BREVE ENSAIO PARA A APLICAÇÃO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL COMO APOIO À EFETIVIDADE DO PROCESSO PENAL

BRIEF TEST FOR THE APPLICATION OF ARTIFICIAL INTELLIGENCE AS SUPPORT TO THE EFFECTIVENESS OF THE CRIMINAL PROCESS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7761569


Adrianne Sanches Soares da Silva1


Resumo: A inteligência artificial é uma realidade. Mais de setenta anos após um dos seus importantes marcos – o Simpósio de Hixon -, reconhece-se a sua importância para facilitar o dia a dia dos seres humanos, não mais em práticas meramente repetitivas, mas também em trabalhos que exigem capacidade cognitiva, sendo um importante aliado inclusive para o Poder Judiciário, onde já é aplicada no meio processual. Apesar dos muitos anos de existência, a evolução acontece a passos lentos, enquanto o comportamento humano torna inadiável a criação de ferramentas que garantam a efetividade do que está disposto nas leis e que é determinado pelo Poder Judiciário. Nesse sentido, o presente artigo tem o intuito de ensaiar o surgimento de pesquisas voltadas ao uso da inteligência artificial no processo penal, principalmente no que concerne ao cumprimento de medidas protetivas e de medidas cautelares diversas da prisão. 

Palavras-chave: Inteligência artificial, Poder Judiciário, processo penal.

Abstract: Artificial intelligence is a reality. More than seventy years after one of its important milestones – the Hixon Symposium -, its importance in facilitating the daily lives of human beings is recognized, not only in purely repetitive practices, but also in jobs that require cognitive ability, being an important ally even for the Judiciary, where it is already applied in the procedural environment. Despite its many years of existence, evolution takes place at a slow pace, while human behavior makes it imperative to create tools that guarantee the effectiveness of what is provided for in the laws and which is determined by the Judiciary. In this sense, the present article has the intention to show the appearance of researches directed to the use of artificial intelligence to the criminal process, mainly with regard to the fulfillment of protective measures and precautionary measures other than prison. 

Keywords: Artificial intelligence, Judiciary, criminal process.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS 

O presente artigo pretende abordar a Inteligência Artificial como ferramenta de apoio à efetividade da legislação processual penal, visto que é uma área do conhecimento que não deve ser isolada, dada a sua carga interdisciplinar.

Com a análise, buscar-se-á apresentar ao leitor os pontos favoráveis à aplicação de todo o aparato tecnológico utilizado para reproduzir capacidades inerentes ao ser humano, que não pretende substituí-lo, mas permitir que seu tempo seja investido em atividades relevantes.

Outrossim, reconhecendo que o ser humano não é onipresente, objetiva-se apresentar ferramentas que colaborem para suprir necessidades humanas, como a atuação efetiva na aplicação de medidas protetivas e cautelares com redução de gastos públicos.

Para tanto, serão apresentados dados extraídos de pesquisas bibliográficas – emprega-se ao presente artigo o método indutivo, “operando com coleta de elementos que são reunidos e concatenados para caracterizar o tema pesquisado”2 – que proporciona a análise do aparato estatal para o desempenho de funções fiscalizatórias, estimulando o debate sobre o tema e possibilitando que novas e aprofundadas pesquisas surjam.

1. BREVE HISTÓRICO ACERCA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL 

Segundo Hartmann e Silva (2019, p. 20), a Inteligência Artificial “é uma subárea da ciência da computação e busca fazer simulações de processos específicos da inteligência humana por intermédio de recursos computacionais”.

Logo, a inteligência artificial é um tipo de inteligência produzida pelo homem, dotando máquinas à habilidades que simulam a capacidade humana de realizar escolhas.

Estruturada em conhecimentos de estatística e probabilidade, dentre outros, permite a criação de modelagens computacionais do comportamento humano, fazendo com que computadores consigam armazenar características de habilidades do homem.

