THE ORIGINS OF BOLSONARISM: POLITICAL AND LEGAL ASPECTS OF THE RISE OF AUTHORITARIAN POPULISM IN BRAZIL IN THE 21ST CENTURY
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7579564
Oton Fernandes Mesquita Junior
RESUMO
Trata-se de uma pesquisa que aponta cinco elementos que ajudam a explicar as origens do Bolsonarismo. O artigo elenca as Manifestações de Junho 2013, a Operação Lava-Jato, o Impeachment da Presidente Dilma Rousseff, a ascensão da extrema-direita, a antipolítica e o antipetismo como elementos fundamentais para a compreensão do fenômeno bolsonarista. A partir da análise desses cinco pontos, o artigo propõe construir um conceito para definir o Bolsonarismo. Com base em intensa revisão de literatura, a investigação busca definir o Bolsonarismo como um movimento político populista de viés autoritário, que tem por princípio o confronto com instituições democráticas e visa o fim da ordem democrática constitucional inaugurada pela Constituição de 1988. A pesquisa é do tipo jurídico-dogmática, calcada no método dedutivo, com utilização de intensa revisão de literatura. A investigação é pura e de natureza qualitativa, com finalidade descritiva e exploratória.
Palavras-chave: Bolsonarismo; populismo; autoritarismo; democracia; extrema-direita.
ABSTRACT
It is research that points out five elements that help explain the origins of Bolsonarismo. The article lists the June 2013 Demonstrations, Operation Car Wash (Lava-Jato), the Impeachment of President Dilma Rousseff, the rise of the far-right, anti-politics and anti-PTism as fundamental elements for understanding the Bolsonarist phenomenon. From the analysis of these five points, the article proposes to construct a concept to define Bolsonarismo. Based on an intense literature review, the investigation seeks to define Bolsonarismo as a populist political movement with an authoritarian bias, which has as its principle the confrontation with democratic institutions and aims at the end of the constitutional democratic order inaugurated by the 1988 Constitution. legal-dogmatic type, based on the deductive method, with the use of an intense literature review. The investigation is pure and of a qualitative nature, with a descriptive and exploratory purpose.
Keywords: Bolsonarism; populism; authoritarianism; democracy; anti-politics; far-right.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por escopo apresentar cinco pontos que, combinados entre si, ajudam a entender o surgimento do movimento bolsonarista à luz de uma análise jurídico-política: (i) as Manifestações de Junho 2013, (ii) a Operação Lava-Jato, (iii) o Impeachment da Presidente Dilma Rousseff, (iv) a ascensão da extrema-direita, (v) a antipolítica e o antipetismo, como causas que contribuíram para a vitória de Jair Bolsonaro em outubro de 2018.
Entretanto, em momento algum, propõe-se uma análise determinista ou teleológica de que a conjunção desses fatores, que o encadeamento desses elementos ora estudados no primeiro capítulo, conduziu o país inexoravelmente à vitória eleitoral de Jair Bolsonaro. Como bem destacou Marcos Nobre (2022), Bolsonaro não é causa, é resultado e sua ascensão não era inevitável!
Na realidade, busca-se defender que a reunião desses elementos proporcionaram a criação de um ambiente político bastante conturbado, carregado de muitas incertezas e que, por conta de imensa conflagração política, houve o recrudescimento do sentimento de antipolítica e do antipetismo na população brasileira conduzindo à sociedade optar por mudanças.
Por fim, após analisar detidamente os pontos que possivelmente explicam as origens do fenômeno político populista, o artigo propõe uma definição para o Bolsonarismo. Para tanto, propõe estudar o populismo e indicar fatos que sugerem que o Bolsonarismo é um movimento populista de viés autoritário, que tem por objetivo destruir a ordem democrática instituída pela Constituição de 1988.
A metodologia de estudo utilizada para consecução dos objetivos do presente trabalho se fundamenta na pesquisa bibliográfica e documental, sobretudo o estudo de livros, artigos científicos, periódicos, textos jornalísticos e de opinião que tratem do assunto alvo deste ensaio. A pesquisa é pura e de natureza qualitativa, com finalidade descritiva e exploratória
2. AS ORIGENS DO BOLSONARISMO
Cas Mudde e Cristóbal Kaltwasser (2017), sustentam que a demanda pelo populismo surge justamente quando estão presentes a combinação de alguns elementos: cenário de crise econômica, corrupção sistêmica, e um sistema político que não atende às demandas sociais (unresponsive). Citam como exemplo o que ocorreu na Itália quando foi impactada pela operação Mani Pulite (1992-1996) (Mãos Limpas) ou também conhecida por Tangentopoli (Cidade da Suborno) e terminou escolhendo o populista Silvio Berlusconi como Primeiro-Ministro para três mandatos (1994-1995; 2001-2006; 2008-2011).
Conforme assenta Barry Eichengreen (2018), fatores econômicos explicam porque alguns movimentos populistas ganham força. O fraco desempenho econômico, com baixo crescimento, alimenta a insatisfação do status quo. O aumento da desigualdade reforça as fileiras dos que ficaram para trás, alimentando a insatisfação com a gestão econômica. O declínio da mobilidade social e a ausência de alternativas reforçam o sentimento de desesperança e exclusão.
Nadia Urbinati (URBINATI, 2019) vai afirmar que o populismo encontra solo fértil para proliferar em países que possuam um sistema partidário sob intensa desconfiança da população. Decerto, a combinação desses fatores econômicos, sociais e políticos ocorreu no Brasil entre 2013-2018 e ajuda a compreender como o bolsonarismo chegou ao poder.
Os escândalos de corrupção nesse período de 2013-2018 atingiram o mundo político como todo, não apenas o Partido dos Trabalhadores. Para Adam Przeworski (2020), a democracia está visivelmente em crise quando os partidos políticos perdem apoio subitamente e diminui a confiança nas instituições democráticas ou quando há a incapacidade dos governos de manterem a ordem pública, concluindo que o declínio dos partidos tradicionais é evidente: “as pessoas, quando acham que todos os políticos profissionais são a mesma coisa, egoístas, desonestos e corruptos, se viram contra eles, estejam à esquerda, à direita ou no centro” (PRZEWORSKI, 2020, p. 120).
Por isso tudo, especula-se que esse cenário caótico entre 2013-2018 abriu as cortinas do palco político para o surgimento de uma nova figura política, alguém que conseguisse rivalizar diretamente com a força política hegemônica representada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Como será demonstrado a seguir, mesmo não sendo uma figura política nova no cenário político brasileiro, Bolsonaro conseguiu reunir em torno de si a massa de insatisfeitos com a administração petista e soube manipular os sentimentos que afloraram na sociedade brasileira e incitou o ódio como estratégia de discurso político.
2.1 As Manifestações de Junho de 2013
Como ponto de partida para análise da ascensão bolsonarista, finca-se como base as chamadas Manifestações de Junho de 2013. A instabilidade política que dividiu e polarizou o debate político brasileiro teve início com as manifestações de rua em Junho de 2013, deflagrada para reclamar contra o aumento das tarifas de transporte público na cidade de São Paulo. Com o tempo, o movimento, ainda que difuso, começou a ganhar corpo e adotar outras pautas legítimas, entre elas o combate à corrupção e os excessivos gastos com a Copa do Mundo que se realizaria no país em 2014. (MESQUITA JR; ALBUQUERQUE, 2020)
As manifestações de junho de 2013 são um marco na vida política e sociocultural brasileira, exploraram novas formas de associativismo urbano, organizadas horizontalmente e conectados por redes digitais e em sintonia com outros movimentos sociais globais como Occupy Wall Street, Primavera Árabe, Indignados na Espanha, Grécia, a Revolta na Praça Taksim, em Istambul etc. (GOHN, 2019).
Marcaram o fim do ciclo dos governos petistas e iniciaram o ciclo de reformas com desregulamentação de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários. Maria da Glória Gohn sustenta que as manifestações de junho de 2013 tiveram a mesma dimensão histórica de outros dois momentos históricos: as manifestações pelo impeachment de Collor de Mello em 1992 e no Movimento das Diretas em 1984 (GOHN, 2019). A autora ainda diz que os movimentos de 2013 deixaram como legado a legitimação do protesto social na busca de mudanças conjunturais. Por fim, ela sustenta que eram movimentos que negaram a política partidária, mas não se definiam como apolíticos. (GOHN, 2019).
