REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7945340
Jhuly Elen Virginio dos Santos
RESUMO
Esse estudo objetivou analisar as questões relativas ao sistema de cotas raciais nas universidades. Foi analisado o processo escravidão, a exclusão enfrentada pelos negros mesmo após a abolição da escravatura. Analisamos, ainda, a necessidade de criação de ações afirmativas, visto o legado de desigualdades deixado pela escravidão. Observamos os principais aspectos da lei 12.711/2012, quem são os beneficiados, a quantia de vagas reservadas e os responsáveis pelo acompanhamento e avaliação do programa de cotas. Apresentamos a constitucionalidade das cotas raciais, bem como a aplicação do principio da igualdade material inserida na Constituição Federal. Por fim, avaliamos a aplicação das cotas raciais nas universidades brasileiras, seu avanço e a inércia dos responsáveis na avaliação e acompanhamento das cotas raciais. A pesquisa tem bases doutrinárias, pesquisas acadêmicas, leis e órgãos produtores de estatísticas oficiais. Concluímos que a lei 12.711/2012 é uma solução para a diminuição das desigualdades existentes no acesso ao ensino superior, mas que diante da omissão dos órgãos responsáveis não é possível dizer que a lei cumpre integralmente seu papel.
Palavras-chave: Lei nº 12.711/2012. Cotas Raciais. Escravidão.
ABSTRACT
This study aimed to analyze issues related to the racial quota system in universities. The slavery process was analyzed, the exclusion faced by blacks even after the abolition of slavery. We also analyzed the need to create affirmative action, given the legacy of inequalities left by slavery. We observe the main aspects of Law 12.711/2012, who are the beneficiaries, the amount of vacancies reserved and those responsible for monitoring and evaluating the quota program. We present the constitutionality of racial quotas, as well as the application of the principle of material equality inserted in the Federal Constitution. Finally, we evaluate the application of racial quotas in Brazilian universities, their progress and the inertia of those responsible for evaluating and monitoring racial quotas. The research has doctrinal bases, academic research, laws and bodies that produce official statistics. We conclude that law 12.711/2012 is a solution for reducing existing inequalities in access to higher education, but that given the omission of the responsible bodies, it is not possible to say that the law fully fulfills its role.
Keyword: Law nº 12.711/2012. Racial quotas. Slavery.
1 INTRODUÇÃO
O racismo é o resultado de um país que se construiu por meio da normalização do preconceito. Até a abolição, a escravidão foi marcada por diversas ações de resistência, existindo por mais de 300 anos, a escravidão é responsável pela discriminação que os negros sofrem atualmente. Após a abolição da escravatura, em 1888, os negros não enfrentava somente a exclusão econômica e social, enfrentavam também a exclusão intelectual.
O Movimento Negro Unificado (MNU) surgiu em 1978, com o objetivo de romper as desigualdades sociais enfrentadas pela população negra. Os surgimentos dessas organizações contribuíram para as mudanças nas politicas educacionais, e colaboraram na criação de politicas publicas voltadas para a população negra, um exemplo disso foi a implantação da Lei nº 12.711/2012.
As cotas raciais surgiram com o intuito de diminuir as desigualdades e ampliar o acesso da população negra ao ensino superior. Dez anos após a implantação da lei 12.711/2012 (lei de cotas), vê-se a importância em analisar os resultados obtidos com essa ação afirmativa no acesso de negros ao ensino superior.
Diante desse cenário, o problema orientador desta pesquisa foi: quais os resultados da Lei nº 12.711/2012 visando o acesso de negros ao ensino superior? A escolha desse tema se justifica pela necessidade de se aprofundar na análise da aplicação da reserva de cotas. O objetivo geral deste artigo é analisar a Lei nº 12.711 de 2012, visando os aspectos positivos desenvolvidos pela da reserva de cotas.