Está ligada a uma atividade multidisciplinar, estudada a partir de uma ótica da tecnologia da informação com aplicação em atividades que envolvam repetição, padrões e volumes, que não precisam ser supervisionadas, apesar do emprego de elementos éticos e responsáveis.

Na reprodução artificial há a aplicação de técnicas capazes de aplicar habilidades e conhecimentos para solucionar problemas, habilidades estas que envolvem funções cognitivas como a de um ser humano.

Apesar da interdisciplinaridade que envolve os resultados da área, a inteligência artificial se distingue de ciências como a computação, pois engloba trabalhos mais profundos, voltados para a produção de comportamento inteligente.

Nesse sentido, Teixeira (2019, p. 1) defende que “A mente humana funciona como um computador, e por isso o estudo de programas computacionais é a chave para se compreender alguma coisa acerca de nossas atividades mentais”.

Ou seja, o funcionamento da mente humana, guardada as respectivas peculiaridades, não está tão distante da forma como funciona um computador, o que permite o aprimoramento de pesquisas na área da inteligência artificial. Sendo possível reproduzir o funcionamento da mente humana através do computador, torna-se possível que o computador atue como ser humano.

A Inteligência Artificial (IA) começou a ser desenvolvida como disciplina científica na primeira metade do século XX, a partir da Segunda Guerra Mundial, com o intuito de decodificar mensagens e em aproveitamento aos campos de concentração, que abriram a possibilidade de experimentos em cérebro humanos. 

Um importante marco para a IA foi o Simpósio de Hixon, ocorrido em 1948, na Califórnia, com a reunião de pesquisadores da área de sistemas cognitivos, quando foi anunciado que a construção de um computador eletrônico era realidade, criando uma verdadeira analogia entre o cérebro de homens e as máquinas.

Já na década de 50, foi desenvolvido um programa matemático denominado “O Teórico da Lógica”, pelos cientistas americanos Bertrand Russell e Alfred North Whitehead, e apresentada uma simulação da forma como agiriam os seres humanos diante dos problemas apresentados.

Obras voltadas a essa ciência defendem que a Inteligência Artificial nasceu, oficialmente, na conferência de 1956, realizada em Dartmouth College, Estados Unidos da América, quando Jonh McCarthyr, Oliver Selfridge, Marvin Misky, Trenchard More e Ray Solomonoff expressaram a intenção de realizar um estudo, durante dois meses, sobre o tópico inteligência artificial.

A árdua tarefa de reproduzir em máquinas os comportamentos inteligentes do ser humano fizeram com que as pesquisas perdessem força, até que, na final da década de 60, os pesquisadores passassem a buscar por resultados concretos e os encontrassem em programas de computador com imitação de psicanalistas e no sistema “SHRDLU”, inventado no Massachusetts Institute of Technology (MIT).

Os estudos também ganharam força com a invenção de Alan Turing e a máquina criada por ele para resolver problemas matemáticos, a qual ele entendia – como qualquer outra máquina – deveria ser programada para ter capacidade autônoma de aprendizado.

Após longa trajetória, a evolução da internet ocorrida após os anos 2000 fez com que a área ganhasse impulso definitivo, sendo aplicada a diversas áreas do conhecimento em que há o emprego de atividades repetitivas que, ainda que demandem o emprego da capacidade cognitiva humana, permitem a reprodução de pensamentos e trabalho.

Hartmann e Silva (2019, p. 52) abordam que as soluções tecnológicas projetadas para a ciência jurídica sempre foram imaginadas com “absoluta dependência da atividade imediata e supervisionada dos juristas”, contudo a realidade brasileira demonstra indubitavelmente a insuficiência das soluções, o que está intimamente ligada com o aumento do número de litígios judicializados e o baixo quantitativo de capital humano para o desenvolvimento do trabalho.

Outro aspecto que é ventilado pelos autores supracitados é a associação da Inteligência Artificial ao risco de que a humanidade pereça, seja pela quebra de mercado em favor dos seres humanos, seja por abrir espaço para que decisões sejam tomadas com base em entendimentos de pessoas que muitas vezes não são da área.

