REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202505160954
Ângela Silva Rocha1
Fredd Nascimento Cardoso1
Karine Santos Queiroz1
Larissa Rocha Carvalho de Jesus1
Letícia Luiza dos Santos Santana1
Fernando dos Anjos Schimtz2
RESUMO
Introdução. A morte encefálica é um diagnóstico clínico de morte, essencial para a efetivação do processo de doação de órgãos. No entanto, falhas na aplicação do protocolo de determinação de morte encefálica comprometem a identificação de potenciais doadores, impactando negativamente o número de transplantes realizados, especialmente em regiões com desafios estruturais e de capacitação profissional. Objetivos. O presente estudo tem como objetivo analisar os principais fatores relacionados ao déficit na aplicação do protocolo de morte encefálica e seu impacto direto sobre a taxa de doação de órgãos. Justificativa. Esta pesquisa é relevante por abordar uma lacuna crítica no processo de captação de órgãos, contribuindo para o debate sobre a necessidade de qualificação profissional, padronização de condutas e fortalecimento das políticas públicas voltadas à doação e transplante de órgãos. Compreender essas falhas é essencial para melhorar a efetividade do sistema de transplantes no estado. Metodologia. Foi realizada uma revisão sistemática utilizando as bases de dados SciELO e PubMed, abrangendo o período de 2020 a 2025. A estratégia de busca envolveu os descritores: “morte encefálica”, “protocolo”, “doação de órgãos”, “transplantes”. Foram incluídos estudos que abordassem barreiras institucionais, profissionais e legais no diagnóstico de morte encefálica. Resultados e discussão. A análise dos estudos revelou fatores como ausência de equipes treinadas, falhas na documentação, demora na realização de exames complementares e falta de comunicação com familiares como os principais entraves. Além disso, a carência de leitos de UTI e a desigualdade regional na distribuição de recursos também dificultam a condução adequada dos protocolos. Conclusão. O déficit na aplicação do protocolo de morte encefálica representa um obstáculo relevante para o aumento das taxas de doação de órgãos. Logo, investimentos em capacitação profissional, infraestrutura hospitalar e conscientização da população são medidas imprescindíveis para transformar esse cenário.
Palavras-chave: Saúde. Doação de órgãos. Medicina.
ABSTRACT
Introduction. Brain death is a clinical diagnosis of death and is essential for the implementation of the organ donation process. However, failures in the application of the brain death determination protocol compromise the identification of potential donors, negatively affecting the number of transplants performed, especially in regions facing structural and professional training challenges.Objectives. This study aims to analyze the main factors related to the deficient application of the brain death protocol and its direct impact on organ donation rates. Justification. This research is relevant as it addresses a critical gap in the organ procurement process, contributing to the discussion on the need for professional training, standardization of procedures, and strengthening of public policies related to organ donation and transplantation. Understanding these failures is essential to improve the effectiveness of the transplant system in the state. Methodology. A systematic review was conducted using the SciELO and PubMed databases, covering the period from 2020 to 2025. The search strategy included the descriptors: “brain death,” “protocol,” “organ donation,” and “transplants.” Studies addressing institutional, professional, and legal barriers in the diagnosis of brain death were included. Results and Discussion. The analysis of the studies revealed factors such as the absence of trained teams, documentation failures, delays in performing complementary tests, and lack of communication with family members as the main obstacles. Additionally, the shortage of ICU beds and regional disparities in resource distribution also hinder the proper implementation of protocols. Conclusion. The deficit in the application of the brain death protocol represents a significant barrier to increasing organ donation rates. Therefore, investments in professional training, hospital infrastructure, and public awareness are essential measures to transform this scenario.
Keywords: Health. Organ donation. Medicine.
1 INTRODUÇÃO
A morte encefálica (ME) é um conceito médico-legal consolidado, sendo reconhecida como critério de morte para fins de desligamento de suporte avançado de vida e, sobretudo, como etapa indispensável no processo de doação de órgãos. Trata-se de um diagnóstico clínico e irreversível de cessação completa das funções encefálicas, cuja correta identificação é essencial para a efetividade dos programas de transplantes (Silva et al., 2023).
Apesar da existência de diretrizes nacionais que normatizam os critérios diagnósticos, a aplicação do protocolo de determinação de morte encefálica ainda enfrenta obstáculos significativos. Entre os principais entraves estão a carência de profissionais capacitados, falhas na documentação, demora na realização de exames complementares e comunicação ineficaz com os familiares (Farias et al., 2015).