A implantação da Lei nº 12.711/2012 no ordenamento jurídico brasileiro, surgiu com o intuito de diminuir as desigualdades e ampliar o acesso da população negra ao ensino superior. Como elenca o artigo 7º desta lei, ela terá que ser revisada após dez anos, portanto, faz-se mister analisar os resultados após a sua aplicação nas universidades brasileiras.
2 A ESCRAVIDÃO NA RESTRIÇÃO DE DIREITOS DOS NEGROS
A escravidão se estabeleceu no Brasil por volta da década de 1530, durou mais de 300 anos e foi responsável pela escravização de milhões de indígenas e africanos. O Brasil foi o país que mais importou africanos, estima-se que vieram cerca de 4 milhões de homens, mulheres e crianças, o equivalente a mais de um terço de todo o comércio negreiro para atender à demanda por trabalhadores na colonização.
A escravidão foi marcada por vários tipos de resistência. As formas de resistência se deram através de fugas e criação de quilombos, movimentos que explicam a luta dos escravos por liberdade, dignidade, direitos e também melhores condições de trabalho, como relata João José Reis:
Em 1789, no engenho Santana de Ilhéus, Bahia, crioulos pararam o trabalho, mataram o feitor e se adentraram nas matas com as ferramentas do engenho, até reaparecem com uma proposta de paz em que pediam melhores condições de trabalho, acesso a roças de subsistência, facilidades para comercializaremos excedentes dessas roças, direito de vetar o nome dos feitores escolhidos, licença para celebrarem livremente suas festas, entre outras exigências. Fingindo aceitar negociar, o senhor prendeu os líderes e debelou o movimento (1995. p. 10).
O trafico negreiro tinha como finalidade atender à demanda por trabalhadores na colonização e se insere em caráter mercantil, assim, a escravidão de africanos visava à abertura de um comércio altamente lucrativo. Porém, não se restringiu somente a economia, a escravidão deu causa a criação de pensamento discriminatório. Assim:
A escravidão foi muito mais do que um sistema econômico. Ela moldou condutas, definiu desigualdades sociais e raciais, forjou sentimentos, valores e etiquetas de mando e obediência. A partir dela instituíram-se os lugares que os indivíduos deveriam ocupar na sociedade, quem mandava e quem devia obedecer. Os cativos representavam o grupo mais oprimido da sociedade, pois eram impossibilitados legal- mente de firmar contratos, dispor de suas vidas e possuir bens, testemunhar em processos judiciais contra pessoas livres, escolher trabalho e empregador. (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 65-66).
Por ser o último país a abolir a escravidão, a pressão inglesa e a resistência dos escravizados, fizeram com que o Brasil avançasse rumo ao fim da escravidão. A Lei Aurea (Lei nº 3.353), sancionada pela Princesa Dona Isabel no dia 13 de maio de 1888, pois fim a escravidão no Brasil, porém, até a completa abolição, outras leis fomentaram o fim da escravatura, é o exemplo da Lei Bill Aerdeen (1845), lei essa que permitia aos ingleses aprisionar navios negreiros e julgar os membros das embarcações de acordo com a lei inglesa, tendo como finalidade por fim ao tráfico negreiro. A fim de evitar uma guerra com os ingleses, em 1850 foi sancionada a Lei Eusebio de Queiroz, visto que, a lei Bill Aerdeen gerou insatisfações, uma vez que cidadãos brasileiros não poderiam ser julgados pela lei britânica. Outras duas leis que impulsionaram a abolição foram a Lei do Ventre Livre, que, estabelecia que todos os filhos de escravos, nascidos no Brasil a partir de 1871 seriam considerados livres e a Lei dos Sexagenários (1885) que, concedia alforria para escravos que tinham mais de 60 anos.
