AUTOMAÇÃO DE CONFECÇÃO DE APACS EM UM AMBULATÓRIO DE OFTALMOLOGIA DO SUS: UM ESTUDO DE DESENVOLVIMENTO

AUTOMATION OF ADMINISTRATIVE DOCUMENTS CREATION IN AN OPHTHALMOLOGY OUTPATIENT CLINIC OF THE BRAZILIAN PUBLIC HEALTH SYSTEM: A DEVELOPMENT STUDY

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202409042114


Mateus Lins dos Santos1, MD, MSc;
Edgar Menezes Neto2, MD;
Franklin Antunes Carvalho1, MD;
Aline Mecenas Santana Albuquerque1,3, MD, MSc;
Lucas Brito de Souza Florêncio4, MD;
Melina Vieira Alves3, MSc;
Lis Jacques Zwecker5;
Allan Cezar da Souza Luz1, MD, PhD.


RESUMO

O presente estudo descreve o desenvolvimento e a implementação de uma tecnologia de automação em um ambulatório público de oftalmologia, visando à otimização do tempo gasto na confecção de laudos de Autorização de Procedimentos de Alto Custo (APAC). A ferramenta foi desenvolvida utilizando a linguagem de programação Python 3.12.0, em conjunto com as bibliotecas Selenium, Tkinter e pdfrw, além do ChromeDriver para navegação automatizada. O programa criado automatiza o preenchimento dos laudos, integrando-se com o sistema de prontuário eletrônico. A eficácia da tecnologia foi avaliada comparando o tempo necessário para o preenchimento manual dos documentos com o tempo utilizando o novo sistema automatizado. Os resultados mostraram uma redução significativa no tempo médio de preenchimento, de 230,5 segundos com o método manual para 45 segundos utilizando o programa, sendo apenas 7 segundos investidos ativamente pelos médicos. Além da economia de tempo, a automação proporcionou aos profissionais maior disponibilidade para outras atividades clínicas, impactando positivamente a qualidade do atendimento. Conclui-se que a automação de processos recorrentes pode ser uma solução útil para ambientes de saúde pública, reduzindo o tempo dedicado a tarefas burocráticas e aumentando a satisfação dos profissionais envolvidos. No entanto, são necessários estudos futuros para validação quantitativa e generalização dos resultados obtidos.

Palavras-Chave: Automação. Sistema Único de Saúde. Saúde Pública. Residência Médica.

1. INTRODUÇÃO

A gestão de clínicas oftalmológicas públicas enfrenta desafios logísticos e econômicos significativos, incluindo a alta demanda por atendimentos, limitações financeiras do setor público (COBAITO e COBAITO, 2022), e o crescente custo das tecnologias utilizadas em equipamentos e terapias modernas (CHEN et al., 2020). Diante dessas dificuldades, o equilíbrio financeiro de instituições oftalmológicas, especialmente no setor público, tornou-se um grande desafio (CARVALHO et al., 2021). Uma das soluções frequentemente adotadas é aumentar a eficácia no atendimento, reduzindo o tempo de consulta e ampliando o número de serviços prestados. Contudo, isso pode estar associado a uma percepção reduzida da qualidade do atendimento médico (BENAZZI et al., 2010).

Esses desafios são ainda mais pronunciados em serviços de ensino, onde profissionais em fase de aprendizado precisam equilibrar as atividades acadêmicas com a alta demanda de atendimento, além de lidar com dificuldades relacionadas à infraestrutura e à disponibilidade de cirurgias e preceptoria (VENTURA et al., 2012). O ambiente de alta pressão, jornadas de trabalho extensas, remuneração limitada, alta demanda emocional e interpessoal, e as incertezas inerentes ao processo de aprendizado aumentam significativamente o risco de doenças psiquiátricas, incluindo Burnout (LEANDRO et al., 2020), que, por sua vez, está associado a um maior risco de erros médicos (HOELZ e CAMPELLO, 2015).

