CONSTRUINDO O ‘MITO’ E DEMONIZANDO A ESQUERDA: UMA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA DAS DEZ FAKE NEWS MAIS COMPARTILHADAS VIA FACEBOOK E WHATSAPP DURANTE A ELEIÇÃO PRESIDENCIAL NO BRASIL EM 2018¹

CREATING THE ‘MYTH’ AND DEMONIZING THE LEFT: A CRITICAL DISCOURSE ANALYSIS OF THE TEN MOST SHARED FAKE NEWS VIA FACEBOOK AND WHATSAPP DURING THE 2018 BRAZILIAN PRESIDENTIAL ELECTION

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202412062330


João Victor Alves da Costa Pereira*


RESUMO:

A disseminação de fake news, por meio de textos que foram compartilhados massivamente nas mídias sociais e espalharam desinformação entre a população, foi um fenômeno que marcou as eleições presidenciais de 2018. A Revista Exame publicou, em outubro de 2018, uma reportagem contendo um ranking com as dez notícias mais compartilhadas ao longo do primeiro turno das eleições presidenciais. Utilizando o modelo tridimensional de análise de discurso crítica, proposto por Norman Fairclough (2003), analisei os dez textos do ranking, identificando como eles são estruturados, e quais são os processos de lexicalização, intertextualidade e interdiscursividade que os permeiam; com base em Wardle (2017), investiguei que tipo de desordem da informação foi utilizado; por fim, de acordo com Thompson (2011), examinei como a ideologia opera nesse textos. Ao longo da análise, percebi uma superlexicalização de um ideal nacionalista ligado ao então candidato Jair Bolsonaro. Dois campos semântico-discursivos se sobressaíram: a representação de Jair Bolsonaro e a de políticos associados ao espectro da esquerda política. Bolsonaro é representado ao longo dos textos como o candidato que possui validação das grandes massas. Os políticos do espectro da esquerda são representados como inimigos que precisam ser combatidos e apresentam comportamentos moralmente contestáveis. Verifiquei que os textos aqui apresentados corroboram com um movimento de apoio ao candidato Jair Bolsonaro por parte da classe média (Cavalcante, 2020), sendo complacente com seu discurso neofascista em prol de uma ideologia neoliberal/meritocrática, caracterizando os políticos de esquerda como algozes do progresso nacionalista.

Palavras-chave: Eleições presidenciais de 2018. Análise de Discurso Crítica. Fake news. Neofascismo. Bolsonaro.

ABSTRACT:

The dissemination of fake news, by means of texts which were massively shared on social media and spread disinformation among the population was a phenomenon that marked the 2018 Brazilian presidential elections. In October 2018, Revista Exame published a report containing a ranking with the ten most shared fake news throughout the first round of the presidential elections. Using the three-dimensional model of critical discourse analysis proposed by Norman Fairclough (2003), I analyzed the ten texts of the ranking, identifying their structure, and how the processes of lexicalization, intertextuality and interdiscursivity appear within the corpus; based on Wardle (2017), I investigated what kind of information disorder was used; finally, according to Thompson (2011), I examined how ideology operates in these texts. Throughout the analysis I have noticed a superlexicalization of a nationalist ideal linked to the then-presidential candidate Jair Bolsonaro. Two semantic-discursive fields stood out: the representation of Jair Bolsonaro and that of politicians associated with the left-wing spectrum. Bolsonaro is represented throughout the texts as the candidate who has validation from the public. Left-wing politicians are represented as enemies who need to be fought and who exhibit morally questionable behavior. It was possible to conclude that the texts presented here corroborate a movement of the middle-class in support of the candidate Jair Bolsonaro (Cavalcante, 2020), being complacent with his neo-fascist discourse in favor of a neoliberal/meritocratic ideology, depicting left-wing politicians as executioners of nationalist progress.

Keywords: Critical Discourse Analysis. 2018 Brazilian presidential election. Neofascism. Fake news. Bolsonaro.

INTRODUÇÃO

As mídias sociais vêm nos proporcionando não apenas novas maneiras de interagir com outras pessoas de diversas partes do mundo, mas também de produzir e consumir opiniões, notícias e entretenimento. Apesar de termos a presença das mídias sociais na internet desde 1997 com o surgimento do SixDegrees2, elas nunca foram tão populares como agora. No contexto da popularização do uso das mídias sociais, podemos observar um crescente aumento nas bolhas digitais, isto é, ambientes onde consumimos apenas aquilo que condiz com os nossos interesses e ideais.

Durante todo o período das eleições de 2018, especialmente no que tangia a candidatura à presidência, o número de postagens de cunho explicitamente político em mídias sociais e os embates entre eleitores de diferentes candidatos aumentou consideravelmente. Somado a isso, também tivemos um volume muito expressivo de fake news sendo divulgadas de maneira massiva em diferentes plataformas como Facebook, WhatsApp, Twitter etc. O espaço das mídias sociais, propício para o consumo rápido de informações concisas, tornou a disseminação de notícias falsas ainda mais frutífera já que ainda não é um hábito comum dos brasileiros checar a veracidade e a confiabilidade de tais textos.  

Tomemos o WhatsApp como exemplo; nessa mídia social, a mais popular do Brasil, nós temos um poder de comunicação muito extenso se considerarmos que basta ter conexão com a internet para disseminar uma mensagem para milhares de pessoas em um processo que dura poucos segundos. Observando o alcance vasto e rápido da disseminação de informação nas mídias sociais, quais são os padrões discursivos que podemos encontrar nos textos de fake news disseminados em mídia sociais? Como a ideologia opera nesses discursos? De que forma as fake news impactam a sociedade?

Nesta pesquisa, utilizando o modelo tridimensional da Análise de Discurso Crítica (doravante ADC), me propus a investigar a relação entre linguagem, mídia e sociedade nos textos das dez fake news mais compartilhadas ao longo do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, com base em uma matéria publicada no site da Revista Exame. Na próxima seção, exploraremos mais a fundo os aspectos teóricos da ADC.

DISCURSO, IDEOLOGIA E DESINFORMAÇÃO: REFERENCIAIS TEÓRICOS PARA AS ANÁLISES 

Comumente conhecida pelo termo “fake news”, a desinformação não se resume ao conceito de notícias falsas, mas a toda uma propagação de informação falsa ou manipulada que pode causar certo impacto social (Wardle e Derakshan, 2017). Nesta pesquisa, trabalho com três conceitos-chave: discurso, ideologia e desinformação. Sendo assim, com o intuito de explorar esses conceitos tão polissêmicos, passo agora, nas seguintes subseções, a uma breve apresentação de cada um deles. Apresentarei, primeiramente, o conceito de discurso, entendido no contexto do modelo tridimensional de análise de discurso crítica que adotarei em minhas análises; em seguida, abordarei o conceito de ideologia, com base em Thompson (2011); por fim, comentarei sobre a questão da desinformação, com base em Wardle e Derakshan (2017).

O modelo tridimensional da adc

A ADC tem como foco a relação estabelecida entre o mundo social e a linguagem. A ADC entende o uso da linguagem como uma atividade dialética que molda a sociedade ao mesmo tempo em que é moldada por esta. Temos, portanto, uma análise que considera o sujeito como (re)produtor de ideologias (Fairclough, 1996). A ADC toma como objeto principal de estudo o texto – compreendido aqui de forma abrangente e multimodal, incluindo texto verbal, imagem, vídeo..