Nesse sentido, tais fatores contribuem para a subnotificação de potenciais doadores, comprometendo diretamente a taxa de doações efetivadas no país (Martins et al., 2024). A situação se agrava em regiões com infraestrutura hospitalar limitada, onde a escassez de leitos de UTI, a ausência de equipes de transplante e a distribuição desigual de recursos comprometem a condução adequada do protocolo (Pinheiro et al., 2016). Além disso, barreiras culturais e o desconhecimento da população sobre o processo de doação dificultam ainda mais a efetivação do ato solidário (Oliveira et al., 2022).
Diante desse cenário, torna-se fundamental compreender os fatores institucionais, profissionais e sociais que interferem na correta aplicação do protocolo de morte encefálica. Assim, este estudo tem como objetivo revisar as principais barreiras à implementação desse protocolo, analisando seus impactos sobre as taxas de doação de órgãos e apontando estratégias para melhorar a efetividade do sistema de transplantes no Brasil.
2 MATERIAIS E MÉTODOS
Este estudo consiste em uma revisão sistemática da literatura sobre os principais fatores que contribuem para o déficit na aplicação do protocolo de morte encefálica e seu impacto na doação de órgãos. A pesquisa foi conduzida de acordo com as diretrizes do Preferred Reporting Items for Systematic Reviews (PRISMA), assegurando rigor metodológico e transparência na identificação, seleção e análise dos estudos incluídos.
A estratégia utilizada baseou-se no modelo PICO (População, Intervenção, Comparação e Desfechos), em que a população-alvo envolveu pacientes em suspeita de morte encefálica internados em unidades hospitalares; a intervenção referiu-se à correta aplicação do protocolo de diagnóstico de morte encefálica; a comparação foi estabelecida entre cenários com e sem falhas na condução do protocolo; e os desfechos incluíram a taxa de identificação de potenciais doadores, efetivação da doação e impacto sobre os transplantes realizados.
As palavras-chave utilizadas para busca incluíram: “brain death” AND “protocol”, “organ donation” AND “transplants”, “professional training” AND “protocol” AND “brain death”. A busca foi realizada nas bases de dados SciELO e PubMed, utilizando operadores booleanos “AND” para aprimorar a especificidade dos resultados encontrados.
Foram adotados como critérios de inclusão: artigos publicados entre 2020 e 2025, em português ou inglês, com acesso ao texto completo e que abordassem aspectos relacionados à aplicação do protocolo de morte encefálica, barreiras institucionais, legais e profissionais, e seus efeitos sobre o processo de doação de órgãos. Os critérios de exclusão abrangeram estudos indisponíveis em texto completo, duplicados ou que não focassem diretamente na temática proposta.
Figura 1. Desenho metodológico.

Fonte: Acervo do autor (2025).
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Foram selecionados 09 artigos para a escrita deste estudo. Esses estudos foram analisados e organizados na Tabela 01. A análise concentrou-se nos entraves institucionais, legais e profissionais que impactam negativamente a identificação de potenciais doadores, bem como nas consequências desses déficits para a efetivação da doação de órgãos. Além disso, foram destacadas as propostas de intervenção encontradas nos estudos, como investimentos em capacitação profissional, melhorias na infraestrutura hospitalar e estratégias de conscientização da população.
Tabela 01. Estudos propostos para o estudo.
Título | Tipo de estudo | Autor, ano |
Diretrizes brasileiras para o manejo de potenciais doadores de órgãos com morte encefálica | Estudo qualitativo | Westphal et al., 2020 |
Ferramentas de melhoria da qualidade para gerenciar processos de doação de órgãos de doadores falecidos | Estudo qualitativo | Silva et al., 2023 |
Estabelecendo um programa HOPE em um cenário real: uma série de casos brasileira | Estudo quali-quantitativo | Boteon et al., 2023 |
Descartes de fígados de doadores com morte encefálica no Brasil: como otimizar sua taxa de utilização em transplantes? | Estudo qualitativo | Drezza et al., 2021 |
Novos procedimentos para a confirmação da morte encefálica no Brasil | Estudo qualitativo | Silva et al., 2021 |
Manejo do potencial doador de órgãos: Declaração de Posicionamento da Sociedade Indiana de Medicina Intensiva | Estudo qualitativo | Zirpe et al., 2024 |
Opinião pública e legislações relacionadas à morte encefálica, morte circulatória e doação de órgãos | Estudo qualitativo | Martins et al., 2020 |
Cuidado com potenciais doadores de órgãos com morte encefálica em uma sala de emergência de adultos | Estudo qualitativo | Costa et al., 2023 |
Doadores de órgãos com critérios estendidos e morte encefálica: prevalência e impacto na utilização de fígados para transplante | Estudo qualitativo | Ferreira et al., 2023 |
Fonte: Acervo pessoal (2025).