Sabe-se que as pessoas contrárias ao desenvolvimento da IA existem desde o início, a exemplo de Descartes, filósofo racionalista do século XVII, considerado um dos criadores da filosofia moderna, que argumentava que autômatos jamais se igualaram aos seres humanos, pois somente estes são dotados de habilidades mentais.

Da mesma forma, La Mettrie, filósofo francês, era contra a IA, justificando que os autómatos não desenvolveram as faculdades de pensar e de falar por terem um grau de complexidade inferior ao do homem. Contudo, Teixeira (2019, p. 6) afirma que a literatura do filósofo em comento foi escrita com tanta paixão que faz crer que ele seria defensor dessa ciência.

Ainda que ligada ao universo tecnológico, o emprego da inteligência artificial no mundo humano faz com que aspectos éticos e valorativos sejam imprescindíveis, de forma que o instrumento utilizado para que a nova área da ciência seja de fato colocada em prática requer a aplicação das ciências sociais e o estabelecimento de diretrizes firmadas na ética e na moral, para que efetivamente traga benefícios para a humanidade.

Contudo, cada vez mais é exigido que o ser humano esteja preparado para desenvolver múltiplas habilidades ao mesmo tempo, o que não consegue ser reproduzido pela inteligência artificial e acaba por limitá-la a atividades repetitivas, com alto grau de atenção e memória, mas com limitações de aprendizagem e exploração.

Alerta-se que a inteligência artificial está sendo empregada e pode ser aperfeiçoada para salvar vidas, mediante o uso de mecanismos atentos e ágeis. Criar uma máquina pensante desafia o homem e sua capacidade racional, até então tida como única no universo.

Inclusive, a IA revolucionou o cenário do Poder Judiciário, com trabalho remoto, disponibilização de jurisprudências online, processo digital, citação e intimação eletrônicas, audiências por videoconferência – ferramenta importantíssima no cenário pandêmico ocasionado pelo Coronavírus, que assola o Brasil desde fevereiro/2020.

Os avanços quebram a burocracia empregada pelos agentes processuais e permitem que o Poder Judiciário esteja mais próximo da sociedade, possibilitando ainda que o magistrado adapte o trâmite processual às peculiaridades do caso concreto, o que atende não só o artigo 139, do Código de Processo Civil, mas também o princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.

Contudo, conforme assevera Ferrari (2020), é importante perceber a abertura das Cortes – inclusive a brasileira – para o uso de tecnologias, promovendo o aumento da eficiência da prestação jurisdicional e resolvendo importantes controvérsias no cenário jurídico. 

2. A PRISÃO COMO EXCEÇÃO 

O direito penal é ciência jurídico-penal através da qual se interpretam as leis para projetar o exercício do poder judiciário do Estado e do governo em casos concretos. O ramo em comento “propõe aos juízes um sistema orientador de decisões que (teoricamente) deveria conter e reduzir o poder punitivo, para impulsionar o progresso do Estado constitucional de direito”, segundo Mollo (2016, p. 15).

Ainda que as decisões partem do Poder Judiciário, o poder punitivo não é exercido pelos magistrados, mas por quem ocupa as agências executivas ou agência policial, que abarcam a polícia de segurança, militar, judiciária-investigativa, dentre outras, observando sempre as limitações impostas pelo poder judicial e as agências políticas.

A escola clássica de direito penal, nascida entre o fim do século XVIII e a metade do século XIX, em reação ao totalitarismo do Estado Absolutista e ligada aos movimentos revolucionários e libertário do Iluminismo, que historicamente foi uma era em que se praticou amplamente a defesa da razão.

Valente (2018, p. 4) esclarece que essa escola pregava o livre arbítrio, de forma que cada homem poderia e deveria escolher o caminho que desejava seguir e “caso sua escolha recaísse sobre o caminho do mal, deveria o agente ser submetido ao efeito estigmatizante da pena como forma de vingança e de castigo”.