O caminho até a abolição da escravidão no Brasil se deude maneira lenta. A Lei Áurea, pois fim a abolição definitiva e imediata da escravatura, fazendo com que escravos passassem por novos desafios depois de libertos, conforme Boris Fausto:
[…] a abolição da escravatura não eliminou o problema do negro. A opção pelo trabalhador imigrante, nas áreas regionais mais dinâmicas da economia, e as escassas oportunidades abertas ao ex-escravo, em outras áreas, resultaram em uma profunda desigualdade social da população negra. Fruto em parte do preconceito, essa desigualdade acabou por reforçar o próprio preconceito contra o negro. Sobretudo nas regiões de forte imigração, ele foi considerado um ser inferior, perigoso, vadio e propenso ao crime; mas útil quando subserviente.
A exclusão dos negros da sociedade não foi resolvida com a abolição, a libertação não os devolveu o direito de cidadania. Os ex escravos foram excluídos economicamente, socialmente e intelectualmente, sem nenhuma reforma, orientação ou políticas públicas para integrá-los a sociedade, precisaram lutar contra os estereótipos e preconceitos que já estava instaurado.
Sem medidas que integrassem os negros na sociedade, não havia equidade social entre negros e brancos. O direito a educação era uma questão de cor, mesmo libertos, a exclusão social e racial permaneceu, sendo acrescido também a exclusão intelectual, pois a educação manteve-se elitista, impossibilitando o acesso de negros a educação.
A Constituição do Império do Brasil (1824) previa no artigo 179 a garantia à inviolabilidade dos direitos individuais, civis e políticos dos cidadãos brasileiros, no inciso XXXII do mesmo artigo estabelecia que “a instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”. Ao analisar os direitos da cidadania, se faz necessário examinar o artigo 6º do texto constitucional:
Art. 6. São Cidadãos Brazileiros
I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação.
II. Os filhos de pai Brazileiro, e Os illegitimos de mãi Brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer domicilio no Imperio.
III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangeiro em sorviço do Imperio, embora elles não venham estabelecer domicilio no Brazil.
IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a Independencia nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residencia.
V. Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de naturalisação.
Assim, naquela época, os cidadãos brasileiros eram aqueles considerados livres que tivessem nascido no Brasil, mesmo que o pai fosse estrangeiro, filhos de brasileiros nascidos em país estrangeiro e todos os nascidos em Portugal residentes no Brasil durante a proclamação da Independência. Portanto, grande parte da população brasileira permaneceu excluída do acesso à educação, visto que, os ex-escravos não eram considerados cidadãos.
Diante da exclusão do acesso a educação surgiram escolas informais para negros. A primeira escola para negros no Brasil foi a Pretextado, funcionou de 1853 a 1873 no Rio de Janeiro. Conforme o Decreto 7031 de 06 de setembro de 1878, no artigo 5º, só poderiam se matricular pessoas do sexo masculino, maiores de 14 anos livres ou libertos, saudáveis e vacinados. Diante disso, percebe-se a segregação da população negra, pois, a educação no Brasil era voltada a classe dominante branca. Portanto, a escravidão deixou um marco de preconceitos e desigualdades, uma chaga presente desde a colonização do Brasil.
A III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas foi realizada em setembro de 2001, em Durban, na África do Sul, essa conferência reconhece a escravidão, o tráfico escravo e o colonialismo como uma tragédia terrível na história da humanidade, que resultou em racismo e discriminação racial e seus efeitos são fatores que contribuem para a continuidade das desigualdades sociais e econômicas (III CONFERÊNCIA MUNDIAL CONTRA O RACISMO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, XENOFOBIA E INTOLERÂNCIAS CORRELATAS, 2001, p. 12/13).
3 POLÍTICAS PÚBLICAS NO ENFRENTAMENTO DAS DESIGUALDADES
A Constituição de 1824 estabelecia educação primária a todos os cidadãos, porém, os negros não tinham acesso, visto que, os escravos não eram considerados cidadãos. Já a Constituição de 1934, nos artigos 149 a 157, foi a primeira a abordar a educação como um direito de todos. Entre progressos e retrocessos, a Constituição de 1988 trata a educação como um direito de todos e dever do Estado, apresenta os sujeitos que tem direito ao ensino, bem como a obrigação estatal na prestação dos serviços educacionais. Prevê o artigo 205 da CF/88:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Através do Movimento negro surgiu o projeto de lei do Senado Federal (PL 6264/05), que mais tarde se tornou o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288 de 10 de julho de 2010), que tem como objetivo garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais e coletivos. O estatuto é a efetivação do principio de igualdade inserido no artigo 5º da CF/88, conforme dispõe o artigo 2º do Estatuto:
Art. 2o É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais.
