ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA EM POPULAÇÕES INDÍGENAS

PHARMACEUTICAL ASSISTANCE IN INDIGENOUS POPULATIONS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7987899


Fernanda Moreira Pereira¹
Méllory Nétaly de Oliveira Magalhães²
Myrna Viana França³
Annyely Menezes dos Santos⁴
Rafael da Costa Melo⁵
Carlos Klinger Rodrigues Serrão⁶


RESUMO: As comunidades indígenas podem sofrer de várias doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, desnutrição infantil, infecções fúngicas da pele, parasitas e doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). A maioria dessas pessoas não tem acesso aos centros de saúde, destacando-se a relevância dessa pesquisa tanto academicamente como socialmente. Dessa forma, o objetivo geral do artigo é analisar o acesso a medicamentos por populações indígenas. Para a discussão sobre o sistema de saúde indígena na perspectiva do cuidado diferenciado ou interculturalidade, é preciso considerar que para os indivíduos e grupos sociais prevalece a tendência de integrar as diferentes formas de cuidado.8 Assim, deve ser reconhecido na organização dos a atenção nos bairros todas as estratégias que buscam prevenir, tratar, controlar, aliviar ou curar uma doença e os processos de justaposição e articulação das formas de atenção, o que não é observado nos resultados dos estudos analisados. Apesar da importância da Assistência Farmacêutica, não existe um instrumento global que justifique a necessidade de um ramo específico da Assistência Farmacêutica ajustado às especificidades dos povos indígenas. Pouco tem sido pesquisado a respeito da Assistência Farmacêutica aos povos Indígenas no contexto brasileiro ou mundial. Considera-se a necessidade de mais pesquisas em um tema tão relevante como a implementação da Assistência Farmacêutica no contexto indígena.

Palavras-chave: Saúde Indígena. Tratamento Medicamentoso. Assistência Farmacêutica. População Indígena. 

ABSTRACT: Indigenous communities can suffer from a number of chronic diseases such as hypertension and diabetes, childhood malnutrition, fungal skin infections, parasites and sexually transmitted diseases (STDs). Most of these people do not have access to health centers, highlighting the relevance of this research both academically and socially. Thus, the general objective of the article is to analyze access to medicines by indigenous populations. For the discussion on the indigenous health system from the perspective of differentiated care or interculturality, it is necessary to consider that for individuals and social groups the tendency to integrate different forms of care prevails.8 Thus, it must be recognized in the organization of care in neighborhoods all strategies that seek to prevent, treat, control, alleviate or cure a disease and the processes of juxtaposition and articulation of forms of care, which is not observed in the results of the analyzed studies. Despite the importance of Pharmaceutical Assistance, there is no global instrument that justifies the need for a specific branch of Pharmaceutical Assistance adjusted to the specificities of indigenous peoples. Little has been researched about Pharmaceutical Assistance to Indigenous Peoples in the Brazilian or worldwide context. There is a need for more research on a topic as relevant as the implementation of Pharmaceutical Assistance in the indigenous context.

Keywords: Indigenous Health. Drug Treatment. Pharmaceutical care. Indigenous Population.

1. INTRODUÇÃO

Segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, existem 896.917 indígenas no Brasil.A Constituição de 1988 reconhece os povos indígenas como os primeiros e naturais proprietários da terra e garante-lhes o direito à terra. A exploração e extração de riquezas minerais em terras indígenas devem ser realizadas somente com autorização do Congresso Nacional, após ouvir as comunidades envolvidas, às quais deve ser garantida a participação nos benefícios da atividade minerária. É proibida a expulsão de indígenas de suas terras (BENEVIDES; PORTILLO; DO NASCIMENTO, 2014).

 O país votou a favor da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007) e da Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2016) e assinou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (MENDES et al., 2018).

No Brasil, os povos indígenas apresentam os piores indicadores de saúde, com altas taxas de mortalidade materna e infantil, altos índices de desnutrição e doenças infecto-parasitárias, aos quais se soma o aumento de doenças crônicas e não transmissíveis, números alarmantes de suicídio, abuso de substâncias e mortes por violência. Até a década de 1980, a perspectiva de extinção desses povos justificava respostas pontuais e esporádicas a essa situação(ORELLANA; GONÇALVES; BASTA, 2012).

