DANÇA DO CHORADO DE VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE/MT: RESISTÊNCIA E RESSIGNIFICAÇÃO DA DIÁSPORA AFRICANA EM SOLO GUAPOREANO.

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202501060735


Alini Silva Ribeiro de Moraes1
Lucimara Alves da Conceição Costa2


Resumo:

O artigo explora a rica história da resistência quilombola em Vila Bela da Santíssima Trindade, com foco especial na dança do chorado como expressão cultural e forma de resistência feminina. Originária da época da escravidão, a dança do chorado representa a dor e a esperança das mulheres negras. Executada por um grupo majoritariamente feminino, a dança retrata a relação entre senhores e escravas, utilizando a lamentação como forma de expressão. A dança transcende a mera expressão artística, servindo como um símbolo de resistência contra a opressão e a luta pela afirmação da identidade negra. As mulheres de Vila Bela, através da dança do chorado, preservam a memória de suas ancestrais e fortalecem seus laços comunitários. A dança do chorado é considerada um patrimônio cultural de grande valor, reconhecendo a importância da cultura negra e sua contribuição para a formação da identidade brasileira. Em resumo, o artigo destaca a dança do chorado como uma manifestação cultural que une história, identidade e resistência, revelando a força e a resiliência das mulheres negras de Vila Bela da Santíssima Trindade.

Palavras-chave: resistência quilombola, dança do chorado, Vila Bela da Santíssima Trindade, mulheres negras, cultura afro-brasileira.

INTRODUÇÃO            

A dança do chorado, tradicional manifestação cultural presente em várias comunidades quilombolas do Brasil, é um elo importante entre a preservação de saberes ancestrais e a resistência cultural das populações afro-brasileiras. Em Vila Bela da Santíssima Trindade, no estado de Mato Grosso, as mulheres quilombolas desempenham um papel fundamental na manutenção e transmissão dessa tradição, que transcende a dança e se entrelaça com a história de luta, resistência e afirmação de identidade dessas comunidades. Através do chorado, elas não apenas perpetuam uma herança cultural que remonta ao período da escravidão, mas também afirmam sua voz em um contexto social e político que ainda subestima suas contribuições.

Este artigo propõe uma reflexão sobre a importância das mulheres quilombolas de Vila Bela na preservação e reinterpretação da dança do chorado, destacando como elas utilizam essa expressão cultural como uma forma de resistência e de afirmação da sua identidade. Ao explorar o processo de transmissão dessa dança, que envolve não apenas a prática corporal, mas também a música e o fortalecimento dos laços comunitários, o estudo busca compreender como essas mulheres, através da dança, mantêm viva uma memória coletiva de resistência e resistência cultural, ao mesmo tempo em que desafiam os estigmas impostos às suas comunidades.

No contexto de resgate histórico da cultura de um determinado grupo de indivíduos, queremos evidenciar uma prática, realizada em solo guaporeano, quilombola, mais especificamente em terras vila-belenses.

Tendo em vista o contexto colonial que impunha grandes sofrimentos e opressão à comunidade escravizada, alguns subterfúgios foram sendo utilizados com o objetivo principal de tentar diminuir os castigos sofridos pelos cativos, principalmente os homens. Desta forma, abordamos especificamente a Dança do Chorado, originalmente representada em Vila Bela, sendo uma tradição que se iniciou no tempo colonial e que perdura até os dias atuais como um elemento primordial para a cultura daquela comunidade. Assim, segundo Oliveira e Bandeira, (2015, p. 139):

[…] afirma ser o Chorado um artifício utilizado pelas escravas que, aproveitando do encantamento de seus senhores por meio de seus cânticos, seus gingados e requebros sensuais, pediam-lhes a redução/alívio dos castigos e penas impostas aos maridos e filhos nos trabalhos duros imputados aos negros escravos3. As dançarinas dançavam com um lenço e quando não o tinham, colocavam uma rosa no bolso de seus senhores e dançavam para eles com a rosa do lado da cabeça e uma garrafa de aguardente, encantando-os.

