DARK KITCHEN, DELIVERY E O DIREITO DA CONCORRÊNCIA NO BRASIL: DESAFIOS REGULATÓRIOS E ESTRUTURAS DE MERCADO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202505141922


Haroldo Corrêa Cavalcanti Neto1
Juliana Cristina Leinig de Almeida2
Patrícia Gonçalves Medeiros freitas Diniz3


Resumo

A ascensão das dark kitchens – cozinhas industriais voltadas exclusivamente para entregas – transformou profundamente a lógica do mercado de alimentação no Brasil, impulsionada por plataformas digitais de delivery. Este artigo analisa, sob a ótica do Direito da Concorrência, os impactos estruturais e concorrenciais desse novo modelo de negócio, discutindo questões como poder de mercado, verticalização das plataformas, cláusulas de exclusividade e práticas potencialmente anticoncorrenciais. A partir de uma abordagem jurídico-econômica, investiga-se a atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e os desafios regulatórios no enfrentamento das novas formas de concentração e assimetria de poder informacional.

Palavras-chave: Direito da Concorrência; Dark Kitchen; Delivery; CADE; plataformas digitais; economia de plataformas.

Abstract

The rise of dark kitchens — industrial kitchens exclusively designed for delivery — has profoundly transformed the dynamics of the food service market in Brazil, driven by digital delivery platforms. This paper analyzes, from the perspective of Competition Law, the structural and competitive impacts of this business model, addressing issues such as market power, platform verticalization, exclusivity clauses, and potentially anticompetitive practices. Through a law-and-economics approach, it examines the role of the Brazilian Competition Authority (CADE) and the regulatory challenges posed by new forms of concentration and informational asymmetry.

Keywords: Competition Law; Dark Kitchen; Delivery; CADE; Digital Platforms; Platform Economy.

1. Introdução

As transformações digitais ocorridas nas últimas décadas impactaram diversas cadeias econômicas, sendo o setor de alimentação um dos mais visivelmente alterados com a expansão das plataformas de delivery e das dark kitchens. O modelo de cozinha fantasma – que opera sem salão ou atendimento ao público – surge como estratégia de escalabilidade e redução de custos, mas levanta questionamentos relevantes no campo jurídico, especialmente no tocante à livre concorrência, equilíbrio de mercado e proteção ao consumidor.

A emergência de modelos de negócio como as dark kitchens está intimamente ligada à dinâmica das plataformas digitais, que atuam como intermediárias entre o consumidor e os estabelecimentos alimentícios. Essa intermediação, no entanto, não é neutra: as plataformas definem regras, algoritmos de ranqueamento, condições comerciais e parcerias que moldam o acesso ao mercado. O modelo desafia a compreensão tradicional da concorrência ao introduzir camadas adicionais de poder econômico e informacional.

A análise jurídica desse fenômeno exige uma abordagem interdisciplinar, capaz de integrar elementos da teoria da concorrência, regulação de plataformas digitais, direitos dos consumidores e inovação tecnológica. Este artigo pretende contribuir com esse debate, delimitando as principais questões concorrenciais que envolvem dark kitchens e plataformas de delivery no Brasil, à luz da legislação vigente e da jurisprudência do CADE.

2. Dark Kitchens e o Novo Ecossistema do Delivery

O conceito de dark kitchen, também conhecido como “cozinha fantasma” ou “cloud kitchen”, refere-se a estabelecimentos destinados exclusivamente à preparação de alimentos para entrega, sem atendimento presencial ao público. Essa modalidade permite operações mais enxutas, com redução de custos fixos como aluguel de pontos comerciais em áreas nobres, equipes de atendimento e infraestrutura de salão. 

Além disso, a flexibilidade geográfica permite que essas cozinhas se instalem em regiões periféricas ou industriais, reduzindo ainda mais os gastos operacionais. Estudos recentes, como o relatório da Euromonitor (2023), apontam que o mercado global de dark kitchens deve crescer 12% ao ano até 2027, impulsionado pela demanda por delivery e pela otimização de recursos.

Com a pandemia de COVID-19 e as medidas de distanciamento social, o modelo ganhou ainda mais protagonismo, servindo como solução para restaurantes que precisaram se reinventar diante da impossibilidade de operar presencialmente. A eficiência logística e a possibilidade de escalabilidade rápida atraíram investidores e plataformas digitais, que passaram a investir diretamente em infraestruturas compartilhadas ou modelos de franquia baseados em dark kitchens. 

