CAMINHOS DE INTERCOMPREENSÃO: DA LUSOFONIA À ROMANOFONIA

PATHS OF INTERCOMPREHENSION: FROM LUSOPHONY TO ROMANOPHONY

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202412121633


Ângela Raquel do Nascimento Bastos¹


Resumo: Cada vez mais frequentes, as migrações no mundo atualizam as estatísticas e também nossa consciência sobre o quão ultrapassado é acreditar que a maioria dos países são monolíngues. Mesmo com esses cenários multilíngues mundiais, os contextos de ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras são marcados tradicionalmente por abordagens que estudam as línguas separadamente. Na contramão dessa individualização, está o plurilinguismo e as abordagens plurais, entre elas, a Intercompreensão. Segundo Escudé e Janin (2010), o termo Intercompreensão, foi usado pela primeira vez pelo linguista Jules Ronjat para denominar a capacidade dos locutores em compreender dialetos de diferentes línguas da mesma família. Ao adotá-la em suas práticas pedagógicas, o professor valoriza o repertório linguístico e o conhecimento de mundo do aprendiz, bem como as línguas envolvidas no processo ensino/aprendizagem. Sob a luz dos pressupostos teóricos de Olmo e Escudé (2019), Melo-Pfeifer (2011), entre outros, o presente trabalho tem como objetivo situar, discursivamente, as teorias, estratégias e práticas que envolvem a Intercompreensão e propor reflexões, de modo a suscitar uma mudança de paradigmas de profissionais e do cenário de sala de aula, ressaltando que a Intercompreensão pode nos guiar para um caminho de democratização das línguas e culturas. 

Palavras-chave: Intercompreensão; Plurilinguismo; Línguas Românicas;

Abstract: More and more frequently, the migrations in the world update the statistics and also our awareness about how outdated it is to believe that most countries are monolingual. Even with these global multilingual scenarios, the teaching and learning contexts of foreign languages are traditionally marked by approaches that study languages separately. Against this individualization, there is plurilingualism and plural approaches, among them Intercomprehension. According to Escudé and Janin (2010), the term Intercomprehension was first used by the linguist Jules Ronjat to describe the ability of speakers to understand dialects of different languages of the same family. By adopting it in their pedagogical practices, the teacher values the learner’s linguistic repertoire and knowledge of the world, as well as the languages involved in the teaching/learning process. In the light of the theoretical assumptions of Olmo and Escudé (2019), Melo-Pfeifer (2011), among others, the present work aims to discursively situate the theories, strategies and practices that involve Intercomprehension and propose reflections, in order to arouse a change in professional paradigms and in the classroom scenario, emphasizing that Intercomprehension can guide us towards a path of democratization of languages and cultures.

Keywords: Intercomprehension; Plurilingualism; Romance Languages;

1 INTRODUÇÃO

O ensino de línguas estrangeiras tem sido permeado por uma série de movimentos sociais e culturais que acarretam no surgimento de novas metodologias, tendências ou abordagem de ensino. É importante que se diga que, ao longo da história, a língua tem sido uma ferramenta de dominação e conquista nos contextos de colonização e, dessa forma, era natural que as elites impusessem a maneira mais adequada de usar a língua. As denominadas Named languages, construtos dos Estados nações e grandes centros de poder, eram criadas com propósito menos nobre que o da comunicação, como os de opressão e exclusão.

Garcia (2019) relata que o humanista e filólogo espanhol Antonio Nebrija, ao publicar sua gramática da língua castelhana em 1492, dedicou o livro à Rainha Isabella dizendo: “Siempre la lengua fue compañera del império”. O que evidencia sua consciência com a contribuição através de sua gramática, não apenas com a unificação da língua, mas com o controle dos bárbaros (MIGNOLO, 2020). A grande tendência mundial de discutir o desvalor enfrentado por minorias e lutar contra as diversas formas de preconceito sem nenhuma justificativa racional, apenas fruto de ignorância ou manipulação ideológica, será cada vez mais bem vinda ao campo da educação. Na verdade, faz-se necessária, posto que seria uma contradição separar as práticas sociais das vivenciadas em âmbito acadêmico. Olmo e Escudé (2019, p. 19) afirmam que “construir uma língua no padrão neutro que erradique os diferentes paroquialismos, as variedades locais, tornaria a língua artificial, inautêntica e esvaziada, um código desterritorializado: uma língua de todos que, na verdade, é de ninguém”. Para os autores, “aprender através de várias línguas torna transparente o vidro da linguagem através do qual nós conhecemos e concebemos o mundo” (OLMO; ESCUDÉ, 2019, p. 60).

