REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7607995
Daniela Gomes Ribeiro Resende
Maria Eurípedes de Souza
RESUMO: Neste artigo discute-se o conto AVARMAS de Miguel Jorge, texto literário que o escritor utiliza de uma diversidade de recursos discursivo, estilísticos, signos e elementos extralinguísticos da música para através da arte literária registrar momentos históricos universais vivido pela sociedade. Com maestria na elaboração textual com estrutura da pós-modernidade segundo a ensaísta Maria Luiza Carvalho (2000). Miguel Jorge através da personagem Eugênia, traz à tona a dor, a angústia, o sofrimento de inúmeras famílias que tiveram seus familiares presos, torturados e mortos nos regimes ditatoriais na história da humanidade… Eugênia é uma mãe, já com sinais de insanidade que anda desorientada pelas ruas batendo de porta em porta e provavelmente nos órgãos do Estado a procura do corpo do filho: Marco.A fundamentação teórica para a análise BARROS,1994. CARVALHO, 2000. JORGE, 1980 MENDONÇA, 2011.OLIVAL,1998. PAGANINI, 2008 SCHWARCZ, 2015. TELES, 1980. O intuito é mostrar nas narrativas, um jogo de palavras que estruturam a relação interdiscursiva entre História e Ficção atemporal e em qualquer espaço governado por regime ditatorial.
Palavras Chaves; Avarmas, Miguel Jorge, Ficção. História. Música
1- INTRODUÇÃO
A finalidade deste artigo é analisar o conto Avarmas, ficção narrada pelas linhas da história em tempo, espaço e personagens metaforizados. As metáforas estão infiltradas na constituição/construção do texto com intenção de performatizar através dos signos explorados com sutileza e perícia artística. Cabe ao leitor através “da linguagem literária … aventurar-se, a mergulhar nas pistas e lacunas poéticas propositais de Miguel Jorge, para suscitar a busca de indícios históricos no não dito.” (PEGANINI, 2008 p.14.) Em nenhum momento palavras como ditadura, regime militar aparecem no conto, mas são deixadas pistas históricas, ainda que atemporais que apontam como uma das possibilidades: ditadura militar no Brasil, anos 60 a 80; período governado pela Doutrina da Segurança Nacional, que disseminavam práticas de tortura, assassinatos e desaparecimentos daqueles considerados subversivos e oponentes ao regime vigente, como forma de repressão e controle social para garantir a manutenção dos militares no poder.
a prática da tortura política não foi fruto das ações incidentais de personalidades desequilibradas, e nessa constatação residem o escândalo da dor… atuava de maneira metódica e coordenada variando em termas de intensidade, âmbito e abrangência geográfica” (SCHWARCZ, 2015 p.461.)
O desaparecimento de pessoas levaram famílias, sobretudo as mães a buscas incansáveis pelos/as filho/as como relata Paulo Evaristo Arns no prefácio do livro Brasil Nunca Mais (1985):
…A senhora mais idosa me fez a pergunta que já vinha repetindo há meses: “O senhor tem alguma notícia do paradeiro de meu filho?” Logo após o sequestro, ela vinha todas as semanas. Depois reaparecia de mês em mês. Sua figura se parecia sempre mais com a de todas as mães de desaparecidos. Durante mais de cinco anos, acompanhei a busca de seu filho… O corpo da mãe parecia diminuir, de visita em visita. Um dia também ela desapareceu. Mas seu olhar suplicante de mãe jamais se apagará de minha retina.
A cada busca frustrada pelo encontro dos filhos desaparecidos, a tortura abarca as mães, exaurindolhes as forças e consumindo-lhes gradativamente a vida “Como uma fuga ou sombra martirizada. Sempre o caminhar, o meu caminhar, deselegante, desequilibrada… Sou Eugênia, mãe de Marco e estou em soluços… sou uma sombra e uns passos, ou um trapo.” (JORGE,1980. p.139). Eugênia, movida pela força e dor, insurge contra a ordem vigente: O silêncio. E usa da única coisa que lhe resta: a voz e reclama pelo corpo do filho.