No entanto, o crescimento acelerado também trouxe desafios, como a falta de regulamentação sanitária específica e críticas relacionadas à padronização excessiva dos cardápios, que podem comprometer a diversidade gastronômica. Em 2023, a ANVISA iniciou discussões para criar normas que garantam a qualidade e a segurança alimentar nesses ambientes, ainda sem conclusão.

O modelo também favorece a multiplicação de marcas virtuais, conhecidas como virtual brands ou ghost brands, que operam em um mesmo espaço físico, mas se apresentam como marcas distintas nas plataformas. Tal dinâmica amplia a competição aparente, mas pode mascarar a concentração de operações em poucas empresas ou conglomerados. 

Um exemplo emblemático é o Grupo Food, dono de mais de 20 marcas virtuais no Brasil, que utilizam a mesma cozinha para atender diferentes nichos de clientes. Essa estratégia, embora eficiente, levanta questões sobre transparência para o consumidor, que muitas vezes desconhece a origem real dos produtos.

Outro ponto crítico é o impacto ambiental do modelo. A dependência de embalagens descartáveis e a logística intensiva de entregas geram pegadas de carbono significativas. Em resposta, algumas dark kitchens começaram a adotar práticas sustentáveis, como embalagens biodegradáveis e parcerias com veículos elétricos. A startup brasileira Green Kitchen, por exemplo, tornou-se referência ao neutralizar 100% de suas emissões por meio de créditos de carbono, mostrando que a eficiência operacional pode coexistir com responsabilidade ambiental.

3. Estruturas de Mercado e Poder de Plataforma

O mercado de delivery no Brasil apresenta elevada concentração, sendo dominado majoritariamente pelo iFood, que detinha entre 75% e 80% de participação em 2023, segundo levantamento da consultoria Neoway. Esse cenário levanta preocupações sob a ótica do Direito da Concorrência, uma vez que o domínio de mercado impõe à empresa responsabilidades adicionais, conforme previsto na Lei nº 12.529/2011. A depender da região, essa concentração chega a dificultar a entrada e a sobrevivência de novos competidores, criando um ambiente assimétrico.

Os pequenos restaurantes são particularmente afetados pelas comissões cobradas, que variam entre 15% e 30% por pedido. Tais valores são considerados elevados por empreendedores do setor, especialmente diante da baixa margem de lucro na alimentação. O iFood, por sua vez, justifica as taxas com base em investimentos realizados em segurança da informação, suporte logístico e ações de marketing. Apesar disso, a assimetria contratual evidencia a relação de dependência econômica que muitos estabelecimentos acabam desenvolvendo em relação à plataforma.

Outro fator que amplia o poder das plataformas é o controle sobre grandes volumes de dados. As informações captadas incluem localização, horário de pedidos, hábitos de consumo e desempenho dos restaurantes. Essas bases são utilizadas para otimizar campanhas, precificação dinâmica e posicionamento nos aplicativos. Um relatório do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC, 2023) alertou para o risco de manipulação algorítmica, especialmente quando a lógica do ranqueamento privilegia quem paga mais.

Esse domínio tecnológico se estende também à logística. O iFood controla, segundo estimativas de mercado, cerca de 60% do serviço de entregas terceirizadas por meio do iFood Entregas. Isso possibilita subsídios cruzados e vantagens competitivas relevantes frente aos concorrentes. A concentração logística combinada à atuação como marketplace e à integração com dark kitchens caracteriza um modelo de integração vertical, que levanta questionamentos sobre a isonomia no tratamento entre parceiros comerciais.

Em 2022, o iFood lançou o iFood Labs, uma linha própria de dark kitchens. A iniciativa gerou reações de entidades representativas do setor de alimentação, como a ABRASEL, que alegaram concorrência desleal. O argumento central é que a plataforma, ao controlar todos os elos da cadeia (produção, distribuição e marketplace), atua como árbitro e jogador, comprometendo a neutralidade exigida para um ambiente concorrencial saudável. 

Em maio de 2023, o CADE abriu investigação preliminar para apurar eventual prática de preços predatórios em centros urbanos, fato que permanece em análise.

4. Práticas Potencialmente Anticoncorrenciais

Uma das práticas que mais despertou atenção do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) em relação ao mercado de delivery foi a imposição de cláusulas de exclusividade. Em investigações iniciadas ainda em 2020, e formalizadas no Processo Administrativo nº 08700.003155/2020-31, constatou-se que o iFood condicionava condições comerciais vantajosas à exclusividade dos restaurantes parceiros, impedindo-os de operar com outras plataformas. 

Em 2021, firmou-se um Termo de Compromisso de Cessação (TCC), no qual a empresa se comprometeu a suspender tais cláusulas em contratos futuros e a não renová-las nos contratos vigentes, conforme divulgado em nota oficial do CADE.

