AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA NO BRASIL: CONTEXTOS E CONTRIBUIÇÕES

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202412070809


Taciane Martins Menezes


RESUMO: A Avaliação Neuropsicológica é de fundamental importância para o desenvolvimento das habilidades cognitivas, tanto no diagnóstico de possíveis atrasos quanto para tratamento dos resultados advindos de lesões em partes do cérebro. Como ramo relativamente recente da psicologia, a Neuropsicologia se construiu no Brasil de acordo com seu caráter multidisciplinar e tem ganhado cada dia mais relevância, em especial porque as doenças e transtornos mentais tem estado em maior evidência ante os novos meios de tecnologia e de relacionamentos sociais. O artigo aqui proposto tem como objetivo estabelecer uma análise da Avaliação Neuropsicológica no Brasil, buscando entender a evolução dos conceitos de Neuropsicologia e de Avaliação Neuropsicológica, bem como a forma como essa evolução se deu no contexto nacional. Cada vez mais os estudos e conhecimentos acerca do cérebro e do corpo humano em geral ganha importância global, e neste sentido é que o Brasil, dada sua complexidade e diversidade étnico-cultural, poderia assumir a liderança global quanto às pesquisa realizadas de avaliação neuropsicológica e no desenvolvimento de novos meios, conhecimentos e técnicas.

Palavras-chave: Psicologia. Neuropsicologia. Disfunção Cognitiva. Comportamento e Mecanismos Comportamentais.

ABSTRACT: Neuropsychological assessment is of fundamental importance for the development of cognitive abilities, both in the diagnosis of possible delays and in the treatment of results arising from lesions in parts of the brain. As a relatively recent branch of psychology, Neuropsychology was established in Brazil according to its multidisciplinary nature and has gained increasing relevance, especially because mental illnesses and disorders have become more evident in the face of new means of technology and social relationships. The article proposed here aims to establish an analysis of Neuropsychological Assessment in Brazil, seeking to understand the evolution of the concepts of Neuropsychology and Neuropsychological Assessment, as well as how this evolution occurred in the national context. Studies and knowledge about the brain and the human body in general are increasingly gaining global importance, and in this sense, Brazil, given its complexity and ethnic-cultural diversity, could assume global leadership in neuropsychological assessment research and in the development of new means, knowledge and techniques.

Keywords: Psychology. Neuropsychology. Cognitive Dysfunction. Behavior and Behavioral Mechanisms.

INTRODUÇÃO

A Neuropsicologia, que de acordo com o Conselho Federal de Psicologia (2023), foi reconhecida como uma especialidade da Psicologia em 2004, é uma área da Neurociência bastante recente e que pode ser definida como o estudo das relações entre o cérebro e as funções cognitivas (Rodrigues, 1993), podendo também se basear na análise das relações entre expressões comportamentais do indivíduo e disfunções cerebrais por meio da identificação de mudanças de comportamento relativos à determinada disfunção cerebral, bem como déficits cognitivos e os efeitos na vida dos pacientes (Mader, 1996; Haase et al., 2012; Ramos; Hamdan, 2016).

A Avaliação Neuropsicológica, utilizando-se de métodos, técnicas e instrumentos, é um processo de avaliação que objetiva a investigação do funcionamento do cérebro através da observação e estudo do comportamento do indivíduo (Moura et al., 2016). Pode auxiliar no processo de diagnósticos diversos, como de disfunções cognitivas, contribuindo para o planejamento e acompanhamento de tratamentos, diferenciando-se da avaliação psicológica ao tomar o funcionamento do cérebro como ponto inicial de observação (Mader, 1996).

Partindo deste ponto, o artigo aqui proposto tem como objetivo estabelecer uma análise da Avaliação Neuropsicológica no Brasil, buscando entender a evolução dos conceitos de Neuropsicologia e de Avaliação Neuropsicológica, bem como a forma como essa evolução se deu no contexto nacional.

Para cumprimento deste objetivo, realizou-se uma pesquisa bibliográfica, que tem como base a coleta e análise de dados secundários, já analisados e publicados por outros especialistas, possibilitando uma revisão ou atualização desses materiais e o aprofundamento do conhecimento do pesquisador sobre o tema em estudo (Sousa; Oliveira; Alves, 2021) — tornando este um estudo do tipo qualitativo.