Entre as várias soluções potenciais para os problemas econômicos da oftalmologia pública, o uso de tecnologia da informação surge como uma alternativa promissora. Recentemente, o interesse público nessa área tem se concentrado em soluções de Big Data e Inteligência Artificial (RUAMVIBOONSUK et al., 2021). No entanto, embora os resultados obtidos com diferentes modelos sejam promissores, os custos diretos e indiretos envolvidos no desenvolvimento e na aplicação de um grande modelo de Inteligência Artificial podem ser elevados. Ferramentas associadas a custos menores, como prontuários eletrônicos (KRUSE et al., 2018), modelos de gestão de custos (REGONHA et al., 2016), teleoftalmologia (SHARAFELDIN et al., 2018), e aplicativos móveis (DOS SANTOS et al., 2020), têm o potencial de impactar diretamente a eficiência, segurança e custo-efetividade dos serviços oftalmológicos.

Considerando os desafios persistentes na oftalmologia pública, apesar das ferramentas técnicas atualmente disponíveis, especialmente em ambientes de ensino médico, este estudo apresenta o desenvolvimento de uma nova tecnologia de automação de um processo recorrente frequente na rotina de um ambulatório público de oftalmologia com serviço de curso de especialização e os impactos dessa tecnologia no funcionamento do serviço.

2. METODOLOGIA

Este estudo aborda o desenvolvimento de uma tecnologia de automação para um processo burocrático recorrente em um ambulatório público de oftalmologia com serviço de especialização médica. Este estudo não envolveu testes em seres humanos.

Desenvolvemos um programa de computador utilizando a linguagem de programação Python (versão 3.12.0) e as seguintes bibliotecas, em suas versões mais atualizadas na época da publicação deste artigo: Selenium, Tkinter e pdfrw. Também foi utilizada a versão estável mais recente do programa ChromeDriver para permitir a navegação web automatizada (Google Inc, Mountain View, California, EUA). O objetivo do programa foi automatizar o processo de confecção e preenchimento de laudos de Autorização de Procedimentos de Alto Custo (APAC).

Inicialmente, o programa consiste em uma interface simples, desenvolvida com a biblioteca Tkinter, integrada diretamente à linguagem Python 3. Nessa interface, é possível preencher o número de prontuário do paciente, o olho a ser operado, o nome do médico que está utilizando o programa, a quantidade de procedimentos solicitados e o tipo de procedimento (Figura 1).

Após o preenchimento da interface, o programa navega automaticamente, utilizando o aplicativo ChromeDriver e a biblioteca Selenium, até a página do prontuário eletrônico que contém as informações pessoais do paciente (Figura 2). Com o uso do web scraping, o programa registra temporariamente os dados dos formulários da página na memória.

Na etapa final, utilizando a biblioteca pdfrw e um modelo editável de arquivo Portable Document Format (PDF), o programa preenche automaticamente o documento de APAC com as informações do paciente, códigos e nome do procedimento desejado, incluindo um código CID-10, descrição da doença e observações padronizadas para as doenças mais comuns (Figura 3). Caso necessário, o documento final ainda é editável, permitindo ajustes pelo médico antes da impressão. Todo o processo é automatizado, liberando o médico para outras tarefas enquanto o programa é executado.

Figura 1 – Interface Inicial

Legenda: Imagem da interface inicial da solução desenvolvida, contendo campos para preenchimento do número de prontuário do paciente e quantidade de procedimentos, além de diversos botões tipo “rádio” para seleção do médico responsável, lateralidade e procedimento desejado.

Finalmente, foi realizada uma comparação do tempo necessário para dois dos autores preencherem um documento de APAC para cirurgia de catarata (Facoemulsificação com Implante de LIO Dobrável) utilizando três métodos diferentes: preenchimento manual de um documento impresso; preenchimento de um modelo editável pré-preenchido com informações do procedimento e hospital; e uso do programa desenvolvido neste estudo.

3. RESULTADOS

O desenvolvimento do programa foi relativamente rápido, com a codificação finalizada em menos de uma semana, e a fase de testes e depuração de erros concluída em menos de um mês. Ambas as etapas foram realizadas por um único profissional (M.L.S.) e utilizando exclusivamente recursos gratuitos.