De acordo com o CARAP (Quadro de referência para abordagens plurais de línguas e culturas), “As quatro abordagens plurais para o ensino de línguas (Despertar para as línguas, Didática integrada, Intercompreensão entre línguas maternas, Abordagens interculturais) baseiam-se em atividades que incluem diversas variedades linguísticas e culturais. Desenvolvem de forma concreta o conceito de competência plurilíngue e pluricultural promovido pelo Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas. Elas oferecem ferramentas para projetar e articular intervenções didáticas favoráveis ao desenvolvimento e enriquecimento contínuo dessa habilidade pelos alunos.”² Com a propagação das abordagens plurais há novos caminhos para adquirir informação e produzir conhecimento, seja dentro ou fora de sala de aula. E as teorias que perpassam o plurilinguismo ressignificam a educação, diante das transformações linguísticas e culturais vividas na contemporaneidade, que exigem do professor a capacidade de lidar com as novas demandas da educação no século XXI para um exercício pleno não apenas de magistério, mas de cidadania.

A partir desse contexto de plurilinguismo a Intercompreensão pode ser usada como ferramenta didático-pedagógica para vencer o obstáculo das políticas monolíngues pois, como uma das abordagens plurais para o ensino de línguas, ela pode mudar premissas e algumas bases epistemológicas da linguística aplicada e da língua estrangeira, por exemplo, a de que apenas línguas hegemônicas devem ser usadas para a comunicação global. E ela colabora nesse sentido, por ser uma lente conceitual e uma abordagem pedagógica que desafia as ideologias monolíngues e as relações desiguais de poder.

2 O QUE É INTERCOMPREENSÃO?

Imaginem os seguintes cenários: um brasileiro, ao visitar a Espanha, perde-se em um bairro residencial e a única pessoa que encontra na rua para pedir ajuda, é um espanhol. O brasileiro não fala espanhol e o espanhol não fala português e nenhum dos dois falam inglês, a língua franca. Eles começam a interagir, cada um falando sua língua materna, e após algumas frases e um pouco de esforço os dois conseguem se comunicar e, finalmente, o brasileiro entende o caminho que deve percorrer para voltar ao hotel.

 Um brasileiro chega a Paris e, ao entrar em uma estação de metrô, pega por curiosidade um dos jornais gratuitos em francês e começa a ler. Para sua surpresa, ele consegue compreender as informações principais que estão escritas ali, mesmo sem nunca ter tido contato com a língua francesa.  O que estes cenários têm em comum? Nos dois, os interlocutores utilizaram, mesmo sem saber, a Intercompreensão para compreender e serem compreendidos. 

Estes dois cenários podem trazer em nossa memória momentos em que escutamos ou lemos algo escrito nas línguas românicas que são consideradas “irmãs” do português (espanhol, italiano, francês…) e conseguimos entender tudo ou quase tudo. Pois bem, se você compreendeu alguma coisa ou muita coisa, você também já usou a Intercompreensão em algum momento em sua vida. Como foi mencionado nos exemplos acima, a Intercompreensão, de maneira geral, consiste no fato de compreender uma língua estrangeira (no caso as línguas românicas) sem ter estudado formalmente essa língua.

Definida por Perea (2011) como o potencial inato que todo sujeito pode convocar ao “atualizar” sua competência plurilíngue e pluricultural, a Intercompreensão é uma abordagem que reforça a possibilidade da formação de uma rede de integração entre as línguas, promovendo o plurilinguismo e o pluriculturalismo.A Intercompreensão entre as línguas da mesma família – seja românica, germânica ou de outro continuum linguístico – traz entre as vantagens mais perceptíveis as associadas à compreensão, o que pode ser exercitado de maneira sistemática. E a partir da capacidade de compreensão, os efeitos positivos dessa prática podem se estender à expressão.