Nesta perspectiva, discurso é linguagem como prática social, isto é, um modo de ação e de representação; é através da linguagem que as pessoas produzem e reproduzem o mundo e suas relações sociais (Fairclough, 1996). Ao assumir essa posição, o autor indica que discurso não é apenas uma forma de significar o mundo, mas também de construção da realidade e de ação direta na estrutura social. Quando um discurso se manifesta em alguma interação social ele está ao mesmo tempo representando – ou, significando – e mantendo ou modificando a estrutura social, estabelecendo uma relação dialética entre linguagem e sociedade. De uma maneira muito simples, podemos dizer que aquilo que conecta o discurso à estrutura social é a linguagem; as escolhas linguísticas que fazemos ao longo de um texto não são arbitrárias, elas são extremamente significativas para materializarmos nossas visões de mundo e para estabelecermos relações sociais (Fairclough, 2003).

Podemos ver como a língua conecta discurso e estrutura social pela variabilidade com que os indivíduos se expressam a depender de seus contextos imediatos e culturais e das relações de poder pré-estabelecidas com seus interlocutores: um político faz escolhas linguísticas diferentes caso esteja falando com seus aliados ou adversários, não apenas representando o mundo através da linguagem, mas também significando, constituindo e construindo a realidade.

Para investigar a relação entre linguagem e sociedade, Fairclough (1996, p 101) propõe um modelo tridimensional que interrelaciona texto, prática discursiva e prática social. Exploraremos cada um deste conceitos para melhor entender como eles estão conectados.

Figura 1: Modelo tridimensional da análise de discurso

Fonte: Fairclough (1996, p. 101)

Texto

A análise da dimensão textual toma como base as metafunções da linguagem propostas por Halliday (2004), sendo elas: a metafunção ideacional, a metafunção interpessoal e a metafunção textual. A metafunção ideacional observa aspectos relativos à transitividade dos textos analisados (quem faz o quê, onde, quando, como), além de atentar para questões relativas à lexicalização. Quando entendemos que a língua constrói significados expressamos que nós temos a possibilidade de nomear as coisas que estão presentes no mundo e atribuir certas características a elas. Podemos escolher léxicos diferentes para expressar diversos tipos de relação discursiva; o falante causa diferentes tipos de reação no ouvinte a depender dos léxicos escolhidos. Essa relação de escolhas de léxico está relacionada à metafunção ideacional que podemos dividir entre a função experiencial, diferentes léxicos proporcionam experiências diferentes, e a função lógica, que é demonstrada através da escolha de conectivos para interligar significados entre frases ao longo da construção do texto através de relações lógico-semânticas (Fairclough, 2003).

A metafunção interpessoal, por sua vez, é realizada tanto no que diz respeito ao uso da modalização, que expressa nosso maior ou menor comprometimento com aquilo que dizemos, quanto no que se refere às diferentes escolhas gramaticais que fazemos a depender das relações de poder envolvidas nas trocas com aqueles com quem conversamos. Essas escolhas não dependem apenas das escolhas pessoais do falante, mas também dos papéis pré-estabelecidos entre os envolvidos.

A metafunção textual analisa como os elementos de uma sentença são organizados uns em relação aos outros, observando, por exemplo, se o tema da oração é marcado, ou não, e os eventuais motivos para tal. Na Linguística Sistêmico-Funcional (doravante LSF), a posição do tema é ocupada, prototipicamente, pelo ‘sujeito’ da oração, constituindo, nesse caso, um tema não marcado. No momento em que qualquer outro elemento da oração assume a posição temática, passamos a ter um tema marcado.

Prática discursiva e prática social

Entre os pontos que são investigados no âmbito da prática discursiva, temos os processos de produção e distribuição textual (Fairclough, 2003). A maneira como consumimos os textos é diversa em diferentes cenários, uma vez que os interpretaremos de maneiras diferentes, seja pela linguagem utilizada, ou pela relação estabelecida entre texto e participantes, ou pelo contexto em que os indivíduos estão inseridos (Wodak, 2001). Outras questões que podem ser investigadas na dimensão da prática discursiva, ainda seguindo os pressupostos teóricos de Fairclough, são conceitos como força dos enunciados (atos de fala), coerência, interdiscursividade e intertextualidade.

Por outro lado, analisar o discurso na dimensão da prática social implica investigar aspectos relacionados à ideologia e à hegemonia que permeiam os textos. Ideologia segundo Thompson (2011), é a forma como significações e construções da realidade são formadas por meio de práticas discursivas e que contribuem para a (re)produção e transformação das relações de dominação. “Hegemonia” é classificada como o poder sobre a sociedade exercido pelas classes econômicas dominantes em conjunto com outras forças sociais, sendo uma forma de poder instável, que foca mais em formar alianças que em dominar per se (Fairclough, 2003).

Com esses conceitos em mente, podemos compreender melhor como o modelo tridimensional proposto por Fairclough funciona. Primeiramente, nós temos o texto, que é o nosso objeto de estudo; para estudar esse texto, precisamos fazer uma análise linguística descrevendo os elementos que o constituem (processos, participantes, circunstâncias, tema, rema, etc.). Ao relacionarmos o texto com a prática discursiva, faremos o processo de interpretação, momento em que devemos identificar os recursos discursivos que foram produzidos (estilos, gêneros, questões referentes à interdiscursividade e à intertextualidade). Ao investigarmos a prática social, analisamos de que forma o contexto, as instituições e a estrutura social condicionam o texto, e como o texto potencialmente atua na manutenção ou na transformação das instituições e da estrutura social (Fairclough, 2003).

O conceito de ideologia

Aqui assumo a perspectiva do sociólogo John B. Thompson, que, ao tratar do conceito de ideologia, afirma que é necessário falar de linguagem e de relações de poder, visto que o estudo do sentido está intimamente ligado aos estudos linguísticos. Ou seja, ideologia é o sentido agindo como mantenedor de relações de poder assimétricas. Segundo o autor:

[…] proponho conceitualizar ideologia em termos das maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer, querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de dominação; sustentar, querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas. (Thompson, 2011, p. 79)

Para estabelecer e sustentar essas relações de dominação, Thompson explicita que a ideologia possui cinco modos de operação, a saber: legitimação, que busca apresentar as relações assimétricas de poder como legítimas; dissimulação, que sustenta relações de poder ocultando-as; unificação, que pressupõe uma forma simbólica que interliga indivíduos em uma coletividade; fragmentação, que propõe a manutenção das relações de dominação ao distinguir um grupo de outro (normalmente o inimigo); e reificação, ou seja, assumir que essas relações de poder sempre existiram de maneira natural ao ser humano.

O modo de operação da legitimação, como o nome sugere, é aquele em que uma relação de dominação se baseia em um processo de legitimação para ser válida. O segundo modo de operação da ideologia é o da dissimulação, que estabelece relações de poder ao negar ou omitir fatos. O modo de operação da unificação é aquele em que uma forma de unidade simbólica é utilizada para designar uma identidade simbólica aos indivíduos. Fragmentação é um modo de operação que pretende manter relações de poder pré-estabelecidas ao não unificar certos segmentos da sociedade. O último modo de operação identificado por Thompson (2011) é o de reificação, que é o processo de representar relações de poder como se fossem atemporais, permanentes, naturais. Ou seja, a reificação pressupõe a eliminação ou ofuscação do caráter sócio-histórico das relações de poder que foram pré-estabelecidas.

Fake news ou desinformação?

Wardle e Derakshan (2017) afirmam que nós estamos passando por um momento em que o volume de rumores e histórias falsas é consideravelmente alto numa escala global, apesar de serem eventos bem documentados ao longo da história. Nos últimos anos o termo fake news se popularizou, especialmente no ambiente virtual, para designar notícias de cunho falso. Entretanto, os pesquisadores contestam o termo, visto que ele não identifica o fenômeno atual de maneira apropriada; além disso, figuras políticas se apropriaram do item lexical fake news para desmerecer o trabalho de jornalistas e veículos de comunicação.

