Basic Concepts of Community Psychology: Community, Society and Rationalization
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10440401
Wilson A. Senne1
RESUMO: A importância da disciplina de Psicologia Comunitária cresceu, desde fins do século passado, com a reorientação dos currículos de Psicologia para o trabalho social, expandindo o campo de atuação mais além das áreas tradicionais da clínica, industrial e escolar. Desde então, a psicologia, que sempre se avizinhou com as ciências sociais, aproximou-se ainda mais, requerendo conceitos sociológicos para empregá-los na compreensão das novas práticas. Neste breve apontamento selecionamos três conceitos fundamentais da Psicologia Comunitária, frequentemente usados mas nem sempre extensivamente apresentados. A começar por “comunidade” definido por oposição a “sociedade”, conforme tipologia estabelecida, em fins do século XIX, pelo filósofo alemão Ferdinand Tönnies (1855-1935). A seguir, dedicamos alguns parágrafos ao conceito de “racionalização”, central na teorização sociológica de Max Weber (1864-1920) e que continua sendo usado como referência principal quando se trata de definir, comparativamente, as sociedades tradicionais e as sociedades modernas.
Palavras-chave: Comunidade, sociedade, processo de racionalização moderno
ABSTRACT: The importance of the Community Psychology discipline has grown since the end of the last century, with the reorientation of Psychology curricula towards social work, expanding the field of activity beyond the traditional clinical, industrial and school areas. Since then, psychology, which has always been close to the social sciences, has come even closer, requiring sociological concepts to use them in understanding new practices. In this brief note we selected three fundamental concepts of Community Psychology, frequently used but not always extensively presented. Starting with “community” defined as opposed to “society”, according to the typology established at the end of the 19th century by the German philosopher Ferdinand Tönnies (1855-1935). Next, we dedicate a few paragraphs to the concept of “rationalization”, central to the sociological theorizing of Max Weber (1864-1920) and which continues to be used as the main reference when it comes to defining, comparatively, traditional societies and modern societies.
Introdução
Com importância crescente, o trabalho social dos psicólogos requer ferramentas conceituais que ajudem na contextualização histórica da ação profissional, geralmente situada em termos de uma transição entre o modo de vida “tradicional” (feudal ou agrário) e o “moderno” (industrial e capitalístico). Dentre os autores que se dedicaram ao estudo desta transição histórica, Ferdinand Tönnies (1855-1935) e Max Weber (1864-1920) contribuíram com a criação de alguns conceitos que são fundamentais à Sociologia bem como à Psicologia Social, com destaque para “comunidade”, “sociedade” (Tönnies) e “processo de racionalização ocidental” (Weber), aos quais dedicamos o presente texto.
Comunidade e sociedade
Comunidade e sociedade são conceitos da sociologia comparativa usados frequentemente nas tentativas de caracterização do processo de modernização que se intensificou a partir da Europa dos séculos XVI-XVII. O feudalismo, como modo de vida e trabalho milenar, foi substituído por uma nova organização social, dita burguesa e capitalista, tendente à universalização. Uma “europeização do mundo” ocorreu conforme cresceu o mercantilismo e a acumulação capitalista, com o modo de vida burguês revolucionando países e continentes. É com base nessa perspectiva histórica que a comunidade é situada “antes” e a sociedade “depois”, ainda que, como vamos ver, não se trate de substituição de uma pela outra, mas de um novo modo de coexistência.