Assim, o delinquente não era considerado como um ser diferente dos demais, a prática de comportamentos ilícitos surgia do livre arbítrio e não de causas patológicas e, por conseguinte, o direito penal e a pena eram considerados como um instrumento legal para defender a sociedade do crime, não servindo como meio para modificar o sujeito.

Já as escolas liberais clássicas, cujo pensamento é exposto por Mollo (2016), colocavam o direito penal como uma instância crítica frente às práticas criminalizadoras, projetando uma política inspirada em princípios voltados à humanidade, legalidade, utilidade, representando garantias contra o poder punitivo do Estado.

Nessas, a pena se justificaria necessária para aplacar a vingança pública e convidar o transgressor à obediência, dado ao direito penal a finalidade de tutela jurídica voltada ao restabelecimento da ordem pública.

Em 1945, Filippo Gramatica, precursor da nova defesa social, defendeu em Gênova, Itália, a abolição do Direito Penal e do sistema penitenciário praticado e sustentou que casos extremos exigiam a incidência de penas mais rigorosas para o efetivo combate da delinquência, devendo o ciência penal se destinar à defesa social de forma eficiente e integral, combatendo a criminalidade sem deixar de levar em consideração os direitos e garantias individuais.

Rosa e Junior (2018, p. 148), analisam que a violência é resultante de padrões de comportamento que compõem a cultura e esse reconhecimento faz com que se caminhe para a desconstrução dos sistemas de enfrentamento da violência que, na verdade, buscam embasamento em promessas utópicas de segurança, mas que não alcançam uma forma de superá-la.

O direito penal não defende todos os bens essenciais nos quais estão interessados os cidadãos. Ainda assim, cada vez mais se verifica que o processo de civilização não vem se realizando com o aumento dos tipos penais ou de sanções que fazem com o Direito Penal esteja longe de ser a ultima ratio, mas poderia ser concretizado com a implementação de medidas que efetivamente tutelar bens jurídicos no sentido de protegê-los.

Nesse sentido, salutar mencionar que, quando são aplicados castigos às ofensas dos bens jurídicos tutelados, verifica-se que a intensidade é desigual ou ao menos sentida dessa forma pela vítima, e de modo parcial, já que muitas vezes aplicada em conformidade com status social e/ou econômico.

Embora não haja convivência humana sem lei, dado o reconhecimento de que a vida em coletividade abre margem para a ocorrência de diversos conflitos, deve ser advertido que a lei de convivência social é ético-social e jurídica, não com intuito de criminalizar ações, mas com foco na não ocorrência de litígios que precisem ser reparados pelo direito penal.

Nem sempre o que está no plano do “deve ser” se realiza em “ser”, o que é comprovado diariamente, quando verificamos que a legislação criada com o intuito de ressocialização não alcança seu fim, o que leva à conclusão de que a existência de uma pena – seja no campo “abstrato”, antes de ser aplicada a um caso concreto, ou após sua decretação – não cumpre seus pressupostos, não sendo programática, expressiva, ressocializadora, levando a justiça a um patamar de ente abstrato.

Não são raras as vezes em que nos deparamos com notícias veiculadas nos mais diversos meios de comunicações que demonstram o fracasso da prisão, que passou a ser considerada uma escola que profissionaliza a delinquência, estimula a reincidência e insere pessoas menos favorecidas socialmente no mercado de “trabalho” criminoso.

Nascimento, Januário e Sposito (2017) expõem que, a atual dinâmica de encarceramento apresenta fortes repercussões no campo social, fazendo surgir o que chamam de “residentes do cárcere”, pessoas que estão longe de alcançar seus objetivos sociojurídicos e acabam reincidentes em práticas delituosas.

Em crítica ao sistema penal, Mollo (2016) ventila que o conjunto define e isola a delinquência em uma única forma de ilegalidade, deixando de querer alcançar o que ele denomina ilegalismos funcionais ao poder de castigar, ou, ilegalismos lícitos, remetendo ao pensamento de Foucault de que a forma mais intensa da ilegalidade acaba não sendo o objeto do sistema penal.