Cada vez mais utilizada no contexto do ensino de línguas estrangeiras, a Intercompreensão e seu processo de ensino-aprendizagem podem ser ferramentas úteis para motivar a aprendizagem de línguas da mesma família, uma vez que dentro de uma comunicação exolíngue, ela valoriza o conhecimento de mundo do aprendiz e as línguas envolvidas no processo de aprendizagem, seja na habilidade da fala ou da escrita. Além disso, a Intercompreensão traz o conceito de intencionalidade como algo fundamental, ou seja, deve existir a vontade de compreender e ser compreendido. Para que essa comunicação intencional seja a mais transparente possível e que as diferenças da língua não sejam um empecilho para a compreensão da mesma, essa abordagem traz estratégias metodológicas para abrandar os pontos de dificuldade.

A primeira dessas estratégias, o contexto e a forma, chama nossa atenção sobre a importância prioritária que devemos dar ao contexto, uma vez que esse permite esclarecer o sentido da língua ao qual se foi exposto, seja numa interação oral ou escrita. Já a forma nos evidencia, através da comparação das estruturas (marcas de número, gênero, flexão verbal, preposições etc.), que existem muitos pontos em comum entre elas no interior da família linguística e que, muitas vezes, a língua que está sendo aprendida é considerada como uma variação da língua materna. A segunda das estratégias da Intercompreensão, a transferência, afirma que, utilizando a bagagem linguística e cultural dos aprendizes, pode-se transferir as habilidades (intencionalidade, forma, contexto etc.) já adquiridas na língua materna a outra(s) língua(s), fazendo uma ponte entre elas. De acordo com Meissner (2010), ao efetuar o processo de transferência, ou seja, formular e verificar (ou mesmo modificar) hipóteses da língua, a abordagem da Intercompreensão introduz o aluno à gramática e ao léxico da língua-alvo, bem como uma espécie de “inter-gramática plurilíngue” que registra as bases de transferência positiva e os desvios de padrões correspondentes entre as línguas ativadas. A terceira e última estratégia da abordagem, a aproximação, faz alusão ao ato de inferir no conteúdo e na forma de elementos não compreendidos, fazendo uma aproximação de sentido dos mesmos, evitando, assim, o bloqueio na comunicação por falta do termo exato.

Como vimos até aqui, os elementos e as estratégias da Intercompreensão trazem um encorajamento das trocas comunicativas para além das fronteiras linguísticas. Assim, é nessa prática/abordagem também que a hierarquia entre as línguas diminui, o que contribui com o respeito às línguas e a redução do preconceito linguístico, além de maior consciência diante de línguas minoritárias.  Canagarajah (2007) esclarece que as pesquisas revelam que comunidades que vivem em contextos plurilíngues já sabem: “o aprendizado e uso de língua são bem-sucedidos, por meio de estratégias de desempenho e negociações sociais em contextos comunicativos fluidos” (CANAGARAJAH, 2007, p. 1). E o autor acrescenta ainda que essas descobertas “nos obrigam a teorizar a aquisição da linguagem como multimodal, multissensorial, multilateral e, portanto, multidimensional” (CANAGARAJAH, 2007, p. 1). Para o teórico, nós nos comunicamos por meio de palavras, imagens, gestos, emojis, etc. No entanto, essas negociações só ocorrerão e se tornarão eficazes se houver, além da tomada de consciência, a intencionalidade. O que reforça a ideia de que o bom comunicador/leitor não se faz com um vasto acervo de palavras sofisticadas, mas, sobretudo, com vontade de interagir, de compreender. Se a comunicação é um ato volitivo, desejar se comunicar se faz essencial. A vontade, não apenas de falar e compreender, mas de conhecer o outro, habita na competência plurilíngue.