A NEUROPSICOLOGIA

A compreensão da mecânica do cérebro e de todas as implicações que essas mecânicas interferem no corpo humano, é relativamente nova. Na esteira do desenvolvimento dos conhecimentos acerca do cérebro humano e de sua importância para o desenvolvimento do indivíduo, a Neuropsicologia surge como o ramo da ciência que integra e age em consonância a outras disciplinas médicas (Kristensen; Almeida; Gomes, 2001).

A Neuropsicologia atua em três campos que se entrelaçam: na identificação de padrões de déficit cognitivo para pacientes que tenham sofrido algum tipo de lesão cerebral; no estabelecimento de correlações anátomo-clínicas; e na experimentação das habilidades cognitivas mediante testes e tarefas (Siéroff, 2009).

Apesar de ser um ramo recente da ciência médica, o tema correlato à Neuropsicologia já vem sendo estudado desde os gregos, em que se procurava compreender a relação existente entre o desenvolvimento cerebral e as capacidades de compreensão e a ação humana.

Obviamente que, para os gregos, aspectos emocionais ou mesmo sentimentais, ou seja, das maneiras como os indivíduos interagem entre si, não eram vinculados ao cérebro, posto que este era o órgão dotado apenas do sentido da razão, enquanto a emoção era mais vinculado aos intestinos. Logo, qualquer estudo ou análise dedicada ao cérebro, tratava apenas dos aspectos cognitivos e pincipalmente motores dos indivíduos (De Toni; Romanelli; De Salvo, 2005).

O desenvolvimento dessa ciência se deu em conjunto ao desenvolvimento dos estudos da neuropsicolinguística, ainda bastante atrelada à Psicologia, e compreendida incialmente como Associacionismo, Localizacionismo e Conexionismo (Deacon, 1989).

Nestes períodos iniciais, a Psicologia surgiu bastante em razão dos estudos realizados principalmente em soldados feridos, muitos deles apresentando traumas na cabeça e desenvolvendo algum tipo de disfunção, quer fosse na fala, nas reações e capacidades motoras, ou mesmo de memórias e raciocínio, primeiro durante as guerras napoleônicas (1803 – 1815), e depois com as guerras franco-prussianas (1870 – 1871), encontrando grande avanços no tratamento de soldados sobreviventes da Primeira Grande Guerra Mundial (1914 – 1918) (Kardiner, 1959).

É por este motivo histórico político que o campo inicialmente se desenvolveu com maior ênfase, justamente na França e nos países alemães.

Foi o francês Pierre Paul Broca (1824 – 1880) quem descreveu a associação identificada entre lesões obtidas na região do giro frontal inferior do cérebro — atualmente referenciado como “área de Broca” —, e a perda da capacidade de fala, seguida pelas contribuições do alemão Karl Wernicke (1848 – 1905), que descreveu e localizou que lesões na seção posterior do giro temporal superior (GST – Área de Wernicke), apesar de não interromperem o processo cognitivo, ou seja, de compreensão das letras e palavras, ocasionavam a confusão em ordenar as informações recebidas e codificá-las a um ponto em que fosse possível estabelecer uma comunicação inteligível (Burgess et al., 2006).

Tais estudos iniciais, ainda que se construindo no ramo da Psicologia, marcaram uma mudança significativa na própria ciência do cérebro, posto que a associava a comportamentos motores e de cognição pura, e não mais de comportamentos afetivos, sentimentais e pulsões volitivas.

É a partir destes estudos que podemos traçar uma historicidade da neurociência, posto que daí foram propostos sistemas nervosos cerebrais responsáveis pelas funções motoras e cognitivas, essencialmente atreladas não à psiquê, mas ao aparato físico do corpo humano — o que, ao mesmo tempo que afastava a neurociência da Psicologia, não a aproximava da ciência médica de caráter puramente clínico ou farmacológico (Cagnin, 2010).

Então, é deste novo lugar do conhecimento clínico e psicológico do cérebro humano que surge a Gestalt, ou Psicologia da forma, que compreende que os seres identificam padrões ou configurações inteiras, e que esta percepção do todo acaba influindo na percepção anterior por parte do indivíduo das partes deste todo identificado e previamente catalogado.

Logo, não bastaria a mera lesão em uma dada área para compreender os resultados decorrentes dessas lesões em um paciente, posto que o todo cerebral deveria ser considerado para além de uma simples soma de suas partes ou áreas.