A dança do Chorado é realizada apenas por mulheres em razão de sua origem, como já explicado, porém, mesmo após o período escravagista brasileiro, essa manifestação cultural continuou sempre representada apenas pelo elemento feminino “não para implorar a clemência dos corações patronais, mas para mostrar à sociedade uma página da história, que pudesse até ser rasgada pelo tempo e nunca mais ser recuperada” (Lima, 2000, p. 146).

As mulheres, agindo em conjunto, se utilizavam de seus atributos físicos, aliados a cantorias ritmadas e à oferta de bebidas, acompanhadas de batuques do tambor e violas, cantavam canções de origem africana, aprendidas com suas gerações anteriores, com a finalidade de convencerem os senhores a não castigar seus entes queridos, como filhos e esposos, essas canções contavam sobre trivialidades da vida, trabalhos diários para as sinhás, revelando o tempo da escravidão, conquistas, perdas, amores, enfim, os mais variados temas que pudessem, de alguma forma, através da oralidade, manter as memórias vivas.

Contavam sobre um passado difícil de dor, de privação (Oliveira e Bandeira, 2015, p. 155), e outros temas sensíveis, “hoje, o Chorado de Vila Bela constitui-se um símbolo de manifestação cultural e de afirmação da identidade”, ainda, “(…) identifica-lhes, revelando o sentido de pertença de grupo, confirmando-lhes, por conseguinte, a identidade étnica”. (Oliveira e Bandeira, 2015, p. 160).

É inegável a importância da voz dessas minorias para a constituição histórica, social e cultural do Brasil, muita riqueza há na contribuição que esses humanos escravizados trouxeram para estas terras longínquas. Seus empréstimos valiosos de outras culturas foram decisivos para se formar a miscigenação que existe na contemporaneidade. Sobre as falas, Lucchesi (2009, p. 1-2) assevera que:

[…] a análise da fala das comunidades rurais afrobrasileiras isoladas assume uma posição crucial, uma vez que nessas falas podem ser encontrados indícios valiosos sobre as mudanças que teriam ocorrido na estrutura da língua portuguesa ao ser adquirida precariamente por um largo contingente de escravos4 africanos e ao ter se nativizado entre os seus descendentes. Em função do seu isolamento anterior, essas comunidades seriam, assim, verdadeiros arquivos vivos de processos que teriam marcado a história da difusão da língua portuguesa pelo território brasileiro.

A linguagem fundamenta a identidade de um povo, constrói sua história e propaga suas manifestações culturais, além de alicerçar a subjetividade de um indivíduo, que apesar de único, pode se enxergar como pertencente a uma comunidade, através de laços comuns. Na mesma linha de pensamento, a oralidade, traço muito forte de povos marginalizados, é a materialização da linguagem viva, pois retrata em tempo real cada recorte das vivências, dos temas preponderantes no momento, sendo realizada de acordo com a dinâmica social, histórica, cultural e política que esteja sendo vivenciada pela comunidade em dado momento.

Para Sapir, a linguagem é expressão direta da visão de um mundo particular, que pertence a uma determinada coletividade, “a trama de padrões culturais de uma civilização está indicada na língua em que essa civilização se expressa” (Sapir, 1969, p. 20). Assim, como destaca o autor:

Que o léxico assim reflita em alto grau a complexidade da cultura é praticamente um fato de evidência imediata, pois o léxico, ou seja, o assunto de uma língua destina-se em qualquer época a funcionar como um conjunto de símbolos, referentes ao quadro cultural do grupo. Se por complexidade de uma língua se entende a série de interesses implícitos em seu léxico, não é preciso dizer que há uma correlação constante entre a complexidade linguística e a cultural (Sapir, 1969, p. 51).