Na leitura de Ângela Alonso (2019), o barco democratizante da Nova República havia se chocado contra um iceberg e levaria o país ao “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. Para Alonso, as manifestações foram multifacetadas, com a presença de diversos movimentos sociais divididos em três campos: os autonomistas, que buscavam políticas de inclusão identitárias de gênero e étnicas, os socialistas que defendem pautas mais voltadas para questões econômicas e redistributivas e os chamados patriotas. Ainda segundo Alonso (2019), o campo dos patriotas acabou por se sobressair a partir de 2015, dominando as ações e protestos nas ruas do país com destaque para o grande palco desses movimentos, a Avenida Paulista em São Paulo.
Para Luís Felipe Miguel (2019), os protestos foram parcialmente dominados por uma pauta antipolítica e de combate a corrupção, com discurso mais conservador e com forte adesão da classe média. Ainda segundo Luís Felipe Miguel (2022, e-book), “Junho foi o começo do fim. O fim do pacto lulista, o fim da Nova República, o fim da Constituição de 1988, o fim do experimento liberal-democrático no Brasil.” As manifestações de 2013 são sintomas de um mal-estar até então oculto (MIGUEL, 2022).
Ainda na visão do cientista político e sociólogo, a crise política brasileira segue uma linha que começa nas manifestações de 2013, passa pelo golpe de 2016 e chega ao triunfo do bolsonarismo com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 (MIGUEL, 2022). Junho simboliza o esgotamento de um modelo de organização política, que até então parecia bastante saudável mas que simboliza um momento de crise da democracia liberal, muito em função da dificuldade de acomodar a acumulação capitalista e a igualdade de direitos de cidadania garantidos pela Constituição de 1988 (MIGUEL, 2022).
Em resumo, as manifestações de Junho de 2013 foram extremamente significativas por três razões, segundo Saad-Filho (SAAD-FILHO, 2018): primeiramente, foi a mais importante revolta de massa dessa geração, em segundo lugar, significou uma ruptura irreversível na base do PT e serviu como estopim para a paralisia política que levaria a deposição da ex-Presidente Dilma Rousseff em 2016, e por fim, significou o surgimento da extrema direita no país com apoio maciço da classe média brasileira. Percebe-se que as manifestações abriram caminho para uma série de eventos que viriam depois. Já havia uma patente insatisfação de parcela significativa da população com os sucessivos governos do PT, que não conseguiam mais responder aos anseios da população por mais serviços públicos de qualidade e acesso às garantias e direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988.
2.2 A Operação Lava Jato
Em março de 2014 foi deflagrada a maior operação anticorrupção da história do país que abalou as estruturas da República. A Lava Jato teve como principais protagonistas o ex-juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, Sérgio Moro, e o ex-procurador da República Deltan Dallagnol. A Força Tarefa jamais teria a força institucional que alcançou sem a o apoio incondicional do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Procuradoria Geral da República (PGR) para emparedar o sistema político de 2014 a 2019 (NOBRE, 2022). Em entrevista recente, o Ministro do STF Gilmar Mendes afirmou que a Lava Jato era um “projeto político de viés totalitário” e que praticamente destruiu o sistema político brasileiro2.
A Força Tarefa da Operação Lava Jato colocou a política no banco dos réus e lançou políticos e partidos tradicionais no completo descrédito com largo apoio e cobertura da grande mídia nacional (KERCHE; MARONA, 2022). Esse movimento de “criminalização da política” contribuiu para o surgimento de novas lideranças desconectadas de partidos políticos, e avessos à política partidária, bem como permitiu a ascensão de líderes populistas e anti políticos, aprofundando ainda mais a crise dos partidos que amargaram considerável perda de protagonismo nesse contexto, o que levaria mais adiante a pavimentar o caminho de Bolsonaro à presidência.
Associada a uma massiva campanha midiática, a Lava Jato provocou uma onda de descrédito em quase toda classe política e partidos políticos, especialmente, contra o Partido dos Trabalhadores (PT). De 2014 em diante, já com a Lava Jato em curso, os movimentos de rua ganharam contornos políticos bem desenhados, com o surgimento de novas lideranças políticas desconectadas de partidos políticos, que nesse contexto perderam protagonismo político. Os alvos principais dos manifestantes, da mídia e das redes sociais seriam os políticos e os partidos, especialmente o PT e seus dirigentes.
Não obstante a Força Tarefa da Lava Jato ter investigado e condenado agentes políticos e grandes empresários, especialmente do ramo da construção civil pesada brasileira, a operação ficou muito marcada pela atuação política em relação ao ex-Presidente Lula, recém-eleito em 2022. A Lava Jato se mostrou um movimento jurídico-político que acabou por interferir diretamente nas eleições de 2018, quando condenou e prendeu o ex-presidente Lula que liderava as pesquisas de intenção de voto, às vésperas das eleições de 2018 (07/04/2018), retirando-lhe do pleito presidencial. Lula ficou preso por 580 dias3, candidatou-se a presidente em 2022, venceu as eleições em segundo turno contra Jair Bolsonaro, tomando posse no cargo em 01/01/2023.
Alguns episódios reforçam a tese do caráter político da operação, pelo menos em relação ao ex-presidente Lula. Após as eleições de 2018, com a vitória de Jair de Bolsonaro sobre o candidato petista Fernando Haddad, o então juiz federal Sérgio Moro, aceitou o convite do recém-eleito para assumir o cargo de Ministro da Justiça do governo Bolsonaro, largando definitivamente a toga.
Além disso, após ter saído do governo, acusando Bolsonaro de interferência na Polícia Federal para proteger seus filhos, Sérgio Moro se filiou inicialmente ao Podemos, para só então se filiar ao União Brasil, federação de partidos originado da fusão do Democratas e do Partido Social Liberal (PSL), pelo qual concorreu e conquistou uma vaga ao Senado pelo Estado do Paraná em 2022, tornando-se um político eleito.
Outro grande protagonista da operação Lava Jato, o ex-Procurador da República, Deltan Dallagnol, pediu demissão de seu cargo de procurador no Ministério Público Federal, filiou-se ao Podemos e se elegeu a deputado federal também pelo Paraná em 2022. Os principais líderes da Operação Lava Jato deixaram seus cargos públicos, altos salários e estabilidade, para ingressarem na vida política, mais uma evidência de que a operação seria na verdade um trampolim para projetos político-pessoais.
Mais outros dois momentos emblemáticos apoiam a tese de que houve politização indevida na condução da Operação Lava Jato. O primeiro foi o julgamento do Habeas Corpus (HC) nº 193.7264 no plenário do STF que confirmou por 8 votos a 3 o entendimento do relator, Ministro Edson Fachin, pela incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba no tocante ao processo do triplex do Guarujá/SP, o que levaria o processo para ser julgado no juízo do Distrito Federal. O segundo momento foi o julgamento em Plenário do HC nº 164.4935 que referendou a decisão da 2ª Turma do STF pela parcialidade do então juiz federal Sérgio Moro na condução da ação penal que condenou o ex-presidente Lula, e decidiu pela anulação de todos os atos decisórios praticados no processo.
Para Souza Neto (2020), a operação Lava Jato representou a apoteose do populismo penal com a “carnavalização” da persecução criminal e permitiu que Dilma Rousseff perdesse a governabilidade e consequentemente levasse ao seu impeachment. Arremata afirmando que a Lava Jato relativizou algumas garantias constitucionais em nome do combate à corrupção, todavia em um Estado de Direito não pode haver condenações que extrapolam os limites da legalidade ainda que seja moralmente justificado (SOUZA NETO, 2020).
A Lava Jato utilizou-se de métodos de investigação e jurisdicionais punitivistas que acabou se replicando inclusive no comportamento do Supremo Tribunal Federal (STF), quando teve oportunidade de decidir questões relativas aos investigados e réus da operação (KERCHE; MARONA, 2022). A operação se notabilizou por promover ações espetaculosas, com intensa cobertura midiática, vazamentos de operações para alguns grupos de mídia e jornalistas específicos, com uso de conduções coercitivas, depois e “delações premiadas”, ou mais tecnicamente colaboração premiada (KERCHE; MARONA, 2022).