Neste diapasão surge, entre 1950 e 1970, a Neuropsicologia mais ou menos como a compreendemos atualmente, também chamada de Neuropsicologia psicométrica, baseada em estudos comparativos de grupos contrastados com dados de indivíduos saudáveis através, não mais da observação, mas da aplicação de testes tipificados para estabelecer correlações entre lesões em áreas cerebrais e alterações cognitivas, e ainda a posterior aproximação com a Psicologia Cognitiva, com a proposição da existência de sistemas funcionais complexos integrados.

Com a possibilidade de realizar testes de imagem, enquanto o indivíduo realiza alguma tarefa, chegamos no atual modelo de atuação na área de Neuropsicologia, tendo ampliado o escopo anátomo-clínico da Avaliação Neuropsicológica para uma atuação neuropsicológica contextualizada.

A Neuropsicologia no Brasil

É notório que a academia brasileira, de forma geral, se ancora ou é no mínimo bastante influenciada pelo pensamento positivista, chegando no país na segunda metade do Período Imperial e influenciando fortemente a formulação da República — tanto assim que parte do lema positivista “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim” reside em nossa bandeira como “Ordem e Progresso”.

Então, qualquer apanhado ou análise histórica que perpasse por este período precisa levar em consideração a participação deste ideário na compreensão da prática aplicada. Em outras palavras, a neurociência chegou ao país e foi logo agregada a este ideário de nação, que vinculou todos os processos aos objetivos previamente estipulados, conferindo à Neuropsicologia um caráter mais resolutivo do que especulativo e compreensivo, se dividindo então na resolução das doenças mentais e nos processos psicológicos básicos, as emoções (Alchieri, 2003).

Neste lugar, a Neuropsicologia se materializou na academia através da interdisciplinaridade, abrangendo a Neurologia, a Psicologia, a Fonoaudiologia, a Fisioterapia e, por fim, a Terapia Ocupacional.

Notadamente, a Neuropsicologia tem caminhado cada vez mais para se tornar um ramo autônomo do conhecimento, em especial a partir do desenvolvimento de tecnologias que possibilitam a análise e observação do cérebro humano enquanto ele está em atividade. Ao mesmo tempo, este ramo da ciência pode ser considerado como um ramo interdisciplinar, que se liga e embrinca a outras áreas do conhecimento (Alchieri; Noronha; Primi, 2003).

A Neuropsicologia tem atraído ainda mais interesse justamente porque os dificultadores para sua pesquisa tem sido superados pelo desenvolvimento tecnológico, além do próprio interesse e capacidade para se compreender o cérebro humano e sua importância para o desenvolvimento das habilidades individuais.

Hoje, no Brasil, a Neuropsicologia é caracterizada como ramo da Psicologia, sendo a Avaliação Neuropsicológica assim definida pelo Conselho Federal de Psicologia:

A avaliação neuropsicológica considera a relação cérebro-comportamento como fundamento para a aferição de diversas funções neuropsicológicas. É uma categoria de avaliação psicológica, devendo ser, portanto, realizada por psicóloga(o) e em conformidade com as normativas do Conselho Federal de Psicologia (Conselho Federal De Psicologia, 2023, p. 9).

Pode-se afirmar então, que no Brasil atualmente, a Neuropsicologia é vinculada à Psicologia quanto a aplicação de diagnósticos e detecção de alterações, mas ainda guarda seu caráter incialmente interdisciplinar quanto a atuação do profissional na reabilitação neuropsicológica.

O PROCESSO DE AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA

A Avaliação Neuropsicológica é tripartida em três sujeitos de análise. O primeiro é o próprio profissional que realiza a avaliação; o segundo é o paciente, onde vislumbra-se os aspectos multissensoriais e também de resolutividade da avaliação em si e da reabilitação; e o terceiro é justamente a expectativa que se cria através dessa avaliação.

Então temos o profissional, o paciente e a expectativa do diagnóstico e do tratamento associado que atuam em conjunto — por isso a utilização do termo processo atrelado à avaliação.

Como se sabe, a Avaliação Neuropsicológica envolve mais elementos do que que uma avaliação psicológica pura e ultrapassa uma avaliação puramente clínica, residindo então no meio dessas duas avaliações do estado do paciente, ou seja, se realiza a avaliação do encéfalo por meio da avaliação da resultante comportamental, entretanto, o paciente estabelece uma relação anterior com o resultado e com sua possível resolutividade.