As imagens criadas pelo monólogo da personagem Eugênia à procura alucinante pelo filho Marco desaparecido simboliza fatos ocorridos a qualquer tempo, em qualquer lugar e em qualquer regime ditatorial.. Ao tecer uma ficção nas entranhas da história da humanidade, Miguel Jorge contesta e denuncia, através da literatura pós-moderna, os crimes cometidos por esses regimes como ocorreu no Brasil. Neste sentido leva-se a conclusões, não escritas, que a saga de Eugenia à procura de Marco ocorreu durante a Ditadura Militar¹. Com linguagem fragmentada e subjetiva
a literatura de Miguel Jorge pode ser considerada pós-moderna por afastar-se das linhas de representação do mundo e engendrar-se numa linha de interrogação de mundo. A lógica comum é substituída pelo fragmento, pelo sem-sentido e pelo inverossímil arrastando o leitor para um mundo de pesadelo, onírico, em que predomina o jogo de uma visão espetacular labiríntica… denuncia a precariedade das relações humanas… a desilusão das promessas não cumpridas… A condição de clausura e ações repetitivas. (CARVALHO,2000 p.63).
A escritura poética pós-moderna no conto AVARMAS intertextualiza a história de violência, autoritarismo e perseguição policial aos opositores do regime, marcas de qualquer ditadura. Mas, além disso, o conto é um grito em defesa de todos oprimidos, silenciados e esquecidos.
Simbolizados nos personagens Eugênia e Marco o Conto traz à memória todos aqueles que lutam e morreram pelo ideal ou sonhos de um mundo de um país de uma lugar humanizado para se viver com dignidade sem opressão nefasta sobre o oprimido.
Para análise e compreensão deste conto foram usados na pesquisa os livros: Brasil Nunca Mais (1985) e Brasil: uma Biografia (2015), com textos históricos que retratam a Ditadura Militar no Brasil. O livro Tradição e modernidade na prosa de Miguel Jorge (2000), e as dissertações de mestrados “Dialogismo, polifonia e enunciação (1994); Ficção e história em Pão cozido debaixo de brasa, Miguel Jorge (2011). O espaço da crítica: panorama atual (1998). Literatura e História. Gênero discursivo e intertextualidade, Miguel Jorge (2008).
2- AVARMAS: características da pós-modernidade de Miguel Jorge como elementos de semiose
O livro de contos Avarmas de Miguel Jorge, prefaciado por Gilberto Mendonça Teles, constitui-se por “técnicas da linguagem artísticas e da linguagem poética, se não falam mais alto, pelo menos estão no mesmo plano da linguagem da ficção” (TELES, 1980 p.8). A linguagem, nas narrativas dos contos, fragmentas, complexas, mas bem construídas “rompe com o sentido mimético da verossimilhança e instaura, sobre a lógica comum que preside a organização gramatical do texto, uma outra lógica que só se deixa explicar dentro de outras “leis”: as da ficção poética.” (TELES,1980, p. 12).Esta construção semiótica cujo signo, arbitrário por natureza, é usado como significante puro, e rompe com a verossimilhança porque não tem referência: torna-se atividade ficcional significando ficção poética. Ao distanciar ou romper com as normas de representação da linguagem tradicional e busca outras linguagens “ajustando às novas dimensões significativas exigidas pelas concepções descontínuas de espaço-tempo do moderno e atribulado mundo em que vivemos; mundo novo, nova linguagem.” (CARVALHO,2000, p. 62).
Miguel Jorge, estudioso e pesquisador apropria e reproporia da linguagem cria, recria, constrói e reconstrói o próprio estilo literário consagrando-se pós-moderno à medida na ficção, constrói e performatiza via organização da linguagem e dos signos uma realidade que leva o leitor a identificar, tempo, espaços e personagens da pós-modernidade. “O pós-modernismo, norteado pelas ideias originais divergente do modernista, modifica o tratamento do sujeito, o que é refletido nos personagens e no narrador…” (MENDONÇA, 2011, p.17). Miguel Jorge com olhar crítico observa a complexidade das relações humanas nos diferentes tempos e espaços sociais. Através dos personagens constrói narrativas descontínuas, próximas à fala, utilizando, por vezes, um discurso caótico, na intenção de performatizar um espaço-tempo. E, pela fala não dita, pela fuga para outros sistemas semióticos, pela transfiguração da linguagem, dá voz (fala) à linguagem pensada e boicotada, e denuncia ironicamente as hipocrisias, as relações poder, a violência, a desilusão, frustração, dores enfim todas as mazelas e precariedades inerentes à pessoa e em suas relações sociais. Miguel Jorge pela variedade de produção literária e artística pode ser considerado um escritor completo, pois sua obra abarca diversos gêneros literários como cita (OLIVAL, 1998, p. 181)
Miguel Jorge, ficcionista, poeta, dramaturgo, ensaísta, mostra-se escritor sintonizado com seu tempo histórico, com o homem da era cibernética, de cuja alma angustiada é um grande analista, tornando-se, no seu intento de expressá-la, investigador e pesquisador da linguagem literária da modernidade.