Mesmo com toda pressão popular e com a Lava Jato aprofundando as investigações contra o PT e seus integrantes, a presidente Dilma Rousseff conseguiu se reeleger em 2014, contudo não conseguiria se manter no cargo por muito tempo. Carente de apoio popular, extremamente fragilizada do ponto de vista político, e apontada como a responsável por uma condução econômica desastrosa, foi defenestrada do cargo, através de um questionável processo de impeachment em 2016, acentuando ainda mais a crise política e retirando o PT do poder depois de 13 anos de governo (2003-2016).
2.3 O impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff
Outro elemento muito importante para se compreender a ascensão do bolsonarismo no país foi o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. A presidente foi acusada formalmente de praticar “pedaladas fiscais”, ou seja, manobras contábeis que postergaram os pagamentos obrigatórios do Tesouro Nacional aos bancos públicos, dando a impressão de que as contas públicas estavam sólidas, todavia era uma posição artificialmente manipulada (MAFEI, 2021).
Bello, Bercovici e Lima (2019) definem impeachment como processo de apuração de responsabilidade política do Presidente da República. Reforçam que o impeachment não se aplica quando o presidente tenha baixa popularidade ou falta de apoio parlamentar, não deve ser confundido, portanto, com o voto de desconfiança típico de governos parlamentaristas. Definem crimes de responsabilidade por atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição, devendo ser previamente definidos em lei especial federal, não são, portanto, ilícitos penais propriamente ditos, têm natureza política. O processo de impeachment é um processo político mas que depende de sólida fundamentação jurídica, com escopo principal de proteger o país do governante que abusa do seu poder ou subverte a Constituição (BELLO; BERCOVICI; LIMA, 2019).
O processo de impeachment teve seu início em 02 de dezembro de 2015, momento do recebimento da denúncia pelo então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha. Após a aprovação do relatório favorável pelo impeachment em 11 de abril na Comissão especial da Câmara, houve a votação no plenário da Câmara do Deputados, em sessão conturbada no 17 de abril de 2016, que nas palavras de Souza Neto (2020), ficaria para história pela gravidade da decisão tomada mas também pelo desapreço pela democracia. Na oportunidade os deputados votaram pela abertura do processo de impeachment, com 342 votos favoráveis.
Todavia, outro fato dividiria as atenções com a admissibilidade do impeachment em si, durante a sessão na Câmara dos Deputados, o voto do então deputado federal Jair Bolsonaro. Evocando o conhecido torturador da ex-presidente Dilma Rousseff, o ex-Coronel do Exército brasileiro, Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o terror de Dilma Rousseff”, votou pelo prosseguimento da ação, mas chocou a todos pela desfaçatez de conjurar um conhecido torturador da época da Ditadura Militar (1964-1985), responsabilizado no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade6, dentro da casa do povo brasileiro.
Pelo ato em si, Bolsonaro foi representado no Conselho de Ética da Câmara, mas o processo foi arquivado sob o fundamento de que o deputado estaria amparado pelo art. 53 da Constituição (BRASIL, 1988), que confere aos parlamentares a imunidade por opiniões, palavras e votos7. Ainda na conturbada sessão do impeachment, houve um desentendimento entre os então deputados Jean Wyllys e Jair Bolsonaro, terminando aquele a desferir uma cusparada contra este. Pelo ato de agressão, Jean Wyllys foi processado no Conselho de Ética da Câmara por quebra de decoro parlamentar, sendo condenado a receber uma censura por escrito8.
No Senado, em 12 de maio de 2016, por 55 votos favoráveis, a presidente foi afastada temporariamente do cargo pelo prazo de 180 dias, sendo imediatamente substituída pelo vice-presidente Michel Temer. O ato final que selou o destino da presidente se deu em até 31 de agosto de 2016, quando o Senado da República condenou Dilma Rousseff a perda do cargo de presidente, mas manteve-lhe os direitos políticos, por uma manobra regimental, que na opinião de Rafael Mafei (2021) viola a literalidade do parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal, pois a perda do cargo conduz necessariamente também a inabilitação ou perda dos direitos políticos pelo prazo de 8 anos, não havendo margem para discricionariedade para aplicação de dosimetria.
Segundo Perez-Liñan e Polga Hecimovich (2017) há um consenso acadêmico de que o protesto popular é uma explicação central para as remoções legais. Afirmam ainda que protestos multiclasses encorajam processos de impeachment e motivam as elites a se organizarem para derrubar o presidente. Em um cenário de crise econômica, a mobilização social incentiva os legisladores a se voltarem contra o Executivo – como aconteceu com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 no Brasil. Recessões econômicas, protestos em massa e atores políticos radicalizados mapeiam as condições gerais que explicam por que os presidentes eleitos falham. Por outro lado, a difusão regional de golpes militares, o tamanho do partido do presidente no Congresso e as preferências normativas das elites políticas por democracia ajudam a explicar como os presidentes são afastados do cargo. (PÉREZ-LIÑÁN; POLGA-HECIMOVICH, 2017)
Rafei Mafei (2021) sustenta em seu trabalho que o impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff não deve ser entendido como golpe9, não obstante reconheça que as motivações políticas para sua retirada da presidência sejam mais em razão de interesses inconfessáveis de grupos políticos interessados em barrar o andamento da operação Lava Jato, que se aproximava perigosamente de figuras do alto escalão do PMDB e PSDB, que propriamente razões jurídicas fundamentadas nas “pedaladas fiscais” e nos decretos de abertura de crédito.
Em sentido diametralmente oposto, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos (SANTOS, 2017) sustenta que o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe parlamentar. Ele define golpe parlamentar como uma substituição fraudulenta de governantes orquestrada e executada por lideranças parlamentares, ainda que obedecendo formalmente às leis, consiste precisamente em se valer dos mecanismos das instituições para obtenção de resultados ilegítimos. Para o autor, armou-se uma coalizão conservadora no parlamento brasileiro para sabotar as ações do executivo federal, portanto, afirma, não teria sido a perda de apoio político que a fez perder o cargo, o impedimento foi a razão teleológica da sabotagem parlamentar10.
Souza Neto (2020) sustenta que o processo de impeachment teria sido maculado pelo eloquente desvio de finalidade, com claro intuito de retaliação. O impeachment foi empregado como uma espécie de moção de desconfiança, típica de governos parlamentaristas, o que não se coaduna com o sistema presidencialista brasileiro (BELLO; BERCOVICI; LIMA, 2019; SOUZA NETO, 2020). Em razão da ostensiva ausência de crime de responsabilidade, o impeachment deveria ser tachado de “o golpe de 2016” ou como softcoup que viria deflagrar em seguida um processo de erosão democrática no país (SOUZA NETO, 2020).
Por tudo que se sabe hoje, verifica-se que o impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff foi uma manobra construída por parlamentares para defenestrá-la do cargo sem uma base jurídica sólida. Inclusive, corroborando ainda mais com essa tese de golpe parlamentar, a Comissão Mista de Orçamento aprovou, em dezembro de 2022, as contas de Dilma Rousseff referente aos anos de 2014 e 201511, afastando de vez a tese das “pedaladas fiscais” como fundamento jurídico para o processo de impedimento.
Não obstante seja verdade que Dilma Rousseff havia perdido apoio popular e sustentação no Congresso, esses motivos não deveriam embasar uma medida tão extrema (SOUZA NETO, 2020). O impeachment deixou o país ainda mais conflagrado politicamente. Havia na esquerda liderada pelo PT a nítida sensação do golpe e havia na direita o sentimento de que finalmente poderia voltar ao poder. Todavia, a direita, até então personificada no PSDB, que rivalizava com o PT nas urnas desde 1994, perdeu espaço e foi engolida pela extrema-direita, que atropelou todos os prognósticos e viria a se sagrar vencedora das eleições de 2018 com Jair Bolsonaro.