3 A INTERCOMPREENSÃO: UMA OPORTUNIDADE DE PROMOÇÃO DO PLURILINGUISMO

De acordo com o conceito dado no Guia para o desenvolvimento das políticas de educação linguística (2007), publicado pelo Conselho da Europa, todo falante é potencialmente plurilíngue, pois este é capaz de adquirir e dominar, em diferentes graus de proficiência, diversas variedades linguísticas. Frente a essa premissa, essa afirmação nos faz refletir sobre o ensino de línguas estrangeiras na atualidade, em que se exclui a possibilidade de podermos aprender várias línguas a partir da língua materna e também a partir de outras línguas. Melo-Pfeifer (2011), em seu texto sobre o percurso da Didática de Línguas a partir da Intercompreensão, alerta para o fato de que as capacidades de compreensão em Línguas Estrangeiras (LE) são (sobre)valorizadas quando essas línguas são objeto de uma aquisição formal, sendo que as aquisições extraescolares e as capacidades metalinguísticas e metacognitivas efetuadas com recurso a outras línguas são desvalorizadas e subestimadas, quer pelos alunos, quer pela cultura escolar que os envolve. De maneira geral, podemos relatar a partir de observações, que a grande maioria das didáticas de ensino-aprendizagem no Brasil são desenvolvidas considerando a língua como objetos estanques, muitas vezes sem nenhuma relação com a realidade dos aprendizes. São metodologias que enfatizam regras gramaticais, estratégias de escuta, modelos de falas considerando a hegemonia anglo-americana, técnicas de escrita considerando a norma culta, que serve apenas para propósitos específicos, mas isolam a bagagem linguística e o conhecimento prévio dos alunos sobre línguas e linguagens, desperdiçando, assim, a oportunidade de motivá-los para a aprendizagem de línguas em geral, e de proporcionar mais conhecimento, inclusive em sua língua materna.

Conforme Olmo e Escudé (2019), que defendem que o professor explore o continuum linguístico em sala de aula, as línguas raramente se encontram isoladas e seus sistemas tecem relações de parentesco ou contatos recíprocos. No caso de línguas como a portuguesa, francesa, espanhola, italiana entre outras, esse parentesco nos leva a classificá-las como línguas que pertencem ao mesmo diassistema: as línguas românicas. As línguas românicas são derivadas do latim vulgar que era falado nas províncias ocidentais do império romano há milhares de anos, era o idioma que fazia parte do cotidiano de soldados, comerciantes e camponeses que viviam nas províncias ocidentais. Com a expansão do Império Romano (séc. II, d.C.), o latim passou a fazer parte das comunicações de diversos outros países. Ou seja, é uma tradição ancestral e secular as línguas saírem de seus limites geográficos e serem levadas para outras terras, bem como as pessoas. Mostrar resistência a esse fato é desconhecer que a hierarquia das línguas se desfaz a partir das visões de plurilinguismo que, “longe de ser uma qualidade erudita de poliglotas, é assumido como um conjunto de repertórios linguísticos não necessariamente homogêneos” (OLMO; ESCUDÉ, 2019, p. 75). Línguas-irmãs, as línguas românicas se assemelham e se aproximam estruturalmente muito mais do que se imagina, mas infelizmente essas semelhanças e proximidades são desconhecidas por muitos falantes das línguas do continuum, entre eles, os falantes do português.

Levando em consideração esse desconhecimento da mesma origem, dessa proximidade linguística, temos muitas vezes um cenário de desmotivação e desistência entre os alunos lusófonos quando tentam aprender alguma dessas línguas. Existe, entre os aprendizes, uma falsa crença de dificuldade bem maior do que o que a realidade apresenta, fazendo com que vários alunos, mesmo querendo aprender outras línguas, escolham o inglês como língua estrangeira, por considerarem, equivocadamente, que é uma língua mais fácil e parecida com o português. Talvez porque o inglês seja a língua com a qual eles têm mais contato na escola ou então a língua românica não foi apresentada de maneira adequada. São muitas as barreiras no ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras, além das crenças limitadoras que sabotam esse processo.

4 A INTERCOMPREENSÃO E “AS LÍNGUAS QUE NÃO SABÍAMOS QUE SABEMOS”

Em seu texto: As “línguas que não sabíamos que sabemos” e outros mitos: um olhar sobre o percurso da Didática de Línguas a partir da intercompreensão, Melo-Pfeifer (2011) aborda mitos que geralmente são associados à integração da Intercompreensão em contexto escolar e que se tornam, em termos pragmáticos, obstáculos à sua rentabilização enquanto estratégica pedagógico-didática. Entre esses mitos está o não-reconhecimento da aprendizagem das línguas que não são estudadas na escola. Melo-Pfeifer (2011) afirma que, “Ora, as línguas são como as pessoas que as falam: podemos conhecê-las da rua, da vizinhança, dos meios audiovisuais, das redes sociais, uma vez que elas integram a paisagem linguística e social que nos envolve” não havendo necessidade de um ensino formal para conhecê-las, aprendê-las ou mesmo descobrir que algumas delas, no caso das línguas da mesma família, conseguimos compreender sem fazer muito esforço. Um outro mito citado pela autora é que o professor de línguas deve evitar a intromissão de outras línguas em sua aula, já que abordagens anteriores, especialmente a comunicativa, censurava o uso da língua materna no receio de que essas contaminassem as aquisições linguísticas da língua-alvo. No entanto, após alguns estudos, concluiu-se que a língua materna pode e deve ser usada como trampolim cognitivo e como filtro afetivo no ensino-aprendizagem de novas línguas (Melo-Pfeifer, 2011).

