NURSING CARE FOR WOMAN IN THE PROCESS OF ABORTION
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8187685
Daniela Vieira Prado1
RESUMO: Além de se tratar de um assunto de saúde pública pela alta incidência de casos de mortandade materna, o aborto é também uma questão política na medida em que a assistência prestada às mulheres em processo de abortamento, muitas vezes, é praticada de forma desumana, preconceituosa e condenatória, o que também pode se caracterizar como uma espécie de violência. Desta forma, o presente estudo objetiva contribuir para a conscientização do enfermeiro quanto à temática e aplicabilidade efetiva da Humanização no processo de abortamento, de forma que esta contribua como ferramenta integrante no processo saúde-doença, valorizando os aspectos psicossociais e o vínculo interpessoal como parte do cuidado holístico. Verificou-se, através do levantamento bibliográfico, que alguns fatores interferem de forma significativa para a efetividade de sua execução no cotidiano deste setor; entre esses fatores foram observados desde questões bioéticas e emocionais, sejam referentes ao próprio enfermeiro, equipe, pacientes e familiares, até mesmo a interferência direta do tecnicismo, ambiente físico inadequado e a comunicação ineficaz. A revisão da literatura demonstrou que cabe ao enfermeiro o conhecimento e valorização de tais particularidades de forma que, como profissional diretamente responsável pela assistência, auxilie holisticamente não somente à mulher neste momento difícil, mas também familiares e equipe de enfermagem, para que o cuidado biopsicossocial realmente seja instrumento útil e aplicável no processo de recuperação, gerando benefícios mútuos, assistência com ética e qualidade, construção de novos hábitos e a humanização como alicerce de atitudes.
PALAVRAS-CHAVE: Aborto; Humanização; Assistência de enfermagem.
ABSTRACT: Besides being a public health issue for the high incidence of maternal mortality, abortion is also a political issue in that the assistance provided to women in abortion process often is practiced inhumanely, prejudiced and conviction, which can also be characterized as a kind of violence. Thus, this study aims to contribute to the awareness of the nurse on the subject and effective applicability of Humanization in the abortion process, so that it contributes as an integral tool in the health-disease, valuing the psychosocial and interpersonal relationship as part the holistic care. It was found through the literature, that some factors interfere significantly to the effectiveness of their implementation in the daily life of this sector; among these factors were observed from bioethical and emotional issues are related to own nurse, staff, patients and families, even the direct interference of the technicality, unsuitable physical environment and ineffective communication. The literature review has shown that it is up to nurse the knowledge and appreciation of these particularities so that, as a professional directly responsible for the care, assist holistically not only the woman at this difficult time, but also family members and nursing staff, so that care biopsychosocial is really useful and applicable tool in the recovery process, generating mutual benefits, assistance with ethics and quality, building new habits and humanization as a foundation of attitudes.
KEYWORDS: Abortion. Humanization. Nursing care.
INTRODUÇÃO
Segundo o site da OMS (Organização Mundial de Saúde), SAÚDE retrata “o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”. Considerando a abrangência e a profundidade desta definição, torna-se impossível minimizar o ser humano à sua condição meramente biomédica/curativista, mas imperativo analisar com uma visão ampla o que, de fato, é necessário para que o atendimento exceda o limite corpóreo e inclua o bem-estar social como parte desta condição. Sob esse olhar, reavaliar as práticas de assistência à saúde – muito além dos discursos de classes profissionais, formações acadêmicas tradicionais e “engessadas” – faz-se necessário, humanizando o cuidado e expandindo-o para todas as esferas de convivência (RIOS, 2009).
Considerando tal reflexão, um particular aspecto da saúde da mulher evidencia um inigualável desconforto físico, emocional e psicológico: o aborto. De acordo com o Dicionário Médico Dorland, “aborto é o nascimento de um feto com menos de 500g ou antes de 20 semanas completadas de idade gestacional no momento da expulsão do útero, não possuindo nenhuma probabilidade de sobrevida”.
Em relação à forma de expulsão do feto, o aborto pode ser considerado provocado ou espontâneo. A diferença entre os dois é que o primeiro refere-se à interrupção da gravidez causada por uma intervenção externa e intencional, enquanto que o segundo é geralmente ocasionado sem intervenção externa, isto é, acontecendo de forma involuntária ou casual, por causas naturais como doenças da mãe ou defeitos genéticos do embrião (FAÚNDES & BARZELATTO, 2004).
Para Boemer et al, (2003), o aborto é uma questão polêmica, que envolve preconceitos e discriminação, desde a antiguidade até os dias de hoje. Faz com que mulheres passem por diferentes situações durante todo o seu processo, principalmente nas situações de internação (na maioria das vezes de urgência) em que sentimentos dolorosos frequentemente se manifestam. Explica ainda que, frequentemente, o percurso de internação dessas mulheres externa suas sensações de angústia, medo, inquietação e indiferenças, aumentando na medida em que evolui o tempo.
No Brasil, o abortamento é responsável por 11,4% do total de mortes maternas e 17% das causas obstétricas diretas, com parcela significativa devida ao abortamento provocado (BRASIL, 2008).
Segundo o Ministério da Saúde (2010), 31% das gestações terminam em abortamento, correspondendo a 1.443.350 abortamentos anuais, o que resulta em uma taxa de 3,7 abortamentos/100 mulheres de 15 a 49 anos. Este valor é superior aos encontrados em países da Europa ocidental, onde a prática é legal e acessível e está associada à grande disponibilidade de meios de planejamento familiar. Através de uma série histórica de hospitalizações de 1992 a 2005 na rede pública, registradas no Sistema de Informação Hospitalar do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS), foram encontrados 1.054.242 internamentos por aborto, equivalendo a uma taxa média de 2,07 abortos por 100 mulheres entre 15 a 49 anos de idade em 2005. (ADESSE et al., 2008).
Aspectos culturais, religiosos, legais e morais inibem as mulheres a declarar seus abortamentos, dificultando o cálculo da sua magnitude (BRASIL, 2010).
Além de tudo isso, o aborto é, indubitavelmente, uma questão de Saúde Pública: a Organização Pan-americana da Saúde considera a mortalidade materna como um indicador importante da qualidade da atenção prestada às mulheres e, portanto, das condições de vida de uma população. Neste contexto, por sua morbimortalidade, o abortamento é considerado um grave problema, sobretudo nos países em desenvolvimento, e adquiriu maior visibilidade com a ampliação da discussão acerca do empoderamento de ações no campo da saúde da mulher (OPAS, 2005).
Em 2005, o governo brasileiro criou a Norma Técnica para Atenção Humanizada ao Abortamento, como um guia para uma atenção pós-abortamento de qualidade, além de ser um referencial ético e legal para os serviços e profissionais na assistência à saúde das mulheres (BRASIL, 2005; 2010).
A norma técnica propõe estratégias de expansão do acesso à atenção de qualidade ao pós-abortamento, envolvendo atenção clínica adequada, seguindo princípios éticos, legais e bioéticos, acolhimento e orientação para atender às necessidades da mulher, sejam elas de caráter emocional, social ou físico, prática integrada com outros serviços de atenção à saúde e de inclusão social da mulher, garantia do planejamento reprodutivo no pós-abortamento e parceria entre comunidade e profissionais de saúde para garantir um serviço de qualidade (BRASIL, 2005; 2010).
Demonstrada a relevância do tema, inevitável indagar: “Qual o papel do enfermeiro no acolhimento de uma mulher que aborta? Como humanizar este processo de forma a contribuir com o restabelecimento integral da sua saúde, sendo sua saúde entendida na forma mais ampla da definição?”
A qualificação e a humanização da assistência, resultantes da Política de Humanização atrelada às diretrizes do SUS, vem valorizando o cuidado integral ao ser humano, de forma a considerar e embasar as condutas através do olhar holístico, multidisciplinar e multifatorial, os quais interferem diretamente no processo saúde-doença e na compreensão da mulher que sofreu aborto sobre seu referido processo. (RIOS, 2009).
Contudo, Gomes e Santos (2009) destacam que, na prática diária, ainda se nota que os profissionais de enfermagem (baseados no modelo hegemônico do cuidado centrado
em especialidades de forma fragmentada) permitem e favorecem um grande distanciamento da singularidade e subjetividade de cada usuário, deixando de atendê-lo em todas as suas carências.