O discurso jurídico-penal constrói a ideia do que deve ser considerado ilícito e como os transgressores da lei devem ser punidos, contudo há uma estrita legalidade fundada no modelo garantista que afasta da qualificação dos crimes carga moral, ética, de valoração pessoal, de forma que o ato que for analisado e julgado deve ser submetido à reserva absoluta da lei.

Indiscutivelmente algumas situações acarretam sentimento de impunidade às vítimas diretas e indiretas de ilícitos, principalmente quando aplicadas as garantias penais e processuais de um sistema com proibições de privar a liberdade ou de, alguma forma, sancionar investigados ou expor alguém a uma investigação.

Vivencia-se, portanto, na linha tênue do transgressor que possui garantias penais e a quem se dirige o dever-direito de ser ressocializado, do Estado que precisar dar uma resposta efetiva e das vítimas que merecem ter seus danos reparados e sentir que, ao seu ofensor, foi dada uma justa punição.

Sob esse aspecto, passa-se a analisar a prisão provisória, decretada pelo juiz no decorrer do inquérito policial ou do processo criminal, de natureza cautelar, uma vez que seu fundamento de existência é a garantia do perfeito caminhar processual e não a aplicação de punição, que só pode ser aplicada após o devido processo penal, com sentença condenatória.

Trata-se de direito previsto constitucionalmente, conforme artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, cuja aplicação já passou pela análise do Supremo Tribunal Federal diversas vezes, tendo por último entendimento que a execução da pena só é possível após o trânsito em julgado da sentença condenatória, conforme Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 54, julgada em 19 de dezembro de 2018.

Indiscutível é que o Direito Brasileiro caminha, a passos lentos, pela busca de um avanço na aplicação das leis penais, voltando-se para uma ótica humanística de que os direitos dos presos sejam cumpridos, e que o cárcere torne-se uma exceção, lutando pela ressocialização do delinquente, mas esquecendo de buscar medidas efetivas de proteção e reparação de danos em favor das vítimas.

Tanto que, em 04 de maio de 2011, foi sancionada a Lei n° 12.403, que alterou o Código de Processo Penal Brasileiro em relação à prisão processual, fiança, liberdade provisória e demais medidas cautelares. Sobre essas, a alteração promovida no artigo 319, CPP, estabeleceu como medidas cautelares diversas da prisão, dentre outras, a proibição de acesso ou frequência a determinados lugares (inciso II), proibição de manutenção de contato com determinadas pessoas (inciso III), proibição de ausência da Comarca (inciso IV), monitoração eletrônica (inciso IX). 

A necessidade de reformular o referido código era nítida e majoritária, entretanto ao analisar os dispositivos da nova lei, antes mesmo que ela produzisse efeitos, verificou-se a necessidade de verificar se essa busca pelo garantismo penal não serviria para criar uma visão de ineficiência e ineficácia da norma.

Os defensores da alteração legislativa comemoraram argumentando que o novo texto viria reparar as ilegalidades do instituto das prisões provisórias e a situação prisional do país, o rigor e a forma “exagerada” de tratar/punir crimes banais, dentre outros.

Outros, no entanto, entenderam que, com a reforma, a realização da justiça estaria prejudicada, bem como haveria um aumento da criminalidade, decorrente do “maternalismo” do sistema.

Em pesquisa apresentada por Mollo (2016), com base no InfoPen – Ministério da Justiça, os presos provisórios custodiados no sistema penitenciário brasileiro sempre sofreu aumentos: em 2008 eram 138.939 pessoas; em 2010, 164.683 pessoas; em 2012, 195.036. Nos mesmos anos, as vagas do sistema carcerário já não comportavam o contingente: em 2008, existiam 296.428 vagas e 451.219 encarcerados; em 2012, 310.687 vagas e 548.003 encarcerados.

Na mesma análise, o autor apresentou outros dados extraídos da Infopen – Ministério da Justiça, que indicava que 45,4% da população carcerária de 2012 tinha por grau de instrução ensino fundamental incompleto e 12,2%, ensino fundamental completo. 