Para analisar eventos que se encaixem como desordem da informação, Wardle e Derakshan (2017) propõem um quadro conceitual que seja capaz de identificar três tipos de distúrbios da informação, sendo eles: Informação Incorreta, Desinformação e Mal-Informação. Segundo os pesquisadores, ao identificarmos informações falsas que são compartilhadas, mas que não possuem o intuito de causar mal a alguém, as classificaremos como Informação Incorreta. Caso identifiquemos informações falsas que foram compartilhadas com o intuito de causar dano, as classificaremos como Desinformação. E caso tenhamos uma informação genuína que é compartilhada para causar dano, teremos uma Mal-Informação.

Figura 2: Desordem da informação.
Fonte: https://www.manualdacredibilidade.com.br/desinformacao

Segundo Wardle e Derakshan (2017), o tipo de desinformação mais “bem-sucedido” é aquele que manipula as emoções do leitor, especialmente com as sensações de superioridade, medo e raiva. Os autores justificam tal fato pelo modelo de distribuição de informação das mídias sociais, textos mais inclinados para essas emoções vão gerar mais reações do público, consequentemente gerando um maior alcance para a página que partilhará seu conteúdo com mais pessoas que se identifiquem com tal pensamento.

As mídias sociais desempenham um fator crucial no processo de distribuição e consumo de desinformação. Os portais de sites que produzem conteúdo falso ou duvidoso têm um layout muito semelhante aos portais de notícias que são considerados de credibilidade, e isso leva o leitor a uma falsa sensação de segurança em relação à fonte, especialmente quando compartilhado por amigos ou familiares mais próximos (Wardle e Derakshan, 2017). É de extrema relevância destacar o papel que a televisão teve na divulgação de desinformação; ao obter a atenção da grande mídia, a desinformação atinge seu maior objetivo; ela não se sustenta caso o rumor não seja amplificado.

À PROPÓSITO DA METODOLOGIA E DO PERCURSO METODOLÓGICO

Ao buscar sobre o tema na internet, deparei-me com o ranking das 10 fake news mais compartilhadas ao longo do primeiro turno da eleição presidencial de 2018, no Brasil, segundo a revista Exame3. Escolhi tal ranking por ele dispor de dados checados pela Agência Lupa sobre quais foram as fake news que obtiveram maior alcance de leitores ao longo de um período que foi decisivo para a definição da corrida presidencial do referido ano.

Os textos de desinformação precisam de engajamento nas redes sociais para que seu conteúdo seja disseminado de maneira mais efetiva (Shu et al., 2020). Vale observar que no processo de circulação de fake news, os textos acabam sofrendo algumas alterações à medida que a) pessoas entram em contato com os textos e expressam suas emoções, e que b) novos comentários são tecidos sobre os textos conforme eles são (re)compartilhados, fazendo com que o original acabe se perdendo numa conexão intertextual relacionada ao texto original, como se o texto de origem interligasse todas as variações textuais, em uma espécie de portmanteau discursivo. Como se o texto original fosse uma gota espessa de corante que é jogada em um copo de água. Depois que ela é incorporada pelo ambiente, é quase impossível detectar sua forma original, mas sua essência permanece dissipada. Dessa forma, escolhi excertos que fazem parte do evento discursivo que investigo, contendo a mesma proposição discursiva do original, mas reestruturados de acordo com os agentes que compartilharam a mensagem.

A CONSTRUÇÃO DO “MITO” POR MEIO DE FAKE NEWS

Delmazo e Valente (2018) afirmam que textos de desinformação, compartilhados via mídias sociais, dificilmente são lidos e, caso sejam, apenas cerca de 32% dos leitores terminam de lê-los, indicando que a chamada da notícia acaba sendo um ponto-chave para a disseminação de desinformação. De acordo com o artigo da Revista Exame, o texto de desinformação mais compartilhado ao longo do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018 utilizou como recurso multimodal um vídeo gravado em Campinas durante um jogo da Copa do Mundo de 2014, entre Brasil e Sérvia. A reportagem afirma que cenas e capturas de tela do vídeo em questão foram compartilhadas, via Facebook e WhatsApp, como forma de apoio ao então candidato à presidência, Jair Bolsonaro, após ele sofrer um atentado no dia 6 de setembro de 2018. Tomamos dois diferentes excertos desse vídeo como objeto de análise.

No vídeo original, temos uma filmagem de celular onde podemos ver inúmeras pessoas, utilizando camisetas da seleção brasileira de futebol, pulando e comemorando enquanto uma voz projetada por microfone anuncia algo que se torna inaudível pela euforia das pessoas presentes. A câmera percorre um mar de pessoas que vibra intensamente ao som de instrumentos utilizados tradicionalmente durante celebrações de jogos de futebol no Brasil.

No primeiro excerto, vemos uma captura de tela do Facebook. Um usuário relata que a cena em questão se passou em São Paulo, “em frente ao hospital”, em referência ao hospital onde Jair Bolsonaro ficou internado após a facada. O autor do post também tece comentários como “Isso a Globo não mostra nem a pau”, em alusão à maior emissora de televisão do país, e terminando com B17, a letra B representando o então candidato Jair Bolsonaro e o número 17, representando o número eleitoral do PSL, partido de Bolsonaro à época. A publicação em questão contava com 24 comentários, 19 mil compartilhamentos e 487 mil visualizações no momento da captura de tela.

Texto de Desinformação 1 (TD1 excerto 1)
Fonte: Facebook

O segundo excerto também é uma captura de tela do Facebook. Desta vez, o usuário que compartilha a imagem escreve que naquele dia Bolsonaro estaria em Natal/RN e que seus apoiadores foram às ruas em Natal, mesmo sem a presença do presidenciável. O texto inicia com os dizeres “Sinto muito, agora não poderão fraudar as urnas!”. A postagem contava com 66 comentários, 1,1 mil compartilhamentos e 16.373 visualizações no momento da captura de tela. A amostra não possui comentários visíveis.

Texto de Desinformação 1 (TD1 excerto 2)
Fonte: Facebook

O segundo texto mais compartilhado antes do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018 foi um link que levava a um site de layout semelhante ao G1.com. Nesse site, havia a notícia de que o então deputado federal Jean Wyllys teria aceitado um convite para assumir o Ministério da Educação em caso de uma eventual vitória do candidato do Partido dos Trabalhadores, Fernando Haddad. Não foi possível localizar o link original que redireciona para o site em questão. O texto foi utilizado como forma de desvalorizar a candidatura de Fernando Haddad, associando-o à figura de Jean Wyllys, deputado abertamente homossexual, desafeto declarado de Jair Bolsonaro4. Chamo a atenção para o texto não ter uma proposição argumentativa que justifique o valor negativo que esse discurso possui.

Texto de Desinformação 2 (TD2)
Fonte: Facebook

O terceiro texto de desinformação mais compartilhado foi uma publicação no Facebook que mostra uma foto do movimento Vem Pra Rua, tirada em 2016, pedindo o impeachment da então presidenta Dilma Roussef. Na publicação, a foto aparece como sendo uma manifestação pró-Bolsonaro, organizada pelo movimento #EleSim. A postagem que utilizamos no corpus teve 597 reações, 46 comentários e 526 compartilhamentos quando o print foi tirado.

Texto de Desinformação 3 (TD3)
Fonte: Facebook

 O quarto texto de desinformação mais compartilhado é um link do site Evernote com uma notícia intitulada “TSE entregou códigos de segurança das urnas eletrônicas para a Venezuela e negou acesso para auditores brasileiros (veja o vídeo)”. O vídeo não consta mais na descrição da notícia, apesar de o texto não ter sofrido alterações desde 18 de setembro de 2018. Não foi possível encontrar o vídeo original. A notícia em questão questiona a validade do processo eleitoral brasileiro, desacreditando o uso do voto digital e dando margem para que o resultado das eleições possa ser contestado, tema recorrentemente evocado por Bolsonaro e seus apoiadores.

