CUIDADOS PALIATIVOS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE: RELATO DE EXPERIÊNCIA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202412121552


Ana Júlia Gonçalves Vila Verde Álvares;
Orientadora: Alda Lúcia Nunes Solá


RESUMO

Com o avanço da ciência, a expectativa de vida aumentou, aumentando também a incidência de doenças crônicas. A Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu a importância dos cuidados paliativos (CP) para melhorar a qualidade de vida de pacientes com doenças graves. Este estudo apresenta a experiência na atenção primária em CP, correlacionando teoria e prática desenvolvidas durante a residência em medicina de família e comunidade. A metodologia incluiu a análise de dados clínicos obtidos durante a residência em unidades básicas de saúde em Anápolis/GO, e a revisão de literatura nas plataformas PubMed e Scielo, com foco em artigos publicados entre 2018 e 2024. A implementação das Redes de Atenção à Saúde e da Atenção Domiciliar mostrou-se crucial, promovendo um cuidado humanizado e contínuo. A formação insuficiente dos médicos em CP e desafios como a complexidade dos atendimentos domiciliares e a falta de infraestrutura foram identificados como limitadores. O uso de escalas de avaliação para identificar pacientes e orientar cuidados específicos é essencial. A interdisciplinaridade e a articulação entre setores são fundamentais para garantir a integralidade dos cuidados. Equipes multiprofissionais são cruciais para abordar as dimensões físicas, psicossociais e espirituais dos pacientes. A discussão sobre bioética é vital para práticas éticas e humanizadas. Conclui-se que a implementação eficaz de CP na Atenção Primária à Saúde requer formação contínua dos profissionais, estruturação das redes de atenção e políticas públicas que assegurem a integralidade e a humanização dos cuidados, atendendo às reais necessidades dos pacientes.

Palavras-chave: Atenção básica. Estratégia Saúde da Família. Paliatividade.

ABSTRACT

With advancements in science and technology, life expectancy has increased, consequently raising the incidence of chronic diseases. The World Health Organization (WHO) has recognized the importance of palliative care (PC) in improving the quality of life for patients with severe illnesses. This study presents the experience in primary care within the realm of PC, correlating theory and practice developed during a family and community medicine residency. The methodology included the analysis of clinical data obtained during the residency in basic health units in Anápolis/GO, and a literature review from PubMed and Scielo platforms, focusing on articles published between 2018 and 2024. The implementation of Health Care Networks and Home Care proved crucial, promoting continuous and humanized care. Insufficient training of physicians in PC and challenges such as the complexity of home care and lack of infrastructure were identified as limiting factors. The use of assessment scales to identify patients and guide specific care plans is essential. Interdisciplinarity and articulation among sectors are fundamental to ensure comprehensive care. Multidisciplinary teams are crucial to addressing the physical, psychosocial, and spiritual dimensions of patients. The discussion on bioethics is vital for ethical and humane practices. It is concluded that the effective implementation of PC in Primary Health Care requires continuous professional training, structuring of care networks, and public policies that ensure comprehensive and humanized care, meeting the real needs of patients.

Keywords: Basic Care. Family Health Strategy. Palliative Care.

1 INTRODUÇÃO

Com o avanço da ciência e da tecnologia, bem como com a evolução de medicamentos e tratamentos, a expectativa de vida aumentou significativamente, levando à redução da mortalidade por doenças antes consideradas letais. Paralelamente, observou-se o envelhecimento da população e o consequente aumento na incidência de doenças crônico-degenerativas não transmissíveis (DCNT) (RIBEIRO; POLES, 2019). Nesse contexto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a dedicar maior atenção aos cuidados paliativos (CP), estabelecendo, ainda na década de 1980, políticas voltadas para o alívio da dor e o cuidado com pacientes acometidos por doenças graves, como o câncer. Em 1990, a OMS formalizou sua primeira definição de cuidados paliativos, reconhecendo sua importância para a saúde global (RIBEIRO; POLES, 2019).