O monólogo descreve fatos com detalhes de sofrimento físico, mas sobretudo emocional que choca o leitor ao colocá-lo dentro de situações cotidianas dos regimes autoritários inerentes a todo tempo na história da humanidade..
3- AVARMAS: um conto de Ficção e História
O conto Avarmas, que dá título ao livro, constitui o objeto de análise deste estudo. Propõe-se interpretá-lo a partir da semiose presente na construção textual da narrativa.
“AVARMAS é uma mistura de aves e armas, sugere um (jogo) da linguagem alada da poesia com a linguagem armada nessas narrativas: “ala-se, para armar, ou arma-se para alar. Tanto faz”. (TELES, 1880, p.12). O conto é narrado em primeira pessoa por Eugênia, uma mãe em busca torturante pelo corpo do filho Marco.
Os nomes dos personagens são relevantes e tem significado no contexto do conto.
O nome Eugênia determina eugenia – apuramento de raça – que remete ao nazismo, regime ditatorial que por pouco destruiria a humanidade. E, também, um conjunto de práticas para prevenir e combater doenças hereditárias. Assim, Eugênia é a metáfora do grito de prevenção e combate a regimes ditatoriais – como que foi instalado no Brasil à época em que o conto foi escrito. Assim como Marco (relativo a Marte – Deus da guerra) é a metáfora que faz do símbolo de luta, da morte que marcará todo o regime que preza, pela permanência no poder a força.
É importante observar que essas personagens, por seus nomes, tornam-se metáforas vivas da denúncia e da luta contra regimes ditatoriais. Não apenas reduzem a um período histórico, até porque ele não está ali relatado ou descrito. As figuras de Eugênia e Marco, são a própria fala deflagrada contra os desvios de poder. Essa é a grandiosidade da escritura de Miguel Jorge: ela avança para além do pontual; pela forma de engendramento do discurso, a luta de Eugênia e Marco é a fala sobre uma luta universal.
O tempo é musical de uma sonata e por ser assim, destrói o tempo histórico e o faz atemporal “Sempre no primeiro tempo ou no segundo… volto ao primeiro… ainda no primeiro movimento… (AVARMAS,1980, p. 132/133). A atemporalidade comporta assuntos de toda universalidade. A denúncia contida e performatizada no conto, não é uma denúncia a um tempo histórico da humanidade, ele é tempo inacabado: pois vive-se um eterno confronto entre opressor e oprimido.
Miguel Jorge, com intuito de salientar as eternas opressões, volta ao tempo e há um momento que ele simboliza a procura de Eugênia pelo filho Marco à Maria de Nazaré com seu filho Jesus.
Abro novamente os olhos e ele ainda caminha pelo longo corredor. Não, não é verdade. Sinto através de meu tato, seus cabelos adormecidos entre meus dedos. Doce, doce meu doce menino. Ainda de olhos fechados, facilmente e sem perder tempo, falo, compassadamente, num desafio: Quero o corpo do meu filho. (Avarmas,1980, p. 134).
O desejo de Eugênia de ter o corpo de seu filho e sentir seus cabelos entre os dedos, remete à similaridade de Pietá, que expressa Maria, mãe de Jesus que também pede que desça seu filho da cruz para pô-lo no colo e acariciar lhes os cabelos.
Miguel Jorge com maestria “foca as relações entre a história e a ficção contemporânea que torna fatos históricos como tema e os transforma em tessituras literárias” (MENDONÇA, 2011, p.12). Assim, a ficção contextualizada na história, próprio da pós-modernidade, abre os caminhos para a produção literária intertextual referenciada no sócio histórico manifestando protestos e denúncia às arbitrariedades, à opressão e crimes praticados pelos poderes do Estado atemporal e qualquer espaço.
3.1- ATEMPORALIDADE
A narrativa de Eugênia é um monólogo em primeira pessoa, com diferentes vozes e termos musicais: movimento, o primeiro tempo ou o segundo, pianíssimo, alegro… leva o leitor a um tempo em que não é o tempo histórico, apenas o movimento do tempo. Tal qual em uma composição musical (como a forma sonata, por exemplo) há um movimento que se altera, que retorna e retoma, mas não há marca de um tempo. “Discurso poético, por sua vez, é aquele que instala internamente, graças a uma série de mecanismos, o diálogo intertextual, a complexidade e as contradições dos conflitos sociais”. (BARROS, 2003, p. 06).