No espaço quilombola, traços de suas culturas mães foram se mesclando a rituais pertencentes a outras etnias, a linguagem foi se fundindo, unindo elementos de vários grupos linguísticos, inclusive o Português e Línguas Indígenas. Schelling (1991, p. 21) afirma que “o termo cultura é ele próprio cultural, na medida em que como produto de desenvolvimento histórico de um diálogo da sociedade consigo mesma ela traz a marca de sua formação”. Nesse sentido, segundo Reis (1995, p. 23):

Os africanos para aqui trazidos como escravos5 não eram tábula rasa sobre a qual foi simplesmente inscrita a nova experiência como escravos6. A própria experiência escrava não foi a mesma em todo lugar e todas as épocas, apesar de a escravidão estar em todo lugar e ter durado mais de três séculos.

O léxico foi se definindo a partir de contribuições de todos que para aqui foram trazidos, pois “africanos de diferentes grupos étnicos administraram suas diferenças e forjaram novos laços de solidariedade, recriaram culturas” (Reis, 1995), o que não significou que houve a ruptura com seus laços ancestrais, pelo contrário, o que houve foi a fusão de vários costumes, incluindo-se a língua, onde houve a incorporação de vários dialetos de origem africana, com Línguas Indígenas nativas, Português e outras línguas europeias.

A língua, como bem se sabe, é viva, é dinâmica e aceita contribuições de todas as formas, sempre evidenciando o momento, as origens, cultura, nível social, educacional de seus falantes, etc. Contribui, desta forma, com elementos essenciais para uma análise muito rica acerca da complexidade linguístico-social e cultural, a fim de que se evidencie os processos discursivos próprios dessas minorias.

E é nesse contexto em ebulição, onde várias culturas foram obrigadas a conviver, se unindo em suas diferenças que surgiu o Chorado.

As celebrações tradicionais tornam-se elementos fortalecedores e estratégicos dos grupos negros de Vila Bela da Santíssima Trindade que, ao apropriarem-se do passado e de suas memórias, definem as relações do presente – seja nos festejos ou no cotidiano – e ressignificam as heranças de resistências, de sobrevivências e sobre como viver em uma sociedade reocupada pelos brancos que assumiram o poder político e são indiferentes às problemáticas e tradições festivas da população (Oliveira, 2020, p. 146).

Assim, a celebração do Chorado se tornou uma forma de integração da comunidade em momentos festivos, Oliveira e Bandeira (2015, p. 141) revelam que essa necessidade de se recuperar práticas antigas, advindas de gerações anteriores, fez com que as mulheres mais velhas da comunidade recriassem o Chorado transformando-o na manifestação atual, que encanta aos que assistem, e com o passar do tempo incorporou ritmos e músicas do tambor e do batuque, sempre com a inspiração das danças de origem africana.

Importa mencionar que, apesar de ter havido influência do elemento colonizador nas práticas culturais dos povos escravizados, por vezes havendo incorporação de tradições europeias nos rituais negros, isso não significou a desafricanização da cultura negra, ao contrário, os cativos sempre lutaram pela manutenção de seus cultos.

Eles sempre travaram uma luta ferrenha pela manutenção da sua cultura, porque o catolicismo se impunha a eles como a melhor forma de ascensão social. Os negros assimilaram muitas características da Igreja Católica, mas uma boa parte da aceitação do cristianismo, era apenas externa. O esforço maior mesmo dos negros era manterem-se o mais próximo possível das suas raízes culturais. Muitas, embora modificadas, permanecem até hoje em nosso meio. (Lima, 2000, p. 153).

Percebe-se, com isso, uma forma de “adaptação” ao espaço para onde foram trazidos à força, com o objetivo de não causarem descontentamento e consequentes castigos ou punições aos senhores e ao mesmo tempo, ainda que sutilmente, havia a manutenção de padrões culturais que vieram de seus países de origem.