Em fins do século XIX, Ferdinando Tönnies, autor de Comunidade e Sociedade (Gemeinschaft und Gesellchaft, 1887), estabeleceu uma tipologia desses modos de vida contrastivos em que ambas consistem em pessoas que vivem e permanecem juntas de maneira pacífica, mas com uma diferença fundamental: enquanto na comunidade as pessoas estariam unidas apesar de toda separação, na sociedade elas estariam separadas, apesar de toda a ligação. Ou seja, de acordo com Tönnies, na comunidade haveria uma “vida real e orgânica” que tendeu a se perder conforme cresceu o individualismo moderno, entendido como uma “justaposição de indivíduos independentes uns dos outros”, “um agregado econômico e artificial” em que “cada um é pra si e se acha em estado de tensão diante dos demais” (TÖNNIES, 1973, pp. 96-106)
Mais amiúde, de acordo com a definição de F. Tönnies,
“É comunidade o que nas criações do pensamento ou da representação social dos homens é natural ou espontâneo; sociedade tudo o que é efeito da arte (no sentido de técnica social organizada)… Tal é, por exemplo, a diferença entre a troca e o comércio, a hospitalidade amigável e a indústria hoteleira, a produção exercida pelas necessidades do produtor e a produção capitalista”. (TÖNNIES, 1973, p. 71)
Na sua obra, Tönnies sugeriu como sendo típicos de comunidade os atos de hospitalidade ou de socorro mútuo determinado por relações permanentes e preexistentes, tais como o parentesco e a sujeição política, e a sociedade, diferentemente, se esses mesmos atos são ditados pela reciprocidade que se obtém, ou se consegue, destes ou daqueles indivíduos. Escreveu:
“Toda vida em conjunto, íntima, interior e exclusiva, deverá ser entendida, a nosso ver, como vida em comunidade. A sociedade é o público, o mundo. Alguém se encontra em comunidade com os seus desde o nascimento, com todos os bens e males ligados a ele. Entra-se na sociedade como no estrangeiro (…). Comunidade é a vida em comum, duradoura e autêntica; sociedade é somente uma vida em comum passageira e aparente”. (F. TÖNNIES, 1973, p. 21)
Em outros termos, nascemos em uma comunidade, mas entramos em uma sociedade – e exatamente porque entramos em uma sociedade, esta é vista como uma criação artificial. Como conseqüência desta primeira distinção realizada por Tönnies, podemos dizer que, enquanto a comunidade se estrutura em torno dos costumes e das religiões, produzidos inconscientemente pela própria tradição e pelos vínculos familiares e primários, as sociedades se estruturam em torno das convenções e pelos vínculos secundários, produzidas racionalmente e representadas nas leis e no contrato social. Max Weber ajudou a consagrar esta disposição ao afirmar que…
“…chamamos de comunidade a uma relação social quando e na medida em que a atitude na ação social (…) se inspira no sentimento subjetivo (afetivo ou tradicional) dos participantes de constituir um todo. Chamamos sociedade a uma relação social quando e na medida em que a atitude na ação social se inspira em uma compensação de interesses por motivos racionais (de fins ou valores), ou também em uma união de interesses com igual motivação. (…) A comunidade é normalmente, por seu sentido, a contraposição radical da ‘luta’ (…). Por outro lado, as ‘sociedades’ são, com freqüência, unicamente meros compromissos entre interesses em conflito, os quais só descartam (ou pretendem fazê-lo) uma parte dos objetivos ou meios da luta, mas deixando de pé a contraposição de interesses mesma e a competição por distintas probabilidades”. (WEBER, 1999, p. 33)
Esquematizando, podemos, portanto, dizer que o que diferencia comunidade e sociedade são oposições como “natural e perene” versus “artificial e transitório”; “estrutura nos costumes e na religião” versus “estrutura convencional e contratual”; “unidade e paz” versus “diversidade e conflito” etc. Simplificando estas oposições, P. Guareschi escreveu o seguinte:
Comunidade (…) é uma associação que se dá na linha do ser, i.é, por uma participação profunda dos membros no grupo, onde são colocadas em comum relações primárias, como o próprio ser, a própria vida, o conhecimento mútuo, a amizade, os sentimentos. Já a sociedade é uma associação que se dá na linha do haver, i. é, os membros colocam em comum algo do seu, algo do que possuem, como o dinheiro, a capacidade técnica, sua capacidade esportiva. Os seres humanos participam, pois, da comunidade não pelo que têm, mas pelo que são. (GUARESCHI, 1996, p.95)
Em termos históricos, F. Tönnies situava a comunidade anteriormente à sociedade, ou seja, ele distinguia entre uma comunidade antiga e uma sociedade em ascensão, sem dissimular, nesta passagem, o sentido de um declínio ou desencantamento. Como uma oposição que ganhou relevância na Alemanha do século XIX, é perceptível um certo romantismo associado ao conceito de comunidade, isto é, como símbolo de tudo de bom que havia no passado e que a modernização e o progresso estariam destruindo. Assim, com seus valores associados à família, à religião e à raça, a palavra “comunidade” agrega uma nostalgia da camaradagem e da fraternidade que se indispõe contra o individualismo e o racionalismo utilitarista liberal que ganharam impulso com a Revolução Francesa.