Sabe-se que é de suma importância combinar a sensibilidade ao conhecimento teórico, percebendo e interferindo positivamente no processo de comunicação, propondo com este modelo, estabelecer um novo padrão e referencial de prestação de cuidados extensivo e abrangente, e efetivamente humano ao paciente.
O presente estudo visa realizar a revisão da literatura sobre a assistência de enfermagem humanizada às mulheres em processo de abortamento seja ele espontâneo ou induzido, fornecendo aos enfermeiros informações e estratégias como propostas de prestação do cuidado às pacientes pós-aborto, envolvendo ética, atenção e humanização.
Como objetivos específicos do estudo foram levantadas as seguintes etapas visando atingir o objetivo geral:
1) Discutir estratégias para a melhoria da assistência humanizada em processos de abortamento, colaborando para a valorização da prática profissional do enfermeiro e da equipe de enfermagem;
2) Verificar a importância da conscientização do enfermeiro na assistência holística dentro do contexto crítico do processo de abortamento;
3) Estimular o comprometimento do enfermeiro e equipe de enfermagem na qualidade do serviço prestado à paciente em processo de abortamento;
4) Promover a discussão entre o diferencial de humanização como processo científico, diferentemente de uma assistência de enfermagem puramente “vocacional”;
5) Refletir sobre a aplicabilidade da humanização como parte integrante do processo de recuperação da paciente.
METODOLOGIA
O presente estudo se propoz a realizar uma abordagem qualitativa. O tipo de pesquisa realizado foi descritiva, tendo em vista o grande número de informações publicadas sobre o assunto, o que torna possível a busca de sugestões para o problema apresentado, procurando analisar de forma crítica a abordagem realizada por
RESULTADOS E DISCUSSÃO
HUMANIZAÇÃO E ENFERMAGEM
A humanização vem se constituindo um tema central na atualidade, configurando um parâmetro importante na qualidade do cuidado prestado pela instituição ao indivíduo.
Humanizar significa cuidar, assistir ao paciente como um todo, englobando todas suas necessidades básicas, contexto familiar e social no qual está inserido, respeitando-o em todos esses aspectos culminando em uma assistência com profissionalismo, dignidade e ética.
Ao dissertar-se sobre este tema, primeiramente é necessário considerar o ambiente físico propício a essa assistência holística. Contudo, as alterações e adaptações do ambiente físico, embora sejam importantes, não podem ser consideradas como o foco principal, porque o verdadeiro cuidado deve estar respaldado não somente em adequações físicas, mas em mudanças de atitudes por seus autores, bem como a relação entre as variáveis que influenciam o problema em questão, a fim de contribuir para a reflexão e discussão na área de umanização.
A coleta de dados foi realizada através de Pesquisa Bibliográfico- Documental.
A análise de dados foi efetuada avaliando a qualidade de informações encontradas sobre o assunto.
parte do enfermeiro e equipe, de forma que invariavelmente a complexidade do ser humano seja resgatada, articulando aspectos subjetivos, indissociáveis dos aspectos físicos e biológicos.
Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2001), humanizar pode ser definido como:
Humanização em saúde é resgatar o respeito à vida humana, levando-se em conta as circunstâncias sociais, éticas, educacionais e psíquicas presentes em todo relacionamento humano.
Humanizar é resgatar a importância dos aspectos emocionais, indissociáveis dos aspectos físicos na intervenção em saúde (BRASIL, 2001, p.11).
Assim, humanizar não é uma técnica ou um artifício, mas um processo vivencial que permeia todas as atividades dos profissionais que trabalham em um determinado espaço físico comum.
Dentro do processo de humanização cada indivíduo deve ser considerado único, com necessidades, valores e crenças específicas; preservar sua dignidade significa respeitar os princípios da moral e do código de ética.
No sentido de ampliar e disseminar a humanização nos hospitais, o Ministério da Saúde, em 2000 criou o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), objetivando a melhoria da qualidade do atendimento público à saúde e valorização dos profissionais da área, aprimorando as relações entre estes profissionais e os usuários, entre os próprios profissionais e destes com o hospital e a comunidade:
No campo das relações humanas que caracterizam qualquer atendimento de saúde, é essencial agregar a eficiência técnica e científica a uma ética que considere e respeite a singularidade das necessidades do usuário e do profissional, que acolha o desconhecido e imprevisível, que aceite os limites de cada situação (BRASlL, 2001, p.52).
No intuito de reforçar a integralidade da assistência , assim como visando o reconhecimento e estímulo às iniciativas de humanização, o Ministério da Saúde criou, dentro do PNHAH, criou um sistema de incentivo que concede o título de “Hospital Humanizado” às instituições que executarem suas funções em conformidade com os indicadores e princípios desse programa.
Deve-se considerar que a valorização e habilitação dos profissionais da área tornam-se a “chave-mestra” para a assistência de qualidade, pois a conscientização gera sensibilidade crítica e analítica diante da fragilidade física e emocional sofrida pela cliente ocasionada pelo estado de agravo à saúde vivenciada; estas considerações são inevitáveis e interferem de forma decisiva nas relações interpessoais do cliente (aquele que recebe o cuidado) e a equipe (aquele que fornece a assistência).
Sem dúvida, quando esses sentimentos são devidamente compreendidos, valorizados e incorporados à atividade do profissional no ato da assistência, podem se tornar instrumentos valiosos no atendimento à saúde. Da mesma forma, considerar os aspectos sociais e familiares também contribui para o restabelecimento do seu bem-estar (BRASIL, 2001, p.53):
As dimensões subjetivas dos profissionais de saúde devem ser consideradas em todo processo de humanização.
O serviço de saúde será tanto mais eficaz e consistente quanto mais articular o conhecimento teórico e técnico da ciência médica aos aspectos afetivos, sociais, culturais e éticos da relação entre o profissional e o usuário.
Em 2003, o PNHAH foi substituído pela Política Nacional de Humanização (PNH)-HumanizaSUS, transformando o tema em algo muito mais abrangente, tornando a humanização não somente parte de um programe governamental, mas parte integrante de uma política pública de saúde, passando a abranger até mesmo as instituições primárias de atenção, transversalizando as diferentes ações e instâncias gestoras do SUS (BRASIL, 2004).
A PNH, assim como o SUS, se compromete a possibilitar a assistência integral à população e a propor estratégias que possibilitem contribuir para o exercício pleno da cidadania, através de práticas de saúde solidárias, com compromisso e acolhimento, valorizando usuários, trabalhadores e gestores, reconhecendo a diversidade étnica do povo brasileiro, de forma a respeitar sem distinção idade, raça, origem, gênero e orientação sexual (BRASIL, 2004).
O destaque para operacionalização do PNH está no resgate do funcionamento básico das práticas que norteiam às ações de saúde, de forma a corresponsabilizar todos os integrantes da assistência para a obtenção do resultado final:
Trabalhar implica na produção de si e na produção do mundo, das diferentes realidades sociais, ou seja, econômicas, políticas, institucionais e culturais;
As mudanças na gestão e na atenção ganham maior efetividade quando produzidas pela afirmação da autonomia dos sujeitos envolvidos, que contratam entre si responsabilidades compartilhadas nos processos de gerir e de cuidar (BRASIL, 2004, p.24).
Entre as diretrizes da PNH (orientações gerais da política), relaciona-se a cogestão, acolhimento, valorização do trabalho e trabalhador, bem como defesa dos direitos do usuário, visando obter resultados que se traduzam em atendimento acolhedor e resolutivo.
Os dispositivos, por sua vez, têm por objetivo atualizar essas diretrizes através de estratégias que visem modificar os modelos de atenção e de gestão em curso, sempre que tais modelos estiverem na contramão do que preconiza o SUS. Entre esses dispositivos propostos, pode-se citar o acolhimento como classificação de risco, colegiado gestor, visita aberta e direito a acompanhante. A aplicação destes dispositivos deve ser considerada dentro da especificidade e realidade de cada instituição, de forma que sejam utilizadas de maneira a interferir na atuação e efetividade do trabalho local:
[…] a PNH como aporte e articulação de um conjunto de referenciais e de instrumentos, que tem como finalidade maior estar em meio aos processos de trabalho, no movimento de sua constituição, buscando ajudar a desequilibrar seus arranjos e produzir desvios nas relações instituídas, instigando novas composições, outras possibilidades de ser e trabalhar no âmbito da saúde
(GOMES et al., 2009).