Sempre o primeiro tempo ou o segundo. Como uma fuga ou sombra martirizada. Sempre a caminhar, o meu caminhar, deselegante e desequilibrado. Um sapato na mão. Um calo no pé. Sou Eugênia, mãe de Marco, e estou em soluços. Mas não me rendo e não me redimo. Sou uma sombra e uns passos Ou um trapo. Sempre um caminhar pelos dias e madrugadas pisando terras, batendo portas. Ninguém para desentorpecer-me as juntas e os olhos. (JORGE,1980. p.133.)
O uso dos termos musicais é uma metáfora para mostrar os movimentos dos opressores que ora vem pianíssimo: de forma mais branda, escondida, sussurrada. “Ainda no primeiro movimento: Lento quase pianíssimo. Já não muito tempo para o dia nascer do dia. Nego meu cansaço e desespero… (Avarmas, 1980, p.135) Ora pega o primeiro tempo, ora o segundo tempo e a relação opressor e oprimido não cessa. “Volto ainda ao primeiro movimento, ou segundo ou terceiro. Sempre o mesmo caminhar, meu caminhar”. (Avarmas. 1980, p.140). Ora vem alegro: bem movimentada e agressiva: Eugênia “Como se estivesse num labirinto, percorre as muitas portas que lhe aparecem, com cansaço, desespero, mas sem perder a extrema dignidade no contínuo da procura” (CARVALHO, 2000, p.65).
Eugênia e Marco são Eugenias e Marcos do mundo que lutam solitárias, sem um ato de solidariedade para desentorpecer lhes as juntas e os olhos.
O caminhar por diferentes lugares e com diferentes percepções de Eugenia pelo ambiente repercute a evolução sonora do martírio, das esperanças desfeitas a cada busca. Paralelamente retrata a coragem insistente e revestida de angústia apesar da indiferença das pessoas:
Sempre um caminhar pelos dias e madrugadas pisando terras, batendo portas. Ninguém para desentorpecer-me as juntas e os olhos. (JORGE,1980… (p.133.).Também ninguém parece perceber o meu chamado (JORGE,1980.p.134) Nego meu cansaço e meu desespero. (JORGE,1980, p.135) quero apenas enterrá-lo, digo eu, simplesmente, e é forma humana. Sofro vendo-o emudecer-se. (JORGE,1980,p.139) …Sou toda ferida (JORGE,1980p.139)
4- CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conto Avarmas traz a marca da vivência profissional de Miguel Jorge, que é carregada de uma visão crítica não só do homem, mas da sociedade.
Através da literatura ele denuncia as mazelas de uma minoria que massacra a maioria das vidas humanas, no jogo de signos semióticos ele aglutina a história na ficção e a ficção na história construindo uma obra literária que dá voz àquelas/es que foram silenciados.
Eugênia e Marco são metáforas de vozes que gritam contra as atrocidades de regimes ditatoriais que se espalham pelo mundo, em um primeiro tempo, em um segundo tempo, em movimento lento ou alegro.
Haverá sempre Eugênias em busca de Marcos, porque haverá sempre o retorno ao primeiro movimento, à opressão, àqueles que não são capazes de serem Marco(s), e se formam como vozes silenciadas e olhares na multidão. O conto é a metáfora do movimento das vozes que se erguem e não se entregam frente à opressão.
REFERÊNCIAS
BARROS, Diana Luz pessoa de. “Dialogismo, polifonia e enunciação. São Paulo: Edusp, 1994. (Coleções Ensaios de Cultura)
CARVALHO, Maria Luiza Ferreira Laboissière de. Tradição e modernidade na prosa de Miguel Jorge. Goiânia: Ed.UFG, 2000
JORGE, Miguel. Avarmas. 2ed. São Paulo: Ática, 1980
MENDONÇA, Luisa Alves de. Ficção e história em Pão cozido debaixo de brasa de Miguel Jorge. Dissertação de Metrado. Goiania.PUC- GO 2011.
OLIVAL, Moema de Castro e Silva. O espaço da crítica: panorama atual. Goiânia: Ed. da UFG, 1998.
PAGANINI, Vera Lúcia Alves Mendes. Literatura e Historia. Gênero discursivo e intertextualidade. Miguel Jorge. Dissertação de Mestrado. Goiânia: UFG, 2008
SCHWARCZ, Lilian Moritz.;Starling, Heloisa Murgel. Brasil: uma Biografia. 1ed. São Paulo. Companhia das letras 2015.
TELES, Gilberto Mendonça. A (des)continuidade de Miguel Jorge. in JORGE, Miguel. Avarmas. 2ed. São Paulo: Ática, 1980.