A análise dos estudos incluídos nesta revisão evidencia um cenário multifatorial que compromete a identificação e a conversão de potenciais doadores de órgãos no Brasil. O protocolo de morte encefálica, embora normatizado nacionalmente, ainda é subutilizado ou executado de forma inadequada em diversas instituições hospitalares, principalmente em regiões com menor aporte de recursos técnicos e humanos.
A falta de familiaridade dos profissionais de saúde com os critérios clínicos e legais que definem a morte encefálica, bem como a escassez de capacitações periódicas, são aspectos reiteradamente citados como gargalos importantes para a efetivação do processo de doação (Westphal et al., 2020; Silva et al., 2021).
Segundo Westphal et al. (2020), a adesão às diretrizes brasileiras para o manejo de potenciais doadores ainda encontra resistência por parte de profissionais que não se sentem seguros para realizar o diagnóstico de morte encefálica, muitas vezes por medo de erro médico, insegurança jurídica ou desconhecimento técnico. Isso reforça a importância de capacitações práticas e teóricas contínuas, aliadas à atuação das comissões intra-hospitalares de doação de órgãos e tecidos para transplante (CIHDOTT), que desempenham papel essencial no suporte às equipes assistenciais.
Do ponto de vista institucional, como relatado por Silva et al. (2023), a ausência de protocolos bem definidos e a desorganização dos fluxos internos comprometem diretamente a captação de órgãos. Nesse sentido, hospitais que implementaram ferramentas de melhoria da qualidade, como auditorias internas e educação permanente, apresentaram melhores taxas de notificação de potenciais doadores, evidenciando que soluções estruturais podem reverter parte do problema. Ainda assim, essas ações são mais comuns em grandes centros urbanos, ampliando a desigualdade regional no acesso ao transplante, como também discutido por Ferreira et al. (2023).
Além disso, as dificuldades estruturais, como a indisponibilidade de leitos de UTI, de exames complementares como o eletroencefalograma e a arteriografia cerebral, e de equipes especializadas para a realização do protocolo de forma célere, contribuem significativamente para a perda de potenciais doadores (Drezza et al., 2021). A demora na confirmação da morte encefálica pode resultar em parada cardíaca antes da conclusão do protocolo, inviabilizando a doação.
O estudo de Boteon et al. (2023), ao abordar a experiência de implementação de um programa de transplante com critérios expandidos, ressalta que mesmo em contextos mais adversos é possível manter padrões de segurança e qualidade, desde que haja treinamento contínuo, integração entre as equipes multiprofissionais e compromisso institucional com a doação. Nesse sentido, a gestão hospitalar tem papel crucial na alocação de recursos e na criação de ambientes favoráveis à efetiva aplicação do protocolo.
Sob a perspectiva legal e ética, Martins et al. (2020) enfatizam que a falta de conhecimento da população sobre o que significa morte encefálica ainda é um grande entrave à aceitação da doação. A partir disso, sabe-se que familiares recusam a doação por não compreenderem que a morte encefálica é, de fato, morte legal e irreversível. Isso reforça a necessidade de campanhas educativas contínuas, que transcendam o ambiente hospitalar e alcancem escolas, redes sociais e meios de comunicação em massa.
O estudo de Costa et al. (2023) também reforça que o ambiente das salas de emergência deve ser mais bem preparado para identificar precocemente potenciais doadores e iniciar o protocolo de forma ágil, respeitosa e ética, além de promover um acolhimento humanizado às famílias. Em nível internacional, Zirpe et al. (2024) reforçam que o manejo do doador em morte encefálica deve ser estruturado com base em protocolos rigorosos, amparados por legislação clara e suporte governamental.
A padronização de condutas e a transparência nos processos aumentam a confiança da sociedade e dos próprios profissionais no sistema de doação e transplantes. Nesse aspecto, os estudos analisados convergem na proposição de estratégias que podem mitigar os déficits atuais. Entre elas, destacam-se: a inclusão de conteúdos sobre morte encefálica e doação de órgãos na formação acadêmica dos profissionais de saúde; o fortalecimento das CIHDOTTs; a criação de núcleos regionais de apoio ao transplante em áreas desassistidas; a integração entre hospitais notificadores e centrais estaduais de transplantes; e a ampliação de campanhas públicas educativas com linguagem acessível.