A política de humanização pode ser considerada como um objetivo a ser construído através do aperfeiçoamento contínuo das relações humanas no âmbito hospitalar.
A definição de acolhimento, referida pelo PNH, denota a importância do vínculo e confiança necessários à atenção:
Processo constitutivo das práticas de produção e promoção de saúde que implica responsabilização do trabalhador/equipe pelo usuário, desde a sua chegada até a sua saída. Ouvindo sua queixa, considerando suas preocupações e angústias, fazendo uso de uma escuta qualificada que possibilite analisar a demanda e, colocando os limites necessários, garantir atenção integral, resolutiva e responsável por meio do acionamento/articulação das redes internas dos serviços (visando à horizontalidade do cuidado) e redes externas, com outros serviços de saúde, para continuidade da assistência quando necessário (BRASIL, 2004, p.51).
A construção de qualidade na assistência não pode ser resumida somente na aplicação dos princípios e diretrizes do SUS, enquanto se percebe uma notória desaceleração no investimento e na preocupação da qualificação de profissionais. Afinal, segundo o próprio PNH, a humanização somente é possível quando ocorre uma “troca de saberes” entre usuários e profissionais de saúde, valorizando a autonomia e a subjetividade.
Resumidamente, pode-se definir a Política de Humanização como um elemento de transversalidade (comunicação efetiva nos grupos e entre os grupos) que abrange desde o acolhimento até a gestão administrativa dentro de uma instituição.
A política de humanização deve ser tratada como um elemento de transversalidade para o SUS, estando presente desde a recepção e acolhimento do usuário no sistema de saúde, até o planejamento e gestão das ações e estratégias, sejam elas de promoção, prevenção e /ou reabilitação. Sendo assim, quando se considera o cenário hospitalar, é necessário entender que a humanização precisa estar voltada não só ao paciente internado e aos seus familiares, mas também à própria equipe de saúde, uma vez que será pela inter-relação efetiva e afetiva existente entre eles que o cuidado poderá ser desenvolvido de maneira mais humana, ética e solidária (SCHAURICH et al., 2009).
Vale salientar que a composição das práticas em saúde envolve um princípio de trabalho não idealizado e seres humanos singulares geradores de assistência.
Analisando a subjetividade envolvida torna-se improvável que se conquiste uma “situação perfeita” no atendimento. Assim, a PNH efetiva-se como um direcionamento para que novos modelos de assistência seja implantados, não idealizando um SUS dentro de parâmetros perfeitos, mas se opondo ao atendimento realizado de qualquer forma unicamente racional e biomédico, onde o centro do atendimento e a razão geradora da assistência fiquem centrados na doença e no atendimento hospitalar.
Pode-se dizer que a inclusão seja o fator que impulsiona as ações dentro deste contexto humanizado objetivado pelo programa, seja ela entre usuários, trabalhadores e/ou gestores.
Frequentemente pode-se presenciar, nos serviços de saúde, situações onde o cuidado é traduzido em ações fragmentadas, ao invés da interação entre as equipes multidisciplinares, contradizendo a inclusão e unidade preconizadas. Essa fragmentação erroneamente desafia o trabalho pautado no diálogo, na comunicação vertical e gestão coletiva, dificultando uma inovação na assistência.
Gomes et al. (2009) pauta uma comunicação lateralizada como um importante campo no debate sobre a humanização dos serviços de saúde onde não ocorra indissociabilidade entre a atenção-gestão, afinal, ambas tornam-se interdependentes.
O processo de humanização da assistência muitas vezes é confundido com sacerdócio, empirismo ou atitudes pessoais motivadas unicamente pelo impulso emocional. Busca-se, na verdade, a conscientização coletiva para que as práticas de saúde sejam proporcionadas de forma digna, coerente e ampla, produzidas por sujeitos concretos (não idealizados) dispostos a exercer suas funções de forma que padrões éticos e morais façam parte rotineiramente do dia-a-dia dos serviços de saúde.
As Instituições Hospitalares como sistema social
Desde o início histórico dos hospitais, por volta do século XVIII, percebe-se que foram locais destinados a indivíduos carentes e moribundos que recebiam assistência muitas vezes de forma empírica, onde o atendimento era precário e ineficiente atendimento. Posteriormente tornaram-se centros de formação médica, onde a patologia era o centro do estudo e preocupação evidente para a “assistência”, limitando o indivíduo a um ser unicamente biológico com perda de sua integridade e individualidade: “… situación que viene desde el siglo XVIII, em que El cuerpo humano pasa a ser objeto e aplicación de la medicina, y el enfermo pasa a ser uma enfermedad.” (SUAZO et al.,2007).
Desde então a visão biomédica tem se impregnado nas práticas de saúde, empobrecendo e, por vezes, anulando as ações cuidadoras do restante da equipe de saúde.
Parsons (apud SUAZO et al., 2007), em sua teoria intitulada “Teoria do Sistema Social”, refere que as instituições hospitalares constituem-se de subsistemas dentro do sistema social no qual o indivíduo está inserido, exigindo então, adaptação e socialização.
De acordo com sua teoria, os subsistemas hospitalares exigem que o indivíduo se adapte as suas normas e a seu funcionamento e cabe a enfermagem realizar esse elo, viabilizando o cuidado como parte importante dentro do contexto da assistência.
Visão humanista no cuidado de Enfermagem
As teorias de enfermagem se fundamentam numa visão humanizada do cuidado e contribuem para formar bases devidamente fundamentadas sobre a prática; são baseadas em suposições e construídas de conceitos e proposições.
A enfermagem, como ciência, possui um conjunto de teorias embasadas na prática do cuidado, tendo como conceitos principais a saúde, o homem, o ambiente e a própria enfermagem. Suas definições sofrem influência tanto dos teóricos como do seu contexto social, político e filosófico. A teoria e a prática de enfermagem devem ser momentos complementares da práxis. Nesta, a primeira se torna uma representação, a menos falsa possível, da realidade do trabalho de enfermagem (CARDOSO et al.,2005).
Watson (apud SUAZO et al.,2007) refere que para a enfermeira, o cuidado é sua razão moral, não simplesmente uma ação, tornando-se um processo de relação interpessoal formada por sensações compartilhadas entre a enfermeira e o paciente, promovendo socialização, apoio, confiança e estimulando o autocuidado.
Leninger (apud SUAZO et al.,2007) considera o cuidado como caráter universal, ou seja, ações e posturas que transcendem limitações geográficas, transformando a assistência adequada e adaptada à realidade cultural do indivíduo. A Teoria Humanística de Enfermagem de Paterzon e Zderad (1976) está baseada em experiências existenciais que norteiam o cuidado, reconhecendo o outro em sua singularidade, cabendo a enfermeira conduzir um relacionamento terapêutico através da relação interpessoal e do diálogo, transformando este relacionamento em meta assistencial.
Basicamente, dentro desta teoria humanística, o enfermeiro deve aprender a observar o paciente, compreendendo-o em sua individualidade, utilizando como alicerce suas experiências anteriores, priorizando a relação com o cliente baseada no diálogo e vínculo pessoal:
(…) ressalta-se que a busca do novo paradigma do cuidado humanístico tem motivado enfermeiras a desenvolver estudos sobre o relacionamento
interpessoal resultante de diálogo, de encontros verdadeiros, nos quais os sentimentos são direcionados a maximizar a qualidade do cuidar. (CARDOSO et al., 2005).
Dentro deste contexto, a enfermagem realiza um papel valioso, pois produz um intercâmbio com quem está sendo cuidado ao ponto de se tornar um elo entre este indivíduo e sua potencial recuperação.
A prática de enfermagem humanística depende de fatores como a experiência profissional prévia, conceitos pessoais e da visão que cada enfermeira tem do mundo e da própria profissão; estes fatores estão entrelaçados de forma harmoniosa, direcionando o fazer enfermagem não somente como ciência, mas refletindo a arte do cuidar.
Para Cardoso et al.(2005), os cuidados de enfermagem só ocorrem de forma eficiente e eficaz quando o profissional se coloca à disposição do doente, com presença genuína, prezando a empatia e o diálogo verdadeiro, gerando comunhão, respeitando o tempo, espaço individual e valores/conceitos pessoais.
Cabe à enfermeira refletir sobre seu papel, redirecionando seu ato de cuidar, buscando a capacitação para se tornar uma referência em qualidade, otimizando e priorizando as relações humanas afetivas.
