população se mostra complexa, visto que as tradicionais escalas de classificação da disfagia, desconsideram a fase antecipatória oral e/ou dão pouca relevância a fase preparatória oral da deglutição, alteradas no comprometimento cognitivo avançado, dado seu caráter volitivo e dependente da cognição.
Além de não classificáveis nas atuais escalas de deglutição, a fase antecipatória e a fase preparatória oral, são negligenciadas também, nos exames objetivos da deglutição.
Não foram identificados na literatura analisada, instrumentos específicos para a avaliação e classificação da disfagia em pacientes com comprometimento cognitivo avançado.
Conclusão
O presente estudo contribuiu com resultados sobre o perfil das dificuldades de deglutição em pacientes com comprometimento cognitivo avançado, evidenciando que grande parte das alterações apresentadas, são em decorrência do comprometimento dos mecanismos de contenção oral e de proteção das vias aéreas superiores, com impacto principalmente nas fases antecipatória, preparatória e oral da deglutição.
Os resultados, porém, devem ser analisados com cautela, visto que o estudo foi desenvolvido em um ambulatório específico.
Ao levar em conta o caráter progressivo das síndromes demenciais e o perfil delineado, faz-se necessário planejar intervenções que contemplem, por meio do gerenciamento fonoaudiológico da deglutição, a evolução das necessidades de atenção ao paciente com comprometimento cognitivo avançado, visando a nutrição, hidratação e segurança alimentar do paciente.
Agradecimentos
Marcela Lima Silagi, Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – FMUSP.
Dr. João Carlos Papaterra Limongi, Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – FMUSP.
Dra. Marina Martins Pereira Padovani, Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo – FCMSCSP.
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1 Universidade De São Paulo – Usp. São Paulo, Sp, Brasil.
2 Universidade De São Paulo – Usp. São Paulo, Sp, Brasil.
3 Universidade De São Paulo – Usp. São Paulo, Sp, Brasil.
4 Universidade De São Paulo – Usp. São Paulo, Sp, Brasil.
5 Universidade De São Paulo – Usp. São Paulo, Sp, Brasil.
6 Universidade De São Paulo – Usp. São Paulo, Sp, Brasil (In Memorian).