No entanto, durante o processo de redemocratização, no final da década de 1980, novos direitos constitucionais dos povos indígenas foram consolidados e sua luta por uma nova política nacional de saúde foi fortalecida. Em 1999, foi aprovada a Lei Arouca (BRASIL, 1999), que decretou a criação do Subsistema de Atenção a Saúde Indígena (SASI) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). No âmbito dessa lei, as populações indígenas passaram a ter acesso às ações de saúde com a organização de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) em seus territórios(MENDES et al., 2018).

O modelo assistencial do Subsistema está detalhado na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), que descreve a organização de uma rede de serviços de atenção básica em territórios indígenas (BRASIL, 2002). Esse modelo de atenção nas comunidades é pautado nas ações dos agentes indígenas de saúde (AIS), apoiado por uma equipe multidisciplinar, e é norteado pela noção de “atenção diferenciada”, que se refere ao reconhecimento e respeito à diversidade sociocultural dos povos indígenas, principalmente aos seus saberes e práticas em saúde (BENEVIDES; PORTILLO; DO NASCIMENTO, 2014).

Vários autores têm discutido as limitações da implementação do SASI. Mendes et al. (2018) apontam que não tem conseguido melhorar significativamente a situação de saúde das populações indígenas, haja vista que o atendimento é descontínuo e ineficaz devido à precariedade de execução e alta rotatividade de profissionais. A organização do cuidado reproduz as características do modelo biomédico hegemônico, na execução de procedimentos, no consumo de medicamentos e na padronização das ações. Benevides, Portillo e Do Nascimento(2014) mostram que a falta de clareza na direção do cuidado diferenciado tem levado a uma noção essencializada de cultura, que não considera as assimetrias entre as medicinas indígenas e o sistema oficial. Dessa forma, as dimensões culturais ainda são compreendidas como barreiras, o que perpetua uma perspectiva integracionista e colonizadora das medicinas tradicionais.

As comunidades indígenas podem sofrer de várias doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, desnutrição infantil, infecções fúngicas da pele, parasitas e doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). A maioria dessas pessoas não tem acesso aos centros de saúde, destacando-se a relevância dessa pesquisa tanto academicamente como socialmente.

Dessa forma, o objetivo geral do artigo éanalisar a assistência farmacêutica  por populações indígenas.

2. METODOLOGIA

O presente trabalho trata-se de uma revisão bibliogrãfica narrativa, onde foi realizada revisão de literatura com a busca de artigos realizada em fevereiro e março de 2023 nas seguintes bases de dados: LILACS, PubMed e SciELO. A busca utilizou uma combinação de três descritores em ciências da saúde (DeCS) e frases das listas de Medical Subject Headings (MeSH). Nas buscas nas bases de dados LILACS e SciELO foram utilizados os seguintes descritores: “indígenas AND saúde AND Brasil”, “indígenas AND medicamentos AND Brasil”, e “indígenas AND assistência farmacêutica” AND Brasil”, em português e inglês. Na base de dados PubMed, foram utilizados apenas os descritores em língua inglesa.

3. ASSISTÊNCIA A SAÚDE INDÍGENA NO BRASIL

A saúde como o bem-estar biológico, psicológico e social de um indivíduo equivale nos povos indígenas à harmonia de todos os elementos que compõem a saúde, ou seja, o direito de ter sua própria compreensão e controle de suas vidas, e o direito à convivência harmoniosa do ser humano com a natureza, consigo mesmo e com os outros, visando o bem-estar integral, a plenitude e a tranquilidade espiritual, individual e social. As práticas médicas dentro desse paradigma indígena não estão relacionadas exclusivamente às doenças físicas individuais, mas também abordam “doenças” relacionadas à sociedade e ao meio ambiente como um todo. O bem-estar da pessoa está vinculado ao da comunidade e do meio ambiente por meio de práticas que buscam o equilíbrio (PACKEISER; DE CASTRO, 2021).