O quinto texto de desinformação mais compartilhado ao longo do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018 traz um elemento novo para a nossa pesquisa: esta é a primeira, e única, notícia desta lista a ser publicada por um veículo de comunicação de grande representatividade no Brasil, o site da revista Istoé. A notícia em questão versa sobre o vice-presidente da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Mangue, que foi preso no Brasil portando 1,5 milhões de dólares e relógios (avaliados em 15 milhões de dólares) não declarados. Essa primeira parte de fato aconteceu, mas a notícia em questão fala que Mangue havia sido preso com 50 milhões de dólares desviados do BNDES pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, ou seja, uma notícia verdadeira foi manipulada para espalhar desinformação por uma das revistas de maior circulação do país, mesmo que apenas no âmbito online.

Texto de Desinformação 5 (TD5)
Fonte:  https://istoe.com.br/a-mala-suspeita-dos-amigos-de-lula/

O sexto texto mais compartilhado é outra postagem da rede social Facebook, em que uma foto de Haddad fora editada. O candidato aparece no quadrante inferior à esquerda, o restante da imagem é composto por um texto que é atribuído ao petista. A foto foi tirada durante uma fala do presidenciável, em que sua boca parece estar se movimentando, dando a ilusão de que o candidato fala o texto que é reproduzido ao longo da imagem. A postagem conta com 289 reações, 54 comentários (desta vez visíveis) e 7,5 mil compartilhamentos.

Texto de Desinformação 6 (TD6)
Fonte: Facebook

O sétimo texto mais compartilhado foi um vídeo do apresentador José Luiz Datena, em apoio ao candidato Geraldo Alckmin, que fora alterado para indicar que a fala de Datena era direcionada a Jair Bolsonaro. Referentes a essa notícia temos um print do Facebook no qual podemos ver um frame do vídeo com a logo do PSL (partido de Jair Bolsonaro na época) no canto superior esquerdo da tela. A postagem possui 4,7 mil reações, 662 comentários e 32 mil compartilhamentos. Não encontramos o vídeo adulterado na íntegra, mas sim o original5, no qual podemos encontrar a logo do candidato Alckmin no canto superior esquerdo onde estava a logo do PSL no vídeo manipulado.

Texto de Desinformação 7 (TD7)
Fonte: Facebook

O oitavo texto citado no ranking é o primeiro do corpus a atacar o então candidato Jair Bolsonaro. A notícia traz uma foto com traficantes empunhando armas de fogo e com uma placa de papelão com os dizeres “Bolsonaru (sic) é bala! CV”, o cartaz de papelão foi inserido digitalmente na foto. Mais uma vez, temos como fonte um print da rede social Facebook com 2,5 mil reações, 1,3 mil comentários e 29 mil compartilhamentos quando o print fora tirado, dezoito horas após a publicação.

Texto de Desinformação 8 (TD8)
Fonte: Facebook

O nono texto mais disseminado foi um meme feito com uma foto da atriz Patrícia Pillar, ex-esposa do então candidato Ciro Gomes, atribuindo uma a frase à atriz. Na foto em questão, Pillar aparece no lado esquerdo da imagem; ela veste uma camiseta branca, simples, e está com seus cabelos esvoaçados. Seu olhar não transmite alegria, mas certa seriedade, podendo ser interpretado como um susto ou sofrimento. O enquadramento do texto faz com que a imagem da atriz colabore com um discurso de agressão à mulher. Essa notícia, curiosamente, não é algo recente na cultura brasileira, quando Ciro Gomes foi candidato em 2002 a mesma notícia corria entre a população. A atriz gravou um vídeo em 20 de setembro de 2018 para desmentir o ocorrido.

Texto de Desinformação 9 (TD9)
Fonte: WhatsApp

Por fim, temos uma foto alterada que mostra dois militantes do Partido dos Trabalhadores batendo em um suposto eleitor do Bolsonaro. Os supostos militantes trajam camisas vermelhas do PT e o eleitor de Bolsonaro, um homem de cabelos brancos, veste uma camisa estampada com a bandeira do Brasil. Na original, o homem que fora agredido não veste uma camisa com estampa da bandeira do Brasil, mas uma camiseta cinza. O homem sofreu agressões de membros do Partido dos Trabalhadores após provocá-los verbalmente por conta da prisão do ex-presidente Lula, decretada pelo então juiz Sérgio Moro. Na amostra em questão, mais uma vez um print da rede social Facebook, vemos a imagem com um mil visualizações, 85 comentários e 23 mil compartilhamentos.

Texto de Desinformação 10 (TD10)
Fonte: Facebook

Análise Textual

Segundo Shu et al. (2020), existe sempre um objetivo específico por trás da criação e distribuição de desinformação, as razões podem ser diversas, mas os autores citam oito como exemplo:

(1) persuadir pessoas a apoiarem indivíduos, grupos, ideias ou ações futuras; (2) persuadir pessoas a se oporem a indivíduos, grupos, ideias ou ações futuras; (3) produzir reação emotiva (medo, raiva, alegria) com relação a indivíduos, grupos, ideias ou ações futuras na esperança de promover apoio ou oposição; (4) educar (e.g., sobre o risco da vacinação); (5) evitar que as pessoas  acreditem  na veracidade de um ato vergonhoso  ou criminoso;  (6) agravar a seriedade de algo dito ou feito (e.g., o uso de e-mail pessoal por parte dos oficiais do governo); (7) criar desconfiança sobre algum incidente ou atividade do passado (e.g., será que o governo estadunidense realmente pousou na lua ou apenas em uma deserto na terra?); ou (8) demonstrar a importância de se detectar desinformação em mídias sociais (e.g., a disputa entre Elizabeth Warren e Mark Zuckerberg). (Shu et al. 2020, p. 4, tradução nossa)

Boa parte dos processos indicados pelos autores estão relacionados ao convencimento ou à persuasão em favor ou contrário a algo, como podemos ver nas notícias (TD1 excertos 1 e 2, TD3, TD7, TD9 e TD10) que tentam validar Bolsonaro como a melhor escolha para o país, aquele que precisa ter seu apoio justificado; e as notícias (TD2, TD4, TD5, TD6, TD9 e TD10) que tentam ilustrar os candidatos que pertencem ao espectro político da esquerda como imorais, inimigos que devem ser combatidos. Ou seja, a natureza textual da desinformação é argumentativa, em defesa ou ataque de certas ideologias.

Percebemos também que existem padrões de construção textual muito diferentes quando comparamos as notícias que foram compartilhadas via rede social de maneira direta (com textos escritos para circularem naquela plataforma) e indireta (com link de acesso para um website). Os textos compartilhados de maneira direta são curtos e objetivos, possuem uma linguagem mais informal, normalmente levando um tom mais emotivo, e sempre estão acompanhados de uma imagem ou um vídeo (TD1, TD2, TD3, TD4, TD7, TD8, TD9, TD10). Os textos compartilhados de maneira indireta são mais longos, possuem uma linguagem mais rebuscada (mesmo tendo erros ortográficos frequentes) com certo estilo de escrita jornalístico, evocam autoridades e o uso do item lexical “fato” para referendar suas opiniões (TD4, TD5).

Superlexicalização

Quando temos em evidência, ao longo do texto, um domínio semântico que possui diferentes itens lexicais a ele associados, nos referimos a um processo que Halliday (2004) chama de superlexicalização. Tal processo ocorre na construção do texto “é um sinal de ‘preocupação intensa’ apontando para as peculiaridades da ideologia do grupo responsável por ela” (Fairclough, 2003, p. 239).

Olhando para o corpus desta pesquisa, observo que há lexicalização multimodal em torno do conceito de nação/nacionalismo. Visualmente temos o símbolo da bandeira nacional em diversos textos, seja na forma de emoji (TD1 excerto 1, TD2, TD3) ou parte da indumentária dos participantes das fotos (TD 1 excertos 1 e 2, TD3, TD10). Em termos de léxico, podemos encontrar palavras como ‘Pátria’ (TD1 excerto 1), ‘brasileiros’ (TD4), ‘povo’ (TD1), termos que reforçam a identidade nacional, atribuindo características aos indivíduos nascidos no Brasil — e ‘estrangeiros’, ‘venezuelanos’, ‘português’, ‘africanos’ (TD5) — termos que reforçam a identidade nacional caracterizando um outro que é diferente daqueles que são brasileiros.