Tendo em vista a criação de leis e politicas públicas voltadas ao combate da desigualdade racial, a sociedade avançou muito desde o final do século XIX. Conforme conceitua o Estatuto da Igualdade Racial no artigo 1º, incisos V e VI:
V – políticas públicas: as ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas atribuições institucionais;
VI – ações afirmativas: os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades.
Politicas públicas são ações desenvolvidas pelo Estado que tem como objetivo garantir os direitos previstos em lei, são medidas que asseguram determinado direito a população. Com o intuito de reparar distorções e desigualdade de oportunidades, viu-se necessário a criação de ações afirmativas, previsto no artigo 4º, inciso II do mesmo estatuto:
Art. 4o A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de:
II – adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa;
Gomes (2001, p.20) assim expõe:
Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. […] Em síntese, trata- se de políticas e de mecanismos de inclusão concebidos por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito.
A escravidão deixou um legado de desigualdades, sobretudo, constata-se na última década, tentativas na redução da disparidade de oportunidades entre negros e brancos, portanto, as leis de ações afirmativas surgiram para tentar corrigir distorções sociais e raciais provocadas pela escravização.
A III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas gerou debates a cerca da paridade racial e foi um marco na formação de medidas que promovessem a equidade racial. De acordo com a conferência:
70- Insta os Estados a tomarem todas as medidas constitucionais, legislativas e administrativas necessárias para promover a igualdade entre indivíduos e grupos que são vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, e para reexaminarem as medidas vigentes visando a alteração ou a revogação da legislação nacional e das disposições administrativas que possam dar corpo a tais formas de discriminação (p. 56).
No Brasil, a conferência foi um marco fundamental para o surgimento de ações afirmativas e da ao Estado a responsabilidade de promover medidas para combater as desigualdades. A fim de promover a igualdade racial no acesso de negros nas universidades no Brasil, surge as cotas raciais, que consiste em reservar vagas destinadas as pessoas negras, pardas e indígenas. A primeira universidade a estabelecer o sistema de cotas foi a Universidade Estadual do Rio de Janeiro através da Lei nº 4.151/2003, que dispõe no artigo 1º, inciso II:
Art. 1º Com vistas à redução de desigualdades étnicas, sociais e econômicas, deverão as universidades públicas estaduais estabelecer cotas para ingresso nos seus cursos de graduação aos seguintes estudantes carentes:
II – negros;
Conforme o artigo 5º Lei nº 4.151/2003, obedecidos aos princípios e regras instituídos nos incisos I a IV e o parágrafo único do artigo 2º do mesmo diploma legal, as universidades públicas estaduais deveriam reservar 20% das vagas a estudantes negros.
4 A LEI 12.711/2021: ASPECTOS GERAIS
A Lei nº 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, foi promulgada em 29 de agosto de 2012, com o objetivo de reservar vagas para estudantes de escolas públicas, de baixa renda, negros, pardos e indígenas. Através da lei complementar nº 13.409/2016, inseriu-se na lei de cotas a reserva de vagas para pessoas com deficiência.
A lei destina 50% das vagas nas universidades para estudantes de escolas públicas. Dentro dessa porcentagem, 25% das vagas são destinados a estudantes negros, pardos ou indígenas e 25% destinados a estudantes que tenham feito todo o segundo grau em escolas públicas e cujas famílias tenham renda per capita de até um salário mínimo e meio. Entre os candidatos cotistas, são separadas vagas para autodeclarados pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência, proporcionalmente ao censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no estado da instituição, de acordo com o artigo 5º da Lei 12.711/2012.
