REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202503211937
Rayanna Souza Santos
Resumo:
Este artigo analisa os desafios e as perspectivas do cuidado à população em situação de rua (PSR) no âmbito da atenção primária à saúde (APS) em Sergipe, Brasil. Com base em uma revisão de literatura e dados locais, explora-se o perfil de saúde dessa população, as barreiras de acesso à APS e as iniciativas existentes, como o programa Consultório na Rua (CnR). Os resultados indicam alta vulnerabilidade a doenças infecciosas e transtornos mentais, agravada por barreiras como estigma, falta de infraestrutura e baixa cobertura das equipes de saúde. Conclui-se que o fortalecimento da APS em Sergipe depende de estratégias adaptadas ao contexto socioeconômico local, como ampliação do CnR e parcerias intersetoriais.
Palavras-chave: Atenção primária à saúde, população em situação de rua, Consultório na Rua, Sergipe, equidade em saúde.
1. Introdução
A atenção primária à saúde (APS) é reconhecida como a base do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, com a missão de promover acesso universal e equitativo (Starfield, 2002). Contudo, populações em situação de vulnerabilidade extrema, como as pessoas em situação de rua (PSR), frequentemente permanecem à margem desse sistema. Em Sergipe, um estado com cerca de 2,3 milhões de habitantes e desafios socioeconômicos marcados por desigualdades regionais, a inclusão da PSR na APS enfrenta obstáculos específicos que demandam análise contextualizada.
Estima-se que, no Brasil, mais de 220 mil pessoas vivam em situação de rua (IPEA, 2021), mas os dados locais em Sergipe são escassos, refletindo a subnotificação e a invisibilidade desse grupo. A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) prevê o atendimento a populações vulneráveis por meio de estratégias como o Consultório na Rua (CnR) (Brasil, 2017), mas sua implementação em Sergipe é limitada. Este artigo busca compreender os desafios do cuidado à PSR na APS sergipana e propor perspectivas para ampliar a inclusão, com base em evidências nacionais e reflexões locais.
2. Metodologia
Este trabalho combina uma revisão narrativa da literatura com uma análise contextual da realidade sergipana. Foram revisados estudos publicados entre 2015 e 2023 nas bases Scielo, PubMed e Google Scholar, utilizando os descritores “atenção primária à saúde”, “população em situação de rua” e “Consultório na Rua”. Dados locais foram obtidos de relatórios oficiais, como os do Ministério da Saúde e do Governo de Sergipe, complementados por informações qualitativas sobre a implementação da APS no estado. A abordagem qualitativa privilegiou a identificação de barreiras e soluções adaptadas ao cenário sergipano.
3. Resultados e Discussão
3.1 Perfil de Saúde da PSR em Sergipe
A PSR em Sergipe enfrenta condições de saúde agravadas pela pobreza extrema e pela exposição contínua às ruas. Embora não haja um censo estadual recente, dados nacionais sugerem alta prevalência de doenças infecciosas, como tuberculose e hepatite, e de transtornos mentais entre essa população (Fazel et al., 2014). Em Aracaju, capital do estado, relatos informais de trabalhadores da saúde apontam que o uso de substâncias psicoativas e ferimentos por violência são comuns, refletindo um padrão semelhante ao observado em grandes centros urbanos (Natalino, 2020). A falta de acesso a saneamento básico e alimentação adequada amplifica esses riscos, tornando a APS essencial para a prevenção e o tratamento precoce.
3.2 Barreiras ao Acesso à APS em Sergipe
O acesso da PSR à APS em Sergipe é limitado por barreiras estruturais e sociais. A exigência de documentação para cadastro no SUS, como CPF ou comprovante de residência, é um obstáculo recorrente, especialmente em um estado onde a burocracia ainda predomina em muitas unidades básicas de saúde (UBS) (Carneiro et al., 2021). Além disso, o estigma social enfrentado pela PSR é agravado em contextos menores, como os municípios sergipanos, onde atitudes discriminatórias por parte de profissionais e outros usuários podem ser mais evidentes devido à proximidade comunitária (Paiva et al., 2016).
A distribuição geográfica das UBS também é um desafio. Em Aracaju, onde se concentra a maior parte da PSR, as unidades estão muitas vezes localizadas em áreas residenciais, distantes dos pontos de aglomeração, como praças e mercados. Nos municípios do interior, a cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF) é irregular, e a ausência de transporte público acessível dificulta o deslocamento (Hwang & Burns, 2014). Esses fatores contribuem para a exclusão da PSR dos serviços preventivos, levando a uma dependência de atendimentos emergenciais em hospitais.
3.3 O Papel do Consultório na Rua em Sergipe
O programa Consultório na Rua (CnR) representa a principal iniciativa da APS para atender a PSR em Sergipe. Atualmente, o estado conta com poucas equipes CnR, concentradas em Aracaju, o que reflete a limitação de recursos e a priorização de áreas urbanas maiores (Brasil, 2017). Essas equipes realizam busca ativa, oferecendo cuidados como curativos, vacinação e encaminhamentos, mas enfrentam desafios como falta de insumos e pessoal insuficiente. Em comparação com experiências bem-sucedidas em cidades como São Paulo, onde o CnR reduziu internações evitáveis (Carneiro et al., 2021), a cobertura em Sergipe é incipiente, cobrindo apenas uma fração da PSR estimada.
A ausência de equipes CnR no interior sergipano é particularmente preocupante, dado que pequenas cidades como Itabaiana e Lagarto também abrigam populações em situação de rua, muitas vezes migrantes sazonais ou indivíduos expulsos de contextos familiares. A falta de articulação entre a APS e outros setores, como assistência social, compromete a continuidade do cuidado, um problema já identificado em estudos nacionais (Paiva et al., 2016).
3.4 Perspectivas de Inclusão
Para superar esses desafios, algumas perspectivas emergem como viáveis no contexto sergipano. Primeiramente, a expansão do CnR para além de Aracaju, com financiamento estadual e federal, poderia atender às demandas do interior, adaptando-se às realidades locais, como a mobilidade da PSR entre municípios. A capacitação de agentes comunitários de saúde (ACS) para identificar e acolher essa população nas ESF tradicionais também é uma estratégia promissora, considerando a capilaridade desses profissionais em Sergipe.
Parcerias intersetoriais, envolvendo secretarias de assistência social, ONGs e igrejas locais, poderiam complementar a APS, oferecendo abrigo temporário e suporte psicossocial. Experiências internacionais, como as descritas por Hwang & Burns (2014), mostram que a integração de serviços básicos com cuidados de saúde melhora os desfechos para a PSR. Em Sergipe, iniciativas comunitárias já existentes, como projetos de distribuição de alimentos em Aracaju, poderiam ser articuladas com o CnR para criar uma rede de apoio mais robusta.
4. Conclusão
A APS em Sergipe tem o potencial de transformar o cuidado à população em situação de rua, mas enfrenta barreiras contextuais que demandam soluções específicas. A alta vulnerabilidade dessa população, combinada com a limitada cobertura do CnR e o estigma social, destaca a necessidade de políticas adaptadas à realidade estadual. A expansão de equipes multiprofissionais, o treinamento de profissionais da APS e a integração intersetorial são passos fundamentais para garantir equidade em saúde. Pesquisas futuras devem focar em mapear a PSR em Sergipe e avaliar o impacto das intervenções propostas, contribuindo para um SUS mais inclusivo.
5. Referências
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