Esta nostalgia inerente ao conceito de comunidade é retomada por Z. Bauman, que afirma que a palavra “comunidade” teria retornado com força nas últimas décadas carregada menos de significado do que de um feixe sensações; ela teria se tornado um tipo-ideal sugestivo, essencialmente, de “uma coisa boa”, uma “boa sensação”. O autor lembra, p.ex., que uma pessoa pode julgar-se “vítima da sociedade”, mas isso não ocorre com a palavra “comunidade”:
“Comunidade, sentimos, é sempre uma coisa boa. (…) Comunidade é um lugar ´cálido’, confortável e aconchegante (…) numa comunidade estamos seguros (…) o que essa palavra evoca é tudo aquilo de que nos sentimos falta e de que precisamos para viver seguros e confiantes” (BAUMAN, 2003, pp.7-9)
Z. Bauman lembra que, para Tönnies, o que distinguia a comunidade da sociedade era o fato de que, naquela, havia um entendimento mútuo compartilhado por todos os membros, um sensus communis que, advindo a sociedade, foi sendo substituído pelo consenso, algo muito diferente. Diz:
“O consenso não é mais que um acordo alcançado por pessoas com opiniões essencialmente diferentes, um produto de negociações e compromissos difíceis, de muita disputa e contrariedade, e murros ocasionais. O entendimento ao estilo comunitário (‘zuhanden’, diria M. Heidegger), não precisa ser procurado, e muito menos construído: esse entendimento já ‘está lá’, completo e pronto para ser usado – de tal modo que nos entendemos ‘sem palavras’ e nunca precisamos perguntar, com apreensão, ‘o que v. quer dizer?’. O tipo de entendimento em que a comunidade se baseia precede todos os acordos e desacordos. Tal entendimento não é uma linha de chegada, mas o ponto de partida de toda união. É um ‘sentimento recíproco e vinculante’ – ‘a vontade real e própria daqueles que se unem’; e é graças a esse entendimento, e somente a esse entendimento, que na comunidade as pessoas ‘permanecem essencialmente unidas a despeito de todos os fatores que as separam’”. (BAUMAN, 2003, pp. 15-16)
Embora a configuração político-econômica dominante hoje se assente nos termos das sociedades como formas jurídicas (a exemplo das S/A, as “Sociedade Anônimas”), a comunidade pode ser vista como parte constituinte da sociedade em geral. Prova disto é a insistência com que a palavra comunidade se apresenta nas discursividades contemporâneas, dando a entender – como Tönnies já dava – que somente os vínculos utilitários não explicam a sociedade e suas instituições, não as sustentam; só por interesse, à base de contrato ou consenso, as sociedades se tornariam inviáveis. Sendo assim, as relações “naturais” ou “de simpatia” – família, amizade, vizinhança – forçosamente subsistem – e são imprescindíveis – no âmago das modernas formas de sociedade.
Racionalização
O conceito de “racionalização”, segundo Max Weber, frequentemente usado pelos seus acólitos para definir a modernidade ou o processo de modernização, não pode ser compreendido dissociado da noção, igualmente central na sociologia deste autor, de “ação social”. Falar em “ação” com Weber é falar em comportamento dotado de sentido e orientação, ou seja, está-se tratando de uma atividade relacionada com alguma esfera de valor ou “esfera axiológica” da vida social que origina ações sociais racionalmente orientadas.
A noção de “ações racionalmente orientadas”, por sua vez, supõe linhas de ação ou encadeamentos lógicos de ações que integram diferentes sentidos. Assim como podemos dedicar-nos à pintura ou dança “por amor à arte”, ou a uma atividade de pesquisa como fazer científico, ou subir de joelhos a escadaria de uma igreja por motivos religiosos, vê-se que cada uma destas ações remete a uma esfera diferente de valores, posto que dotada de lógica e sentido próprios (no caso, arte, ciência e religião). Ou seja, tais ações remetem a sistemas-sentido independentes tal como foram racionalmente elaborados e destacados uns dos outros ao longo da história.