Os cuidados paliativos, segundo a OMS, consistem em uma abordagem terapêutica integrada e multiprofissional, cujo objetivo é melhorar a qualidade de vida de pacientes com doenças ameaçadoras à vida e de seus familiares. Tal assistência é fundamentada na prevenção e no alívio do sofrimento, considerando os aspectos físicos, psicológicos, sociais e espirituais, além de priorizar o diagnóstico precoce e a intervenção ativa (CARVALHO et al., 2018). Essa abordagem holística se aplica a indivíduos de todas as idades que enfrentam sofrimento intenso devido às suas condições de saúde, sendo especialmente relevante em casos próximos ao fim da vida (GARCIA; ISIDORO, 2024).

Apesar de sua relevância, a diferenciação entre cuidados paliativos e cuidados terminais ainda é um desafio, visto que ambos envolvem pacientes com câncer, demências e falência de órgãos. Essa dificuldade de delimitação reforça a necessidade de capacitação profissional e da integração dos cuidados paliativos nos sistemas de saúde (CARVALHO et al., 2018). No Brasil, a implementação desse tipo de cuidado enfrenta barreiras significativas, como limitações financeiras, ausência de estratégias nacionais, baixa integração no sistema de saúde e a escassez de investimentos na área, colocando o país entre os últimos em qualidade de cuidados no final da vida (GARCIA; ISIDORO, 2024).

Ademais, apenas uma pequena parcela dos indivíduos que necessitam de cuidados paliativos, cerca de 8%, tem acesso a essa assistência. Esse dado é preocupante, uma vez que mais de 100 milhões de pessoas poderiam se beneficiar anualmente dessa modalidade de cuidado (CARVALHO et al., 2018). No âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS), que é o primeiro contato dos usuários com o sistema de saúde, a Estratégia Saúde da Família (ESF) desempenha papel central, embora ainda enfrente desafios para incorporar os cuidados paliativos de forma abrangente, especialmente devido à falta de recursos e dificuldades dos profissionais em lidar com as famílias (RIBEIRO; POLES, 2019).

No Brasil, algumas normas foram criadas para ampliar o acesso aos cuidados paliativos, como a Portaria nº 19/2002 e a Lei nº 10.424/2002, que regulamentam a assistência domiciliar no Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, o Programa Melhor em Casa busca fortalecer a oferta desse atendimento pelas equipes de Atenção Primária (RIBEIRO; POLES, 2019). Apesar desses avanços normativos, a prática de cuidados paliativos ainda é incipiente no país, indicando a necessidade de maior articulação entre políticas públicas e práticas médicas.

Portanto, os cuidados paliativos, embora fundamentais para garantir qualidade de vida em contextos de sofrimento e terminalidade, permanecem subexplorados no Brasil, evidenciando a urgência de estratégias que ampliem sua implementação e acessibilidade.

2 OBJETIVOS

Este estudo tem como objetivo apresentar a experiência vivida na atenção primária na área de cuidados paliativos, além de correlacionar teoria e prática e os conhecimentos que foram desenvolvidos ao longo da residência de medicina de família e comunidade.

3 MATERIAIS E MÉTODO(S)

Se trata de relato de experiência realizado com bases nos dados clínicos obtidos durante a residência de medicina da família e comunidade em unidades básicas de saúde em Anápolis/GO. Para construção do presente relato foi utilizado referencial teórico obtido nas plataformas acadêmicas PubMed e Scientific Eletronic Library Online (Scielo). 

Foram selecionados artigos publicados a partir do ano 2018 até 2024. Como descritores foram utilizados os termos “atenção primária”, “atenção básica” e “cuidados paliativos”. Foram incluídos todos os artigos encontrados a partir dos descritores selecionados. Foram excluídos os artigos de categoria “carta ao editor” e os que não possuíam publicação em língua portuguesa.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

A implementação de Redes de Atenção à Saúde (RAS) no Brasil, promovida em conjunto com a Reforma Sanitária, tem sido fundamental para a estruturação do atual Sistema de Saúde. A organização dessas redes reflete a descentralização e assegura uma assistência integral e contínua à população, promovendo um modelo de cuidado mais eficiente e abrangente (CARVALHO et al., 2018).