Com base nos primeiros dados – referente ao contingente encarcerado – verifica-se que o objetivo da lei é indiscutivelmente válido. Contudo, com base nos segundos dados, verifica-se que a alteração legislativa acaba por fomentar uma mudança paliativa, mas incapaz de melhorar o cenário pátrio no que tange a prática de ilícitos, ante a falta de educação dos encarcerados, que são mantidos à margem da sociedade.

Como bem assevera Nascimento, Januário e Sposito (2017), a violência e a criminalidade não são problemas recentes e sempre estiveram a desafiar a compreensão humana. Entende-se que a principal preocupação está ligada ao motivo pelo qual não há redução dos casos e o célere aperfeiçoamento do crime.

Outrossim, deve-se reconhecer que o Estado não possui estrutura para que o espírito da lei seja aplicado na prática, seja por falta de gente para monitorar ou pelo sentimento de impunidade que os dispositivos passam tanto para a sociedade, que se sente cada dia mais a mercê dos criminosos, como também para os próprios delinquentes, que se veem diante de uma certa liberdade para cometer crimes e não serem devidamente punidos.

Sob essa ótica, ressalta-se que a segurança pública é um direito social garantido no artigo 6º, da CF, uma das atividades típicas do Estado conforme o artigo 2º, da Lei 6.185/1974, e direito e responsabilidade de todos, buscando a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio, nos termos do artigo 144, CF.

Da linha defendida por Nascimento, Januário e Sposito (2017, p. 33) se extrai que “entre os direitos sociais, a educação e saúde apresentam avanços mais expressivos na gestão pública, ao passo que para a segurança pública os déficits são mais acentuados, indicando que há um longo caminho a percorrer”.

A complexidade de fatores envolvidos na execução das políticas públicas voltadas à segurança pública cooperam para o cenário negativo nas políticas de segurança, sejam elas locais ou nacionais, frisando-se que cabe à União o progresso das reformas necessárias ao financiamento dessa área governamental.

Dados extraídos do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2014 e exposto na obra de Nascimento, Januário e Sposito (2017, p. 41) mostram que, em 2013, quando as alterações legislativas promovidas pela Lei 12.403/11 já estavam em vigor há mais de um ano, o Brasil gastou 1, 26% do Produto Interno Bruto em segurança pública.

O gasto foi aproximado ao realizado pela União Europeia em 2012, quando os vinte e sete países que a compõem investiram, juntos, 1,30% do PIB. Contudo, a taxa de homicídios desses países era bem menor que a do Brasil.

Sabe-se que boa parte dos gastos voltados à segurança pública é empregada no pagamento de recursos humanos, dada a intensidade de mão de obra para a prevenção, dissuasão e controle do crime e o reconhecimento de que a falta de policiais impacta na qualidade dos serviços prestados.

Mesmo com todos os investimentos, sabe-se que o quantitativo de policiais não é suficiente para atender a necessidade da população, o que acaba por colocar em xeque as medidas cautelares diversas da prisão, cujas aplicações não são fiscalizadas.

A superficialidade e a ineficácia das medidas cautelares poderiam ser supridas com o investimento em projetos de Inteligência Artificial voltados à fiscalização de investigados que respondem processo em liberdade mediante a aplicação das medidas expressas no artigo 319, CPP, principalmente voltadas à proteção da vítima e testemunhas.

3. A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL COMO APOIO DA EFETIVIDADE DA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL PENAL

Diversos países já estudam, analisam e aplicam a inteligência artificial em trabalhos processuais, sendo a aplicação da inteligência artificial no Poder Judiciário uma realidade.

O Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 332, de 21 de agosto de 2020, a qual dispõe sobre a ética, a transparência e a governança na produção e no uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário, correlacionada com a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.853/2019).

Nos termos da supracitada resolução, “Art. 2º. A Inteligência Artificial, no âmbito do Poder Judiciário, visa promover o bem-estar dos jurisdicionados e a prestação equitativa da jurisdição, bem como descobrir métodos e práticas que possibilitem a consecução desses objetivos”.