Antes que estas diferentes “orientações da ação” fossem assim distinguidas e aparecessem com nitidez, podemos supor que, nas sociedades tradicionais ou pré-modernas, elas integravam um mesmo e indissociável complexo significativo. Ou seja, não havia modalidades racionais da ação claramente diferenciadas, ou, como no comentário de G. Cohn,
“…a ação orientada pela magia se misturava à orientada pelo saber técnico, a arte se mesclava à religião e esta à ciência, e assim por diante, numa situação em que as mais diversas orientações se apresentavam simultaneamente para a ação, sem que haja como nem por que se distinguir claramente entre elas.” (COHN, 2003, pp. 232-233)
A modernização, para Weber, consiste justamente na transição desde um tempo histórico em que a tradição mantinha fundidos os elementos cognitivos, morais e expressivos da cultura, para um novo momento em que estes progressivamente se separaram conforme foram sendo racionalmente reunidos em “esferas de valor” próprias. Assim, p. ex., se antes da modernidade, durante toda a Idade Média, tínhamos uma Física fortemente aristotélica, em que se concebia todo movimento como derivado de Deus como “primeiro motor”, com Galileu, Newton e outros pensadores modernos, esta passou por uma modificação radical, sendo concebida como uma Scienza Nuova refundada em bases matemáticas, constituída unicamente de “sensata experiência e necessária demonstração”: doravante, a ciência apareceu separada do amálgama místico-religioso anterior e integrada a uma esfera própria, retirada com seus laboratórios e para dentro das universidades, onde não haveria mais espaço para “milagres” nem explicações místicas – o que iria permitir um aumento cumulativo bem mais rápido e intenso do saber empírico e da capacidade de previsão.
De modo parecido, a velha moral, derivada dos dogmas religiosos e submetida às figuras da Autoridade, foi exposta à discussão pela patrística medieval, tornando-se ao longo de guerras religiosas dos séculos 16-17 um objeto de debates jurídicos até que, cada vez mais secularizada, passou a derivar de princípios gerais e se fazer reger por ideais de validade “universal”, tornando-se um tipo “legal” de dominação, qual seja, o direito formal e positivo que hoje conhecemos. De modo análogo, a arte, que ao longo da Idade Média sempre esteve ligada ao contexto tradicional religioso (ritual, bizantino…), foi aos poucos se dessacralizando até que se autonomizasse como esfera própria, tornando-se a “arte pela arte” que conhecemos, separada da Igreja e da religião e ligada fortemente à produção para o mercado.
O que temos assim, enquanto processo de modernização, é a emergência, desde um amálgama místico-religioso anterior, de uma variedade crescente e heterogênea de dimensões da vida social – ciência, direito, arte, economia, política… – no interior das quais a racionalidade da ação difunde-se de maneiras específicas. Se antes arte e ciência, magia, técnica etc, se encontravam misturadas, neste novo contexto, dito moderno, a situação é diferente: “orientações da ação que antes integravam o mesmo complexo significativo e povoavam o universo dos agentes com toda sorte de referências, passam a se distinguir com crescente nitidez”. (COHN, 2003, p. 233)
Conforme o mundo social moderno foi sendo marcado por modalidades cada vez mais racionalizadas da ação, vivemos a passagem de um mundo “encantado” (ou “divinizado”) para um mundo “desencantado” (ou “desdivinizado”), com as linhas de ação diferenciando-se progressivamente, conforme os diferentes significados de cada uma delas foi se estabelecendo distintamente. Esta maneira de compreender a modernização como um processo de racionalização segundo o qual, desde um único amálgama místico-religioso diferentes esferas de orientação e de significado da ação foram dele se desprendendo, formando esferas axiológicas próprias, representa, sem dúvida, uma vantagem comparada com a leitura mais comum e positivista da modernização, segundo a qual, à maneira de A. Comte, diferentes “estados” de um desenvolvimento contínuo foram sendo superados e substituídos – quais sejam, um “estado teológico” que teria dado vez a um “estado metafísico” até finalmente atingirmos um “estado científico”. À diferença desta leitura “progressista”, a compreensão weberiana supõe não a substituição, mas a coexistência de diferentes esferas de ação – com a ciência operando ao lado da religião, ao lado do direito positivo, ao lado da arte e assim por diante -, bem como supõe também que esta autonomização das esferas de ação jamais é completa, com os limites de cada uma delas muitas vezes se atritando ou se sobrepondo, gerando tensões nas relações entre significados das ações – tal como vemos, eventualmente, grupos religiosos protestando contra mostras artísticas, juízes conservadores utilizando argumentos bíblicos para condenar um réu etc.