Atualmente, o sistema está em produção, sendo utilizado diariamente no ambulatório onde foi desenvolvido. Embora interaja com programas de terceiros, incluindo o prontuário eletrônico Smart Health (Pixeon, São Caetano do Sul, São Paulo, Brasil) e o ChromeDriver, erros são infrequentes e geralmente de fácil resolução, com baixo impacto no funcionamento do ambulatório.

Figura 2 – Acesso Automático à Página de Dados Pessoais

Legenda: Imagem de página contendo dados pessoais do sistema de prontuário eletrônico Smart Health, com os dados pessoais obscurecidos.

O tempo médio para o preenchimento manual do documento de APAC foi de 230,5 segundos. Usando um modelo pré-preenchido, o tempo foi reduzido para 73 segundos. Com o programa, o tempo médio foi de 45 segundos, dos quais apenas 7 segundos foram necessários para o preenchimento da interface pelo médico. Durante o restante do período, a intervenção do médico não é necessária, e o computador pode ser utilizado para outras tarefas simultaneamente à execução do programa.

Figura 3 – Arquivos PDF dos documentos de APAC

Legenda: À esquerda, modelo em branco editável. À direita, modelo editável automaticamente preenchido com dados do paciente.

A recepção do programa pelos usuários foi unanimemente positiva, com relatos de significativa redução no tempo gasto no preenchimento de documentos, maior eficácia nos atendimentos e mais tempo disponível para focar em outros aspectos da consulta médica, incluindo a relação médico-paciente.

4. DISCUSSÃO

Este estudo apresentou o desenvolvimento, funcionamento, aplicação e impacto de um sistema de automação para processos recorrentes em um ambulatório público de oftalmologia com serviço de treinamento de médicos especializados. Os resultados foram positivos, evidenciando uma redução significativa no tempo gasto em atividades burocráticas e satisfação dos usuários.

A automação na medicina é um tema amplamente estudado, com a necessidade de soluções automatizadas sendo discutida muito antes da popularização dos computadores e sistemas eletrônicos (CACERES et al., 1978). O rápido desenvolvimento de diversas técnicas de automação tem impactado profundamente a prática médica, permitindo que os serviços de saúde atendam à crescente demanda da população (UGAJIN, 2023), especialmente na segurança do paciente e minimização de erros médicos (ARON et al., 2011; ALDOSARI, 2017; DOS SANTOS et al., 2020). Esses benefícios também foram observados em nosso estudo, com aumento da eficácia e satisfação dos usuários do sistema.

No entanto, é importante considerar os riscos associados à automação, que podem incluir desde erros diretos e facilmente perceptíveis até erros ocultos que podem causar danos antes de serem identificados, como a introdução de vieses não perceptíveis, especialmente em aplicações baseadas em Inteligência Artificial (ABDELWANIS et al., 2024). Portanto, estratégias de gestão de riscos em tecnologia da informação devem ser sempre aplicadas em sistemas de automação de tarefas (SAN MARTÍN, 2022). Em nosso serviço, recomendamos sempre a verificação das informações contidas nos documentos gerados por sistemas automatizados antes de sua finalização.

Este é um estudo piloto com diversas limitações metodológicas, incluindo a ausência de metodologias de validação quantitativa e em larga escala. Embora os autores tenham se comprometido com a imparcialidade durante o desenvolvimento e testagem do sistema, métodos objetivos, quantitativos e neutros são necessários para uma validação adequada, uma limitação que deve ser abordada em estudos futuros. Além disso, sendo um software customizado, há limitações na generalização dos achados deste estudo, que podem não ser aplicáveis a outros sistemas e situações hospitalares e ambulatoriais.

Em conclusão, relatamos o processo de desenvolvimento e o impacto de uma ferramenta de automação para processos burocráticos recorrentes em um serviço público especializado em oftalmologia com curso de especialização médica, obtendo resultados positivos em termos de eficácia e satisfação dos profissionais envolvidos. Mais estudos são necessários para uma validação adequada do sistema e generalização dos achados iniciais desta pesquisa.

REFERÊNCIAS

ABDELWANIS, Moustafa et al. Exploring the risks of automation bias in healthcare artificial intelligence applications: A Bowtie analysis. Journal of Safety Science and Resilience, 2024.