Segundo tal lei, no artigo 6º, o Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República e a Fundação Nacional do Índio (Funai) são responsáveis pelo acompanhamento e avaliação do programa de cotas.
Essa medida auxilia no ingresso desses indivíduos no Ensino Superior, com a finalidade extinguir o racismo estrutural resultante da escravidão, com o objetivo de promover através das cotas o acesso de negros ao ensino superior.
5 A CONSTITUCIONALIDADE DAS COTAS RACIAIS
Não há que se falar em inconstitucionalidade das cotas raciais, visto que, em 2009 o tema foi tratado na Arguição de Descumprimento Fundamental (ADPF) 186/DF, cuja ação foi julgada improcedente, por unanimidade, tendo como relator o Ministro Ricardo Lewandowski, em que, o partido político Democratas (DEM) impetrou ADPF contra a prática adotada pela Universidade de Brasília (UnB) por reservar 20% (vinte por cento) das vagas com base em critério étnico-racial no processo de seleção para ingresso de estudantes. As diretrizes do Plano de Metas para a Integração Social, Étnica e Racial da UnB, previa:
“1- Disponibilizar durante 10 anos, 20% das vagas do vestibular para estudantes negros, em todos os cursos oferecidos pela universidade;
2- Disponibilizar, por um período de 10 anos, um pequeno
número de vagas para índios de todos os Estados brasileiros (…);
3- Alocará bolsas para negros e indígenas em situação de carência, segundo os critérios usados pela Secretaria de Assistência da UnB;
4- Propiciará moradia para estudantes indígenas e
concederá preferência nos critérios de moradia para estudantes
negros carentes”. ADPF/186 DF.
O Democratas alegou que tais atos ofendiam os artigos 1º, caput, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II, XXXIII, XLI, LIV, 37, caput, 205, 206, caput, I, 207, caput, e 208, V, todos da Constituição Federal/88. Alegando ainda que a discriminação supostamente existente no Brasil é uma questão social e não racial. O partido politico afirmava que:
“não pode responsabilizar as gerações presentes por erros cometidos no passado, que as desigualdades entre brancos e negros não têm origem na cor e, mais, que a opção pela escravidão destes ocorreu em razão dos lucros auferidos com o tráfico negreiro e não por qualquer outro motivo de cunho racial.” ADPF/186 DF.
Conforme a ADPF, o Reitor da UnB, o Diretor e o Presidente do CEPE (Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília) alegaram em síntese que:
“(…) o fato de não haver lei estabelecendo o racismo no Brasil, mas, ao contrário, vedando-o, não foi suficiente para que não houvesse discriminação, apenas fez com que essa fosse velada, camuflada”. ADPF/186 DF.
Para justificar a validade da medida de cota, o STF analisou primeiramente o principio da igualdade, pelo qual, a Constituição de 88 estabelece a precedência da igualdade material sobre a igualdade formal, com isso, permite-se ao Estado buscar medidas que corrijam distorções advindas de aspectos históricos que causam disparidades no âmbito econômico, social e cultural. Para o ministro Ricardo Lewandowski:
“Para possibilitar que a igualdade material entre as pessoas seja levada a efeito, o Estado pode lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminado de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.”
O ministro afirma que as desigualdades entre brancos e negros não são resultados naturais ou genéticos, pois, decorrem de uma inferioridade em que eles foram posicionados nos planos econômico, social e político em razão de séculos de dominação dos brancos em face dos negros.
Na parte dispositiva, o relator julgou improcedente a ADPF/186, considerando que a ação afirmativa adotada pena Universidade de Brasília – UnB tinha o objetivo de estabelecer um ambiente acadêmico plural e diversificado, com a finalidade de superar distorções sociais historicamente consolidadas, assistia razão aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade no que concerne aos meios empregados e a sua finalidade, que essa politica publica era transitória e previa revisão periódica de seus resultados, e que empregavam métodos seletivos eficazes e compatíveis com o princípio da dignidade humana.