Em relação à dança do Chorado, esta foi criada relacionada diretamente à intervenção sutil realizada por mulheres a fim de conseguir favores de seus senhores, sendo que, principalmente a partir de 1751, com a chegada dos primeiros capitães-generais à nova capital, essa dança essa encenada para diversão dos nobres, que para quebrar a monotonia e a saudade de casa, realizavam festas particulares e convocavam as escravas com mais gingado para lhes entreter. Lima (2000, p. 61) fala sobre a origem do Chorado:

Na sua origem, era empregada pelas mães ou esposas escravas, como um dos artifícios da luta pela liberdade dos seus filhos ou esposos, quando eram duramente castigados ou condenados à morte pelos seus patrões. Elas dançavam de forma bem sensual na presença dos seus patrões, como uma forma de livrar os seus filhos ou esposos dos castigos ou da morte. Reunidas em grupos, vestiam-se da melhor maneira possível e se dirigiam até as residências de seus patrões. Lá dançavam com algum objeto na cabeça (pedra, lata d’água, pedaço de madeira etc.) e um lenço amarrado no pescoço. Usavam de todos os movimentos possíveis do corpo para mostrarem sensualidade e destreza, como uma forma de agradar aos seus patrões e alcançarem seus objetivos. Segundo informações prestadas por várias pessoas da comunidade, elas conseguiram ter vários pedidos atendidos.

Para melhor termos uma noção da forma que esta manifestação cultural é representada, as autoras Oliveira e Bandeira (2015, p. 146) nos detalham:

O Chorado é uma dança de roda, em que as dançarinas gingam ao som do violão, tambor e atabaque. Em seus vestidos com estampas remissivas à África, gingam no sentido anti-horário de um lado para outro. Enquanto dançam, preenchem os espaços vazios do salão. Sobre as cabeças, garrafas de bebida tradicional, em lembrança às garrafas de pinga que eram utilizadas para embebedarem os senhores de escravo7, a fim de solicitar-lhes a redução das penas, castigos dos maridos e filhos. Hoje, utilizam garrafas de canjinjin para os malabares realizados na dança, quem encantam aqueles que a assistem, deixandoos admirados pela habilidade das dançarinas em requebrarem até o chão, equilibrando as garrafas sobre as cabeças. Em duas filas, cantando, em seus vestidos 57 rodados, descalças, gingando de um lado e de outro, em requebros, desenham no ar curvas sinuosas com os vestidos esvoaçantes, as dançarinas do Chorado entram no salão. São cantos diversos [… ].

Com a transferência da capital para Cuiabá, a saída dos brancos e a abolição da escravidão no Brasil, a Dança do Chorado continuou sendo encenada em Vila Bela, porém, não mais com a intenção de pedir favores aos senhores de cativos. Ela passou a ser realizada pelas “mulheres que trabalhavam como cozinheiras durante o período das festas, (que) resolveram levar avante a tradição da dança” (Lima, 2000, p. 62).8

Como não tinham tempo de participar integralmente das celebrações, elas promoviam a Dança do Chorado ao final da Festança, assim, dançavam, sapateavam e batucavam nas cozinhas mesmo, e quando aparecia algum desavisado para espiar a dança, ele era laçado com um lenço pelo pescoço e tinha a incumbência de pagar uma bebida para as dançantes.

A captura se dava através da laçada do pescoço dos curiosos com um lenço comprido que as mulheres do Chorado sempre tinham à mão. O homem era puxado até o interior do recinto onde ocorria o “mocororó”, normalmente nas cozinhas e varandas internas. Lá, ele era cercado pelas mulheres que dançavam e cantavam “esse irimão vai pagar, esse irimão vai pagar”. Se o homem desembolsasse algum dinheiro e repassasse às dançarinas, ele era imediatamente solto e as mulheres cantavam “homem que tem dinheiro, deita na cama e carinho nele, carinho nele”. Caso o homem se recusasse a pagar ou não tivesse dinheiro para lhes dar, elas cantavam enfezadas “homem que não tem dinheiro, deita na cama e porrete nele, porrete nele”, e ele era solto e esquecido. (Oliveira e Bandeira, 2015, p. 141).