ALDOSARI, Bakheet. Patients’ safety in the era of EMR/EHR automation. Informatics in Medicine Unlocked, v. 9, p. 230-233, 2017.

ARON, Ravi et al. The impact of automation of systems on medical errors: evidence from field research. Information systems research, v. 22, n. 3, p. 429-446, 2011.

BENAZZI, Luciane Eloisa Brandt; FIGUEIREDO, Andréia Cristina Leal; BASSANI, Diego Garcia. Avaliação do usuário sobre o atendimento oftalmológico oferecido pelo SUS em um centro urbano no sul do Brasil. Ciência Saúde Col, v. 15, n. 3, p. 861-868, 2010.

CACERES, Cesar A. The Need for Automation in Health and Medical Care. In: Proceedings of the Annual Symposium on Computer Application in Medical Care. American Medical Informatics Association, 1978. p. 2.

CARVALHO, Cláudio Augusto Junqueira et al. Gestão e sustentabilidade econômico-financeira em empresas de oftalmologia. Revista de Administração em Saúde, v. 21, n. 83, 2021.

CHEN, Evan M. et al. Ophthalmic medication expenditures and out-of-pocket spending: an analysis of United States prescriptions from 2007 through 2016. Ophthalmology, v. 127, n. 10, p. 1292-1302, 2020.

COBAITO, Francisco Carlos; COBAITO, Victor Quintães. SUS–Sistema Único de Saúde: A Gênese, Contemporaneidade, e os desafios do amanhã. Inova Saúde, v. 12, n. 1, p. 160-177, 2022.

HOELZ, Lille; CAMPELLO, Laura. Relação entre Síndrome de Burnout, erro médico e longa jornada de trabalho em residentes de medicina. Rev Bras Med Trab, v. 13, n. 2, p. 126-34, 2015.

KRUSE, Clemens Scott et al. The use of electronic health records to support population health: a systematic review of the literature. Journal of medical systems, v. 42, n. 11, p. 214, 2018.

LEANDRO, I. D. M. et al. Síndrome de Burnout em residentes médicos: uma revisão bibliográfica / Burnout Syndrome among resident physicians: a bibliographic review. Brazilian Journal of Health Review[S. l.], v. 3, n. 4, p. 10528–10542, 2020. DOI: 10.34119/bjhrv3n4-268.

REGONHA, Eduardo; BAUNGARTNER, Ricardo Rinaldi; SCARPI, Marinho Jorge. Cost analysis for ophthalmic clinics services. Rev Bras Oftalmol, v. 75, p. 461-469, 2016.

RUAMVIBOONSUK, Paisan et al. Economic evaluations of artificial intelligence in ophthalmology. The Asia-Pacific Journal of Ophthalmology, v. 10, n. 3, p. 307-316, 2021.

SAN MARTÍN, Daniel del Riego. IT Risk Assessment Automation in Healthcare Networks. 2022. Dissertação de Mestrado. NTNU.

DOS SANTOS, Mateus Lins; CRUZ, Rodrigo Fernandes da; PEIXOTO, Isadora Gondim; MACHADO, Aydano Pamponet; MAIA, Fernando Luiz de Andrade. Aplicativo para uso racional de antibióticos por graduandos de medicina. Journal of Health Informatics, Brasil, v. 12, n. 1, 2020.

SHARAFELDIN, Noha et al. Review of economic evaluations of teleophthalmology as a screening strategy for chronic eye disease in adults. Br J Ophthalmol, v. 102, n. 11, p. 1485-1491, 2018.

UGAJIN, Atsushi. Automation in hospitals and health care. In: Springer Handbook of Automation. Cham: Springer International Publishing, 2023. p. 1209-1233.


1Hospital de Olhos de Sergipe, Aracaju-SE, Brasil

2Clinos Clínica de Olhos, Feira de Santana-BA, Brasil

3Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão-SE, Brasil

4Clínica de Olhos Drª Luciana, Camaçari-BA, Brasil

5 – Faculdade Zarns, Salvador-BA, Brasil