Vejamos a seguir uma tabela com uma lista de palavras, a fim de ter um panorama geral das possibilidades que as relações entre os idiomas do mesmo continuum linguístico podem oferecer aos aprendizes, evidenciando que as línguas são espaços de construção de saberes ou, como diriam Olmo e Escudé (2019), a Intercompreensão é a chave para as línguas.

Tabela 1 – Relações entre os idiomas do mesmo continuum linguístico.

Fonte: Olmo e Escudé (2019) – adaptado pela autora.

A tabela 1 mencionada foi inspirada nos estudos de François-Just-Marie Raynouard (1838-1844), que recuperou o acervo lexical das línguas românicas e, com essa comparação, preparou o caminho para o surgimento da linguística românica e, posteriormente, a Gramática das línguas românicas, publicada entre 1836 e 1843, conforme Olmo e Escudé (2019) relatam. Observando a tabela, a ideia de família linguística fica mais clara. São muitas as semelhanças e “coincidências” e, certamente, conhecer as famílias das línguas pode tornar o processo de aprendizagem mais significativo.

5 INTERCOMPREENSÃO E INTERCULTURALIDADE

Se a língua materna abre caminhos para a compreensão de línguas que fazem parte do mesmo continuum no processo de aquisição de L2, por que a L1 não nos leva a se aprofundar na própria cultura, uma vez que língua e cultura são intrinsecamente ligadas, como afirmam estudiosos? Tomalin (2008), por exemplo, defende o ensino da cultura como a quinta habilidade, além das quatro linguísticas que já são bastante exploradas em aulas de línguas estrangeiras: speaking, listening, reading e writing. Quando ele diz cultura, ele não se limita ao ensino que reforça estereótipos como o do americano que come hambúrguer e panquecas e o francês que come baguete, queijos e aprecia um bom vinho. De qual americano ou francês esse professor fala? Onde está a diversidade de habitantes daqueles países retratada em preferências ou possibilidades financeiras e gastronômicas? A cultura é algumas vezes interpretada apenas como noções de espaço ou gestos e, mesmo que isso represente manifestações de normas culturais, o impacto da cultura é mais amplo e define a maneira como a pessoa se vê na sociedade e vê o outro. A maneira como uma pessoa vê o mundo afeta seu processo de aprendizagem, compreensão, produção e interação com a segunda língua e a segunda cultura. Não seria o mesmo no caso do idioma materno? Ou de quando o aluno vê a língua francesa como uma língua difícil, algo inatingível? “A França é um país caro, para onde nunca teria dinheiro para viajar”, os alunos dizem.

Em seu livro Culture and Second Language Teaching and Learning, Hinkel (1999) pontua diversos aspectos da cultura que influenciam aprendizes e professores de segunda língua e, entre elas, destaca que aprender uma língua não se trata apenas de aprender o idioma, mas aprender a interagir e construir significados. Dito isso, um maior aprofundamento nos estudos de abordagens plurilíngues faz-se necessário por profissionais que estão “no chão de sala de aula”, podendo este novo conhecimento adquirido ser usado para transformar pessoas e, consequentemente, professores e todo um sistema que se repete equivocadamente, criando lacunas e estudantes sem conhecimento de mundo e awareness (HINKEL; MICHAEL, 1999). Para que atinjamos esse nível de ensino e ampliação de horizontes, devemos ir além da cultura visível, que é mais exposta em escolas envolvendo tradições e costumes, como na abordagem de particularidades do Halloween, eggs hunt na Páscoa americana, Les cloches de Pâques que trazem os ovos na França, a Fête Nationale ou ainda Fête de la Musique. Os aspectos invisíveis, que incluem valores, crenças e normas culturais, dificilmente são explicados ou examinados criticamente para promover competência intercultural, que por sua vez traz como uma de suas consequências a competência plurilíngue. Além de estimular curiosidade e pensamento crítico, potencializar o conhecimento prévio do aluno, possibilitando a transferência de um idioma para o outro ou de uma competência para outra, faz parte dessa pedagogia da Intercompreensão evidenciar que todos os idiomas são bem-vindos e que não há hierarquia entre as línguas.