De outra forma, o paciente também ocupa um lugar intermediário na relação profissional e paciente, que ultrapassa a relação entre paciente e médico, aprofundando a relação psicólogo e paciente, tornando-o assim, na Avaliação Neuropsicológica, mais do que na avaliação psicológica, parte integrante e agente efetivo do caminho de avaliação.

Dito isso, o primeiro obstáculo que se vislumbra no processo de avaliação é a de compreensão, por parte do paciente, que esta avaliação não compõe o início do tratamento ou da reabilitação, ao contrário do que se pode aventar para o tratamento psicológico.

Este tratamento se dá, como dissemos, na interdisciplinaridade. Logo, os aspectos deste tratamento serão definidos pelo processo de avaliação, que, em essência, será igualmente multidisciplinar, inclusive quanto ao direcionamento de tratativas que envolvam o núcleo familiar do indivíduo avaliado.

O processo de avaliação se dá em quatro níveis: o diagnóstico topográfico, na identificação de lesões; o diagnóstico funcional, onde o profissional avalia o comportamento do paciente para a detecção de padrões; o diagnóstico nosológico, em que o profissional realiza a análise instrumentalizada do desenvolvimento neurológico e; o diagnóstico ecológico, onde se deve avaliar o impacto do quadro apresentado pelo paciente em seu entorno de convívio familiar ante a subjetivação daquele sujeito enquanto membro daquele grupo.

Não é um diagnóstico simples, e muito menos pode ser observável, em especial pelo paciente. Daí, muitas vezes, a não compreensão por parte dos pacientes do caminho adotado pelo avaliador, porque, por mais que o paciente identifique a neurociência como sendo parte da medicina clínica, não conseguirá visualizar elementos identificadores claros dessa área do conhecimento.

Embora seja possível identificar mecanismos semelhantes aos adotados pela Psicologia, a Neuropsicologia não se evidencia dessa maneira ao paciente que, de resto, fica numa posição de incerteza, ainda mais se se tratar de um paciente que necessita de outra pessoa para falar e compreender o mundo por ele, o que nestes casos, é amealhado com uma segunda camada de complexidade e subjetividade.

A Avaliação Neuropsicológica no Brasil e suas possibilidades

Como já dito, a avaliação, e na verdade, a própria natureza de atuação da neuropsicologia atual, depende em grande medida das tecnologias, ou dos avanços tecnológicos, quer seja na capacidade de se estudar o cérebro humano enquanto ele esteja em atividade — o que por si só criou um cenário muito diferente do que no passado era possível quanto aos estudos realizados em cérebros inativos —, quer seja na base de dados disponíveis para se estabelecer padrões conformes.

Boa parte da Avaliação Neuropsicológica é realizada no espectro ambiental do paciente e de seu círculo mais íntimo de convivência, e a maneira pelo qual esta análise ambiental é realizada precisa levar em conta aspectos sobre cultura, sobre genética, sobre demografia, rol de crenças, padrões linguísticos, escolaridade do paciente e do grupo familiar, e outros tantos marcadores que definem o ambiente em que poderão ser identificados estes padrões comportamentais não conformes. Tal como descrito no Manual da Neuropsicologia:

As características específicas do desenvolvimento do avaliando (gênero, escolaridade, idade, nível socioeconômico, entre outros) devem ser consideradas no processo de avaliação neuropsicológica (Conselho Federal De Psicologia, 2023, p. 10).

Aí temos então o estabelecimento de dois problemas, um de ordem global, posto ser de características puramente técnica, que é a capacidade de se proceder com um amplo sistema de recolhimento e de tratamento de dados de uma dada população ou grupo de pessoas, e outro que é mais atinente à realidade brasileira e que se imbrica ao primeiro, que é a principal característica Brasil, sua ampla diversidade étnica e social.

Não estamos, obviamente, alardeando ser um problema a diversidade étnica e social em si para o desenvolvimento de bancos de dados, mas sim que isto impõe, do ponto de vista prático, uma dificuldade extra.

É claro que, quando falamos de ciências, e ainda mais sobre ciências médicas, estaremos sempre fazendo um discurso sobre o ideal ante o real, ou mesmo aquilo que deveria ser a realidade prática dada a necessidade médica, ou seja, sempre se terá um déficit provocado até mesmo pelo desenvolvimento das novas técnicas e tecnologias.