Um dos elementos chave dentro das RAS é a Atenção Domiciliar, que se destaca como uma modalidade crucial para a orientação dos serviços de saúde, especialmente no que tange aos cuidados paliativos. Esta modalidade é definida como uma ação substitutiva ou complementar às já existentes e caracteriza-se por um conjunto de ações que abrangem a promoção à saúde, prevenção, tratamento de doenças e reabilitação no domicílio do paciente (CARVALHO et al., 2018).

Essa abordagem, essencial em minha vivência como residente de medicina de família, garante a continuidade dos cuidados e a integração dos serviços dentro das RAS, promovendo um cuidado mais humanizado e próximo do contexto de vida dos pacientes (CARVALHO et al., 2018). Por meio das visitas domiciliares, se tornou possível conhecer os detalhes dos pacientes, suas famílias e seu convívio, o que é importante para realizar uma melhor articulação do cuidado.

A perspectiva dos CP se amplia ainda mais quando consideramos as enfermidades crônicas e evolutivas, como insuficiência renal, cardíaca, demências, Parkinson e doença pulmonar obstrutiva crônica, que demandam uma atenção especializada e contínua. Pude perceber um certo despreparo e insegurança de minha parte ao lidar com as primeiras situações delicadas e desafiadoras que são inerentes aos cuidados paliativos. Isso vai ao encontro do destacado por Ribeiro e Poles (2019), que colocam como fator crítico a formação insuficiente dos médicos em cuidados paliativos durante a graduação, que impacta diretamente a qualidade do atendimento prestado. Ainda, Silva, Nietsche e Cogo (2021) elencam que a abordagem da temática da morte e do morrer ainda é superficial na formação acadêmica, o que compromete a preparação dos profissionais.

Além disso, foi possível perceber alguns desafios que limitam a efetividade dos cuidados paliativos na APS, como a complexidade dos atendimentos domiciliares e a necessidade de infraestrutura adequada. Justino et al. (2020) e De Oliveira et al. (2021) destacam esses desafios e, ainda, elencam a descontinuidade do cuidado como fator limitante para a efetividade dos CP. Essa, contudo, não se tornou um impasse em minha prática, devido ao tempo de residência na mesma unidade de saúde.

Apesar dos avanços, a prática de cuidados paliativos na APS ainda é incipiente no Brasil, muitas vezes centrada em hospitais, e enfrenta dificuldades na transição entre os cuidados hospitalares e domiciliares, muitas vezes devido ao despreparo dos profissionais e à falta de recursos (JUSTINO et al., 2020). Consigo, a partir de minha experiência prática, afirmar que a falta de recursos, tanto materiais quanto humanos, dificulta significativamente a prestação de um cuidado contínuo e adequado aos pacientes que necessitam de CP.

Nesse contexto, a utilização de escalas de avaliação como a Escala de Avaliação de Sintomas de Edmonton, a Escala de Performance de Karnofsky e a Escala de Performance Paliativa é essencial para identificar os pacientes elegíveis para CP e orientar o plano de cuidados específicos (JUSTINO et al., 2020; DE OLIVEIRA et al., 2021). Profissionais capacitados para usar essas ferramentas podem desenvolver um cuidado mais personalizado e eficaz. Em minha prática, o uso dessas escalas se mostrou fundamental para monitorar a evolução dos pacientes e ajustar as intervenções de acordo com suas necessidades individuais, além de serem úteis para adiantar conversas específicas com pacientes que demonstrem mau prognóstico.

Além disso, a identificação precoce dos pacientes que necessitam de cuidados paliativos é outra questão importante. Minha prática demonstrou que a identificação precoce permite uma intervenção mais eficaz e um suporte contínuo que pode fazer toda a diferença na experiência do paciente e da família. Isso vai de acordo com o destacado por Paraizo-Horvath et al. (2022), que indicam que a identificação adequada e o planejamento antecipado podem melhorar significativamente a qualidade de vida dos pacientes e reduzir o estresse dos profissionais de saúde.