6 RELATO DE EXPERIÊNCIA INTERCOMPREENSIVA NAS AULAS DE FRANCÊS

Como professora de inglês e francês há 15 anos, sempre escutei os alunos de inglês relatarem que não estudavam francês porque era uma língua muito difícil e diferente do português. Em alguns momentos essas opiniões me deixavam pensativa pois na minha experiência pessoal eu tive muito mais facilidade de aprender francês do que inglês justamente porque eu achava o francês muito parecido com o português. Após escutar muitos relatos, eu entendi que eles consideravam o francês difícil porque o contato que tiveram com a língua foi de escuta. E sim, caros lusófonos, nem sempre a fonética da língua francesa soa como música aos nossos ouvidos. Decidi que iria mudar aquelas opiniões apresentando a língua francesa da forma adequada. Levando em consideração que o senso comum nos ensina que devemos começar sempre com as coisas mais fáceis, pois o que já sabemos deve nos servir como uma luz para iluminar o que não sabemos, levei para a sala de aula um texto em francês que era ideal: nível iniciante, estruturas próximas as do português e muitas palavras cognatas. Entreguei o texto e pedi que eles lessem. Antes de entregar, alguns disseram que iriam tentar, mas que já sabiam que não iriam entender nada. Fui fazendo conexões, indagando sobre cada informação até que eles disseram que aquele texto não poderia estar escrito em francês porque eles estavam entendendo tudo. Aqui, a Intercompreensão foi usada para desmitificar uma distância linguística imaginária, além de abrir uma porta de acesso ao plurilinguismo.

A partir dessa experiência, a Intercompreensão está sempre presente em minhas aulas, principalmente nas de francês onde a bagagem linguística de cada aluno é certamente um recurso de ajuda na aprendizagem. Quando os estudantes de francês como língua estrangeira são convidados a acionarem suas experiências e seu conhecimento de língua materna, no caso o português, ou de outras línguas no processo de leitura de textos, a probabilidade que estes usem a proximidade linguística entre essas línguas como elemento facilitador de aprendizagem é grande. No desenvolvimento da habilidade de leitura, o uso de estratégias da Intercompreensão vai muito além de facilitar o reconhecimento de palavras transparentes, elas incitam o leitor a fazer a passagem de uma língua para outra de uma forma quase que espontânea.

7 PRÁTICA DE ENSINO INTERCOMPREENSIVA: LEITURA DE TEXTO EM FRANCÊS

PLANO DE AULA:

Tema: A leitura Intercompreensiva

Objetivos:

– Desenvolver as competências plurilíngues e pluriculturais de jovens pré-universitários para a leitura em textos em língua românica (francês);

– Identificar estratégias de compreensão em língua materna que podem ser transferidas para a leitura em línguas estrangeiras (inferência, formulação/verificação de hipóteses, apoio no contexto);

– Saber apoiar-se em uma língua conhecida para ler em outra;

– Promover a estratégia de transferência de habilidades já adquiridas em língua materna (português).

– Promover as estratégias de transferência, aproximação e de contexto e forma para compreensão da leitura.

Duração: 50 minutos

Habilidade principal: Leitura

Metodologia: Intercompreensão (estratégias)

Usando seu repertório linguístico do português, leia o texto abaixo.

Déclaration universelle des droits de l’homme

Préambule

Considérant que la reconnaissance de la dignité inhérente à tous les membres de la famille humaine et de leurs droits égaux et inaliénables constitue le fondement de la liberté, de la justice et de la paix dans le monde.

Considérant que la méconnaissance et le mépris des droits de l’homme ont conduit à des actes de barbarie qui révoltent la conscience de l’humanité et que l’avènement d’un monde où les êtres humains seront libres de parler et de croire, libérés de la terreur et de la misère, a été proclamé comme la plus haute aspiration de l’homme.

Considérant qu’il est essentiel que les droits de l’homme soient protégés par un régime de droit pour que l’homme ne soit pas contraint, en suprême recours, à la révolte contre la tyrannie et l’oppression.

Considérant qu’il est essentiel d’encourager le développement de relations amicales entre nations.