A isso soma-se, na realidade brasileira, mais um fator de dificuldade, que é o lugar que ocupamos quanto ao desenvolvimento e chegada de itens tecnológicos na dinâmica geopolítica global, essencialmente periférico — o que nos torna, vez mais, sempre um passo atrás.

Mas este descompasso entre a prática médica e o conhecimento médico se aprofunda ainda mais quando estamos diante um cenário em que temos o cérebro como objeto de análise, posto estar dividido, não o objeto, mas sua análise, em duas grandes segmentações: a parte sensível, corpórea e física, e a parte não sensível, imaterial e até mesmo metafísica.

O desenvolvimento é um processo contínuo e complexo que envolve aspectos genéticos e estruturais (e.g. neuroplasticidade, lesões), bem como fatores ambientais e sociais (estilos de interação familiar, cultura, nível socioeconômico, métodos de alfabetização.) que exercem um papel crucial na cognição e no comportamento. Todos esses fatores devem ser refletidos nas diferenças de desempenho na avaliação (Conselho Federal De Psicologia, 2023, p. 13).

De tudo isso, que se soma e que se traduz ao exercício de avaliação do profissional, é que se constrói a base interior do sujeito avaliador, também vivente e existente na mesma dinâmica de insuficiência de seus pacientes, daí a necessidade premente de este avaliador dominar, naquilo que for possível, as técnicas e conhecimentos disponíveis para realizar o processo de avaliação, principalmente quanto ao estabelecimento da base segundo a qual os demais pilares da avaliação serão erguidos, que é a fase de entrevistas desse sujeito paciente.

Neste sentido a compreensão, por parte do avaliador, de o paciente ser um sujeito antes de ser um paciente, se torna de fulcral importância, porque é deste entendimento que este paciente será posto, logo de início, em sua ambientação o mais realística possível.

Seria maravilhoso que pudéssemos encontrar um banco de dados que categorizasse com uma aproximação tendente à exatidão sobre cada individualidade do planeta, mas isso não só não ocorre, como, dadas as características dos povos do Brasil, criam uma realidade frequentemente desafiadora se considerarmos que, além dos fatores fixos já elencados, embora não de maneira exauriente, há ainda, na construção dessa realidade sensível ao sujeito paciente e ao seu círculo, a interferência natural de outros elementos que, ao se cruzarem, produzem fatores novos, resultantes, como bem pontuado no Manual:

Juntos, esses pilares devem ser utilizados na avaliação neuropsicológica de forma alternada e contínua durante o processo de investigação, que deve ser planejado e estruturado com antecedência. Deve adequar-se às necessidades do avaliando e favorecer a coleta pelo profissional dos melhores parâmetros para a elaboração do laudo psicológico (Conselho Federal De Psicologia, 2023, p. 15).

O fato é que o desenvolvimento da aplicação da neuropsicologia no Brasil, além de esbarrar nos dificultadores comuns à profissão e área, também encontra a problemática específica.

No intuito de construir um banco de dados das populações brasileiras, e não apenas sobre as necessidades da neurociência, seria preciso levar em conta toda a diversidade brasileira, que se acentua ou se diversifica ainda mais no aspecto geográfico regional, o que seria por si só uma tarefa hercúlea, mas igualmente fundamental por dois aspectos.

O primeiro é que, justamente por conta dessa diversidade, que até aqui assume a conotação de empecilho e dificultador, é que uma base de dados nacional brasileira seria muito mais diversa e representativa do que a base de dados obtida, por exemplo, por países com menores taxas de diversidade e miscigenação racial, cultural e ambiental — o que seria uma clara vantagem para o desenvolvimento e relevância das ciências médicas do país, literalmente transformando uma dificuldade em uma vantagem.

E segundo aspecto, porque possibilitaria o desenvolvimento de uma neurociência, com características próprias, mas que levaria em conta o espelhamento dessa mesma diversidade, o que tenderia inclusive a resolver questões ainda em aberto para a validação de sua utilidade clínica, objetivando a construção de bases seguras e sólidas de métodos e mecanismos, que poderiam até mesmo passar pela normatização dos órgãos competentes:

[…] historicamente, a Neuropsicologia desenvolveu diversas tarefas de exploração da cognição e do comportamento, as quais foram construídas gradualmente pela experiência clínica e/ou estudos de casos de pessoas com determinados transtornos ou lesões. Não são testes submetidos a uma normatização, pois constituem tarefas que, diante da manifestação de dificuldades, já têm significado clínico. São comumente de domínio público, porém devem ter publicação científica de preferência nacional, que reiteram a sua validade clínica. Apesar disso, a tarefa não constitui um objeto de definição diagnóstica (Conselho Federal De Psicologia, 2023, p. 19).