No sentido integral, o pleno gozo da saúde para os povos indígenas, além dos fatores médicos (biológicos), está relacionado aos fatores contextuais que o determinam: acesso à terra/território, aos recursos naturais, ao meio ambiente, moradia, nutrição e harmonia social que emana da expressão irrestrita de sua identidade cultural e da livre determinação de seus negócios (BRILHANTE et al., 2022).

Por isso, a saúde indígena em sua dimensão de saúde coletiva está relacionada a fatores ecológicos, políticos, econômicos, culturais, sociais e espirituais. Um desenvolvimento conceitual mais amplo do direito indígena à saúde está incluído no Comentário Geral 14 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, publicado em agosto de 2000 (DOS SANTOS, 2015).

A população total de indígenas no Brasil chega a aproximadamente 817.000. Segundo dados de 2016, eles vivem em 220 grupos distribuídos em 4.774 aldeias nos 438 municípios do país. O perfil epidemiológico desses povos é notavelmente distinto das comunidades não indígenas, com altas taxas de morbidade e mortalidade, especialmente no caso de doenças infecciosas parasitárias. Devido à transição epidemiológica pela qual esses grupos estão passando devido à aquisição de hábitos sociais e nutricionais ocidentais, os agentes de saúde estão vendo o surgimento de doenças nuncaexistentes em suas aldeias, como hipertensão arterial, diabetes e câncer (BIUDES; TANANTA et al., 2021; DE GUSMÃO; COHN, 2021).

No Brasil, os movimentos de apoio à saúde indígena ganharam força na década de 1990, com o estabelecimento do SUS como sistema universal de saúde e o reconhecimento na Constituição Federal de 1988 do direito dos povos indígenas à sua terra, cultura, línguas e tradições. Esses desdobramentos levaram à criação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas em 1999, seguida da criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI) com base nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs)

No SASI, equipes multidisciplinares oferecem em terras indígenas. No entanto, apesar da criação dos DSEIs, a rede de subsistemas ainda não está totalmente operacional. Recursos físicos e humanos inadequados estão resultando em rotatividade de pessoal e prestação de serviços desigual, principalmente pela falta de profissionais com experiência em saúde indígena (DOS SANTOS, 2015).

Desde 2011, houve fortes incentivos governamentais para fortalecer os serviços de APS por meio do Programa Saúde da Família, que ampliou a cobertura do SUS para cidadãos em áreas remotas. Desde 2013, com a implantação do Programa Mais Médicos (PMM), mais de 18.000 médicos foram alocados em regiões de difícil acesso e vulnerabilidade especialmente alta, incluindo territórios indígenas. O PMM recebeufeedback positivo dos grupos indígenas que receberam seu atendimento. Problemas também foram encontrados na implementação deste programa, por exemplo, dificuldades de comunicação e choques culturais, que poderiam ter sido mitigados se os profissionais tivessem recebido instruções sobre a cultura e a língua dos povos nativos promovem a saúde e previnem doenças, compartilhando informações sobre práticas de saúde populares, tradicionais e biomédicas (BIUDES; DE GUSMÃO; COHN, 2021).

A maioria das causas de morte de crianças indígenas no Brasil são doenças evitáveis. Algumas das doenças mais prevalentes são tuberculose, malária, diarreia, doenças parasitárias, desnutrição, dermatoses e doenças sexualmente transmissíveis. Nas últimas décadas, o Brasil em geral teve uma redução significativa nas taxas de mortalidade infantil, mas as taxas para crianças indígenas não caíram tanto quanto para o país como um todo.

Entre 2002 e 2007, a desnutrição infantil no país caiu mais de 60%, mas a população de crianças com baixo peso foi quatro vezes maior na Região Norte, especialmente nas comunidades indígenas. A cobertura vacinal no Brasil expandiu-se significativamente por meio de estratégias de imunização sistemática, mesmo em populações indígenas.

Em 1999, a Lei Arouca (Lei nº 9.836/99) instituiu o Subsistema de Saúde Indígena e, em 2002, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) garantiu o acesso universal e integral aos serviços de saúde(BIUDES; DE GUSMÃO; COHN, 2021).