Os elementos que representam um ideal de nação brasileira são comumente associados à figura do então candidato Jair Bolsonaro. Os textos que demonstram apoio ao candidato (TD1 excertos 1 e 2, TD3, TD4, TD5, TD7, TD9, TD10) sempre possuem elementos que remetem aos símbolos nacionais, como a bandeira do Brasil (TD1 excerto 1, TD3, TD10), a camiseta da CBF (TD1 excertos 1 e 2,TD3).

Diante desses dados, concluo que essa superlexicalização indica uma conexão semântica entre ser patriota e apoiar o candidato Jair Bolsonaro. Podemos ver também que a construção do outro ao longo dos textos é sempre centrada em elementos constitutivos do espectro da esquerda; seja pela representação do Presidente da Venezuela como petista (TD4), ou por indicar que o vice-presidente da Guiné-Bissau seria melhor amigo do ex-presidente Lula (TD5). A esquerda, como um todo, sofre um processo de superlexicalização, sendo todos retratados como o inimigo, ou aquele que deve ser combatido.

Esses dados nos levam a pesquisar mais a fundo os processos de lexicalização que estão ligados a Bolsonaro e os que estão ligados aos políticos denominados como sendo de esquerda. Podemos ver que a relação binária entre direita e esquerda política é expressa ao longo do corpus, apontando o candidato do PSL como um nacionalista que possui apelo popular e a esquerda como inimiga que precisa ser combatida.

Lexicalização de Bolsonaro

Um dado para o qual chamo a atenção é o número de vezes em que os candidatos à presidência são citados. Jair Bolsonaro é citado em nove dos onze textos analisados (TD1 excertos 1 e 2, TD3, TD4, TD5, TD7, TD8, TD9, TD10); Fernando Haddad, Lula e PT (consideramos os três léxicos como conectados, uma vez que pertencem ao mesmo partido político) são citados em seis textos (TD2, TD4, TD5, TD6, TD8, TD10); Ciro Gomes é citado em um (TD9); Geraldo Alckmin se relaciona indiretamente a um texto (TD7), uma vez que o apresentador José Luiz Datena fez o vídeo da sétima notícia mais compartilhada para o candidato do PSDB, e não para Bolsonaro. Apesar do PSOL ser citado em uma das notícias (TD2), o candidato Guilherme Boulos não é mencionado em nenhum texto, neste caso o político citado é o deputado federal Jean Wyllys, notoriamente conhecido por ser opositor aos ideais de Bolsonaro e por ter cuspido em Bolsonaro6 durante a sessão de votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Esses dados chamam mais atenção quando percebemos que, mesmo sendo citado em nove dos onze textos analisados (TD1 excertos 1 e 2, TD3, TD4, TD5, TD7, TD8, TD9, TD10), Bolsonaro só possui valor semântico-discursivo negativo em um texto (TD8), ao ser associado com traficantes do Rio de Janeiro. Nos outros oito textos (TD1 excertos 1 e 2, TD3, TD4, TD5, TD7, TD9, TD10), Bolsonaro é retratado como alguém que recebe apoio de diferentes atores sociais; seja a população de certo local que se manifesta massivamente a seu favor, como nas notícias que atribuem fotos e vídeos de jogos da copa do mundo a protestos pró-Bolsonaro (TD1 excertos 1 e 2, TD3), ou autoridades públicas que o defendem ao atribuir valores negativos a outros candidatos, como na falsa citação de Patrícia Pillar ao dizer que o candidato Ciro Gomes a agredia (TD9).

Quatro amostras do corpus utilizam fotos ou vídeos de manifestações públicas como recurso multimodal para demonstrar apoio ao então candidato, Jair Bolsonaro, ocupando a 1ª, 3ª e 7ª posição entre as notícias mais compartilhadas (TD1 excertos 1 e 2, TD3, TD7). Nos textos em que fotos de manifestações públicas são associadas aos apoiadores de Bolsonaro (TD1 excertos 1 e 2, TD3) as imagens são localizadas no tempo e no espaço, como ‘Sampa’ (TD1 excerto 1), Rio Grande do Norte (TD 1 excerto 2) e Copacabana (TD3), porém não é dito de maneira direta que os protestos são a favor de Bolsonaro. Os textos acima mencionados (TD 1 excertos 1 e 2 e TD3) são os três mais compartilhados durante o primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, o que indica que houve um engajamento por parte dos autores e distribuidores destes textos para validar Bolsonaro como o candidato que possuía maior apelo popular.

Em outro texto (TD1 excerto 2) temos o termo “nosso futuro presidente” sendo atribuído ao candidato Jair Bolsonaro. Os atores sociais presentes na foto, a população que assistia a um jogo do Brasil, são classificados como “seus eleitores” (de Bolsonaro, no caso). Nesse texto temos uma citação direta à Bolsonaro na frase “Bolsonaro estaria em Natal/RN hoje…”, o que faz com que a associação ao presidente não fique apenas no campo imagético, mas de maneira explícita através das escolhas lexicais do texto. Essa citação é similar à que temos na terceira notícia mais compartilhada (TD3), em “Bolsonaro já no 1 turno 17”.

Na oitava notícia mais compartilhada (TD8), em que traficantes demonstram apoio ao candidato do PSL, temos a frase “Bolsonaru (sic) é bala” e a citação direta ao perfil do candidato, @jairbolsonaro. Vemos o então candidato associado ao termo “bala”, que provavelmente se refere à munição de armas de fogo, em alusão ao apoio de Bolsonaro ao porte de armas de fogo. O texto que mostra Patrícia Pillar afirmando que o candidato Ciro Gomes a agrediu enquanto eram casados também cita Bolsonaro de maneira direta em “Gente eu nunca fui casada com o Bolsonaro”, o que coloca o candidato em oposição a Ciro Gomes na frase que segue: “Quem me batia era o Ciro Gomes”, atribuindo um valor positivo a Bolsonaro e desvinculando-o de um imaginário de violência.

Podemos ver que as notícias aqui analisadas descrevem Bolsonaro como uma figura salvadora, que conta com a afirmação de atores sociais para se referendar como uma escolha e que precisa ser defendido de ataques de seus opositores. Em contrapartida, quando seus opositores são mencionados, como veremos a seguir, podemos verificar que o valor semântico-discursivo a eles atribuído sempre será negativo.

Lexicalização de políticos do espectro da esquerda

No campo lexical do Partido dos Trabalhadores, que se encontra no espectro político da esquerda, podemos perceber que o valor semântico-discursivo é negativo em todas as vezes que algum dos termos é citado ao longo do texto (TD2, TD4, TD5, TD6, TD8, TD10). Nenhum dos textos presentes em nosso corpus atribui valor positivo ao partido, ou a seus candidatos, diretamente. Ciro Gomes, outro candidato que foi enquadrado no espectro político da esquerda durante a eleição, é citado em uma notícia, em que um valor negativo é atribuído a ele, como citado anteriormente.

Outro tema importante que é abordado ao longo das notícias é a representação do discurso anticomunista/anti-esquerda que podemos verificar em nosso corpus, especialmente nas notícias que foram compartilhadas através de hiperlinks. Itens lexicais como ‘ditador’, ‘comunista’, ‘petista’, ‘venezuelano’, ‘bolivarista’, ‘petralha’ são utilizados com frequência para mobilizar um valor semântico-discursivo negativo. Os nomes de Dilma Roussef, Lula, Nicolás Maduro, Pabllo Vittar, Jean Wyllys, Fernando Haddad e Gleisi Hoffmann são citados para atribuir significado negativo à proposição; são figuras públicas de esquerda — e uma drag queen, que representa como os LGBTs são associados à esquerda política — com grande representatividade midiática.