Considérant que dans la Charte les peuples des Nations Unies ont proclamé à nouveau leur foi dans les droits fondamentaux de l’homme, dans la dignité et la valeur de la personne humaine, dans l’égalité des droits des hommes et des femmes, et qu’ils se sont déclarés résolus à favoriser le progrès social et à instaurer de meilleures conditions de vie dans une liberté plus grande.

Considérant que les États Membres se sont engagés à assurer, en coopération avec l’Organisation des Nations Unies, le respect universel et effectif des droits de l’homme et des libertés fondamentales.

Considérant qu’une conception commune de ces droits et libertés est de la plus haute importance pour remplir pleinement cet engagement.

L’Assemblée générale proclame la présente Déclaration universelle des droits de l’homme comme l’idéal commun à atteindre par tous les peuples et toutes les nations afin que tous les individus et tous les organes de la société, ayant cette Déclaration constamment à l’esprit, s’efforcent, par l’enseignement et l’éducation, de développer le respect de ces droits et libertés et d’en assurer, par des mesures progressives d’ordre national et international, la reconnaissance et l’application universelles et effectives, tant parmi les populations des États Membres eux-mêmes que parmi celles des territoires placés sous leur juridiction.

Article premier Tous les êtres humains naissent libres et égaux en dignité et en droits. Ils sont doués de raison et de conscience et doivent agir les uns envers les autres dans un esprit de fraternité.  

1- Sublinhe as palavras “parecidas” com o português, se você as encontrar.

2- O texto pareceu-lhe de fácil compreensão? Porque?

(    ) sim                (     ) não               (    ) mais ou menos

3- Especifique seu grau de compreensão:

(     ) compreendi quase tudo;

(     ) não percebi tudo, mas sei de que se fala;

(     ) compreendi certas passagens;

(     ) não compreendi nada;

4- O que o ajudou na compreensão do texto? (pode assinalar mais do que uma resposta)

(     ) o título e os subtítulos

(     ) a organização textual  (parágrafos, …)

(     ) as palavras transparentes ( a forma e o sentido das palavras são muito parecidos com o português)

(     ) a ordem das palavras e sua organização

(     ) o meu conhecimento no assunto

(     ) outro(s). Especifique: __________________________________

5- Escolha o parágrafo do preâmbulo que foi melhor entendido por você e traduza-o.

____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

6- Você acha que o artigo 1 (último parágrafo) da declaração universal dos direitos humanos é cumprido em todas as nações? Explique.

_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________


Fonte: http://www.un.org/fr/documents/udhr/
http://www.lem.seed.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=1255

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A consciência da função exercida pela língua em um mundo globalizado deve andar lado a lado com o compromisso do professor como um facilitador de aprendizagens múltiplas. Uma sala de aula de línguas é muito mais um espaço pedagógico multilíngue que um ambiente monolíngue imaginado e deveria discutir maneiras diferentes de sustentar o plurilinguismo, permitindo que os estudantes usem todos os recursos linguísticos dos quais dispõem. Dessa forma, experiências de aprendizagem, seja na condição de alunos ou professores, dão novas oportunidades de perceber, refletir e influenciar a maneira como entendemos uma língua e o processo de aprendizagem.

Dessa maneira, consideramos que a prática da abordagem da Intercompreensão permitirá contribuições para o ensino aprendizagem de línguas, em especial, as das mesmas famílias. Além de suscitar movimentos de reflexão sobre a incorporação da ideologia de superioridade de algumas línguas – não apenas estrangeiras – que ainda moldam nossos discursos e práticas para além das teorias. Ademais, faz-se necessário lembrar que o desenvolvimento das competências e habilidades, relacionadas ao uso da linguagem, está, intrinsecamente, relacionado à cultura, ao pensamento crítico, ao repertório cultural, à responsabilidade e à cidadania.


²“Les Approches plurielles des langues et des cultures (Éveil aux langues, Didactique intégrée, Intercompréhension entre les langues parentes, Approches interculturelles) reposent  sur des activités qui incluent plusieurs variétés linguistiques et culturelles. Elles développent de façon concrète la conception de la compétence plurilingue et pluriculturelle promue par le Cadre européen commun de référence pour les langues. Elles  offrent des outils permettant de concevoir et d’articuler des interventions didactiques favorables au développement et à l’enrichissement continu de cette compétence par les apprenants.” (tradução nossa)

REFERÊNCIAS

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¹Mestranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGEL/UFPI) pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Endereço eletrônico: angela.bastos@ufpi.edu.br