As dançarinas formam um grupo entre 12 e 229 dançantes, aceitas a partir de 16 anos de idade e permanecem no Chorado até o tempo que quiserem, só saem do grupo por livre vontade ou por questão de idade ou saúde, ou ainda por expulsão, em decorrência de algum ato que comprometeu a integridade do grupo (Lima, 2000, p. 150).  

Bailam ao som de instrumentos como o violão e o tambor e o atabaque, que dão ritmo às canções e marcam o os passos para a execução dos gingados. As músicas são entoadas ao vivo, por cerca de três cantoras, seguindo uma sequência, tendo a canção de abertura, a evolução e a finalização, sempre seguindo a ordem.

Figura 1: Apresentação do Chorado, com as dançarinas, os cantores e suas vestimentas típicas.9

Fonte: acervo do fotógrafo Mario Friedlander.

            Figura 2: Apresentação da Dança do Chorado.

Fonte: Acervo pessoal do grupo Pérolas

            Figura 3: Dançantes do Chorado acompanhadas de imagens de santos centenárias.

Fonte: Acervo pessoal do grupo Pérolas Negras (2016)

2. A apresentação da dança do chorado

No período destinado à Festança, no sétimo dia, sendo o primeiro da Festa em honra a São Benedito, há a apresentação pública da Dança do Chorado, após a celebração da missa, as dançarinas se posicionam de frente a Igreja, com seus vestidos multicoloridos, longos e rodados, seus adereços, colares, pulseiras e brincos, também muito coloridos e chamativos com temas africanos, descalças e com seus lenços e suas garrafas de canjinjin10, para iniciarem a apresentação.

A sequência, seguindo a ordem das canções apresentadas segue na íntegra:

I
E vem, e vem, a barra do dia e vem
E em, e vem, a barra do dia e vem.
Eu peço a Vila Bela licença queira nos dar,
viemos de Vila Bela essa dança apresentar.
Eu falo aos vila-belenses, uma coisa, uma coisa
vou dizer, o carro sem boi não anda, e não canto sem beber.

II
Eu tenho um menino dentro do meu coração, Mariá
tanto tempo tá comigo,
nunca fez mal criação, Mariá.
Vai, vai, vai, que eu também vou, Mariá.

III
Jaqueline e Mariana11 , todas têm um parecer, Mariá
Jaqueline tem um jeitinho de botar Mariana a perder, Mariá.
Dam, dam, rim, dam, dam.

IV
Entrei de caixeiro, saí de sócio,
deitado na cama, quebrei
meus ossos, eu posso, eu posso
com mais alguém (bis).
Eu posso, meu bem, eu posso
Eu posso com mais alguém.
Eu posso, meu bem, eu posso
Eu posso com mais alguém.

V
Cachorro que late em seu quintal
Au, au, au no seu quintal.
Quem tem seus amores longe
Dam, dam, dam sinhá (bis).

VI
Chuva choveu sabiá, na beira mar
sabiá, vem ver seu ninho
sabiá, pra não molhar (bis).

VII
Fui no mato panhar coco,
pra matar a minha fome,
lá do mato respondeu,
coco verde não se come,
oi, coco verde não se come (bis).
Dam, dam, rim, dam, dam.

VIII
Meu patrão brigou comigo,
mas não foi por coisa à toa,
foi porque eu fui buli,
no tinteiro da patroa.
Oi guirro, guirro, guirro lá (bis).

IX
Seu delegado não me prenda,
Não me leve pro quartel,
eu não vim fazer barulho,
vim buscar minha mulher.

X
Esse irmão vai pagar

XI
Esse irmão já pagou
Dam, dam, rim, dam, dam.

XII
Homem que tem dinheiro
Deita na cama e carinho nele.
Carinho nele, carinho nele.
Dam, dam, rim, dam, dam.

XIII
Homem que não tem dinheiro
Deita na cama e porrete nele.
Porrete nele, porrete nele.
Dam, dam, rim, dam, dam.