Adequar-se à realidade do paciente faz com que a assistência transcenda a condição biológica, pois a limitação provocada pela patologia pode ser previsível e tratada com medicações e condutas clínicas, mas o sofrimento e a solidão intrínsecos ao paciente somente são aliviados com o cuidado humanizado e ético.
Assim, o papel do enfermeiro dentro do contexto da humanização está muito além da aplicação de conceitos técnico-científicos, mas pode ser definido como relatado por Suazo et al.(2007): “a enfermeira se baseia em uma visão holística, biopsicossocial centrando-se em buscar respostas para os processos mórbidos e de saúde.”
A enfermagem é uma profissão que dedica ao empenho para a conservação da integridade, minimizando danos e sequelas que coloquem em risco a manutenção da vida.
O domínio do campo da enfermagem exige um amplo preparo em busca de aprimoramento profissional que leve a processos cuidativos genuínos, onde ocorra interação pessoal, respeito mútuo, empatia e afeto, aliados à competência e habilidade, características capazes de transformar uma singela assistência em cuidado humanizado.
O PAPEL DA ENFERMAGEM NO PROCESSO DE ABORTAMENTO
Inicialmente, destaca-se que quando uma mulher está em processo de abortamento (ou o sofreu) e se busca atendimento hospitalar, está não apenas fisicamente, mas também emocionalmente e socialmente debilitada.
Quando as mulheres chegam aos serviços de saúde em processo de abortamento sua experiência é física, emocional e social. Geralmente, elas verbalizam as queixas físicas, demandando solução, e calam-se sobre suas vivências e sentimentos. A mulher que chega ao serviço de saúde em situação de abortamento espontâneo, induzido ou provocado, está passando por um momento difícil e pode ter sentimentos de solidão, angústia, ansiedade, culpa, autocensura, medo de falar, de ser punida, de ser humilhada, sensação de incapacidade de engravidar novamente. Todos esses sentimentos se misturam no momento da decisão pela interrupção, sendo que para a maioria das mulheres, no momento do pós-abortamento, sobressai o sentimento de alívio. (BRASIL, 2011, p. 23)
No entanto, ao receberem o atendimento, o comum é que relatem (e que sejam perguntadas) somente as suas queixas físicas, como se as suas necessidades e “dores psicológicas” merecessem menor atenção ou fossem de menor relevo. (MOTTA, 2005)
As tendências naturalmente egoístas do ser humano impulsionam, muitas vezes, a oferecer um tratamento protocolar e superficial enquanto deve-se valorizar o ser, o indivíduo, em qualquer contexto ou situação, especialmente quando este se encontra fragilizado. (OLIVIERI, 1985)
A mulher naturalmente é sensível por peculiaridades morfológicas e temperamentais inerentes à sua natureza, mas o processo de abortamento faz com que as suas emoções sejam tão fortemente abaladas quanto o seu corpo, suscitando sentimentos como medo, culpa, vergonha e culminando, não raramente, em doenças psicossomáticas.
Os estudos sobre os efeitos psicológicos do aborto indicam que um número significativo sofre de complicações psicológicas consequentes à intervenção (10-20% sofrem de depressões graves) (ZOLESE e BLACKER, 1992).
A fim de evitar que isso ocorra, bem como procurando atender a mulher na sua integralidade como preceituam as instruções éticas, a equipe de saúde, com especial enfoque no enfermeiro, deve oferecer um atendimento humanizado, abrangente, cuidadoso, acolhedor, adequado, livre de julgamentos e de preconceitos. Essa humanização pode ser entendida como a capacidade para se colocar no lugar do outro, assistir como gostaria de ser assistido, respeitar e compreender o semelhante de forma sincera, incondicional e verdadeira.
Motta (2005) observa a importância do acolhimento como parte essencial para a obtenção do sucesso na recuperação da mulher que sofre um aborto, explicando que “Acolhimento é o tratamento digno e respeitoso, a escuta, o reconhecimento e a aceitação das diferenças, o respeito ao direito de decidir de mulheres e homens, assim como o acesso e a resolutividade da assistência” (MOTTA, 2005, p. 17).
Se a mulher se sente hostilizada, rejeitada, julgada, mais lento será o restabelecimento da sua saúde, sendo impossível dissociar os processos bioquímicos em um ser humano. Nesse sentido é que o profissional da Enfermagem desempenha um papel vital, pois é ele quem deve devidamente receber, acompanhar e despedir a mulher durante o procedimento obstétrico.
A humanização deve fazer parte da filosofia da enfermagem. O ambiente físico, os recursos materiais e tecnológicos são importantes, porém não mais significativos do que a essência humana. Esta, sim, irá conduzir o pensamento e as ações da equipe de enfermagem, principalmente do enfermeiro, tornando-o capaz de criticar e construir uma realidade mais humana, menos agressiva e hostil para as pessoas (…) (ROSSI; VILA, 2002, p.3)
O cuidado humanizado envolve peculiaridades como o toque, o diálogo, a solidariedade, a compaixão e senso crítico para a manutenção da integridade física e moral da paciente; além disso, outra característica que deve ser preservada é a identidade da paciente, ou melhor, a personalização do atendimento. É extremamente desumano e inaceitável “cuidar” de alguém e tratá-la pelo caso, número de leito ou número de inscrição dentro da instituição: esta falta de postura demonstra a inadequação a ética e ao respeito diante de um ser que é único.
As pacientes que estão ou passam pelo processo de abortamento, independentemente do motivo, necessitam dos cuidados de enfermagem direcionado ao processo e possíveis procedimentos aos quais serão submetidas.
A Norma Técnica ensina que a habilidade de ouvir, sem prejulgar ou impor valores, assim como a habilidade para lidar com conflitos e identificar necessidades são princípios fundamentais no acolhimento e podem ser o estímulo esperado para que essa paciente relate seus sentimentos e demandas. O manual se refere a uma conduta “terapêutica” por parte do profissional de enfermagem, que visará a criação da empatia necessária para a criação do vínculo que multiplica a probabilidade de sucesso no restabelecimento da sua saúde, entendida em seu conceito amplo dado pela OMS supra mencionado. (BRASIL, 2011, p. 24).
Motta (2005) observa que atenção, cordialidade e respeito, procurando transmitir compreensão e confiança e visando não apenas identificar as possíveis complicações físicas, mas também as de cunho pessoal e psicológico, poderão ser fatores determinantes para que amenizar as dificuldades no processo de enfrentamento da perda e para avaliar corretamente em que será necessária a solicitação de acompanhamento especializado. O processo de abortamento incompleto deixa marcas indeléveis. A culpa, a depressão e a psicossomatização são sinais de feridas psicológicas sofridas pelas mulheres, indicando quão profundamente o aborto as sensibiliza, fazendo-as sofrer física e emocionalmente. (OSIS; HARDY; FAÚNDES, 1996)
Além de depressão, também há altos índices de ansiedade, desesperança, baixa autoestima e medo em mulheres que passaram por processos de abortamento. (LADWIG; ACKLEY, 2012)
Existem algumas diferenças no direcionamento da assistência de enfermagem a paciente que sofre um aborto espontâneo, e aquela que opta pelo aborto terapêutico e a que provoca o aborto. Entretanto, a assistência relacionada ao quadro clínico e, baseada em sinais e sintomas é a mesma, independente do tipo de aborto em questão (MOTTA, 2005).
Lowdermilk (2002) enfatiza que o acompanhamento da evolução do quadro de abortamento pela enfermeira deve ser rigoroso sobre alguns sinais e sintomas apresentados pela paciente. Enfatiza, por exemplo, que é de suma importância orientar a paciente a informar se houver dor pélvica, febre ou sangramento excessivo pós-procedimento, indicando a profilaxia antibiótica pré-operatória meio eficiente de combate e previnir o risco de infecções.