Portanto, a medida de cota ao se destinar a corrigir desigualdades resultantes de uma sociedade que se construiu por meio da normalização do preconceito, se coaduna ao principio da igualdade em seu aspecto material, dessa forma, o STF afirmou a constitucionalidade da medida.
6 PRINCÍPIO DA IGUALDADE
O principio da igualdade está exposta no artigo 5º da Constituição Federal e expõe que:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […].
O artigo citado trata da igualdade formal, em que todos são considerados iguais em direitos e obrigações. A igualdade formal é observada durante o processo legislativo, pois, ela impede que sejam criadas normas diferentes a pessoas que se estão em situações idênticas, a lei deve ser imposta de forma indistinta a todos. Porém, ela não é suficiente para garantir oportunidades a todos, visto que algumas pessoas gozam de privilégios e outras não.
Para Pedro Lenza:
O art. 5º, caput, consagra que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Deve-se, contudo, buscar não somente essa aparente igualdade formal (consagrada no liberalismo clássico), mas, principalmente, a igualdade material, na medida em que a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Isso porque, no Estado social ativo, efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada perante a lei (2009, p. 679).
A igualdade material diz respeito às diferenças, tem como objetivo reduzir as desigualdades decorrentes de situações históricas, culturais, sociais, econômicas. Com isso, pode se dizer que as políticas públicas fazem parte da igualdade material, pois, ambas visam combater as desigualdades decorrentes de desvantagens históricas e culturais.
Para equiparar todas as pessoas a um patamar de igualdade, advém a igualdade material, pelo qual, favorece determinado grupo em detrimento de outros. Para Luiz Alberto David Araújo:
Na disciplina do princípio da igualdade, o constituinte tratou de proteger certos grupos que, a seu entender, mereciam tratamento diverso. Enfocando-os a partir de uma realidade histórica de marginalização social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores, cuidou de estabelecer medidas de compensação, buscando concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades com os demais indivíduos, que não sofreram as mesmas espécies de restrições. São as chamadas ações afirmativas (2006, p. 134).
As ações afirmativas das cotas raciais são medidas legais que, dentro da igualdade material, impulsionam a igualdade de oportunidades no acesso de negos ao ensino superior. Na busca do tratamento igualitário a todas as pessoas, é imprescindível a aplicação da igualdade material, visto que, se faz necessário tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.
Certamente, a exclusão dos negros da sociedade não foi resolvida com a abolição da escravatura, não havia equidade social entre negros e brancos. Sendo necessário à criação de ações afirmativas para integra-los, tendo em vista que estavam em condições inferiores. Portanto, incide a aplicação da igualdade material, com vista a combater as desigualdades.
7 ANALISE DA APLICAÇÃO DA LEI Nº12.711/2012
A lei de cotas, no seu artigo 7º expõe que, no prazo de dez anos a contar da data de publicação da Lei, será promovida a revisão da medida de cotas. Tendo em vista a exigência de revisão, foi realizada auditoria pelo Tribunal de Contas da União (TCU) com o objetivo de promover uma avaliação acerca da execução e do monitoramento das cotas raciais (Acordão 2376/2022).
Analisado o Acordão, o TCU concluiu que o Ministério da Educação (MEC) não possui dados sobre a quantidade de alunos que ingressaram pelo programa de cotas, visto que, conforme o artigo 6º da Lei 12.711/2012 cabe ao Ministério da Educação (MEC) e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República o acompanhamento e avaliação da medida de cotas. Porém, para o MEC, cabe as instituições de ensino a gestão dos ingressos dos alunos.
Para o relator, ministro Walton Alencar Rodrigues:
“Assim, são notórias a desarticulação, a omissão dos agentes envolvidos e as deficiências de monitoramento e avaliação da política de cotas”. Não existem relatórios anuais sistemáticos sobre a avaliação da implementação das reservas de vagas, tampouco relatórios com dados consolidados relativos ao período de 2017 a 2022, quando a Lei de Cotas e a reserva de vagas para deficientes foram integralmente efetivadas.