2.4 A ascensão da extrema direita
Com o fim da ditadura militar em 1985 e a promulgação do novo Pacto Político cristalizado na Constituição de 1988, o Brasil parecia enfim caminhar para a consolidação de sua democracia. Grupos de direita que apoiaram o golpe militar saíram temporariamente de cena, pois não queriam ser associados à ditadura. A direita, até então envergonhada, se reorganizou e tinha como meta o fim do pacto democrático instituído em 1988 (ROCHA, 2021a).
O ressurgimento da direita ocorreria em meados dos anos 2000 através de think tanks patrocinados por grandes empresários e grupos econômicos que pregavam a difusão de valores libertários e conservadores (MIGUEL, 2019; ROCHA, 2021a). A internet se tornou refúgio para direitistas, antipetistas e demais insatisfeitos com a política de forma geral. A direita ocupou fóruns de discussões, grupos e comunidades digitais desde o aparecimento das redes sociais, com destaque para o uso do Orkut, depois Facebook e Twitter, encontrando um espaço bastante fértil para divulgar suas ideias e sobretudo criticar o governo petista que já enfrentava as denúncias do Mensalão (ROCHA, 2021a).
Segundo Michele Prado (2021), fazer parte dessas comunidades digitais compostas por liberais e conservadores despertou um sentimento de pertencimento do grupo. Aqueles que ainda não participavam desses grupos passaram a aderir. Com o tempo, o filósofo Olavo de Carvalho, figura central na formação do conjunto de crenças bolsonarista, ganharia projeção nas redes sociais e seria alçado ao status de guru dessa nova direita que passava a se radicalizar nas redes, um ambiente até então bastante permissivo.
O olavismo não se limitou às redes sociais, tomou as ruas, sobretudo a partir das jornadas de 2013, sempre com uma linguagem hiperbólica e uma pretensa superioridade intelectual, Olavo ajudou a radicalizar o ambiente político do país com a amplificação de seu discurso anticomunista, a profusão de teorias conspiratórias e de combate a uma suposta hegemonia do marxismo cultural gramsciano (ROCHA, 2021b), tudo isso replicado por seus alunos e admiradores. Olavo não era apenas alguém dotado de farto repertório filosófico, era também acostumado a fazer uso das redes digitais e ministrava cursos, palestras e aulas online para milhares de pessoas (PRADO, 2021), a ascensão de sua popularidade nutriu uma relação simbiótica com o que veio a se tornar o bolsonarismo (HUSSNE, 2020).
Para Castro Rocha (ROCHA, 2021b) para compreender a mentalidade bolsonarista é preciso percorrer quatro pontos fundamentais: a existência de uma guerra cultural em andamento, ou seja, a luta contra uma suposta hegemonia da esquerda em setores estratégicos da sociedade como na cultura, na educação e enraizado no sistema político; a aplicação da Doutrina de Segurança Nacional e do Orvil como ferramentas para se reconhecer o inimigo imaginário e poder eliminá-lo em combate e o sistema de crenças de Olavo de Carvalho, que elabora o discurso e dá o tom da estratégia de combate. “Sem o olavismo não haveria uma movimento bolsonarista, mas tão somente um neopopulismo boquirroto sem um núcleo ideológico forte e minimamente coeso” (HUSSNE, 2020).
Bolsonaro conseguiu se inserir nesse contexto e se beneficiou politicamente dessa aproximação com Olavo de Carvalho. Seu nome passou a ser cogitado para presidente pela extrema direita já em 2014, e nas eleições de 2018, foi retratado como enviado de Deus para lutar em uma guerra espiritual (PRADO, 2021). Bolsonaro era um dos raros políticos que conseguia participar das manifestações pró-impeachment e ser ovacionado pelo público, ao contrário dos demais políticos de oposição (ROCHA, 2021a).
Segundo Guilherme Casarões (CASARÕES, 2022), seguindo o critério utilizado por Cas Mudde (MUDDE, 2019), dentro do guarda-chuva conceitual da extrema direita (far-right), o bolsonarismo se encontra na categoria de direita radical (radical right), uma vez que aceita os pressupostos essenciais da democracia12.
Conforme sustenta Casarões (2022), Bolsonaro dificilmente teria sido eleito se não fossem as condições internacionais oferecidas pela vitória de Donald Trump em 2016. A eleição de Trump catapultou a extrema-direita brasileira para dentro do debate político e lançou Bolsonaro como seu líder inconteste. O Bolsonarismo deve ser visto como parte integrante de um fenômeno transnacional, mas que encontra muita afinidade com o movimento congênere norte-americano. Foi dos Estados Unidos que o bolsonarismo importou a gramática e o estilo de atuação extremistas aplicado nas redes sociais aqui no Brasil (CASARÕES, 2022).
O bolsonarismo é a expressão brasileira de um movimento de reação internacional às mutações promovidas pela grande revolução digital ou informática, seu núcleo mais coeso está nos aparelhos de segurança formais (forças armadas e polícias) e informais (milícias e bancada da bala). Em um segundo círculo estão as igrejas evangélicas pautas conservadoras relativas aos costumes e com importante expressão parlamentar (bancada da bíblia). Aliança com o agronegócio e com o capital financeiro tendo como avalista Paulo Guedes (REIS, 2020).
Não se pode esquecer de dizer que Bolsonaro soube como ninguém se utilizar das ferramentas digitais disponíveis em 2018 para se comunicar diretamente com seu público (NOBRE, 2022), sem intermediários, e defender as ideias e valores alinhados com os propósitos da extrema direita brasileira sob forte influência da alt-right norte-americana liderada por Donald Trump. Bolsonaro conseguiu espalhar seu discurso radical e chegar à mente de muitas pessoas através de disparos em massa de mensagens direcionadas em grupos do Whatsapp e Telegram espalhados por todo país.
Bolsonaro soube capturar o sentimento dessa massa insatisfeita com os políticos e desconfiada da política, fazendo largo uso das redes sociais e grupos de aplicativo de mensagens, com a divulgação massiva de informações muitas vezes distorcidas ou mesmo falsas, mas que eram consideradas verdades incontestes dentro dessas bolhas e câmaras de eco de seus seguidores (MIGUEL, 2022).
2.5 Os sentimentos de antipolítica e antipetismo
Nesse tópico pretende-se explicar como a antipolítica e o antipetismo combinados com os demais eventos até então estudados – as manifestações de junho de 2013, a operação Lava Jato, o impeachment da Presidente Dilma Rousseff e a ascensão da extrema direita no Brasil – ajudaram a fomentar o movimento populista de extrema direita liderado por Jair Bolsonaro. Fora os fatos concretos até aqui estudados, é muito importante analisar também o estado anímico da sociedade brasileira em meio a esse turbilhão de acontecimentos sociais, econômicos e políticos que ocorreram entre 2013 e 2018.
Os sentimentos de antipolítica e antipetismo afloraram com muita força no seio da sociedade brasileira, é sem dúvida, esses sentimentos influenciaram os debates políticos e as escolhas eleitorais de 2018. Esse caldo de cultura é decorrente diretamente da insatisfação da população com os inúmeros escândalos de corrupção que sempre marcaram a vida política nacional, mas que nos governos petistas tomaram uma proporção ainda mais acentuada, sobretudo pela intensa cobertura midiática e pela velocidade com que as notícias correm nas redes sociais, com destaque para o “Mensalão” e “Petrolão”.
Entretanto, esses sentimentos não se explicam apenas como uma reação da sociedade contra os desmandos e infrações éticas dos políticos. O discurso populista de extrema direita tenta incutir na população que a classe dirigente que está no poder é a única responsável pelas mazelas e crises que assolam o país e que somente um outsider poderia enfim tirar o país da lama.
2.5.1 A antipolítica
Bolsonaro fez sua campanha presidencial em 2018 calcado no discurso da antipolítica, com a promessa de promover uma nova forma de fazer política no Brasil. Certamente, aproveitou-se da crise política provocada pelos escândalos de corrupção da Operação Lava Jato, amplamente divulgados pela grande mídia, que minou a credibilidade dos políticos e dos partidos. Bolsonaro, não obstante o exercício de cargos públicos eletivos ao longo de mais de três décadas, apresentou-se como o outsider, a única opção “antiestablishment”, desvinculado dos velhos conchavos e alianças partidárias (MESQUITA JR, 2022).