No entanto esse uso ainda encontra barreiras no cenário jurídico, uma vez que esta área da ciência tem fortes traços tradicionais, o que, somado a ausência de conhecimento aprofundado sobre o que vem a ser a “inteligência artificial” e como os robôs podem ajudar na solução de litígios, acaba por gerar grande receio quanto ao futuro.

Outrossim, muito do que se lê acerca da aplicação dessa área do conhecimento ao Direito e ao Poder Judiciário é, em grande maioria, voltado às atividades processuais, de forma que a falta de implantação de grupos de estudos mais aprofundados deixa de aplicar a IA em casos que demandam especial atenção do Poder Judiciário e do Estado, como no cumprimento da medida cautelar diversa da prisão que determina a monitoração eletrônica e em casos de violência doméstica nos quais foi deferida medida protetiva de afastamento.

Como já dito no capítulo 2, o poder punitivo não é exercido pelo Poder Judiciário, mas por agentes da polícia que, por sua vez, são vinculados ao Estado e dispõe que limitado orçamento para o desempenho de suas atividades frente às necessidades que diariamente lhe são impostas.

No caso de ocorrência de violência doméstica, a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, disciplina que, constata a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o magistrado poderá proibir o agressor de se aproximar da vítima, familiares e testemunhas, dentre outras proibições que buscam manter distância e a prática de novos crimes, principalmente enquanto os ânimos estão aflorados.

Em 2019, os Tribunais de Justiça do Brasil aplicaram 403.646 (quatrocentos e três mil, seiscentos e quarenta e seis) medidas protetivas. Só no Amazonas foram 6.210 (seis mil, duzentas e dez), conforme dados do painel de Monitoramento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, mantido pelo Conselho Nacional de Justiça3

Ocorre que o cumprimento da medida não é fiscalizado, nem teria como ser, já que o Poder Público não dispõe de ferramentas capazes de fiscalizar a demanda, ficando a vítima à mercê de que o agressor tenha receio em descumprir uma determinação judicial.

Não é para menos que muitas mulheres são assassinadas no período de vigência da proibição de aproximação, gerando sentimento de impunidade aos agressores e aos que se compadecem das vítimas de violência doméstica, o que é inadmissível já que o Brasil do século XXI é tecnológico, mas não possui uma tecnologia que impeça que mulheres paguem com a própria vida a ineficácia do Poder Público em promover educação, conscientização e segurança. 

Da mesma forma, para a efetivação da medida cautelar diversa da prisão, faz-se uso de tornozeleira eletrônica, aparelho equipado com sensor GPS e modem para que a localização do usuário seja determinada via satélite e transmitida por sinal de celular para uma central de monitoramento, que por sua vez é acompanhada por servidores designados para tal função, sendo previsível a ocorrência de falhas, dado o número de usuários do equipamento e o quantitativo humano para desempenhar o trabalho fiscalizatório.

A importância da geração de empregos é de conhecimento público e notório, no entanto, a máquina judiciária, cuja maior fatia do orçamento é mantida com dinheiro público, e seus órgãos de apoio não vêm suportando os custos necessários para a manutenção mínima dos serviços, e o que vem sendo ofertado não atende às necessidades dos servidores e muito menos dos usuários.

Apesar dos aparatos tecnológicos ainda não estarem sendo aplicados como as pesquisas mostram que poderão ser, já é possível perceber a redução dos custos proporcionados com o uso da informática nos tribunais, principalmente quando comparados aos custos com o capital humano, o que leva a crer que o uso da Inteligência Artificial para monitoramento voltado à proteção de vítimas garantiria maior atuação do Estado, redução do descumprimento de medidas protetivas e cautelares, redução de custos financeiros com aumento da produtividade e efetividade legislativa e prática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inicialmente o presente estudo buscou pontuar o surgimento da Inteligência Artificial e seu avanço ao longo dos anos. Apesar de resultante de esforços que já ultrapassam meio século de existência, esta área do conhecimento ainda representa uma incógnita para a sociedade que, ao mesmo tempo em que é movida pelas facilidades promovidas pela tecnologia, parece não aceitar com facilidade o uso de robôs em atividades exploradas pela cognição humana.