Dentre os procedimentos esperados do profissional de enfermagem nas situações de abortamento, destacam-se os esperados, conforme Murta (2006) e SUS-SP:
- Anamnese não invasiva;
- Acolher e encaminhar a paciente ao leito, apoiado-a emocionalmente;
- Esclarecimento de dúvidas e orientações quanto à permanência no leito;
- Orientar a paciente sobre os procedimentos pelos quais ela será submetida, antes da realização dos mesmos;
- Registrar horário de admissão e condições gerais da paciente;
- Observar e registrar nível de consciência e grau de orientação no tempo e no espaço;
- Puncionar acesso venoso periférico, de preferência utilizar um cateter de grosso calibre e colher amostra sanguínea para exames laboratoriais de emergência;
- Manter hidratação venosa para prevenir o choque hipovolêmico, conforme prescrição médica;
- Instituir o processo de enfermagem, realizando exame físico clínico e gineco-obstétrico, prescrição de enfermagem que será reavaliada diariamente ou sempre que necessário;
- Verificar e registrar os sinais vitais (SV), conforme prescrição de enfermagem, instituindo as medidas cabíveis face aos valores encontrados; atentar que os SV podem alertar para possíveis processos infecciosos ou choque hipovolêmico (aumento da temperatura corporal, taquicardia, dispneia etc.);
- Instituir balanço hídrico (atentar para a perda sanguínea transvaginal: volume, cor e odor);
- Avaliar atividade e tônus uterino;
- Aliviar a dor através da administração de medicação; Orientar a paciente sobre os procedimentos pelos quais ela será submetida, antes da realização dos mesmos, mostrando-se compreensiva, respeitosa e solidária pelo momento crítico;
- Implementar terapêutica medicamentosa prescrita;
- Preparar a paciente para procedimento cirúrgico, quando indicado;
- Estimular que a mulher exponha seus sentimentos e medos, objetivando facilitar a aceitação do luto e enfrentamento do processo que está vivenciando;
- Avaliar a evolução das condições físicas e emocionais da cliente, após o procedimento, comunicando sinais de transtorno emocional e alteração do estado mental, para que seja solicitado acompanhamento especializado;
- Após a eliminação fetal, questionar se é da sua vontade ver o feto, antes de encaminhar o mesmo para a anatomia patológica;
- A enfermeira deve informar aos membros de sua equipe, que eles possuem o direito de recusar-se, se for o caso, a participar de procedimentos relacionados ao aborto terapêutico ou a que sejam contrários á suas crenças religiosas.
- Realizar o Acolhimento Mulher, garantindo a continuidade da atenção em nível ambulatorial.
Além disso, é de suma importância que o profissional de enfermagem evite deixar a paciente sozinha, verificando se há algum familiar ou acompanhante que esteja próximo durante os procedimentos, observando as normas da Instituição. Isto porque o processo emocional é intenso durante o abortamento espontâneo, necessário (para preservar a vida da mulher) e mesmo para as situações de aborto provocado.
Conforme Lowdermilk (2002), a assistência de enfermagem pós-aborto deve compreender a instrução da paciente sobre os cuidados relacionados à sua recuperação, como:
- a observação da presença de sangramento excessivo após a realização do procedimento cirúrgico (curetagem, por exemplo);
- a abstinência sexual mínima de uma a três semanas;
- a contracepção indicada de três a seis meses pós-aborto;
- o restabelecimento do ciclo menstrual após quatro a seis semanas;
- a indicação de acompanhamento ginecológico ambulatorial, bem como a participação em grupos de planejamento familiar;
- a verificação do resultado do estudo anatomopatológico a fim de identificar a etiologia do aborto, evitando assim novos episódios.
Finalmente, é consensual que, independente do tipo de abortamento, o profissional de enfermagem e sua equipe têm o dever de proporcionar uma assistência adequada, colaborativa, humanizada e ágil durante todo o processo, quer seja na realização de exames, procedimentos ou na recuperação física, emocional e psicológica da paciente.
Aborto e Saúde da Mulher
Historicamente, as políticas de Saúde da Mulher são vinculadas à maternidade e à infância. Estas ações programáticas visam reduzir as principais causas de adoecimento e morte das mulheres. Dentre as causas mais comuns de mortalidade das mulheres estão as doenças cardiovasculares, violência, neoplasias, doenças endócrinas e DST.
O aborto não configura entre as dez primeiras causas de óbito. Contudo, a gravidade do problema fica evidenciada quando se observa que a gravidez é um evento relacionado à vivência da sexualidade (portanto, não é uma doença), e que em 92% dos casos as mortes maternas são evitáveis. Outro dado assustador é que a maioria das mulheres que morrem por causas ligadas ao parto realizou o pré-natal, o que remete à qualidade dos serviços prestados.
Monteiro (2007) mostra que as mulheres de 20 a 24 anos são as que mais sofrem internações por complicações decorrentes de aborto. “Esta é faixa etária de maior fecundidade.” Além disso, infere que a morte materna é uma das mortes mais subnotificadas do mundo, sendo evitável em 90% dos casos.
Outro dado importante a ser observado é que o aborto tem um diferencial associado à raça e classe econômica da mulher. “Se analisarmos as quatro maiores causas de mortalidade materna – infecção, hipertensão, hemorragia e aborto – vemos que o risco de morte para as mulheres negras é bem maior que nas brancas.” Segundo estatísticas envolvendo três grupos étnicos, o risco da gravidez em uma mulher negra terminar em aborto é de 9,4, das mulheres pardas 5,2 e das brancas 3,2 (base SUS por número de internações como consequência de abortamento induzido, entre 1992 e 2005). (MONTEIRO, 2007)
Segundo o DATASUS, no início da década de 90 foram registradas 350 mil internações na rede pública de saúde, índice que diminuiu para 250 mil em 2005. Algumas hipóteses para a redução deste número são a comercialização do abortivo misoprostol (Cytotec) e aumento do nível de educação e, assim, a adoção de métodos anticoncepcionais ao invés do aborto induzido. (MONTEIRO, 2007).
Tais evidências demonstram que falar em Saúde da Mulher é precisar tocar na polêmica: legalizar ou não legalizar. Alguns autores renomados, como Vargas (1990) são contra por razões religiosas, médicas e bioéticas, defendendo que a vida começa no ato da fecundação. Outros, posicionam-se de forma veemente contra a posição manifestamente contrária da Igreja Católica, por exemplo, alegando que a própria instituição patrocinou abortos de bebês considerados hereges e desprivilegiando a vida e escolha da mãe. Antes, afirma que o cerne da questão é a dificuldades que alguns estratos sociais (especialmente a Igreja) tem de enfrentar os “tabus sexuais”, sendo este o “nervo exposto” do seu moralismo. (ALVES, 1997)
(…) o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política (FOUCALT, 1979)
Dificilmente um ou outro conseguirão convencer os pensamentos opostos, que se baseiam em convicções arraigadas em suas personalidades, grupo social e que advém de uma formação anterior ao surgimento da própria discussão.
Independente das posições de uns ou outros, fato é que as mulheres abortam, independentemente da opinião que prevaleça. Segundo documento elaborado pelo IAG, Instituto Alan Guttmacher (entidade americana que estuda a questão do aborto no mundo) cerca de 1 milhão de mulheres abortam no Brasil todos os anos e cerca de 31% das gestações terminam em aborto, conforme o Ministério da Saúde.
As medidas de Saúde Pública adotadas pelo Estado levam em consideração, entre outros aspectos, o art. 196 da Constituição da República Federativa do Brasil, que afirma que o Estado tem o compromisso com a tomada de medidas políticas, sociais e econômicas no sentido de promover e recuperar a saúde da população, de modo a reduzir os agravos que causem mal à coletividade.
Então, relacionando cada um desses aspectos com a criminalização do aborto, a começar pelos políticos, tem-se: uma lei da década de 1940 que não atende mais às necessidades da sociedade, pois considera crime o abortamento provocado, pela própria gestante e/ou terceiros, cuja pena varia de 1 a 4 anos de cadeia. Incoerente tamanho rigor quando nosso sistema legal e prisional mal controla crimes mais graves.
Pelo prisma social, observa-se o abismo quando analisamos o aborto no Brasil. As moças e mulheres que podem pagar até cerca de 5 mil reais pelo procedimento conseguem realizá-lo com um mínimo de segurança do ponto de vista médico. As pobres, infelizmente, estão sujeitas a todo tipo de agressão física e psicológica a que a situação clandestina lhes inflige. Entretanto, todas correm riscos ao se submeterem ao procedimento.
Do ponto de vista econômico, segundo o ginecologista Jefferson Drezett, coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, “os recursos que gastamos para tratar as graves complicações do aborto clandestino são muito maiores que os recursos de que precisaríamos para atender as mulheres dentro de um ambiente seguro e minimamente ético e humanizado”.