Essa ausência de dados, por certo, prejudicará imensamente a revisão da política pública.”
Com isso, é possível notar uma fragilidade no acompanhamento e avaliação da Lei 12.711/2012, portanto, diante da omissão dos responsáveis na avaliação do referido programa, para acompanhar a execução e os resultados da Lei de Cotas é necessário analisar dados obtidos de órgãos produtores de informações educacionais.
Um estudo desenvolvido pelo LEPES (Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação Superior) da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pela Ação Educativa, afirma que a aprovação da Lei em 2012 uniformizou a reserva de vagas nas instituições federais.
Gráfico 1
Taxa líquida de frequência à graduação por cor/raça – Brasil, 2011 – 2019.
Como efeitos dessa política os resultados são positivos, visto um aumento gradual da taxa líquida de frequência para pretos e pardos, conforme indica o gráfico acima.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-C) é uma pesquisa realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que tem como objetivo apurar aspectos gerais da população, incluindo dados relacionados à educação. As estatísticas da PNAD-C permite analisar a efetividade das cotas raciais e apresentar mudanças ocorridas no acesso de negros ao ensino superior.
Segundo o PNAD-C 2019, a idade ideal para estar frequentando o ensino superior, caso completassem a educação escolar básica na idade adequada são de 18 a 24 anos de idade, em 2019, 37,9% das pessoas brancas dessa faixa etária estavam estudando, sendo 29,7% no ensino superior, frente a uma taxa de 28,8% das de cor preta ou parda, com apenas 16,1% no ensino superior. Ainda, 6,0% dos jovens brancos nessa faixa etária já tinham um diploma de graduação, enquanto, entre os pretos e pardos a porcentagem é de 2,8%.
Tomando como objetivo a Meta 12, estabelecida pelo Plano Nacional de Educação (Brasil, 2014), até 2024 a taxa bruta de matrícula na Educação Superior deve aumentar para 50% e a taxa líquida para 33% da população de 18 a 24 anos. Segundo a PNAD-C, no ano de 2019 essa meta foi alcançada somente entre os jovens de cor branca (35,7%), negros ficaram com 18% da taxa líquida.
Mesmo não dispondo de mecanismos para avaliação e acompanhamento das cotas raciais, através das estatísticas de órgãos produtores de informações educacionais, é possível perceber que o percentual de estudantes pretos ou pardos no nível superior aumentou.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista o período da escravidão marcada pela desigualdade e preconceito, torna-se evidente a importância da Lei 12.711/2012 visando o acesso de negros ao ensino superior. Como forma de democratizar o acesso ao ensino superior público no Brasil, fez-se necessário a criação de politicas publicas.
O STF por meio da ADPF 186 validou a constitucionalidade das cotas raciais com a precedência da igualdade material sobre a igualdade formal, com vista a assegurar efetivas oportunidades de participação em igualdades de condições na integração social, visto que na igualdade material devem-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades para que se possa equiparar as pessoas a um patamar de igualdade.
Embora as medidas de cotas raciais tenha se demonstrado benéfica para a sociedade e seja uma importante ferramenta para o acesso de negros ao ensino superior, a omissão quanto o acompanhamento e avaliação do programa de cotas, por parte do Ministério da Educação, mostra-se insuficiente. O monitoramento e avaliação da politica asseguraria a expansão ou a revogação das cotas raciais, se cumprido os objetivos.
Assim, a lei 12.711/2012 ampliou a presença de estudantes pretos/pardos nas instituições federais de ensino superior e é potencialmente importante como estratégia para reduzir a estratificação social no acesso à educação. Porém, a insuficiência de informações impõe empecilhos na avaliação dos resultados alcançados com a implementação dessa lei.
REFERÊNCIAS
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