Antes de analisar o que significa exatamente o termo antipolítica, primeiramente, faz-se necessário explicar: o que é política? Max Weber (2015) compreende a política como a influência exercida sobre a direção do Estado, significa aspiração à participação no poder ou exercer influência sobre a distribuição, à conservação ou à transposição do poder.
Para Hannah Arendt (2018, p. 17), “a política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças”. A autora alemã sustenta que “um Estado em que não existe comunicação entre os cidadãos e onde cada homem pensa apenas seus próprios pensamentos é, por definição, uma tirania” (ARENDT, 2016, p. 212)
Percebe-se, de antemão, que política tem relação com o poder e com a convivência entre diferentes. Dito isso, a antipolítica é exatamente a negação da política, é a antítese do que há de mais importante na política, justamente ser instrumento para a busca de solução dos conflitos do poder de forma pacífica e com total respeito à opinião dos diferentes. A antipolítica se expressa na pretensão de excluir ou até mesmo eliminar (fisicamente) da corrida ao poder aqueles que pensam, comportam-se ou apresentam-se como diferentes.
A busca pelo poder deve ser franqueada e assegurada de maneira igual a toda e qualquer pessoa ou grupo social que se organize visando chegar ao governo, desde que para isso respeitem a Constituição e as leis do país. No Brasil é assegurada pela Constituição Federal o direito de reunião (art. 5º, XVI) e de associação (art. 5º, XVII), bem como é assegurado o exercício dos direitos políticos (art. 14) sendo vedada a cassação dos direitos políticos, salvo nas hipótese previstas no art. 15 da Carta Política brasileira.
O sentimento de antipolítica se espraia pela sociedade brasileira em relação aos constantes escândalos de corrupção, mas também porque os próprios políticos e partidos se distanciaram de suas atribuições de representantes do povo, de certa forma se encastelar em seus cargos e praticamente não prestam contas de suas ações enquanto no exercício do mandato13.
A partir do descrédito conferido às instituições representativas, percebe-se um certo grau de desafetação democrática. Os políticos são vistos como corruptos e dissimulados, visam apenas vantagens pessoais em detrimento dos anseios da sociedade que representam. Essa falta de confiança nos políticos leva inexoravelmente a uma perda na confiança na própria união estatal (ROMANO, 2014). Existe uma acentuada queda na mobilização dos cidadãos no processo político, acompanhada pela má reputação que ronda os políticos, o aumento da abstenção eleitoral, bem como o crescimento de partidos extremistas como consequência direta da desilusão política (SANTANO, 2017).
Conforme assevera Manuel Castells (2018), a democracia não é representativa, a menos que os cidadãos acreditem que estão sendo representados, porque a estabilidade das instituições depende basicamente da confiança que os cidadãos depositam nelas. Se for rompido o vínculo subjetivo entre a vontade dos cidadãos e seus interesses e as ações daqueles que são eleitos para cumprir essas tarefas, no caso os políticos, produz-se o que Castells chama de “crise de legitimidade política”14.
Segundo Kim Scheppele (2018), a atual crise da democracia liberal é devida ao colapso geral dos partidos políticos. Nessa mesma linha de raciocínio, Fernando Bértoa e José Rama (2021) assevera que a verdadeira doença que aflige as democracias representativas é decorrente da crise dos partidos políticos tradicionais e arremata afirmando que a ascensão de partidos anti establishment é meramente um sintoma.
A falta de prestígio dos partidos políticos no Brasil pode ser medida e constatada, de forma emblemática, pelo tempo que o então Presidente da República, Jair Bolsonaro, permaneceu sem nenhuma filiação partidária, desde que se desfiliou do Partido Social Liberal (PSL) em novembro de 201915, sua oitava legenda partidária ao longo de sua carreira política, com objetivo de criar sua própria legenda o “Aliança pelo Brasil”. Mesmo ocupando o cargo de presidente, Bolsonaro foi incapaz de criar seu próprio partido político (MESQUITA JR, 2022). Como não conseguiu preencher os requisitos legais para a formalização do novo partido, sua filiação para concorrer às eleições em 2022 passou a ser intensamente negociada e disputada entre os partidos16.
Bolsonaro não esconde sua aversão à política: se ele é sintoma das graves crises que assolam diversas democracias ocidentais, é também consequência da crise do sistema partidário no Brasil. Nem mesmo as inúmeras manifestações racistas, homofóbicas e discriminatórias proferidas por Bolsonaro ao longo de sua vida política foram capazes de sensibilizar e alertar o povo e os partidos políticos ao ponto de evitar sua vitória eleitoral em 2018.
Segundo Sérgio Abranches (2020), Bolsonaro é a expressão da antipolítica pois deseja eliminar seus adversários políticos, desqualificando aqueles agentes políticos que não comunguem de suas visões, faz uso da intimidação com ataques verbais e linchamentos nas redes sociais para tentar calar as vozes dissonantes. Para Avritzer (2020, e-book) “a antipolítica é a reação à ideia de que instituições e representantes eleitos devem discutir, negociar e processar respostas a temas em debate no país. A antipolítica constitui uma negação de atributos como a negociação ou a coalizão”. No próximo tópico será melhor desenvolvido esse sentimento de antipetismo que tomou conta do país entre 2013-2018.
2.5.2 O antipetismo
O antipetismo pode ser visto como um elemento correlato ao sentimento de antipolítica, porque se acredita que aquele é derivado direto deste. Como foi afirmado acima, a antipolítica é justamente a negação da política como meio de solução de conflitos do poder, além disso é também uma forma de excluir da política pessoas e grupos que não se coadunam com o pensamento da maioria que esteja no poder. Especificamente, então, o antipetismo é o sentimento de que o Partido dos Trabalhadores e seus integrantes e apoiadores não devem participar mais da vida política nacional, pois seriam a raiz de todos os problemas de corrupção política do país.
César Zucco e David Samuels (2018) vão afirmar que, dentro do contexto partidário brasileiro, a divisão entre petistas e antipetistas é de fato a única clivagem partidária significativa no Brasil. Essa visão dos autores é comprovada quando se constata que desde a redemocratização em 1985, o Partido dos Trabalhadores é a única legenda partidária que esteve em todas as eleições presidenciais desde 198917, tendo vencido cinco eleições (2002-2006-2010-2014-2022) e, quando houve segundo turno, esteve presente em todos .
Ainda segundo Zucco e Samuels (2018), o status socioeconômico, tampouco marcadores demográficos nunca dividiram nitidamente petistas e antipetistas, também não se pode afirmar que é uma divisão elite versus massas. A divisão entre petistas e antipetistas não se explica pelo conflito entre ricos e pobres, ou pela divisão entre negros e brancos. Isso sugere que a razão pela qual os brasileiros apoiam ou se opõem ao PT está nas atitudes políticas. Para os autores, são as atitudes em relação à democracia e a conveniência da mudança social que parecem explicar essa divisão entre petistas e antipetistas.
Os brasileiros que veem a democracia como uma ferramenta para promover mudanças e que veem o ativismo social como um componente necessário de qualquer esforço desse tipo provavelmente se tornarão petistas (SAMUELS; ZUCCO, 2018). O antipetismo surgiu como uma resposta à ascensão do PT e sua forma particular de fazer política, que insistia em promover mudanças sociais, políticas e econômicas por meio da participação popular e de massa. O antipetismo não seria movido, portanto, pela corrupção ou incompetência, baseia-se mesmo na oposição à mudança política, social e econômica promovida pelos governos petistas (SAMUELS; ZUCCO, 2018).
Jairo Nicolau (NICOLAU, 2020) vai dizer que em meio à barafunda de siglas e a alta fragmentação partidária no Brasil, em quarenta de existência, o Partido dos Trabalhadores é o único que conquistou espaço central na política nacional. Ainda segundo o autor, o antipetismo se deve justamente a essa posição de centralidade do partido no cenário político nacional, associado ao conservadorismo comportamental e à corrupção.