Contudo, denúncias posteriores revelaram que a empresa continuava a utilizar incentivos financeiros indiretos para manter a fidelização dos parceiros, como descontos progressivos em comissões para estabelecimentos que mantivessem exclusividade de fato. Em 2023, a ABRASEL protocolou novo pedido de reabertura do caso, alegando descumprimento do TCC. Essa estratégia, ainda que disfarçada, pode configurar violação ao artigo 36 da Lei nº 12.529/2011, especialmente por dificultar a entrada de novos concorrentes e limitar a escolha dos consumidores.

Outro aspecto relevante refere-se à prática de self-preferencing, ou preferência própria, na qual plataformas priorizam algoritmicamente seus próprios produtos ou marcas associadas. A conduta foi objeto de ampla regulação na União Europeia, sendo expressamente proibida pelo Digital Markets Act (DMA), aprovado em 2022. No Brasil, o CADE analisou denúncias de que o iFood promovia suas dark kitchens.

A integração vertical das plataformas também foi apontada como potencialmente predatória. Ao operarem todas as etapas da cadeia — produção, logística e marketplace —, empresas como o iFood conseguem diluir custos e oferecer condições financeiras que concorrentes menores não conseguem acompanhar. 

A aquisição do Grupo Spoon, dona das marcas TacoHub e Burger2Go, pela Movile (controladora do iFood), ampliou a capacidade da empresa de verticalizar operações e disputar diretamente com os restaurantes parceiros, conforme reportado em análise de mercado publicada pela Folha de S.Paulo em julho de 2022.

Além disso, uma denúncia apresentada pela ABRASEL em novembro de 2023 levantou suspeitas de que o iFood estaria utilizando dados estratégicos de vendas de restaurantes parceiros para calibrar os preços e cardápios de suas marcas próprias. 

O uso indevido de dados confidenciais, sem autorização e em benefício próprio, pode configurar infração à ordem econômica e à Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), sobretudo se implicar vantagem competitiva indevida e quebra de confiança contratual.

Essas práticas, em conjunto, apontam para a necessidade de aprimoramento da regulação e de fortalecimento da atuação institucional do CADE, a fim de garantir a equidade concorrencial em mercados marcados por assimetrias informacionais e dinâmicas algorítmicas complexas.

5. O Papel do CADE e os Desafios Regulatórios

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) tem desempenhado papel crucial no acompanhamento da dinâmica concorrencial dos mercados digitais, com destaque para o setor de delivery. A atuação da autarquia ganhou notoriedade a partir do caso envolvendo o iFood, formalizado no Processo Administrativo nº 08700.003155/2020-31, no qual se investigou o uso de cláusulas de exclusividade em contratos com restaurantes parceiros. Como resultado, foi firmado um Termo de Compromisso de Cessação (TCC) em 2021, limitando a utilização dessas cláusulas e estabelecendo parâmetros para a conduta futura da plataforma.

Contudo, auditorias realizadas pelo próprio CADE e denúncias da ABRASEL indicaram que a empresa continuava a adotar mecanismos que, na prática, reproduziam os efeitos da exclusividade formalmente proibida. Exemplos incluem bonificações progressivas e comissões reduzidas vinculadas à exclusividade de fato. Essa constatação motivou a reabertura do caso em 2023, demonstrando os limites da autocomposição em mercados altamente dinâmicos, onde a inovação muitas vezes supera a velocidade de resposta institucional.

Diante da complexidade do ambiente digital, o CADE criou, em 2022, o Núcleo de Mercados Digitais. A unidade especializada busca fortalecer a capacidade técnica da autarquia na análise de condutas em mercados baseados em plataformas, algoritmos e big data. O núcleo também atua na produção de estudos setoriais, na interlocução com reguladores estrangeiros e na formação continuada de servidores em temáticas digitais.

Ainda assim, o arcabouço jurídico brasileiro carece de um marco regulatório específico para plataformas digitais. O Projeto de Lei nº 2.768/2022, que trata do Marco Legal das Plataformas Digitais, encontra-se em tramitação no Congresso Nacional e visa instituir diretrizes sobre transparência algorítmica, interoperabilidade e vedação a práticas abusivas. A ausência dessa legislação dificulta a atuação preventiva e corretiva dos órgãos de defesa da concorrência, obrigando-os a interpretar normas tradicionais à luz de fenômenos econômicos emergentes.