XIV
São Pedro e São Paulo, São Bartolomeu,
São Pedro e São Paulo, São Bartolomeu
esses homens de agora, é pecado meu (bis).
Senhor, me desculpe que estou muito aflito
Senhor, me desculpe que estou muito aflito
Lidando com a festa de São Benedito.

XV
Qua, qua, qua amor.
Qua, qua, qua amor, tem perigo tem.
Tem, tem, tem perigo tem.

XVI
Qua, qua, qua, minha nega,
qua, qua, qua, qua
Qua, qua, qua, minha nega,
qua, qua, qua, qua.
Se eu soubesse que tu vinhas, minha nega,
dava um dia maior, minha nega
dava um nó na fita verde, minha nega
outro no raio do sol.

XVII
Eu queria ser rolinha, minha nega,
rolinha do sertão, pra mim fazer
meu ninho, dentro do seu coração.
Não precisa ser rolinha, rolinha do sertão,
o seu ninho já está feito,
dentro do meu coração.
Dam, dam, rim, dam, dam.

XVIII
Olha lá a umbigada,
que Sabino mandou dar (bis).
Sabino não pôde vir
mandou eu no seu lugar,
é por isso que estou aqui,
eu vim representar.
Sabino diz que umbigada
não tem ofensa nenhuma,
quem não tem mulher aqui
dá umbigada em mulher de qualquer um.
Olha lá a umbigada
que Sabino mandou dá.
Dam, dam, rim, dam, dam.

XIX
Lá no pé de bananeira, tem
Marimbondo, sinhá (bis).
Tem em cima, tem sinhá.
Tem em baixo e tem em cima
tem marimbondo, sinhá.
Lá no pé de bananeira,
tem marimbondo, sinhá.
Dam, dam, rim, dam, dam.

XX
Bem-te-vi bateu asa,
bateu asa e avuou.
Bem-te-vi bateu asa,
bateu asa e avuou.
Quando tu for embora,
Dê lembrança meu amor (bis).

XXI
Eu vou embora, e não volto mais aqui,
Eu vou embora, e não volto mais aqui,
eu vou morar na mata onde canta a juriti,
eu vou morar na mata onde canta a juriti.
Dam, dam, rim, dam, dam.

XXII
Adeus passarinho, adeus passarinho,
Adeus que eu já vou s’embora (bis).
Dam, dam, rim, dam, dam.

XXIII
Urra mutum, mutum não quer urrar
Urra mutum, mutum não quer urrar
U, u, u, u, u
O milho da minha roça, mutum não come mais
O milho da minha roça, mutum não come mais.

XXIV
Morena, morena, seu amor já foi embora
Morena, morena seu amor já foi embora
Seu retrato me consola, moreno
Deixa ele que vá
Seu retrato me consola, moreno
Deixa ele que vá
Dam, dam, rim, dam, dam.

XXV
Filha da Antônia pariu
Não sabe se é fêmea ou se é macho.
Filha da Antônia pariu
Não sabe se é fêmea ou se é macho.
Bem embaixo, sinhá, bem embaixo
Bem baixinho, sinhá, bem embaixo.
Bem embaixo, sinhá, bem embaixo
Bem baixinho, bem baixinho.

XXVI
Quem nunca viu Doroteia
É coisa de admirar
Quem nunca viu Doroteia
É coisa de admirar
Com sua saia de chita
Camisa, seu natural.
Bem embaixo, sinhá, bem embaixo
Bem baixinho, sinhá, bem embaixo.
Bem embaixo, sinhá, bem embaixo
Bem baixinho, sinhá, bem baixinho.

XXVII
Lá no pé da serra, eu deixei meu coração
Lá no pé da serra, eu deixei meu coração
Saudade eu tenho de morar no meu sertão.

Na minha casa, eu trabalho noite e dia
No meu ranchinho, tinha tudo o que eu queria
Na minha casa, eu trabalho noite e dia
No meu ranchinho, tinha tudo o que eu queria.

O xote é bom para dançar
Minha cabocla dança xote sem parar,
O xote é bom pra dançar
Minha cabocla dança xote sem parar.