Segundo Wilson Gomes (GOMES, 2020) “o antipetismo18 é baseado na ojeriza, no ódio ao PT e ‘a tudo o que ele representa’ ”. O antipetista tem horror às suas políticas públicas, à corrupção política, à própria ideologia humanista, de esquerda e progressista que se identifica com o partido. O antipetismo também é uma mentalidade, um imaginário político, um sentimento coletivo e um conjunto de convicções, é o sentimento e a mentalidade dos que detestam o PT, odeiam tudo o que a ele se relaciona, abominam tudo o que ele representa. O antipetista típico atribui ao PT tudo o que considera detestável na vida pública e assume como missão moral, pessoal e coletiva, remover o partido da face da Terra (GOMES, 2020).
O antipetismo não deve ser visto apenas como uma antipatia ou intolerância aos preceitos do partido, ou porque representam ideias de esquerda ou progressistas em meio a uma sociedade conservadora, é preciso ter em mente que foram nos anos da gestão petista à frente do governo federal, que se descobriram os maiores escândalos de corrupção dos últimos anos no país e que isso atraiu ainda mais repulsa ao partido. Não é possível afastar a corrupção como elemento central do antipetismo.
No próximo ponto, pretende-se estudar o populismo para só então construir uma definição de Bolsonarismo, aproveitando os elementos já estudados até aqui, acrescentando outros fatores que ajudam a explicar a ascensão do movimento e sua difusão na sociedade brasileira.
3. O QUE É O POPULISMO?
Jair Bolsonaro é o arquétipo do político populista19, elegeu-se em meio a desorientação dos partidos políticos, que estavam sob forte ataque da mídia e do judiciário, sobretudo durante o andamento da Operação Lava Jato, e dos eleitores descontentes e imersos em um cenário repleto de problemas econômicos, políticos e morais (MESQUITA JR, 2022). Mas antes de definir o Bolsonarismo, é preciso resgatar alguns conceitos sobre o que é populismo, e no caso do Bolsonarismo é preciso ainda saber se é também como autoritário, pois apresenta uma postura antiliberal e antidemocrática, comprovados por inúmeros fatos verificados ao longo de seu mandato.
Segundo Federico Finchelstein (2019), o populismo é uma forma autoritária de democracia surgida inicialmente como reformulação do fascismo logo após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Afirma ainda que o populismo surgiu primeiramente na América Latina, especificamente na Argentina de Juan Perón (1946). É bom frisar que o historiador argentino sustenta que o populismo não é uma espécie de fascismo, todavia, o populismo está genética e historicamente associado ao fascismo. Federico Finchelstein (2019) defende que o populismo rejeitou a violência política típica do fascismo e adotou o princípio democrático da representação eleitoral.
O populismo se baseia na figura do líder que seria a própria personificação divina do povo e a vontade do povo se expressa no líder. Os populistas precisam de inimigos para que se afirmem como únicos e legítimos defensores da vontade do povo. Lembra ainda que o populismo é oposto à diversidade, tolerância e pluralidade na política. Atualmente, o populismo representa uma reação não-pluralista à recessão econômica mundial e à crise de representação causada por elites políticas tecnocratas que são vistas como indiferentes às desigualdades sociais (FINCHELSTEIN, 2019)
Cas Mudde e Cristóbal Kaltwasser (2017) definem populismo como uma ideologia tênue que considera a sociedade dividida em dois campos homogêneos e antagônicos, “o povo puro” versus “a elite corrupta”, e que defende a política como uma expressão da vontade geral do povo. Os autores apontam para os três elementos principais do populismo: o povo, a elite e a vontade geral. Os autores afirmam que o populismo tanto pode desempenhar um papel positivo quanto negativo em relação à democracia liberal.
Jan-Werner Müller (2016) assevera que populismo é uma imaginação moralista da política, que estabelece um povo moralmente puro e unificado contra as elites corruptas e moralmente inferiores. Os populistas são anti elitistas e anti pluralistas, pois afirmam que somente eles representam o povo; uma vez no poder, os populistas não reconhecem nenhuma oposição como legítima. A reivindicação central do populismo é, portanto, uma forma moralizada de anti pluralismo.
O filósofo político alemão diz que populismo não é um corretivo da democracia liberal no sentido de aproximar a política do povo ou mesmo reafirmar a soberania popular, mas pode ser útil para deixar claro que partes da população realmente não estão representadas, todavia não justifica a afirmação populista de que apenas seus apoiadores são as pessoas reais e que eles são os únicos representantes legítimos (MÜLLER, 2016). Para Müller (2016), o populismo é uma sombra permanente sobre a política representativa, pois os populistas se julgam os únicos e legítimos representantes do povo. Ainda segundo o autor, os populistas são um perigo real à democracia. Por fim, ele afirma que os populistas tendem a ocupar o Estado através de clientelismo de massa, corrupção e supressão de uma sociedade civil crítica e organizada.
Nadia Urbinati (2019) sustenta que o populismo é, em todos os aspectos, um produto do mau funcionamento da democracia partidária. É um modelo de governo representativo, mas que desfigura a tradicional democracia representativa. O populista almeja chegar ao poder pelo voto, mas a sua ambição interior é incorporar o maior número de indivíduos em si mesmo, de modo a tornar-se o único partido do povo e varrer as demais filiações partidárias que antecederam à sua ascensão. A cientista política italiana afirma que o populismo inaugura uma espécie de regime caracterizado por uma “representação direta”. Os líderes populistas querem substituir a democracia de partidos pela democracia populista, querem falar diretamente ao povo sem recorrer aos tradicionais intermediários, como a imprensa e os partidos políticos e constroem sua popularidade atacando os principais partidos e políticos, construindo representatividade direta com base apenas na retórica (URBINATI, 2019).
Com base no que foi estudado até aqui, entende-se por populismo o movimento político que costuma se apresentar em situações de profundas crises econômicas ou políticas, que necessariamente tem à frente um líder carismático que reclama ser a voz do povo abandonado contra uma elite corrupta e moralmente indignada de confiança.
O populismo deve ser visto como um reflexo da falha no sistema de representação política na democracia; não se expressa apenas como um discurso, ou como um estilo político, é também um conjunto de ideias que contagia as massas. O populismo busca exercer uma representação direta e sem intermediários, tende a ser anti pluralista, não tolera as limitações impostas por constituições democráticas liberais e pode adotar quaisquer dos lados do espectro político.
Cansados das promessas não cumpridas pela democracia (BOBBIO, 2019), muitos brasileiros resolveram apostar no populismo autoritário como solução para os problemas nacionais, apostaram todas as fichas no populista e ex-capitão do Exército brasileiro, Jair Bolsonaro, como aquele que poderia, enfim, tirar o país daquela tormenta instalada sobre o país desde 2013.
4. O QUE É O BOLSONARISMO?
Bolsonaro chegou ao poder por um conjunto imprevisto e reprodutível de fatores (ABRANCHES, 2020), num cenário político absolutamente improvável, não precisou fazer coligações com partidos tradicionais para vencer as eleições presidenciais. Filiado a um partido nanico à época (PSL), aproveitou-se de uma conjuntura política extremamente favorável e uma estratégia de marketing digital muito bem sucedida nas redes sociais e conseguiu se eleger presidente (AMARAL, 2021).
Segundo Carlos Melo (2019), Bolsonaro percebeu as brechas políticas e o esgotamento do sistema político brasileiro. Abraçou questões como a segurança pública, liberação de armas e nacionalismo chauvinista, questões que dialogavam com sua base conservadora e radical. Além disso, ainda na visão de Carlos Melo (2019), adotou uma retórica exaltada contra a corrupção e o antipetismo, aliado às pautas conservadoras nos costumes, e a visão de liberalismo econômico radical ansiado pelo mercado financeiro, tudo cacifado por Paulo Guedes.
Ruy Fausto (2019) afirma que o bolsonarismo faz parte da segunda onda autocrática que assola o mundo moderno nesse século XXI, tendendo à ocupação da democracia com bloqueio da alternância de poder e se caracterizando por ser anti emancipatório, ou seja, antidemocrático, antifeminista, racista e anti ecológico, questões que dialogavam diretamente com os valores defendidos pela extrema direita nascente no país.