Na décima notícia mais compartilhada (TD10), podemos ver uma montagem que apresenta militantes vestidos com camisetas do PT, batendo em um homem de cabelos brancos trajando uma roupa verde e amarela. Nessa notícia, temos a frase: “Estão intimidando pessoas que estão adesivando os carros com apoio a Bolsonaro”. Novamente, este é o único momento em que o candidato é citado e tem o item lexical “apoio” associado a ele.

No texto (TD4), em que o TSE é acusado de entregar códigos de segurança das urnas eletrônicas, podemos ver como o Partido dos Trabalhadores é representado ao vermos no primeiro parágrafo a frase “o sequaz petista e ditador venezuelano Nicolás Maduro”. Três itens lexicais diferentes são atribuídos como característica do presidente da Venezuela: (1) ‘ditador’, que caracteriza uma figura tirana que controla o estado com poderes absolutos, mas que não faz parte da monarquia absolutista; (2) ‘petista’, que caracteriza um membro do Partido dos Trabalhadores do Brasil, o que torna o atributo paradoxal uma vez que Maduro é venezuelano; (3) ‘sequaz’, aquele que professa ideias de um filósofo, de uma religião ou de certa crença. Podemos dizer que os itens lexicais ‘petista’ e ‘sequaz’ podem ser associados ao fato de Maduro seguir uma política bolivarianista, ou seja, ele possui valores semântico-discursivos negativos por fazer parte do espectro político da esquerda. A expressão “ditadura bolivariana” também é usada para representar o governo venezuelano, atribuindo mais um valor negativo ao espectro político da esquerda ao associar ditadura com os ideais bolivarianos. Fica evidente que temos a representação de um discurso anti-esquerda ao longo do texto. Bolsonaro também é citado ao longo do texto, mas como autor do projeto que planeja instituir o voto impresso no território nacional.

No texto da revista Isto é sobre a prisão do vice-presidente da Guiné Equatorial, Teodorin Obiang Mangue, vemos um trabalho de lexicalização para associar Lula ao guinéu-equatoriano. Termos como ‘amigo íntimo’ foram utilizados como classificadores para Lula e Obiang. Novamente temos a associação de figuras de esquerda com o espectro ditatorial, ao nos depararmos com o presidente Lula, membro do maior partido de esquerda do Brasil, ligado ao presidente da Guiné-Equatorial através de uma relação de intimidade. O autor do texto ainda atribui os termos ‘mulherengo’ e ‘excêntrico’ ao vice-presidente da Guiné Bissau, atribuindo mais traços negativos ao suposto relacionamento de amizade. Lula também é lexicalizado como ‘petista’ no penúltimo parágrafo e como ‘Brahma’ (alusão ao alcoolismo).

No texto que atribui a fala “a criança é do estado” a Fernando Haddad (TD6), podemos ver mais uma vez como o discurso anti-esquerda se materializa, criando um inimigo de valores imorais. É possível interpretar a frase ‘a criança pertence ao estado’ como uma forma de desmoralização da figura do Estado, associando o político de esquerda a conceitos deterministas de gênero: “Cabe a nós (governo) decidir se menino será menina e vice-versa”. Também podemos observar um discurso anti-LGBT, deturpando o conceito de identidade de gênero, desassociando o processo de construção social (interno e externo) que o indivíduo percorre ao se identificar como homem ou mulher (Ribeiro, 2007).

ANÁLISE DE PRÁTICA DISCURSIVA – INTERTEXTUALIDADE E INTERDISCURSIVIDADE

Textos de desinformação precisam remeter a alguma informação que possui certa veracidade, distorcendo seu contexto e compartilhando-o para fins pessoais, dada a natureza intertextual da linguagem. Os textos que se utilizam de fotos de manifestações públicas para validar o apoio a Jair Bolsonaro (TD1 excertos 1 e 2 TD3) são bons exemplos dessa relação intertextual, pois essas fotos pertenciam a outros textos (jogo da copa do mundo de 2014 e movimento Vem Pra Rua em 2016) e foram ressignificadas como suporte visual na construção argumentativa dessas notícias falsas. No framework de desinformação, podemos caracterizá-los como falso contexto, isto é, foram compartilhadas imagens genuínas em um contexto fabricado, feito para enganar. Os textos explicitam que o então candidato mobilizava multidões a seu favor, justificando o apoio ao candidato pois esta é a vontade da maior parte da população. Em seu artigo de 2014, Limongi e Guarnieri fazem uma análise sobre o processo eleitoral no período pós-democratização no Brasil e afirmam:

A eleição de 1994 inaugurou o padrão de competição com que convivemos até o momento. As eleições passaram a ser fundamentalmente bipartidárias. E não surpreende que seja assim. É o esperado, uma consequência da lei de Duverger, segundo a qual eleições majoritárias tendem a ser controladas por dois partidos. Como muitos votos são esterilizados ou perdidos, eleitores adotam o “voto útil”, isto é, evitam desperdiçar seus votos em candidaturas destinadas à derrota, convergindo para os dois principais contendores. Antecipando que isso vai ocorrer, políticos coordenam suas ações e formam coligações. Partidos que antecipam sua derrota e/ou que calculam que sua presença favorecerá seus principais inimigos se afastam da disputa ou se juntam a candidaturas menos perigosas. (Limongi e Guarnieri, 2014, p. 99)

Essa perspectiva de adoção do voto útil foi muito conveniente para o candidato Jair Bolsonaro, uma vez que ele se manteve em segundo lugar ao longo da maior parte das pesquisas eleitorais do primeiro turno e via como maior adversário político o candidato Fernando Haddad do PT. Ver notícias onde um volume maior de pessoas apoia Bolsonaro faz com que o leitor que possui uma construção discursiva anti-esquerda veja no candidato do PSL um voto útil para tirar um grupo considerado inimigo do poder.

No texto referente à segunda notícia mais compartilhada (TD2), temos um elemento visual que contribui para a intertextualidade, o layout do portal G1 Notícias, inserido como forma de estabelecer credibilidade com o leitor – chamado no framework da desinformação de conteúdo impostor. Outro elemento está no texto sobre Jean Wyllys; o texto explicita que Jean foi convidado para o cargo de Ministro da Educação numa eventual vitória de Haddad. Para se aceitar um convite, primeiro precisamos ser convidados. Por mais que tal convite nunca tenha existido de maneira concreta, ele é referenciado de maneira quase automática pelo leitor e aceito como informação verdadeira; é um conteúdo fabricado, uma vez que não há veracidade nas informações da notícia.

No caso do texto que versa sobre a prisão do vice-presidente da Guiné-Equatorial, Teodorin Obiang Mangue (TD6), temos um discurso indireto da Polícia Federal afirmando que o dinheiro apreendido com Obiang seria utilizado em campanhas eleitorais, sem especificação sobre de quem seria tal campanha presidencial. ‘Dinheiro escondido’ é um item lexical que possui um significado muito forte em termos de textos midiáticos brasileiros, uma vez que já tivemos figuras políticas presas com dinheiro escondido em cueca7, mala8 apartamento9, entre outros; tornando o item lexical “mala recheada” um elemento intertextual, uma forma de associar o ato de Obiang com o que é construído como práticas deploráveis da esquerda brasileira.

Temos dois textos que apelam diretamente para o discurso homofóbico: a notícia em que Jean Wyllys assumiria o Ministério da educação de Haddad (TD3) e a fala atribuída a Haddad de que as crianças pertencem ao estado (TD7), ambas conteúdo fabricado. Mesmo que não seja citada de maneira direta, contextualmente entendemos que a ideia de “ideologia de gênero” é ilustrada em ambos os textos, especialmente se lembrarmos da entrevista de Bolsonaro ao Jornal Nacional, na qual ele disseminou informação comprovadamente falsa sobre o ministério da educação distribuir o “kit gay”10.