Outro desafio relevante é a coordenação entre diferentes órgãos reguladores. Além do CADE, o debate sobre plataformas envolve a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), o Ministério Público e a Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON). A criação de grupos interinstitucionais e o compartilhamento de informações são estratégias apontadas por especialistas como essenciais para a construção de uma governança regulatória eficiente.

A experiência internacional oferece exemplos inspiradores. A União Europeia, por meio do Digital Markets Act (DMA), adotado em 2022, estabeleceu regras específicas para grandes plataformas digitais, os chamados gatekeepers. Entre as obrigações impostas estão a proibição de self-preferencing, a obrigatoriedade de interoperabilidade e a necessidade de maior transparência nos critérios algorítmicos. 

No Brasil, o CADE tem mantido interlocução constante com autoridades estrangeiras, como a Comissão Europeia e a Federal Trade Commission (FTC), visando o alinhamento de boas práticas.

Portanto, os desafios regulatórios enfrentados pelo CADE no caso das dark kitchens e do delivery digital não são apenas técnicos, mas estruturais. Demandam investimentos em inteligência institucional, revisão normativa e diálogo contínuo com a sociedade civil e o setor privado. O fortalecimento dessa agenda será determinante para garantir um ambiente concorrencial justo, inovador e alinhado aos direitos dos consumidores e empreendedores brasileiros

6. Considerações Finais

O modelo de dark kitchens representa uma das mais marcantes inovações no setor de alimentação e delivery dos últimos anos. Ao conjugar eficiência operacional com novas formas de presença digital, essas estruturas permitiram a expansão de marcas virtuais, a otimização de custos e o atendimento de uma demanda crescente por conveniência. No entanto, ao mesmo tempo em que oferecem oportunidades de crescimento, esses modelos também impõem desafios significativos à concorrência, à regulação e à proteção do consumidor.

A análise do ecossistema de plataformas de delivery no Brasil evidencia um cenário de forte concentração de mercado, em que uma única empresa responde por grande parte das transações, logística e visibilidade online. Tal domínio, por si só, não é ilegal, mas exige uma vigilância regulatória constante quanto às práticas comerciais adotadas. Cláusulas de exclusividade, integração vertical, uso de dados sensíveis e algoritmos opacos são elementos que, se utilizados de forma abusiva, podem comprometer a livre concorrência e perpetuar assimetrias de poder econômico.

A atuação do CADE tem sido relevante, especialmente nos casos envolvendo o iFood, mas enfrenta limitações diante da velocidade das transformações digitais. A criação de núcleos especializados e parcerias internacionais são avanços importantes, embora insuficientes sem o suporte de um arcabouço legal moderno e eficaz. O Marco Legal das Plataformas Digitais, ainda em tramitação, poderá contribuir nesse sentido ao estabelecer obrigações específicas de transparência, interoperabilidade e governança algorítmica.

Do ponto de vista jurídico, o enfrentamento dos riscos concorrenciais associados às plataformas requer uma abordagem multidisciplinar e interinstitucional. A atuação articulada entre CADE, SENACON e ANPD é fundamental para tratar das diversas externalidades geradas pelas práticas comerciais digitais, muitas vezes travestidas de inovação tecnológica. A proteção da concorrência precisa andar lado a lado com a defesa do consumidor e a tutela dos dados pessoais.

Por fim, o fortalecimento da cidadania digital, com consumidores mais conscientes de seus direitos e da estrutura econômica por trás dos aplicativos que utilizam, também é peça-chave para reequilibrar esse ecossistema. Incentivar o uso de plataformas que adotam práticas éticas, apoiar restaurantes locais e exigir transparência na origem dos produtos são atitudes que, embora individuais, possuem grande potencial de transformação coletiva. O futuro do setor dependerá do equilíbrio entre inovação, justiça econômica e responsabilidade social.

Referências

BRASIL. Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – SBDC.

CADE. Processo Administrativo 08700.003155/2020-31. Representação da ABRASEL contra iFood por cláusulas de exclusividade.

EVANS, David S.; SCHMALENSEE, Richard. Matchmakers: The New Economics of Multisided Platforms. Harvard Business Review Press, 2016.

RANCHORDÁS, Sofia. Innovation-Friendly Regulation: The Sunset of Regulation, the Sunrise of Innovation? European Journal of Risk Regulation, 2015.

STATISTA. Participation of food delivery apps in Brazil in 2023. Disponível em: www.statista.com.


1Mestrando em Direito pela Atitus Educação
https://orcid.org/0000-0003-1746-1965,
2Mestrando em Direito pela Atitus Educação
3Psicóloga e Pesquisadora em Hábitos e Costumes do Consumidor