XXVII
Lá no pé da serra, eu deixei meu coração
Lá no pé da serra, eu deixei meu coração
Saudade eu tenho de morar no meu sertão.

Na minha casa, eu trabalho noite e dia
No meu ranchinho, tinha tudo o que eu queria
Na minha casa, eu trabalho noite e dia
No meu ranchinho, tinha tudo o que eu queria.

O xote é bom para dançar
Minha cabocla dança xote sem parar,
O xote é bom pra dançar
Minha cabocla dança xote sem parar.

XXVIII
O que tem, seu Mané,
Que eu não posso entender
O que tem, seu Mané,
Que eu não posso entender.
Dá cozido, não qué, seu Mané
Tudo o que é cru, qué comer,
Dá cozido, não qué, seu Mané
Tudo o que é cru, qué comer.
Dam, dam, rim, dam, dam.

XXIX
Tu eras quem me dizia
Tu eras quem duvidava
Que no fim do nosso amor
Tu eras quem me deixava
Dam, dam, rim, dam, dam.

XXX
Morena que te contou
Que esta noite serenou
Deitado no seu colo
Sereno não me molhou.

Ao final, todas se despedem acenando seus lenços que foram desatados de suas cinturas e saem, dançando, em fila indiana.

A comunidade vilabelense transpira cultura, desde seus casarões, gastronomia, cultos e festas. Desta forma o Chorado ganhou muita visibilidade, por ser uma expressão única, por sua origem de relevância inestimável e pela valorização do elemento feminino.

Com isso, temos então, vários fatores tidos como marginalizados pela sociedade moderna, e por vezes, ainda a contemporânea, assim sendo, a mulher, negra e quilombola. Porém, nenhum desses fatores foram suficientes para relegar essa minoria ao “status quo”, já que, ainda quando os grilhões, as chicotadas e gritos de súplicas eram os sons mais 99 entoados, ela não se abateu e buscou, através de subterfúgios, proteger seus entes queridos.     

A Dança do Chorado, portanto, vai além de passos ritmados, realizados ao som do batuque de tambores e acompanhada por canções que evocam tempos remotos vividos na África, essa tradição cultural perpassou o tempo e na atualidade não mais tem a função de súplica e sim a denotação de rememorar a resiliência daquelas mulheres antes escravizadas que conseguiram transformar os atos de crueldade em uma comemoração alegre, colorida e de orgulho pelo pertencimento em um espaço marginalizado, além do que essa parcela minoritária se sente protagonista em cultuar e expandir suas tradições num espaço que elas conseguiram se estabelecer.

A dança do chorado, praticada pelas mulheres quilombolas de Vila Bela da Santíssima Trindade, representa muito mais do que uma simples manifestação cultural; ela é um potente símbolo de resistência, identidade e luta. Ao longo dos anos, essas mulheres têm sido as guardiãs de uma tradição que não apenas resgata a memória de suas origens, mas também reafirma a importância de seus corpos e suas vozes na preservação de um legado afro-brasileiro. No contexto contemporâneo, a dança do chorado se configura como um espaço de afirmação cultural, onde as mulheres quilombolas, muitas vezes marginalizadas pela sociedade, encontram no ritmo e no movimento uma forma de resistência contra a invisibilidade e a opressão histórica que enfrentam.

Ao praticar e transmitir a dança do chorado, as mulheres de Vila Bela não apenas preservam um patrimônio imaterial, mas também constroem uma narrativa de resistência que se conecta com o passado, mas se projeta no presente e no futuro, afirmando suas identidades e desafiando os estigmas raciais e de gênero. A dança, como expressão de vida, é, portanto, um instrumento poderoso de fortalecimento comunitário e de resiliência, que continua a resistir ao tempo e às adversidades.