Portanto, a solução do problema de saúde pública da mulher passa, antes de tudo, por uma problema social e política. O Estado, acima de tudo, deve zelar pela mulher como cidadã, independentemente do que haja, assegurando-lhe o direito de ser amparada, acolhida e cuidada qualquer situação.
A Equipe de Enfermagem e a relação com ao paciente: questões bioéticas
A Bioética envolve um estudo da conduta humana na área das ciências da vida e atenção à saúde, desde que essa conduta seja examinada utilizando-se dos princípios e valores morais. (NEME, 2005)
Conforme a Carta dos Princípios da Ética Aplicada à Vida, os profissionais da saúde devem atender à paciente com quadro de abortamento considerando as seguintes premissas:
- Princípio da beneficência – maximizar os benefícios e minimizar os agravos;
- Princípio da nãomaleficência – causar o menos dano possível à paciente;
- Princípio da autonomia – permitir à paciente decidir/escolher sobre os aspectos (possíveis) relacionados à disposição do seu corpo e vida;
- Princípio da justiça – agir com a menor interferência de seu juízo pessoal possível, desconsiderando suas próprias inclinações pessoais, morais, sociais, religiosas ou culturais.
Assim sendo, as reflexões trazidas até aqui sobre a humanização no atendimento a essa paciente cabem perfeitamente no que preconiza o COFEN (Conselho Federal de Enfermagem). Contudo, é necessário aprofundar essa abordagem já que humanizar o atendimento depende fundamentalmente da disposição do profissional de enfermagem fazê-lo, mas sem que se possa ignorar que este profissional também é humano e, portanto, passível de influências e limitações.
A realidade atual mostra que infelizmente muitas instituições, com os crescentes cortes de verbas públicas e a terceirização da assistência, enfrentam dificuldades econômicas. O quadro profissional limitado, diminuição de recursos materiais, condições insalubres de trabalho e aumento da demanda tecnológica, aumentam a insegurança e a insatisfação no trabalho dos profissionais da saúde.
Este clima afeta integralmente à todos os envolvidos: desfavorece as relações interpessoais, facilita a ocorrência de iatrogenias e o desrespeito entre os próprios profissionais, assim como destes com os clientes.
Por esta razão, torna-se premente que as políticas públicas e as filosofias institucionais estejam voltadas para a verdadeira aplicabilidade da Humanização.
A atenção às condições de trabalho dos profissionais da área de saúde evidencia-se no documento do PNH e repercute a reação dos trabalhadores da saúde à precarização das condições de trabalho do SUS. O modelo de atenção do SUS seria marcado por: fragmentação do processo de trabalho; esgarçamento das relações entre os diferentes profissionais; precária interação nas equipes; burocratização; processos verticalizados; baixo investimento na qualificação dos trabalhadores voltada para a gestão participativa; trabalho em equipe e desrespeito aos direitos dos usuários. (BRASIL, 2004, p.13)
Sabe-se que a maioria dos integrantes da equipe de enfermagem tem mais de um emprego em virtude da baixa remuneração, pouca valorização da profissão e descaso quanto as potencialidades profissionais, o que resulta em alto nível de desgaste que, indubitavelmente, compromete a prestação do atendimento.
Além disso, a exposição contínua a fatores geradores de estresse causam estímulos emocionais nocivos ao próprio profissional. Tais fatores são: a atitude para lidar com a intimidade emocional e corporal do cliente; convivência com limitações técnicas pessoais e materiais que se contrapõem às expectativas e cobranças; escassez de recursos que possam gerar a desumana decisão para quem será reservada a utilização deste ou daquele equipamento. (BERGAMINI, 2008, p.36)
O processo de empatia é outro ponto que deve ser abordado. O enfermeiro conhece o significado e a importância desse recurso dentro do cuidado, porém, muitas vezes se utiliza de uma barreira psicológica no intuito de evitar seu próprio desgaste emocional, tornando a falta de empatia um agravante dentro de uma relação patológica.
Assim, o processo empático parece desenvolver-se no discurso, sem que, na prática, os enfermeiros se deem conta de que ele deve ser uma complementaridade para com o outro, e não uma absorção da realidade deste outro, como se fosse parte de sua vida. (SANTOS; PINHO, 2008)
As atividades dos profissionais de saúde que trabalham em hospital favorecem uma concepção de sofrimento como algo inevitável e natural, criando um espaço de despersonalização e afastamento da realidade e potencialidades individuais dos pacientes. Isto é tão grave que, muitas vezes, o distanciamento e a falta de investimento pessoal em uma determinada mulher que sofreu aborto ou de determinado indivíduo com qualquer patologia em geral podem efetivamente torná-lo um caso terminal, mediante a incredulidade da equipe em sua possível recuperação. (SANTOS; PINHO, 2008)
Assim, vê-se que a relação estabelecida entre o saber e o fazer sugere que o cuidado de enfermagem contemple um manejo especial da realidade onde situações contraditórias exercitem a flexibilidade e a criticidade do enfermeiro, o qual deve buscar alternativas que preencham as necessidades de pacientes/familiares e rotinas institucionais. Conhecer esse desafio faz parte da rotina do enfermeiro, procurando a superação de dificuldades pessoais, da equipe e da própria instituição de maneira que possibilite a construção de novos paradigmas que se sobreponham às limitações e que busquem efetivamente o processo do cuidado humanizado.
Frente ao exposto, salienta-se a importância de considerar a subjetividade do trabalhador, valorizando-o como ser humano repleto de conflitos, vínculos pessoais e, muitas vezes, displicente com seu autocuidado, o que torna a assistência comprometida, visto que ele próprio necessita de atenção e ajuda.
A avaliação da instituição deve priorizar encontros entre trabalhadores, visando aprendizado, crescimento intelectual, socialização e melhoria da autoestima, que possam favorecer a ocupação de uma posição de reconhecimento, prestígio e autonomia profissional.
O próprio programa HumanizaSUS incentiva estas práticas: implantar diretrizes do acolhimento e da clínica ampliada; melhorar a interação nas equipes e qualificá-las para lidarem com as singularidades dos sujeitos e coletivos nas práticas de atenção à saúde; fomentar estratégias de valorização do trabalhador, promovendo melhorias nas condições de trabalho (ambiência) e ampliando investimentos na qualificação de trabalhadores; fomentar processos de cogestão, valorizando e incentivando a inclusão dos trabalhadores e usuários em todo o processo de produção de saúde. (BRASIL, 2004, p.16)
As condições materiais também interferem nos sentimentos dos trabalhadores, pois a escassez de recursos torna a assistência limitada e, por vezes, ineficiente, dificultando a humanização; entretanto, é importante reconhecer que este fator não se faz condição totalmente satisfatória para a explicação única de tais frustrações.
Entretanto é preciso estar atento ao fato de que, mesmo em instituições detentoras de equipamentos modernos, permanece a necessidade de profissionais que desenvolvam as habilidades emocionais, e que sejam capazes de sensibilizar-se com as situações vivenciadas em seu cotidiano, evitando prestar um cuidado tecnicista, mas preparados para oferecer um cuidado com compaixão ao cliente, sem exploração, domínio ou desconfiança. Uma compaixão amorosa que permita sermos tão humanos quanto possível, tão envolvidos quanto o sentimento determine. (THOFEHRN ET AL., 2006)
Outra lacuna que expõe o descontentamento comum expressado por integrantes da equipe de enfermagem ocorre em relação às propostas institucionais pouco flexíveis, limitando a atuação e desconsiderando sugestões propostas, tornando-o impotentes frente à organização de saúde.
O trabalho é fundamental, devendo ser encarado como fonte de prazer e satisfação e não de sofrimento; por isso, além das mudanças internas nos trabalhadores, são necessárias, concomitantemente, alterações no ambiente de trabalho e nas relações interpessoais que deveriam estar baseadas no amor ao próximo, para que a humanização possa se tornar uma realidade no cotidiano. (THOFEHRN ET AL., 2006)
A temática da humanização, embora bastante discutida em literaturas, na realidade prática ainda se encontra distante do cotidiano, não somente de pacientes, mas também na formação dos profissionais tornando-os pouco aptos para sua aplicação.
Assim, a atuação da equipe de humanização no ambiente hospitalar é extremamente importante, pois mediante a capacitação e avaliação contínuas de suas ações, uma nova geração de trabalhadores será gerada, capazes de ofertar envolvimento, amor e compaixão pela paciente já tão fragilizada.