O Distrito Sanitários (DSEI) deve oferecer serviços de atenção básica articulados com os demais serviços do sistema nacional de saúde, de forma a garantir a assistência de média e alta complexidade. A estrutura do DSEI envolve a atuação dos agentes indígenas de saúde (AIS) nas comunidades; os postos de referência (pólos de base), com equipes multidisciplinares (Emsi) compostas por médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem, e a Casa de Saúde do Índio (Casai), que apóia atividades de encaminhamento para atendimento fora das comunidades. Os AIS foram formalmente contratados e, em 2005, já eram 4.751 (DOS SANTOS, 2015).

De acordo com a política nacional, as atribuições do AIS são o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento de crianças, gestantes, doentes crônicos, vacinação, tratamento prolongado, bem como atendimento a casos de doenças frequentes, primeiros socorros, promoção da saúde e prevenção das doenças mais frequentes.6 No entanto, não há esclarecimento sobre quais são as ações específicas que o AIS deve desenvolver. De acordo com as diretrizes nacionais, a formação de agentes é uma estratégia para favorecer a apropriação dos conhecimentos e recursos técnicos da medicina ocidental. Nesse sentido, foi elaborada uma proposta nacional que não foi totalmente implementada (PACKEISER; DE CASTRO, 2021; BIUDES; DE GUSMÃO; COHN, 2021).

4. ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA INDÍGENA

A pandemia do COVID-19 começou em um momento em que o governo brasileiro estava buscando desenvolver a Amazônia para mineração, extração de madeira, agricultura e revendo o status de proteção das terras indígenas. Ao mesmo tempo, desnutrição, hepatite B, tuberculose e diabetes, bem como a falta de acesso a cuidados de saúde, significou que essas tribos foram particularmente vulneráveis ao surto do vírus. Grupos indígenas tem solicitado reiteradamente que os invasores, garimpeiros, madeireiros, caçadores furtivos, traficantes de drogas, grileiros, missionários e turistas que podem ser vetores de transmissão que sejam expulsos de suas terras forasteiros que possam introduzir a doença, segundo as Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (DA SILVA et al., 2021).

Tribos indígenas já viram suas comunidades devastadas por doenças exógenas no passado. Durante a pandemia de influenza H1N1 de 2009, sua taxa de mortalidade foi 4,5 vezes maior do que o resto da população geral do Brasil. Além disso, a vacinação como manejo contra o H1N1 falhou em proteger uma comunidade indígena em 2016, e centenas de índios, principalmente da tribo Guaraní no sul do Brasil, morreram. Atualmente, as doenças respiratórias causam aproximadamente um terço das mortes indígenas no Brasil, o que foi um fator complicador durante a pandemia de COVID-19 (BRILHANTE et al., 2022).

As características indígenas são importantes para descrever e, entre elas, o papel fundamental dos indivíduos mais velhos. Os idosos representam o conhecimento e a cultura da população indígena. No entanto, alguns hábitos da cultura tradicional foram misturados com os hábitos da sociedade moderna. O COVID-19 está associado a um maior risco de morte em pacientes idosos e comorbidades. A idade variou de 0 meses a 88 anos, sendo um dos mais velhos uma liderança indígena e uma perda inestimável para sua etnia indígena. Ainda assim, entre os casos, muitos indígenas apresentavam comorbidades associadas a uma maior gravidade da COVID-19. O impacto da pandemia de COVID-19 no cacique ou ancião da aldeia pode levar à extinção de suas culturas, pois as tradições são transmitidas oralmente pelos anciãos.

A carência de informações sobre avaliação e discussões na assistência farmacêutica à população indígena é evidenciada nesta revisão. No entanto, é importante destacar que, embora não tenham sido encontradas discussões ou pesquisas ricas sobre a assistência farmacêutica aos territórios indígenas, isso não significa que não haja Assistência Farmacêutica nas áreas indígenas. Esse cenário reflete a lacuna no interesse político e científico pelo tema ou por falta de investimentos em pesquisa ou pela insuficiente atenção dada a esse segmento populacional, historicamente negligenciado (PACKEISER; DE CASTRO, 2021; AZEVEDO; GURGEL; TAVARES, 2014).