Soube se colocar justamente como o único candidato antissistema, aquele que poderia liderar o povo contra o establishment, e reverter aquela situação de crise instalada no Brasil. Bolsonaro é o que o sociólogo Sérgio Abranches chamou de “governante incidental”20. Segundo Moisés Naim (2022), Jair Bolsonaro é o melhor exemplo da nova onda de líderes ibero-americanos que conquistam o poder e governam aproveitando as oportunidades oferecidas pelos três p’s (populismo – polarização e pós-verdade)21
Segundo afirma Ruth Ben-Ghiat (2020), atualmente se vive uma era de homens fortes (strongman) que prejudicam ou destroem a democracia, com base no uso da masculinidade como ferramenta de legitimidade política. Sustenta que, embora o populismo não seja inerentemente autoritário, muitos homens fortes do passado e do presente usaram a retórica populista que define suas nações como vinculadas pela fé, raça e etnia, em vez de direitos legais. Para os autoritários, apenas algumas pessoas são “o povo”, independentemente de seu local de nascimento ou status de cidadania, e apenas o líder, acima e além de qualquer instituição, encarna esse grupo.
Como golpes militares são cada vez mais raros, as eleições tornaram-se o melhor caminho para que líderes autoritários cheguem ao poder, uma vez lá, são mais propensos a evitar a destituição do cargo e menos propensos a enfrentar punições. Os projetos nacionais liderados por homens fortes “strongman” geralmente alavancam três períodos de tempo e estados de espírito: utopia, nostalgia e crise. (BEN-GHIAT, 2020)
A utopia, se configura no desejo de uma comunidade imaculada e perfeita, vincula-se à promessa do líder de obter aquilo que seu povo tem carência ou foi privado. A nostalgia de tempos melhores se expressa na intenção do governante de tornar o país grande novamente. Tempo de crise justifica na possibilidade de decretar estados de emergência e indicar bodes expiatórios como inimigos que põem em perigo o país, podendo ser inimigos internos ou além das fronteiras (BEN-GHIAT, 2020).
O Bolsonarismo tem essa ideia de uma volta a um passado idílico em que o Brasil vivia harmoniosamente com seus costumes tradicionais, uma característica tipicamente reacionária. O populismo autoritário e reacionário bolsonarista tem no regime militar de 1964 o modelo ideal de governo, incompatível com o modelo da Constituição de 1988, por isso trabalhou durante todo o mandato sob a ideia fixa de golpismo, para romper com as estruturas do regime democrático e se libertar das amarras impostas pelos freios e contrapesos previstos na constituição. (LYNCH; CASSIMIRO, 2022)
O autoritarismo em Bolsonaro já se manifestava ainda quando era deputado federal, mas foi no poder que Bolsonaro extravasou toda sua sanha autoritária. Analisando seu comportamento durante seu mandato, é possível afirmar que Bolsonaro é um populista autoritário, que não se conforma com os freios e contrapesos impostos pela constituição e não aceita que seus desejos sejam restringidos pelas instituições que têm decerto uma responsabilidade com o Estado Democrático de Direito, ao passo que Bolsonaro tem por objetivo destruir a ordem democrática constitucional representada pela Constituição de 1988.
Durante às eleições de 2018, o então candidato à presidência, Jair Bolsonaro, afrontou à legitimidade dos oponentes políticos quando em meio a um comício disse que iria “metralhar a petralhada” em alusão a eliminar os integrantes do Partido dos Trabalhadores (PT), agremiação partidária oponente direta nas eleições presidenciais de 2018 e 2022, com claro escopo de intimidar os adversários políticos e deslegitimá-los como força política contrária. Retirar a legitimidade dos adversários políticos, convertendo-os em inimigos que devem ser exterminados, é um claro sintoma de autoritarismo, conforme defendem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018).
O presidente Bolsonaro participou com regularidade de manifestações de rua em Brasília, em meio à pandemia do Coronavírus (COVID-19), sempre cercado de apoiadores que, sem constrangimento algum, ostentavam faixas pedindo o fechamento de instituições democráticas como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, assim como apoiavam uma intervenção militar com base no art. 142 da Constituição Federal.
A presença do presidente nessas manifestações, não apenas incita esse tipo de violência institucional, mas também deixa transparecer que concorda tacitamente com seus propósitos, logo, estaria encorajando seus seguidores a pedirem a ruptura abrupta do Estado Democrático de Direito, que configura, pelo menos em tese, uma violação aos artigos 359-L – Abolição violenta do Estado de Direito ou art. 359-M – Golpe de Estado, ambos da Lei 14.197/202122. Essas manifestações que rogam pela ruptura democrática é mais um exemplo cristalino de que Bolsonaro rejeita às regras do jogo democrático e encoraja o uso da violência (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018).
No período de enfrentamento da pandemia de COVID-19, Bolsonaro requereu ao então Ministro da Justiça, André Mendonça, hoje Ministro da Suprema Corte, que abrisse inquéritos23 para investigar opositores com base na antiga Lei de Segurança Nacional – Lei 7.170/1983 (BRASIL, 1983)24, resquício do período autoritário que ainda vigia naquela oportunidade, mas hoje revogada pela Lei 14.197/2021.
A atitude do então ministro foi vista como abuso de autoridade, utilizou-se do aparelho Estatal para perseguir cidadãos comuns que não compactuam com as atitudes do presidente durante a pandemia, em tentativa de intimidação e silenciamento da oposição, essa atitude não encontra respaldo no Estado Democrático de Direito, e como tal deve ser repudiada.
Além dessa investigação já relatada, o Ministério da Justiça, ainda sob a gestão de André Mendonça, protagonizou outro episódio de violação aos direitos fundamentais, pois estava produzindo um dossiê sobre 579 servidores públicos “antifascistas”. A questão chegou ao STF através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 722/DF25, sob relatoria da Ministra Cármen Lúcia, que deferiu uma medida cautelar em 20/08/2020 e referendada por seus pares no plenário, para suspender toda e qualquer investigação.
Em 16/05/2022, o Plenário da Corte, julgando o mérito da ADPF, considerou inconstitucional tal investigação, sob o fundamento de desvio de finalidade e de violação aos direitos fundamentais de liberdade de expressão, privacidade, reunião e associação. Esses dois exemplos citados podem ser vistos como mais uma atitude autoritária, uma propensão de Bolsonaro à restrição de direitos civis, especialmente daqueles que lhe façam oposição. Ameaçar e tomar medidas legais contra críticos e partidos rivais é mais um sinal de autoritarismo (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018).
Os populistas no poder, primeiramente, buscam realizar a apropriação do Estado (state-grabbing), colocando em postos-chave apoiadores de sua confiança, em seguida partem para interferir diretamente nas instituições que sustentam a democracia liberal, especialmente a imprensa, o judiciário, o sistema educacional e qualquer outra organização da sociedade civil que possa oferecer algum tipo de resistência ao líder populista. A etapa seguinte do populista no governo é buscar revisar ou alterar fortemente a Constituição. Por fim, o populista faz uso intenso do clientelismo para manter sua base de apoio sempre coesa e conquistar mais adeptos para expandir a base eleitoral (PAPPAS, 2019).
Durante seu mandato, Bolsonaro fustigou praticamente todas as instituições democráticas da república, mas nada se compara às agressões proferidas contra a Suprema Corte brasileira e à maioria de seus membros. Como já foi visto, é muito comum entre os populistas autoritários o ataque sistemático às instituições democráticas sobretudo às Supremas Cortes, pois são, em regra, os grandes guardiões da democracia em regimes democráticos constitucionais (BARROSO, 2022).
O autoritarismo presente no bolsonarismo se exprime no desejo de concentração de poder nas mãos do próprio Bolsonaro para que este faça valer a vontade popular expressa nas urnas, em detrimento dos mecanismos institucionais de freios e contrapesos definidos pela Constituição. Para além da permanente tensão institucional, o viés autoritário se manifesta no confronto direto contra a imprensa tradicional e a sociedade civil organizada (CASARÕES, 2022)
Segundo Bobbio (2003), para Carl Schmitt, a ação política está orientada para agregar os amigos ou excluir os inimigos. Nas relações entre grupos políticos, a força é o instrumento utilizado para impor sua vontade, assim, na visão de Schmitt, a questão mais característica da política é a guerra, expressão máxima da força como meio de solucionar conflitos. Nesse ponto é possível afirmar que Bolsonaro se enquadra, ou seja, seu comportamento belicoso, sempre buscando o enfrentamento direto contra adversários políticos e instituições, permite dizer que Bolsonaro nega a legitimidade de seus opositores. Verifica-se, assim, uma estreita relação do bolsonarismo com o conceito de amigo e inimigo presente na obra do alemão Carl Schmitt (2008)26.