De modo geral, apura-se que os aspectos que dificultam o processo de humanização e no atendimento prestado pela equipe de saúde são: relações interpessoais prejudicadas, despreparo de profissionais quanto à PNH e rotinas preestabelecidas sobrecarregadas, de forma que o tempo para a dedicação aos pacientes fique restrito.
Não há dúvidas que este processo de humanização propicie melhoria das práticas assistenciais, comprometimento ético, diálogo e autonomia do paciente (SCHAURICH et al., 2009). Porém, todo esse processo está permeado pelas condições de trabalho desses profissionais. Assim, é primordial que estes estejam aprimorados profissionalmente e incluídos nos processos decisórios, de gestão, de maneira que se sintam valorizados e apoiados pela instituição.
Outro componente essencial dentro do contexto bioético da Humanização é a comunicação.
Deslandes (2002) enfatiza que a humanização do atendimento deve contemplar fundamentalmente a democratização das relações. Além do respeito, o diálogo e a confiança devem permear as relações entre o profissional de saúde e a paciente que sofreu um aborto, bem como em qualquer outro atendimento prestado pelo enfermeiro.
A linguagem utilizada para que o processo de comunicação seja efetivo deve ser clara e acessível, de maneira que ocorra a plena compreensão daquilo que está sendo dito.
A utilização de termos técnicos e complexos torna a comunicação inadequada e esdrúxula, demonstrando uma “superioridade intelectual” desnecessária e incabível dentro do propósito central que, nada mais é, do que a compreensão facilitada para a orientação da paciente e o esclarecimento de suas dúvidas, assim como as que seus familiares eventualmente apresentem.
Nesse sentido, o acolhimento como princípio base e que possibilita a construção de relações mais dialógicas, pode facilitar a produção de vínculos, entendendo o usuário como capaz de exercer sua autonomia e sua capacidade protagonista, compartilhando a responsabilidade pelo cuidado. (MITRE ET AL., 2009)
O primeiro passo na comunicação efetiva com ela é reconhecê-la como ser humano e compreendê-la dentro do contexto no qual está inserida. Uma comunicação adequada depende fundamentalmente da sensibilidade e disponibilidade para ouvir o outro.
Considerando a temática da humanização, esse processo de entendimento é muito mais abrangente, pois significa unir, tornar comum, convívio (Dicionário Aurélio, 2001). Há uma situação de cumplicidade entre dois ou mais agentes que estejam dialogando; vale salientar que todas as informações fornecidas devem ser valorizadas.
[…]se o existir no mundo só é possível quando nos comunicamos, o enfermeiro existe na medida em que utiliza a comunicação no saber-fazer profissional (CIANCIARULLO, 2006, p.72)
A comunicação genuína deve ser considerada como importante instrumento para a construção de uma prestação de serviço mais humana, descontraída e eficiente; uma comunicação verdadeira é o projeto que permite o autêntico cuidar do cliente, e não um simples tratar. (BERGAMINI, 2008)
Los estúdios revelan que los pacientes valoran más los aspectos del cuidado que tienen relación com comunicación, el afecto y la atención que se le presta dentro de las instituciones hospitalarias, e cuidado humanizado y transpersonal. Es difícil mantener los valores humanitários em el acto de cuidar em las instituciones públicas donde parecen invisibilizarse los cuidados de enfermería por las labores biomédicas, pero las enfermerías mantener aún entonces las virtudes de comunicarse com el outro, ayudario y sostenerio em esta de vida. (SUAZO ET AL., 2007)
A comunicação não verbal também é extremamente valiosa, pois permite à paciente expressar seus anseios, eventos de desconforto/dor através da escrita ou outras formas de expressão; ao enfermeiro esta prática possibilita o exercício da sensibilidade, constituindo-se uma das bases para o cuidado paliativo.
Finalmente pode-se afirmar que a comunicação é algo muito mais amplo do que as definições de processos de interação verbal ou não verbal, mas constitui-se uma ferramenta valiosa na verdadeira intenção de conhecer e compreender o outro, somar experiências e objetivos comuns, a fim de construir uma relação de transparência e confiabilidade.
Humanização: processo a ser desenvolvido
A humanização do ambiente de trabalho é um subproduto da necessidade de incorporar o amor nas relações profissionais e interpessoais. (THOFEHRN ET AL., 2006)
Pode ser entendida como a capacidade para se colocar no lugar do outro, assistir como gostaria de ser assistido, respeitar e compreender o semelhante de forma sincera, incondicional e verdadeira.
Especificamente nos casos de abortamento, há de ser reconhecido que, muitas vezes apesar dos esforços do enfermeiro, torna-se bastante difícil a implementação da humanização, pois demanda de atitudes individuais, se contrapondo ao universo dinâmico das urgências rotineiras de um hospital.
O envolvimento pessoal é inevitável dentro da humanização, mas este deve ser trabalhado pelo enfermeiro dentro de sua equipe de enfermagem, de forma que este envolvimento não seja fator desencadeante para sofrimento pessoal ou distanciamento do paciente como forma de defesa, mas seja algo benéfico e prazeroso, capaz de transformar um simples procedimento em uma ação diferencial com qualidade. (ROSSI; VILA, 2002)
Deve-se relembrar que somente se faz possível trabalhar com qualidade, quando o profissional que presta a assistência, também se encontrar emocionalmente saudável e engajado neste propósito.
O desempenho adequado da equipe está diretamente vinculado à compreensão e cooperação para que sejam atingidos objetivos comuns, percepção e valorização de todos os papéis, comunicação e interação efetiva entre os membros.
O enfermeiro, como líder de equipe, deve exercer sua liderança com empatia e adesão, de modo que represente um “semeador”/precursor de seus ideais e convicções.
Desta forma, precisamos considerar que exista reflexão ao ponto de avaliarmos com transparência quem somos e como executamos nossa função, separando a humanização da lógica da caridade, compreendendo-a como parte integrante do cuidado holístico.
Assim, vale destacar que precisamos entender que os conceitos de cuidado de enfermagem e as definições que interessam para a profissão são dinâmicos e deverão variar de acordo com o contexto, com o movimento do mundo e, consequentemente, com as reconfigurações do ser humano. Portanto, o que se opõe ao cuidado é o descuidado, e isso de fato poderá estar ocorrendo e equivocadamente sendo denominado desumanização. (Esc. Anna Nery Enferm., 2008, p.159)
Sabe-se que a humanização deve fazer parte da filosofia da enfermagem e, particularmente para o enfermeiro, deve constar como objetivo a ser atingido.
O papel do enfermeiro vai além do cuidar e identificar sinais e sintomas, seguir rigorosamente prescrições médicas ou controlar aparelhos, mas assistir ao indivíduo em sua plenitude, garantindo a eficácia de sua recuperação.
O processo de abortamento, indubitavelmente, é bastante estressante, pois é propício à ansiedade e angústia da perda, mas o enfermeiro deve esforçar-se para a manutenção do equilíbrio físico e emocional, atento aos sinais emanados pela paciente, conduzindo cada vez mais a uma assistência otimizada e efetiva, afinal, a simples presença do enfermeiro capacitado e envolvido integralmente demonstra esforços capazes de contagiar e suplantar tais dificuldades, propiciando otimismo e superação, gesto mais eficiente do que qualquer medicamento, máquina ou procedimento técnico.
Faz-se necessário compreender que um objetivo maior é alcançado quando, num dos momento mais difíceis da vida de uma mulher, o atendimento prestado acrescenta um pouco mais de essência, esperança e amor à vida e à existência dessa paciente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As atitudes do cuidar englobam muitas formas de expressar o conhecimento e a sensibilidade necessários para a contribuição na qual está inserida a identidade humana, porém somente se torna possível atribuir a importância devida ao respeito e dignidade do outro, quando se percebe a si mesmo, propondo-se a concretizar a interação humana imprescindível para o conjunto harmônico formado pelo conhecimento científico aliado à competência e sensibilidade para aplicar a empatia, o desvelo e o afeto.
Assim, a pessoa que realiza o cuidado pelo seu semelhante deve, prioritariamente, zelar pela manutenção da vida, dedicando-se à reparação de qualquer obstáculo que ofereça resistência a essa concretização. Para tanto, alguns princípios devem nortear as ações dos profissionais de saúde como a sensibilidade, a criticidade, a percepção aguçada, a afetividade, a responsabilidade e a ética.