Em síntese, o déficit na aplicação do protocolo de morte encefálica é resultado de uma complexa interação entre falhas estruturais, limitações profissionais e barreiras legais/culturais. O enfrentamento dessa realidade exige uma abordagem sistêmica, que envolva gestores públicos, instituições hospitalares, profissionais de saúde e a própria sociedade (Antonucci et al., 2022). Logo, a partir do investimento articulado em capacitação, infraestrutura e comunicação será possível garantir a efetividade do processo de doação de órgãos e, assim, ampliar o número de transplantes realizados no país.
CONCLUSÃO
O déficit na aplicação do protocolo de morte encefálica representa um dos principais entraves à efetivação da doação de órgãos no Brasil. Nesse âmbito, fatores como a insuficiente capacitação dos profissionais de saúde, falhas na estrutura hospitalar, ausência de protocolos bem definidos e a desinformação da população impactam diretamente na identificação e conversão de potenciais doadores. Ademais, a análise dos estudos evidenciou que esses obstáculos são agravados por desigualdades regionais, escassez de leitos de UTI e morosidade na realização dos exames diagnósticos necessários, o que compromete a agilidade e a eficiência do processo de captação.
Diante desse cenário, torna-se urgente a adoção de estratégias integradas que envolvam investimentos em qualificação profissional, fortalecimento das comissões intrahospitalares de doação, padronização de condutas e ampliação das campanhas públicas de conscientização. Além disso, a superação dessas barreiras é fundamental para melhorar os índices de doação e transplante de órgãos no país, ao garantir o respeito à dignidade do potencial doador, como também a ampliação das chances de sobrevivência para os pacientes em fila de espera. Logo, este estudo reforça a importância de uma abordagem sistêmica e contínua, capaz de transformar o protocolo de morte encefálica em um instrumento efetivo de promoção da vida por meio da doação de órgãos.
REFERÊNCIAS
ANTONUCCI, A. T. et al. Morte encefálica como problema bioético na formação médica. Revista Bioética, Brasília, v. 30, n. 2, 2022.
BOTEON, A. P. C. S. et al. Estabelecendo um programa HOPE em um cenário real: uma série de casos brasileira. Transplant Direct, [S.l.], v. 9, n. 12, e1555, 2023.
COSTA, R. et al. Cuidado com potenciais doadores de órgãos com morte encefálica em uma sala de emergência de adultos: uma perspectiva de cuidado convergente. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 32, e20230032, 2023.
DREZZA, J. P. O. et al. Descartes de fígados de doadores no Brasil: como otimizar sua taxa de utilização em transplantes? Einstein (São Paulo), São Paulo, v. 19, eAO6770, 2021.
FARIAS, E. M. R. et al. Morte encefálica: uma discussão encerrada? Revista Bioética, Brasília, v. 23, n. 3, 2015.
FERREIRA, J. R. et al. Doadores de órgãos com critérios estendidos e morte encefálica: prevalência e impacto na utilização de fígados para transplante no Brasil. World Journal of Gastroenterology, [S.l.], v. 29, n. 9, p. 1234-1245, 2023.
MARTINS, J. M. et al. Opinião pública e legislações relacionadas à morte encefálica, morte circulatória e doação de órgãos. Clinical Ethics, [S.l.], v. 15, n. 1, p. 1-9, 2020.
PINHEIRO, F. E. S. et al. Morte encefálica no paciente adulto: uma revisão integrativa da literatura. Research, Society and Development, v. 11, n. 16, 2022.
SILVA, A. et al. Ferramentas de melhoria da qualidade para gerenciar processos de doação de órgãos de doadores falecidos: uma revisão de escopo. BMJ Open, [S.l.], v. 13, n. 2, e070333, 2023.
SILVA, E. A. et al. Novos procedimentos para a confirmação da morte encefálica no Brasil: resultados da Central Estadual de Transplantes de Santa Catarina. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, São Paulo, v. 33, n. 2, p. 1-8, 2021.
WESTPHAL, G. A. et al. Diretrizes brasileiras para o manejo de potenciais doadores de órgãos com morte encefálica. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, São Paulo, v. 32, n. 1, p. 1-16, 2020.
ZIRPE, K. et al. Manejo do potencial doador de órgãos: declaração de posicionamento da Sociedade Indiana de Medicina Intensiva. Indian Journal of Critical Care Medicine, [S.l.], v. 28, supl. 2, p. S249-S278, 2024.
1Graduando em Medicina pela Afya Faculdade de Ciências Médicas de Itabuna.
2Médico docente da Afya Faculdade de Ciências Médicas de Itabuna.