Quando analisamos a notícia que versa sobre Patrícia Pillar e o candidato Ciro Gomes (TD9), podemos perceber que existe um processo de construção discursiva que valoriza o então candidato Jair Bolsonaro. Na frase “Gente eu nunca fui casada com o Bolsonaro. Quem me batia era o Ciro Gomes”, o elemento de negação ‘nunca’ entra para diferenciar o candidato do PSL de outra pessoa com quem Pillar já foi casada (no caso, Ciro Gomes). A informação segue com a afirmação de que Ciro Gomes batia em Patrícia Pillar, atribuindo valor negativo ao candidato do PDT e pressupondo que Bolsonaro não batia em suas esposas, mesmo que tal informação não conste explicitamente no texto. Podemos perceber o discurso da violência contra a mulher normalizado no texto, mesmo que usado para provocar reação emotiva nos leitores. Novamente, conteúdo fabricado. Para reforçar o argumento da violência contra a mulher, é apresentada uma foto da atriz com os cabelos ao vento, despenteados; sua expressão facial também corrobora para tal interpretação, uma vez que Pillar aparece com uma expressão séria que pode ser associada ao sofrimento.

ANÁLISE DA PRÁTICA SOCIAL

A análise da prática social propõe “desnaturalizar” discursos que contribuem para a manutenção de relações de poder assimétricas. Como apresentado anteriormente, os modos de operação da ideologia são cinco (Legimitização, Dissimulação, Unificação, Fragmentação e Reificação). O uso do modo de operação de legitimação se faz evidente quando percebemos o esforço argumentativo realizado por boa parte dos textos (TD 1 excertos 1 e 2; TD3, TD7) ao colocarem Bolsonaro como aquele que recebe maior apoio da sociedade e que precisa ser defendido de ataques de seus opositores. Os textos (TD 1 excertos 1 e 2, TD3) que demonstram apoio ao candidato do PSL utilizam a estratégia da racionalização ao representá-lo como o escolhido do povo nas fotos de manifestação popular compartilhadas como um movimento pró-Bolsonaro. Também vemos a estratégia de universalização atrelada nesses textos, uma vez que a ideia de pátria e de povo brasileiro é levantada em ambas as publicações. A utilização de imagens de manifestações populares como recurso multimodal para sinalizar apoio a Bolsonaro reflete um princípio de que o candidato tem validação da população brasileira. Essa validação é expressa nesses textos pela superlexicalização multimodal de cunho nacionalista (Emoji da bandeira do Brasil, ‘brasileiros’, multidões vestindo a camiseta da seleção brasileira etc.).

Entretanto, a maior parte dos textos do corpus desta pesquisa não defende Bolsonaro diretamente. Majoritariamente, temos representações que desmerecem o trabalho de seus opositores que, não aleatoriamente, se apresentam como políticos do espectro da esquerda política. Ou seja, veremos mais de um modo de operação e mais de uma estratégia operando nesses textos, uma vez que atribuir valor negativo aos candidatos da esquerda faz com que um valor positivo seja atribuído ao candidato que representa a extrema direita.

E através do uso desses itens lexicais, percebemos a presença do modo de operação da fragmentação, ao caracterizar todos os sujeitos que se constituem como de esquerda como um inimigo que precisa ser combatido pela sociedade. Curiosamente esse discurso de combate à esquerda se dissemina no período de campanha eleitoral, quando a “eliminação” do inimigo pode vir através das urnas, o que faz com que o modo da unificação se materialize através da simbolização da unidade; os eleitores de Bolsonaro não são de esquerda, são patriotas. Símbolos da identidade nacional, como camisetas da CBF e a bandeira do Brasil, são comumente representados nas postagens de apoio a Bolsonaro. Ou seja, o Brasil dos patriotas bolsonaristas não é um país que inclui todos os brasileiros em sua pluralidade cultural e intelectual; brasileiros e patriotas são apenas aqueles que se identificam com os ideais de Jair Bolsonaro.

Ironicamente, discursos que são normalmente atribuídos a Bolsonaro (misoginia, intolerância, homofobia etc.) são atribuídos a seus opositores ao longo de certos textos (discurso autoritário em TD6, discurso misógino de violência contra a mulher em TD9, discurso de violência e intolerância em TD10), eximindo-o de tal título e normalizando relações de poder desiguais, assim vemos a estratégia de reificação agir. Atribuir o discurso de Bolsonaro aos seus opositores faz com que o leitor entenda que: (1) Não é Bolsonaro quem reproduz tal discurso, são seus opositores; e (2) Se Bolsonaro reproduz tal discurso, é por ser algo natural, já que seus opositores também o reproduzem.

Em seu artigo de 2020, Cavalcante associa a formação do neofascismo brasileiro ao apoio massivo da candidatura de Bolsonaro por parte da classe média brasileira. O autor afirma que o atual presidente não foi eleito única e exclusivamente pelo voto da classe média, ele obteve o maior percentual de votos em todos os extratos sociais com renda acima de dois salários-mínimos;

Porém, o núcleo duro de classe média é o que aderiu desde o início à sua candidatura, já esboçada na esteira do golpe de 2016, e permanece, até o segundo semestre de 2019, como o que mais apoia o governo. Isso sinaliza uma identificação mais profunda desses agentes com seu discurso e comportamento. (Cavalcante, 2020, p. 122)

Se temos a agência mais profunda da classe média, temos um maior engajamento por parte desses indivíduos para defender o valor de Bolsonaro como um candidato que representa a população brasileira. O processo de criação dos textos indica que houve certa preocupação dos autores em levar o leitor a ler aquilo que quer, quão maior o engajamento em uma publicação, maior é a disseminação dessas notícias (Shu et al., 2020). Se temos um público de classe média que apoia o discurso bolsonarista e reproduz um discurso anti-esquerda, temos exatamente o público final dos textos aqui analisados, uma vez que todos esses textos reproduzem esses mesmos discursos através de desinformação.

As mídias sociais e a popularização da internet levaram a um protagonismo do indivíduo anônimo e deu voz ativa a um grupo que passou por uma hiperexposição a um crescente discurso anti-esquerda – popularizado e validado por figuras emblemáticas da direita como Olavo de Carvalho, Reinaldo Azevedo, Rodrigo Constantino e Diogo Mainardi (Motta, 2012) – e uma naturalização de práticas fascistas presentes nos discursos de ódio de Bolsonaro. A disseminação de desinformação ao longo da campanha eleitoral reflete que aquela parcela da sociedade endossa os discursos que esses textos carregam. As fake news não são apenas um agravante do fenômeno neofascista brasileiro, elas também demonstram que esses discursos já foram incorporados pela sociedade como máximas.