Os gastos com a saúde dos povos indígenas perderam, em termos reais, quase R$ 270 milhões em 2019, o que prejudica ainda mais o atendimento adequado a essa população, que se distribui por todo o território brasileiro. Com relação aos gastos com medicamentos para a saúde indígena, também houve redução significativa em 2019, para menos da metade. No entanto, pode ser atribuído a mudanças na metodologia de extração de dados em resposta à solicitação de acesso à informação. A solicitação de 2018 foi atendida pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, enquanto a solicitação de 2019 foi atendida pela Coordenação-Geral de Planejamento e Orçamento. Essa variação reflete a importância de identificar corretamente esses gastos nos sistemas de monitoramento orçamentário, devido à importância de garantir a saúde dessa população e monitorar o subsistema especial de saúde indígena – no qual boa parte das ações e recursos são realizados por organizações terceirizadas (BRILHANTE et al., 2022).

Os benefícios da Assistência Farmacêutica Indígena vão além daqueles promovidos pela Assistência Farmacêutica convencional. Embora centrada no paciente e baseada no tratamento farmacológico adequado, eficaz e seguro, a Assistência Farmacêutica Indígena também considera todos os aspectos epidemiológicos, culturais, econômicos e geográficos da comunidade indígena. Portanto, uma adequada Assistência Farmacêutica Indígena pode contribuir para a autonomia e manutenção da identidade da medicina tradicional, ao mesmo tempo em que amplia o acesso aos medicamentos convencionais e às tecnologias pelos povos indígenas (AZEVEDO; GURGEL; TAVARES, 2014).

O cuidado necessário na racionalização do uso de medicamentos industrializados e as considerações sobre questões étnicas e culturais para a prestação de assistência farmacêutica específica aos indígenas não pressupõe qualquer descaso em relação às demandas de saúde desses povos ou ao acesso, mas um atendimento personalizado por meio da inserção da medicina convencional de forma consentida e baseada no respeito às condutas terapêuticas tradicionais. Isso só é possível por meio da sensibilização do profissional responsável por essa Assistência Farmacêutica, analisando novos contextos a partir das concepções de adoecimento dos indígenas (CARVALHO; OLIVEIRA; GUIMARÃES, 2014).

Um grande desafio no contexto da saúde indígena e da prestação de serviços envolvendo a Assistência Farmacêutica é o descaso com as especificidades do paciente indígena e o foco na disponibilidade e acesso aos medicamentos. Atualmente, a Assistência Farmacêutica considera o paciente como o maior beneficiário do ciclo assistido e regulado da medicação; entretanto, no contexto indígena, ainda há muito a ser feito, principalmente no que diz respeito à valorização da medicina tradicional e ao uso racional da medicação convencional (PACKEISER; DE CASTRO, 2021).

As interações entre pacientes e medicamentos são afetadas pela linguagem e pela cultura. O uso de medicamentos prescritos varia de acordo com a etnia e é influenciado por diferentes crenças e origens culturais. A cultura pode afetar atitudes e crenças em relação a diferentes tipos de doenças em diferentes grupos ou dentro das mesmas comunidades. As atitudes dos homens indígenas em relação à doença mental resultam em menos prescrições de antidepressivos do que em homens não indígenas. As atitudes das mulheres indígenas em relação à mesma doença resultam em significativamente menos prescrições do que as mulheres não indígenas (MENDES et al., 2018; AZEVEDO; GURGEL; TAVARES, 2014).

As motivações ou desejos dos pacientes para procurar assistência médica e acesso aos cuidados de saúde diferem entre os vários grupos étnicos. O uso de medicamentos em crianças também difere com a etnia. De fato, a etnia pode afetar o uso de medicamentos de várias maneiras: por meio de pedidos de prescrição, crenças sobre a eficácia dos medicamentos prescritos ou OTC (Over The Counter), ou dificuldade de acesso aos serviços farmacêuticos (CARVALHO; OLIVEIRA; GUIMARÃES, 2014).

A ferramenta terapêutica utilizada historicamente pelos Povos Indígenas é a Medicina Tradicional, definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como a soma de conhecimentos, habilidades e práticas baseadas em teorias, crenças e experiências próprias de diferentes culturas, explicáveis ou não. Além disso, a OMS reconhece a Medicina Tradicional como uma ferramenta utilizada para manutenção da saúde, diagnóstico, tratamento e cura de doenças físicas e mentais (AZEVEDO; GURGEL; TAVARES, 2014).