Dentro desse contexto, encontra-se a Enfermagem, profissão que tem por essência a assistência embasada em saber científico, ética, respeito, empatia e vínculo, caracterizando-se pelo compromisso com a vida humana. Esta visão da Enfermagem pode ser evidenciada dentro das teorias da profissão que preconizam a relação interpessoal, o cuidado com caráter universal, o diálogo e a cumplicidade no estabelecimento sincero de relações interpessoais.
Considerando a visão holística que envolve o ser biopsicossocial, a Humanização emerge como uma necessidade primordial para que se possa verdadeiramente executar uma assistência efetiva e com qualidade; tornou-se um tema central dentro da atualidade, configurando-se em uma preocupação governamental, visando sua implantação dentro dos serviços públicos de saúde.
A Humanização engloba vários conceitos, especificamente diretrizes e dispositivos operacionais de política pública. Essas diretrizes se apresentam como estratégias importantes para a qualificação da assistência prestada aos usuários do SUS, no que diz respeito às condições de atendimento, qualificação dos recursos humanos e gestão dos processos de trabalho.
Humanizar, por conceito, significa cuidar como um todo, tornando indissociável o aspecto físico do aspecto biológico; significa valorizar o cliente como um ser único e inserido dentro de contextos sociais e familiares.
Conclui-se que a Humanização não é uma teoria, prática de sacerdócio ou artifício, mas um processo vivencial que engloba toda a equipe de saúde; pode-se dizer que esta prática se trata de um processo que tem início dentro de cada profissional do cuidado, de forma que a assistência tenha bases científicas, sem que para isto, seja menosprezada a sensibilidade para o toque e o acolhimento, ações capazes de minimizar a ansiedade, os medos e incertezas do paciente e de seus familiares.
A análise de conteúdo deste estudo, como metodologia, permitiu contextualizar a Humanização e verificar sua aplicabilidade dentro do cuidado prestado; esta avaliação foi realizada através da análise do tema e suas correlações na literatura, que permitiram a compreensão de peculiaridades e fatores envolvidos para a prestação de uma assistência humanizada, assim como a importância do enfermeiro e equipe de enfermagem neste processo.
Dentro do contexto situacional de aborto, a Humanização é imprescindível, pois nesse caso são fortalecidas a fragilidade e a insegurança, expondo a necessidade de lidar com os limites tênues entre a vida e a morte, a saúde e a doença, a fertilidade e a infertilidade, de maneira a proporcionar estresse e desequilíbrios físicos e emocionais para a paciente, seus familiares e equipe. É extremamente necessário que os profissionais de saúde envolvidos com a assistência nestes casos estejam conscientes desses parâmetros e valorize-os no momento do cuidado para que não ocorra o processo contrário: a desumanização, através de diferentes aspectos e/ou atitudes impessoais e exclusivamente tecnicistas.
Observou-se que alguns fatores interferem de forma positiva para que ocorra a verdadeira aplicabilidade do cuidado humanizado, entre eles estão o acolhimento, o vínculo, a responsabilidade e o envolvimento do profissional que presta o cuidado.
A comunicação pode ser considerada um dos pilares da assistência humanizada, pois proporciona à cliente e/ou familiares a corresponsabilização pelo cuidado, tornando-os protagonistas e participantes no processo de decisões. Esta atitude demonstra respeito e reflete segurança a todos os envolvidos.
Quanto à equipe, a comunicação favorece as relações interpessoais, direcionando atitudes coletivas, embasando-as em objetivos comuns, impossibilitando a fragmentação do cuidado.
Quanto à temática de trabalho, devem-se empreender esforços para que as decisões sejam compartilhadas, minimizando riscos e erros, otimização de resultados, promoção de sentimentos de valorização profissional e possibilidade de cogestão, capazes de envolver a todos os integrantes da equipe, favorecendo uma assistência multidisciplinar. Cabe ao enfermeiro administrar estas questões de forma a envolver toda a equipe de enfermagem no mesmo propósito, obtendo como resultado o cuidado holístico e ético.
Por outro lado, existem fatores que dificultam a implementação da assistência humanizada, dentre eles estão incluídos o ambiente físico, a utilização inadequada da tecnologia, a desvalorização e estresse ocorridas entre os profissionais da área e as condições das políticas públicas que falam do cuidado, mas não proporcionam condições reais, sejam eles materiais ou humanas, para que o cuidado seja realmente executável.
Quanto ao espaço físico, deve-se considerar que, além de sua arquitetura condizente, outros aspectos a serem considerados são: a atenção pela privacidade e/ou exposição física do paciente, interação com familiares no processo cuidativo e a manutenção do foco no cliente, ao invés de unicamente manter-se fixado aos procedimentos. Os profissionais de saúde são responsáveis por tornar o ambiente mais acolhedor, bem como desenvolver confiança e segurança necessárias frente à terapêutica instituída, em face de competência técnica e relacional evidenciada, ocasionando adesão ao tratamento e, consequente, melhoria nas possibilidades de tratamento adequado. Perceber as necessidades da cliente e atendê-las, considerar sentimentos e sofrimentos, valorizar as individualidades são fatores que também favorecem significantemente a promoção de qualidade da assistência.
Quanto à equipe, cabe ao Enfermeiro a sensibilidade para compreender as dificuldades apresentadas por seus colaboradores, como a sobrecarga de trabalho e a escassez de recursos humanos e materiais, valorizando-os como profissionais e, acima de tudo, como seres humanos expostos diariamente a situações geradoras de estresse e desgaste físico/emocional, capazes de adoecê-los, gerando, por consequência, desmotivação e assistência comprometida. É necessário que sejam oferecidas melhorias à qualidade política/econômico institucional, assim como apoio emocional aos integrantes da equipe, afinal como dito anteriormente, não se pode esquecer que também são seres humanos.
Percebe-se que, apesar de amplas discussões sobre o tema e conhecimentos sobre o assunto, ainda há uma grande lacuna entre o saber e o fazer cuidado, tornando o resgate pela Humanização um importante desafio.
Acredita-se que este estudo tenha contribuído para o levantamento de questões pertinentes e elementares para a aplicabilidade da Humanização na assistência à paciente em processo de abortamento, conceituando o Enfermeiro como o precursor de sua contextualização prática, visto que se trata do profissional diretamente responsável pelo cuidado, bem como gerenciador administrativo não somente do aspecto material, mas também humano dentro da assistência (equipe de enfermagem).
Crê-se que os objetivos propostos pelo estudo foram alcançados, contribuindo para a discussão de estratégias que estimulem a conscientização e o comprometimento do enfermeiro e equipe de enfermagem para a qualidade do serviço prestado à paciente.
Vale salientar que não houve a pretensão de esgotar a discussão sobre o tema focalizado, mas se procurou fazer uma aproximação em apreender a possibilidade real de implantação e manutenção da assistência humanizada; ao contrário, sugere-se que novas pesquisas sejam realizadas com o objetivo de avaliar a prestação de serviços na área da saúde, que levem à reflexão e ao desejo intrínseco e patente da implantação real de todas as diretrizes do Programa Nacional de Humanização (PNH) do Ministério da Saúde.
Toda mudança de hábitos envolve questionamentos e esforço individual, que por sua vez, gera transtornos, mas certamente todas as inovações ocorridas até os dias atuais partiram de pessoas comuns que acreditaram o suficiente para torná-los parte de uma realidade concreta.
Aos Enfermeiros, profissionais comprometidos com a vida, cabem a conscientização no processo de Humanização, compreendendo que este processo é, antes de tudo, uma postura profissional diferenciada; sua tarefa deve ser executada com competência técnica, criatividade, responsabilidade social, senso crítico e analítico diante de situações diversas, mas, sobretudo, sensibilidade e comprometimento holístico com o ser humano confiado aos seus cuidados.
Todas as iniciativas são válidas, desde que haja sensibilização e problematização da realidade, empenho dos envolvidos e interesse público e profissional para que a Humanização seja uma ferramenta constante no cuidado prestado, valorizando a prática do enfermeiro, tendo este a responsabilidade de tornar-se o exemplo e precursor primário de preceitos éticos, morais, humanizadores e coerentes às necessidades humanas, promovendo assim, como resultado, uma assistência holística.
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1Pós-graduada em Urgência e Emergência na Universidade Nove de Julho e Obstetrícia no Centro Universitário Adventista de São Paulo