Embora os conceitos de “racionalidade” e “racionalização” de Weber, longe de serem simples, já tenham gerado históricas controvérsias entre os autores, com muitas diferentes propostas interpretativas para cada um destes termos, a modernização ocidental tem sido frequentemente pensada como um processo de transição estrutural, cultural e social, com uma separação irreversível de uma racionalidade dita substantiva, associada à considerações valorativas, de uma racionalidade formal, voltada para a maximização calculada de um fim qualquer. A racionalidade substantiva corresponde a uma ação ética no mundo, ou uma “ética prática” (Weber) que leva em consideração, como tal, as referências valorativas, independentemente dos dados de fato como resultados a serem obtidos. Esta forma de racionalidade voltada para a efetivação de um valor (ético, político, afetivo, religioso, comunitário, estético etc), com a modernização tende a ser suplantada por uma racionalidade formal regida por fins determinados, pautada pelo cálculo utilitário de resultados, tendente à despersonalização das relações sociais. A racionalidade formal equivale às estruturas de dominação burocráticas, econômicas e científicas, sendo referida às normas abstratas e a regras universalistas, sem consideração pelos interesses e qualidades pessoais.
O que entra em linha de conta no predomínio deste modo de racionalidade formal poderia ser dito em termos de uma “monetarização das trocas” como uma contabilização da vida enquanto sujeição desta a regras codificadas, um traço distintivo da formação do capitalismo moderno que se espalhou para as diferentes formas culturais. Acompanhando a lógica da contabilidade econômica, o direito moderno se torna fortemente formal bem como a administração pública se torna burocratizada no sentido em que ambos conferem às instituições um grau de previsibilidade que não existia nas sociedades tradicionais. “O capitalismo de empresa moderno e racional”, diz WEBER (1996), “necessita de meios técnicos de um direito previsível e de uma administração regida segundo regras formais” (pp. 501-502).
Considerações finais
Com Weber, a modernização aparece como um processo histórico em que agigantam-se tanto o Estado como organização dotada de um sistema tributário, legislativo e administrativo fortemente burocratizados quanto o Mercado, como um sistema econômico pautado no cálculo contábil e no uso crescente da ciência e da tecnologia. Tanto um quanto outro, profundamente relacionados, supõe o predomínio e a onipresença de um mesmo “princípio da calculabilidade” (Lukács) em que as finalidades e a maximização dos resultados se tornam determinantes, tendendo a solapar qualquer outra forma de racionalidade.
Embora esta leitura do processo de modernização – como predomínio da racionalidade formal sobre todas as esferas da existência social – tenha ganhado força entre os comentaristas, não era exatamente essa a leitura weberiana. Na realidade, assim como na distinção de Tönnies tratada anteriormente entre “comunidade” e “sociedade”, a modernização não significou a supressão de uma pela outra, mas sim a coexistência tensiva entre ambas. Do mesmo modo, consoante com seu “individualismo metodológico”, a compreensão adequada do processo de racionalização sugerido por Weber leva a crer que a racionalidade formal e a racionalidade substantiva se distinguem e se acentuam de modo irredutível do ponto de vista dos agentes, sem que possam ser reintegradas no âmbito de uma mesma racionalidade. Ou seja, a modernização como processo de racionalização implica modos de vida em que somos permanentemente instados a agir racionalmente com base nos fatos tanto quanto mediante referências valorativas, muito embora a conciliação entre essas formas de racionalidade tenha se tornado impossível. Ou seja, somos compelidos a significar nossas atitudes de modo não raro contraditório, levados a agir ora visando o lucro, ora fomentando a amizade, às vezes buscando a maximização dos resultados, outras vezes valorizando a estabilidade e o repouso, ora trabalhando para ganhar dinheiro, outras vezes apenas “por amor à arte”…
Keywords: Community, society, modern rationalization process
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, Zahar, 2003.
CAMPOS, Regina Helena Freitas de (org.) Psicologia Social Comunitária, Ed. Vozes, 1996.
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[1] Professor Associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. E-mail: wasenne@ufba.br