Desde a Declaração de Alma-Ata, a OMS tem unido esforços para incorporar a Medicina Tradicional nos Serviços de Saúde Pública (OMS, 1978) e, com poucos avanços práticos nos países, ainda realiza mecanismos de proteção e fortalecimento da Medicina Tradicional. Nesse esforço, a “Estratégia da OMS sobre Medicina Tradicional 2002-2005” (OMS, 2002) e suas atualizações (OMS, 2013) trazem diretrizes sobre políticas, segurança, qualidade e eficácia, acesso e uso racional de medicamentos tradicionais.

Além disso, o tópico sobre Medicina Tradicional no manual “Estratégia Farmacêutica 2004-2007” (OMS, 2004) recomenda acesso, proteção dos direitos de propriedade intelectual e segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos tradicionais. As atuais recomendações da OMS baseiam-se no aproveitamento do potencial contributo da Medicina Tradicional e Complementar para a saúde, bem-estar e cuidados de saúde centrados nas pessoas e na promoção do uso seguro e eficaz da Medicina Tradicional e Complementar através da regulamentação e investigação, bem como incorporar produtos, profissionais e práticas nos sistemas de saúde de maneira apropriada (CARVALHO; OLIVEIRA; GUIMARÃES, 2014).

O Ministério da Saúde do Brasil declarou em 20 de janeiro de 2023, uma emergência médica no território Yanomami, a reserva indígena mais importante do país na fronteira com a Venezuela, já que crianças estão morrendo de desnutrição e outras doenças causadas pela mineração ilícita de ouro. Em decreto do governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que pretendia devolver os serviços de saúde à região Yanomami, dizimados por seu antecessor Jair Bolsonaro (RUFINO, 2023).

Desde janeiro de 2023, aeronaves da Força Aérea Brasileira (FAB) têm lançado cargas diárias, os chamados voos de reabastecimento, de suprimentos médicos e alimentícios para aldeias indígenas Yanomami, no oeste de Roraima. A bordo dos aviões KC-390 e C-105 Amazonas, cerca de 120 mil cargas de alimentos e remédios foram entregues às comunidades indígenas, incluindo a comunidade indígena Surucucu, que abriga um pelotão de fronteira do Exército Brasileiro. A região é uma das mais atingidas pelos efeitos do garimpo ilegal, que tem agravado as doenças dos indígenas e aumentado a violência (RUFINO, 2023).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados da pesquisa sobre o trabalho e a formação dos AIS no Brasil apontam a importância da análise das relações de hegemonia e subordinação entre os modelos de atenção. Observou-se a desvalorização do trabalho do AIS e seu papel subalterno nas relações hierárquicas nas equipes. Nas análises do processo formativo, constatou-se que prevalecem as práticas e os saberes biomédicos, enquanto os saberes e as práticas indígenas são desvalorizados.

Para a discussão sobre o sistema de saúde indígena na perspectiva do cuidado diferenciado ou interculturalidade, é preciso considerar que para os indivíduos e grupos sociais prevalece a tendência de integrar as diferentes formas de cuidado. Assim, deve ser reconhecido na organização da atenção todas as estratégias que buscam prevenir, tratar, controlar, aliviar ou curar uma doença e os processos de justaposição e articulação das formas de atenção, o que não é observado nos resultados dos estudos analisados.

O Ministério da Saúde brasileiro entende que a Assistência Farmacêutica diz respeito a diversas atividades relacionadas a medicamentos, que dão suporte ao serviço de saúde demandado pela comunidade. Essas atividades dizem respeito às etapas do ciclo logístico do medicamento, como produção, armazenamento, controle de qualidade, segurança e eficácia terapêutica dos medicamentos; monitoramento e avaliação de uso; fornecimento e divulgação de informações sobre medicamentos e educação permanente de profissionais de saúde, pacientes e comunidade, para garantir o uso racional de medicamentos.