Outro ponto crucial é a interdisciplinaridade e a articulação entre diferentes setores e serviços, como transporte, seguridade social e justiça, para assegurar acessibilidade, direitos sociais e equidade e para garantir a integralidade dos cuidados. As relações intrassetoriais e intersetoriais com especialidades médicas como Geriatria, Neurologia, Psiquiatria, Cardiologia, e outros profissionais são vitais para um cuidado abrangente, integral e contínuo ao paciente, garantindo que suas necessidades sejam atendidas (JUSTINO et al., 2020; DE OLIVEIRA et al., 2021). Na minha vivência, essa abordagem integrada permite um suporte mais completo e eficaz aos pacientes, promovendo um cuidado que abrange todos os aspectos da sua saúde. Contudo, também são vistas algumas limitações no acesso a especialistas pelo sistema público de saúde.

Além disso, a equipe multiprofissional, como presente na unidade de saúde em que trabalho, é essencial para oferecer um cuidado integral e humanizado. Pude perceber que presença de diferentes profissionais, como médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e capelães, permite abordar as dimensões físicas, psicossociais e espirituais do paciente e sua família, o que concorda com o observado por Silva, Nietsche e Cogo (2021).

A deficiência de apoio psicológico aos profissionais da APS é uma questão que também precisa ser abordada. O estresse relacionado ao ambiente de trabalho, conflitos de papéis e questões com pacientes e suas famílias é comum e pode levar ao desgaste emocional e espiritual dos profissionais (SILVA; NIETSCHE; COGO, 2021). Consigo perceber que oferecer suporte psicológico aos profissionais é fundamental para garantir que eles possam prestar um cuidado de qualidade sem comprometer a própria saúde.

A discussão sobre bioética em CP, apesar de essencial, ainda não é recorrente na literatura. Apenas algumas publicações abordaram temas como a comunicação de más notícias e a alteridade, que são cruciais para garantir uma prática ética e humanizada (DE OLIVEIRA et al., 2021). Destaco a importância desse conteúdo em minha prática, uma vez que é recorrente a necessidade de comunicar más notícias em CP.

5 CONCLUSÕES 

Em suma, a implementação de cuidados paliativos eficazes na APS depende de uma formação contínua e adequada dos profissionais, estruturação das redes de atenção, e políticas públicas sólidas que garantam a integralidade e a humanização no atendimento aos pacientes e suas famílias. Como médico com experiência em cuidados paliativos, acredito que essas mudanças são essenciais para proporcionar um atendimento de qualidade e humanizado, alinhado às necessidades reais dos pacientes.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Gleyce Any Freire de Lima et al. Significados atribuídos por profissionais de saúde aos cuidados paliativos no contexto da atenção primária. Texto & Contexto-Enfermagem, v. 27, n. 2, p. e5740016, 2018.

DE OLIVEIRA, Juliana Carvalho et al. Intervenções de enfermagem em cuidados paliativos na atenção primária à saúde: Scoping review. Research, Society and Development, v. 10, n. 8, p. e24710817365-e24710817365, 2021.

GARCIA, Ana Cláudia Mesquita; ISIDORO, Geovanna Maria. Brazilian National Palliative Care Policy: reflections based on the 2030 Agenda for Sustainable Development. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 77, n. 6, p. e770601, 2024.

PARAIZO-HORVATH, Camila Maria Silva et al. Identificação de pessoas para cuidados paliativos na atenção primária: revisão integrativa. Ciência & Saúde Coletiva, v. 27, n. 09, p. 3547-3557, 2022.

RIBEIRO, Júlia Rezende; POLES, Kátia. Cuidados paliativos: prática dos médicos da estratégia saúde da família. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 43, p. 62-72, 2019.

SILVA, Thayná Champe da; NIETSCHE, Elisabeta Albertina; COGO, Silvana Bastos. Cuidados paliativos na Atenção Primária à Saúde: revisão integrativa de literatura. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 75, p. e20201335, 2021.