Tais ações, permeadas também pela vontade política, mas encabeçada pelos conselhos de classe, poderia tornar o Brasil não apenas numa referência mundial para as avaliações neuropsicológicas, mas num amplo campo laboratorial de análise, detecção, cura e principalmente de uma atuação preventiva para com os cuidados com a saúde mental e desenvolvimento neurológico, em consonância aquilo atrelado à profissão:

Em conformidade com as políticas públicas de saúde, a(o) neuropsicóloga(o) deve buscar intervenções que adotem uma visão integral de saúde. Essa perspectiva se baseia no fato de que o conceito de reabilitação passou por uma alteração significativa em seus fundamentos, uma vez que seu foco mudou da cura de processos de adoecimento e déficits cognitivos para o aumento da funcionalidade e melhoria da qualidade de vida em grupos clínicos. As limitações do modelo biomédico foram reconhecidas e novas propostas surgiram. Essa alteração encontra-se em consonância com a visão integral da saúde e da pessoa, na qual se considera variáveis contextuais e históricas, além dos fatores biopsicossociais, para basear o planejamento das ações interventivas (McPherson, 2015, apud Conselho Federal De Psicologia, 2023, p. 24).

É sabido que tem havido um crescimento de procura por avaliações neuropsicológica no País, em grande parte motivado por fatores associados ao mercado de trabalho e a detecção de QI. Não nos aprofundaremos nestes aspectos, e nem seria de interesse da presente pesquisa o fazer, no entanto, essa maior procura é um fato e, em consequência, maior também é a procura por profissionais que se dediquem à neuropsicologia.

Então, deste cenário, estamos diante uma realidade sem par para a psicologia no Brasil, por todas essas características aqui abordadas e também pela nossa enorme capacidade, ainda dormente, de reforçar o aprendizado e desenvolver técnicas para a Avaliação Neuropsicológica, tanto na prática e atuação profissional, quanto no desenvolvimento teórico.

CONCLUSÃO

Assim como a psicologia, mesmo para a neurologia, a neuropsicologia ainda é um ramo das ciências médicas relativamente novo, e isso nos traz então duas realidades. A primeira e mais óbvia, é que a atuação do profissional neuropsicólogo se dá num contexto ainda de desconhecimento por parte do público em geral, e o segundo é que, justamente por ser recente, há ainda um enorme caminho epistêmico a ser desbravado.

O país tem um potencial enorme, mesmo não se esquivando de suas orientações ideológicas mais ou menos entranhadas nas estruturas políticas e de pensamento acadêmico, de figurar como um dos maiores, senão o maior produtor de conhecimento nessa área do mundo, utilizando para tanto não apenas a formulação histórico cultural de seus povos, mas os profissionais da área que, ao atuarem na linha de frente, acabam sendo eles mesmos difusores e potenciais captadores de recursos, ferramentas e análises.

Em conclusão, vemos que a construção de um amplo banco de dados se torna não apenas premente, como também uma realidade factível, atingível justamente pelos números demográficos brasileiros, sempre titânicos, tanto em relação à população, quanto à diversidade, como em relação ao número de pacientes, de variedade desses pacientes e ainda em relação aos profissionais, igualmente variados e diversos, que aplicam suas realidades em contato a essas tantas diferenças encontradas na prática profissional.

Quanto mais as tecnologias avançam, mais o elemento humano se torna um ativo para o desenvolvimento das tecnologias e técnicas da neuropsicologia, neurociência e psicologia de forma geral, e poucos, talvez nenhum país, tem em quantidade tanta diversidade e variedade como o Brasil.

Neste sentido, para o campo da neuropsicologia, se torna premente a implementação de um sistema unificado de recolhimento, tratamento e análise de dados, de forma a possibilitar que a neuropsicologia brasileira assuma um lugar de destaque na produção de conhecimento médico e clínico.

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