Sendo assim, faz-se necessária uma pequena análise sobre o termo “fascista”, uma vez que ele vem sendo utilizado com certa frequência por figuras da esquerda para caracterizar as práticas discursivas do presidente Jair Bolsonaro, mas é pouco ilustrativo no atual cenário. Löwy (2021) caracteriza o neofascismo de Bolsonaro em contraste ao fascismo europeu:

[…]O que bolsonaro tem em comum com o fascismo clássico é o autoritarismo, a preferência por formas ditatoriais de governo, o culto do chefe (“mito”) salvador da pátria, o ódio à esquerda e ao movimento operário. Mas não dispõe de condições de estabelecer uma ditadura, um regime fascista. Seu desejo, abertamente evocado por seus filhos, seria de impor um novo AI-5, dissolvendo o superior tribunal federal [STF] e colocando fora da lei sindicatos e partidos de oposição. Mas lhe falta para isto o apoio tanto das classes dominantes quanto das forças armadas, pouco interessadas, no momento, por uma nova aventura ditatorial. (Löwy, 2021)

São inúmeras as definições acadêmicas para o termo ‘fascismo’, aqui utilizaremos os estabelecidos por Boito Jr. (2020): (1) variante ditatorial do Estado capitalista, através de um tipo de ditadura distinto; e (2) a ideologia que justifica tal ditadura. Focaremos nossa reflexão no segundo aspecto, uma vez que, como Löwy (2021) comentou na citação acima, o primeiro ainda não se aplica ao Estado brasileiro. Nosso neofascismo “[…] se formou em 2015 na campanha pela deposição de Dilma Rousseff. De lá, saiu, após depuração, o movimento especificamente neofascista – o bolsonarismo” (Boito Jr., 2021), ou seja, o processo foi impulsionado por um engajamento da classe média, que resolveu naturalizar ideais fascistas de Jair Bolsonaro para sustentar o seu discurso anticorrupção/neoliberal:

O fascismo não é um movimento burguês, embora chegue ao governo cooptado pela burguesia e embora seja, desde o seu início, ideologicamente dependente da burguesia. Ele é um movimento de massa de uma camada intermediária e apresenta, portanto, elementos ideológicos e interesses econômicos de curto prazo que podem destoar da ideologia e dos interesses econômicos imediatos da burguesia. (Boito Jr., 2020, p. 115)

Enquanto o fascismo europeu combatia grupos revolucionários que estavam organizados e pautados entre os trabalhadores, vemos que o neofascismo brasileiro encontra uma organização muito mais frágil na ala da esquerda política. Esse enfraquecimento da esquerda política faz com que as redes sociais sejam um ambiente propício para a disseminação de tal ideologia: “O inimigo do neofascismo é menos ameaçador e é politicamente mais frágil. Nessa situação, o neofascismo organizou-se fundamentalmente por intermédio das redes sociais.” (Boito Jr., 2021).

Podemos observar ao longo do corpus que os textos que não atacam diretamente figuras da esquerda política são caracterizados como de apoio ao então-candidato do PSL (TD1 excertos 1 e 2, TD3, TD7, TD8); porém, alguns dos textos que atacam a esquerda também demonstram apoio a Jair Bolsonaro (TD4, TD9, TD10). Vale ressaltar que o termo “fascista” foi atribuído a Jair Bolsonaro por diversas vezes, mesmo antes dele se candidatar à presidência, mas nunca foi efetivamente aceito pela população brasileira como um todo, apenas por pessoas que se identificam com o espectro político da esquerda. Isso se deve à forte associação do termo ao fascismo europeu, o nosso neofascismo é localizado e constituído de maneiras diferentes em aspectos geográficos, temporais, culturais e econômicos. Cavalcante cita duas razões pelas quais o bolsonarismo não é frequentemente associado ao fascismo:

Em primeiro lugar, o fato de Bolsonaro não liderar um partido de massas com base social organizada nacionalmente – pelo contrário, adotou uma sigla meses antes da eleição. Em segundo, o caráter abertamente pró-capitalista de seu discurso, o que marcaria uma diferença decisiva em relação aos movimentos fascistas, pois estes se apresentaram historicamente com bandeiras anticapitalistas e corporativistas – um modelo comunitarista (conservador e com ideologia racista) alternativo ao programa comunista. (Cavalcante, 2020, p. 123)

Se o léxico fascista perde seu sentido de ideologia para representar apenas um grupo de atores sociais da Segunda Guerra Mundial, sua carga semântico-discursiva é enfraquecida. O termo acaba sendo banalizado e naturalizado por uma parcela da classe média que aceitou complacentemente a imposição de ideais fascistas em troca da propagação de sua ideologia meritocrática em favor do neoliberalismo (Cavalcante, 2020).

CONCLUSÃO

As análises desenvolvidas nesta pesquisa indicam que os textos apresentam um processo de construção discursiva de validação de Jair Bolsonaro como o melhor candidato para vencer as eleições do referido ano, somado a um processo de demonização da esquerda. Encontrei padrões de representação discursiva nos processos de lexicalização ao longo dos textos. Primeiro, pude observar uma superlexicalização de um ideal nacionalista que é utilizado como estratégia de simbolização de uma ideologia de unificação. De acordo com essa estratégia, os apoiadores de Bolsonaro são denominados como ‘brasileiros’ ou ‘nacionalistas’, como se apenas esses sujeitos pudessem ser considerados brasileiros sensacionalistas, sem perceber ou apontar para as contradições desse discurso – um país para todos não pode excluir quem pensa diferente ou quem é contra o presidente. Em seguida, encontrei a caracterização de Bolsonaro como uma figura que move multidões a seu favor, o candidato referendado pelos ‘brasileiros’ (TD1 excertos 1 e 2, TD3, TD7, TD8); por fim, observei que os políticos de esquerda são caracterizados como inimigos dos ‘brasileiros’, sendo também atrelados a práticas caracterizadas como imorais e que precisam ser combatidas (TD2, TD4, TD5, TD6, TD9, TD10).

No âmbito da desordem da informação, pude demonstrar que conteúdo impostor, falso contexto e conteúdo fabricado foram as formas de desinformação mais utilizadas ao longo do corpus, sinalizando que tais textos foram construídos para convencer os leitores de que a informação contida neles era genuína. Com base em Shu et al. (2020) e Delmazo e Valente (2018), identifiquei que os textos foram construídos para provocar certas emoções no leitor, justificando, por exemplo, o uso do modo de operação da ideologia denominado de fragmentação, em específico a estratégia de expurgo do outro, para criar um inimigo comum aos ‘brasileiros’ — nesse caso, os políticos de esquerda. A construção textual indica que a eliminação desse inimigo acontecerá através das urnas. Thompson (2011) afirmou que os modos de operação de unificação e fragmentação tendem a acontecer em conjunto, o fenômeno aqui estudado é um exemplo disso.

Com base em Motta (2012), Cavalcante (2020) e Boito Jr. (2020, 2021), ressaltei que Jair Bolsonaro foi apoiado por parte da classe média de maneira expressiva. A classe média foi permissiva para com os discursos de intolerância do atual presidente da república em prol de uma ideologia neoliberal e meritocrática e isso fez o neofascismo brasileiro ser difundido de maneira massiva. A ideologia meritocrática tem atuado em nossa sociedade desvalorizando discursos de políticas inclusivas.


1 Artigo resultante de estudos de conclusão de curso

2 Emily Jones discorre sobre o SixDegrees como primeira rede social no seguinte artigo jornalístico: https://medium.com/@emijones/sixdegrees-com-the-start-of-social-media-86e287d46e9e Acesso em 06 de nov. 2024.

3 Disponível em: https://exame.com/brasil/as-10-noticias-falsas-mais-compartilhadas-no-primeiro-turno/ Acesso em: 06 de nov. De 2024.

4 Disponível em: https://exame.com/brasil/esta-e-a-genese-da-inimizade-entre-bolsonaro-e-jean-willys/ Acesso em: 06 de novembro de 2024

5 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zHCJZKk5MPo>. Acesso em 27 mar. 2021.

6 Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/jean-wyllys-admite-que-cuspiu-na-cara-de-bolsonaro-19110700. Acesso em 06 nov. 2024

7 Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/10/14/pf-encontra-dinheiro-na-cueca-de-vice-lider-do-governo-no-senado.ghtml. Acesso em 6 nov 2024.

8 Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/03/28/temer-vira-reu-em-caso-da-mala-de-r-500-mil-da-jbs.ghtml. Acesso em 6 nov 2024.

9 Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/policia-federal-encontra-dinheiro-em-apartamento-supostamente-utilizado-por-geddel.ghtml. Acesso em 6 nov 2024.

10 Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/6980200/. Acesso em: 06 nov 2024.


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*Mestre em Letras (UFPR)