Assim, a prática do chorado nas comunidades quilombolas de Vila Bela da Santíssima Trindade é um exemplo claro de como a cultura e a memória se tornam formas de resistência, e como as mulheres, com sua sabedoria e coragem, desempenham um papel central na manutenção dessa luta. Ao se movimentarem no ritmo do chorado, elas não apenas preservam uma tradição, mas reafirmam a importância de sua presença e de sua luta na construção de um futuro mais justo, igualitário e reconhecedor das riquezas culturais de seus povos.


3 Denominação mantida, porém, no contexto desta pesquisa o termo mais indicado seria “escravizado”.
4 Denominação mantida, porém, no contexto desta pesquisa o termo mais indicado seria “escravizado”.
5 Denominação mantida, porém, no contexto desta pesquisa o termo mais indicado seria “escravizado”.
6 Denominação mantida, porém, no contexto desta pesquisa o termo mais indicado seria “escravizado”.
7 Denominação mantida, porém, no contexto desta pesquisa o termo mais indicado seria “escravizado”.
8 Essas festas remontam à tradição católica, porém lhe foi agregada os costumes advindos das tradições negras, já que se iniciaram com celebrações referentes ao calendário agrícola, com a preparação da terra para o plantio, no período de setembro a outubro, últimos meses da estação seca, para que a estação chuvosa trouxesse uma boa produção. E as festas tinham o objetivo de agradecer aos santos pela colheita anterior, nesse período eram realizadas as festas de São Benedito e do Congo, onde haviam grandes refeições comunitárias que reunia a todos. Com isso, os padres católicos se juntavam às pessoas para realizarem os rituais católicos como confissões, batizados, casamentos, enfim. Havia ainda outras festas realizadas pelos negros, acompanhando o calendário católico, como é o caso da festa do Divino Espírito Santo, da Santíssima Trindade, de Nossa Senhora do Rosário e da Mãe de Deus. E em todas essas festas a Dança do Chorado era realizada, fosse nas cozinhas, fosse em casas fechadas, fosse em praça pública. Com o passar do tempo, o calendário festeiro de Vila Bela incorporou todas as festas em uma grande Festança, que passou a ser realizada anualmente, na segunda quinzena de julho, abarcando as duas últimas semanas do mês, em razão de ser período de férias escolares, o que por sua vez, poderia atrair mais expectadores para Vila Bela.
9 Em destaque está a dançarina mais idosa a fazer parte da dança do Chorado, hoje em dia não mais praticante em razão de problemas de saúde e locomoção, Astrogilda Leite de França, considerada, na atualidade “Matriarca de Vila Bela”.

REFERÊNCIAS

LIMA, José Leonildo. Vila Bela da Santíssima Trindade- MT: sua fala, seus cantos I. José Leonildo Lima– Campinas, SP: [s.n], 2000.

LUCCHESI, Dante. A importância de se estudar a fala das comunidades rurais afro- brasileiras. Disponível em: http://www.gelne.ufc.br/revista_ano4_no2_09.pdf. Acesso em: 13, dez, 2022.

OLIVEIRA, Letícia Helena de. “A nossa identidade tá aí: Vila Bela, Festança 104 e o povo negro”: heranças da comunidade negra de Vila Bela da Santíssima Trindade-MT (1980-2020). Dissertação (Mestrado em História Social) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2020.

OLIVEIRA, Suze S. e BANDEIRA, Maria de Lourdes, Vila Bela da Santíssima Trindade. A pérola negra de Mato Grosso. Caderno IV: Formas de Expressão, 2015. Entrelinhas.

REIS, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, São Paulo, Brasil, n. 28, p. 14–39, 1996.

SAPIR, Edward. A Linguagem. Tradução de Joaquim Mattoso Câmara Jr. (Série Estudos). Rio de Janeiro: Perspectiva, 1969.

SCHELLING, V. A presença do povo na cultura brasileira: ensaios sobre o pensamento de Mário de Andrade e Paulo Freira. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990.


1 Aluna do Mestrado Acadêmico em Letras da Universidade Federal de Rondônia – UNIR.

2 Professora Doutora, orientadora.