O uso de recursos computacionais que imitam o  funcionamento da mente humana, permitindo o uso de máquinas para realização de trabalhos de predominância humana, assusta principalmente pela ideia de transformação do mercado de trabalho, com emprego de concorrência desleal.

No entanto, desde o surgimento dos primeiros trabalhos com uso de computadores, a Inteligência Artificial foi aplicada a diversas áreas do conhecimento nas quais eram realizadas atividades repetitivas, e as soluções tecnológicas apresentadas trouxeram diversas facilidades aos seres humanos, inclusive para a ciência jurídica, que hoje conta com aparato tecnológico que modificou os trâmites processuais, trazendo mais celeridade e segurança.

Contudo, ainda há muito a ser trabalhado e desenvolvido, principalmente quando se observa que a maior parte das análises que envolvem a inteligência artificial e a ciência jurídica está ligada a seara processual, mas há outro empecilho no mundo jurídico: a efetiva aplicação da lei.

Embora o Poder Judiciário não seja composto pela Segurança Pública – vinculada diretamente ao Poder Executivo -, depende desta para aplicação e cumprimento dos textos legais e decisões judiciais, no entanto, os dois não possuem aparato suficiente para atender a todas as demandas da sociedade.

Nesse aspecto, verificou-se que a lei de convivência social é ético-social e jurídica, e, apesar de repreender, existe como meio de coação para que não ocorram litígios, intuito este que é difícil de ser alcançado, já que a vida em sociedade abre margem para litígios, até mesmo pela desigualdade social.

Inclusive, a sociedade sempre vivenciou a prática de violência e criminalidade, temas que sempre desafiaram o entendimento humano que evoluiu para a incidência de uma ótica mais humanista nas relações e nos textos legais, mas que acabou por criar métodos positivos ao agressor e negativos às vítimas, o que muitas vezes permite que a sociedade enxergue o ordenamento jurídico como injusto e sem efetividade.

Ocorre que, para que a efetividade desejada fosse materializada, seria necessário elevado investimento de recursos humanos, o que o Estado não pode proporcionar e que, mesmo aparelhado, não supriria o gargalo ocasionado pela impossibilidade do homem se fazer presente em todos os lugares e situações.

Para a exposição das ideias, utilizou-se as medidas protetivas, aplicadas aos fatos que envolvem violência doméstica, e as medidas cautelares diversas da prisão, por ambas as hipóteses apresentarem restrições de liberdade ao transgressores da lei sem ferir a excepcionalidade das prisões, mas deixarem a desejar no controle de seu cumprimento, por ausência de ferramentas e pelo alto custo que as medidas fiscalizatórias impõem.

Com tudo o que foi exposto, acredita-se que o uso da Inteligência Artificial para monitoramento voltado à proteção de vítimas garantiria maior atuação do Estado, com redução de custos e aumento da eficiência e eficácia, pois permitiria que o dificultoso trabalho de controle fosse realizado por sistemas computacionais.

A proveitosa pesquisa realizada para o presente artigo revelou-se importante para apresentar breve histórico acerca da Inteligência Artificial e promover debate crítico voltado à delinquência e aplicação da legislação processual, no entanto também revelou que há muito a ser estudado e aperfeiçoado para que os resultados esperados sejam criados e aplicados na prática, principalmente pela dificuldade de convergir a ciência da computação, ciência jurídica e necessidades humanas. 

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1Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali; Especialista em Direito Registral Imobiliário com Ênfase em Direito Notarial pela Faculdade Verbo Educacional; Especialista em Direito Civil e Processo Civil pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas – CIESA; Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas – CIESA; Graduada em Administração pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Endereço eletrônico: adriannesanches@hotmail.com.