Apesar da importância da Assistência Farmacêutica, não existe um instrumento global que justifique a necessidade de um ramo específico ajustado às particularidades dos povos indígenas. Pouco tem sido pesquisado a respeito da Assistência Farmacêutica aos povos Indígenas no contexto brasileiro ou mundial. Considera-se a necessidade de mais pesquisas em um tema tão relevante como a implementação da Assistência Farmacêutica no contexto indígena.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Ana Lucia Martins de; GURGEL, Idê Gomes Dantas; TAVARES, Maurício Antunes. O poder de acessar a saúde: uma análise do acesso à saúde na etnia indígena Xukuru do Ororubá, Pesqueira (PE). Cadernos Saúde Coletiva, v. 22, p. 275-280, 2014.

BENEVIDES, Luciana; PORTILLO, Jorge Alberto Cordón; DO NASCIMENTO, Wanderson Flor. A atenção à saúde dos povos indígenas do Brasil: das missões ao subsistema. Tempus–Actas de Saúde Coletiva, v. 8, n. 1, p. ág. 29-39, 2014.

BIUDES, Renata Favoni; DE GUSMÃO, Henrique Brandão Accioly; COHN, Amélia. Direito à saúde e a assistência farmacêutica para populações vulneráveis: um olhar sobre a saúde indígena no Brasil. Unisanta Law and Social Science, v. 10, n. 2, p. 279-293, 2021.

BRASIL. Lei no 9.836, de 23 de setembro de 1999. Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. 1999. Disponível em:  https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9836.htm. Acesso em 21 de mar. de 2023.

BRASIL. Política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas. FUNASA, Ministério da Saúde. 2002. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf. Acesso em 21 de mar. de 2023.

BRILHANTE, Francisco Davi Fernandes et al. Assistência farmacêutica aos povos indígenas no brasil. Ciências da saúde: desafios, perspectivas e possibilidades-volume 5, v. 5, n. 1, p. 22-37, 2022.

CARVALHO, André Luís Menezes; OLIVEIRA, A. L. B.; GUIMARÃES, S. S. Caracterização epidemiológica das populações indígenas e do Subsistema de Saúde Indígena do Brasil: uma revisão integrativa da literatura. Bol. Inf. Geum, v. 5, n. 3, p. 72-8, 2014.

DA SILVA, William Nicoleti Turazza et al. Síndrome respiratória aguda grave em indígenas no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil: uma análise sob a perspectiva da vigilância epidemiológica. Vigilância Sanitária em Debate: Sociedade, Ciência & Tecnologia, v. 9, n. 1, p. 2-11, 2021.

DOS SANTOS, Monica Maria Henrique. Assistência farmacêutica como estratégia estruturante para a promoção do uso racional de medicamentos na saúde indígena de Pernambuco: uma abordagem econômica. Revista de APS, v. 18, n. 2, 2015.

MENDES, Anapaula Martins et al. O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, v. 42, p. e184, 2018.

ORELLANA, Jesem Douglas Yamall; GONÇALVES, Maria Jacirema Ferreira; BASTA, Paulo Cesar. Características sociodemográficas e indicadores operacionais de controle da tuberculose entre indígenas e não indígenas de Rondônia, Amazônia Ocidental, Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 15, p. 714-724, 2012.

PACKEISER, Priscila Becker; DE CASTRO, Mauro Silveira. Avaliação do processo de dispensação de medicamentos na saúde indígena por meio de simulação de atendimento. Clinical and Biomedical Research, v. 41, n. 1, 2021.

RUFINO, Marcos Pereira. The equality trap: notes on indigenist policies in the Bolsonaro government. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, v. 19, 2023.

TANANTA, Almir Leandro Feitosa et al. Assistência farmacêutica e acompanhamento farmacoterapêutico em populações chaves acometidas por tuberculose: uma revisão integrativa de literatura. Research, Society and Development, v. 10, n. 14, p. e438101422111-e438101422111, 2021.


¹Email: nandamoreiras2@hotmail.com
²Email: mellorynetalydeoliveiramagalha@gmail.com Orcid: 0000-0002-4819-441X
³Email: myrnaviana99@gmail.com
4Email: menezesannyely@gmail.com
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6Orientador Farmacêutico e Mestre em Ciências Farmacêuticas – PPGCF/UFAM Orcid: 0000-0002-4185-4059