Dito isso, após analisar as origens do Bolsonarismo e compreendê-lo como um fenômeno populista autoritário, a presente pesquisa propõe a seguinte definição para o Bolsonarismo: trata-se de um movimento político populista de extrema direita, com viés autoritário e reacionário, que prega a eliminação dos adversários políticos, na lógica amigo-inimigo de Carl Schmitt. Deseja a volta de um passado idílico e idealizado na ditadura militar brasileira (1964-1985) e se notabiliza pelo confronto aberto contra as instituições democráticas, especialmente a Suprema Corte brasileira. Fortemente influenciado pela extrema direita global, especialmente a norte-americana e pelo pensamento de Olavo de Carvalho, compreende-se em meio a uma “guerra santa” contra o “marxismo cultural”, expressa em uma suposta hegemonia esquerdista presente nas estruturas do poder.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Bolsonarismo, como se analisou, surgiu basicamente da combinação de fatores sociais, políticos e jurídicos que pavimentaram o caminho para a ascensão de um político populista autoritário ao poder. Conforme foi descrito no presente artigo, entende-se que as Manifestações de Junho de 2013, a Operação Lava Jato e o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, juntamente com o forte sentimento de antipolítica e antipetismo contribuíram decisivamente para que houvesse um clamor por mudança no país. Bolsonaro soube captar esse sentimento e através de sua retórica populista e autoritária, influenciado pelo movimento da extrema direita norte-americana, conseguiu capitalizar a seu favor a insatisfação que dominava a sociedade brasileira em relação aos casos de corrupção e a severa crise econômica que castigava o país no período.
Ao longo do artigo foi possível estudar cada fato que, de alguma forma, contribuiu para se criar um cenário favorável ao surgimento de um líder populista, que encarnava a vontade geral do povo, cansado de tantos escândalos de corrupção. Como se afirmou desde a introdução do trabalho, a pesquisa não sugere que os fatos analisados levariam inexoravelmente à eleição de Jair de Bolsonaro em 2018, contudo sustenta que ajudaram a criar uma ambiência positiva para a ascensão da extrema direita no Brasil, quase que reproduzindo mimeticamente a extrema-direita norte-americana liderada por Donald Trump.
A antipolítica e o antipetismo foram dois fenômenos sociais representados em forma de sentimentos públicos que contaminaram o ambiente político e permitiram a construção de um imaginário de “salvador da pátria” em torno de Bolsonaro. Esses sentimentos favoreceram a ascensão da extrema direita brasileira, bastante influenciada pela vitória de Donald Trump em 2016 nos Estados Unidos e pelo guru do movimento bolsonarista, o filósofo Olavo de Carvalho.
A Operação Lava Jato teve seus méritos enquanto se pautou pela legalidade e respeito aos princípios constitucionais, entretanto, perdeu-se quando extrapolou nos métodos heterodoxos de persecução penal que culminaram em violações aos princípios do devido processo legal e das garantias individuais dos investigados. Mas a operação viria a se notabilizar mesmo por sua atuação política.
Outro fato importante que contribuiu ainda mais para o acirramento dos ânimos políticos foi o impeachment da Presidente Dilma Rousseff. O processo foi visto como correto e necessário à época por grande parte da população e da imprensa. Havia a sensação de esgotamento do modelo petista de governar e algo tinha que acontecer.
A presidente havia perdido sustentação no parlamento, ou seja, a coalizão que a mantinha no poder havia se desfeito, tudo isso em meio à maior crise econômica que se tem notícia no Brasil. A crise econômica e os escândalos de corrupção descobertos pela Lava Jato retiraram de Dilma Rousseff quase toda a base de apoio popular.
Hoje, diante de tantas evidências, relatos e mais distante do fato histórico, é possível afirmar que o impeachment foi um golpe parlamentar tramado para defenestrar a presidente que não compactuava com interferências na investigação da Lava Jato.
Demonstrou-se que o Bolsonarismo é um movimento populista de viés autoritário, porque rejeita às regras do jogo democrático, nega a legitimidade de seus adversários políticos, tolera e incentiva atos de violência, em especial contra as instituições democráticas e em alguns episódios restou patente o cerceamento dos direitos e das liberdades civis de opositores que se manifestavam contrários ao seu governo. Somado a tudo isso, verificou-se que o Bolsonarismo não se conforma com a ordem democrática instituída pela Constituição de 1988, por isso sua incapacidade de lidar com as restrições impostas pelos freios e contrapesos tão importantes em um Estado Democrático de Direito.
O Bolsonarismo não deixará de existir, pelo menos não tão cedo, mesmo com a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022, pois se entende que o fenômeno político transcende a figura de seu líder. Todavia, o movimento deve arrefecer, sobretudo após a invasão e a depredação das sedes dos Três Poderes da República – Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal – ocorrida em 08 de janeiro de 2023 por manifestantes bolsonaristas insatisfeitos com a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro.
Não se pode perder de vista que Bolsonaro ainda tem um imenso capital político, com notável apoio popular, comprovado pela expressiva votação que obteve tanto no primeiro quanto no segundo turno da eleição presidencial de 2022. É certo também que nem todos os seus eleitores cultivam os mesmos valores extremistas pregados pelo bolsonarismo.
Não é possível afirmar que quase metade da população seja defensor da flexibilização das armas de fogo, preconceituoso, racista e homofóbico, como Bolsonaro sempre demonstrou ser. Entretanto, uma parcela significativa dentre seus eleitores alimenta-se desses valores bolsonaristas autoritários e reacionários, que sonham com uma volta da ditadura. Na visão da pesquisa, esses princípios do bolsonarismo parecem estar profundamente enraizados na sociedade brasileira, indicando que o movimento ainda tem vida própria, mesmo após a queda de Bolsonaro.
2 SAMPAIO, Fellipe. O bode expiatório, hoje, é o Supremo”, declarou Gilmar Mendes: Ao completar 20 anos na Corte, o magistrado defende o inquérito das fake news e diz não ver ameaça ao processo eleitoral. Ele faz uma análise da Lava-Jato e de suas consequências para a Justiça e a política brasileiras. Correio Braziliense, Brasília, 26 jun. 2022. Entrevista, p. 1-4. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/06/5018019-o-bode-expiatorio-hoje-e-o-supremo-declara-gilmar-mendes.html. Acesso em: 26 jun. 2022.
3 BARAN, Katna. Ex-presidente Lula é solto após 580 dias preso na Polícia Federal em Curitiba: Petista foi beneficiado por decisão do Supremo Tribunal Federal desta quinta-feira. Folha de São Paulo, [S. l.], 8 nov. 2019. Política, p. 1-3. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/ex-presidente-lula-e-solto-apos-580-dias-preso-na-policia-federal-em-curitiba.shtml. Acesso em: 2 nov. 2022.
4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus (HC) nº 193.726, Paciente: Luís Inácio Lula da Silva. Impetrante: Cristiano Zanin Martins. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Edson Fachin. Brasília, DF, 15 de abril de 2021. Dje. n. 174. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur451884/false. Acesso em: 10 out. 2021.
5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus (HC) nº 164493, Paciente: Luís Inácio Lula da Silva. Impetrante: Cristiano Zanin Martins. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Edson Fachin. Brasília, DF, 23 de março de 2021. Dje. n. 106. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur447799/false. Acesso em: 10 out. 2022.
6 SALOMÃO, Lucas. Comissão da Verdade responsabiliza 377 por crimes durante a ditadura: Relatório final foi entregue nesta quarta-feira à presidente Dilma Rousseff. Documento aponta responsáveis por torturas e mortes e propõe punições.. G1, Brasília, 10 dez. 2014. Política, p. 1-3. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2014/12/comissao-da-verdade-responsabiliza-377-por-crimes-durante-ditadura.html. Acesso em: 8 nov. 2022.
7 NASCIMENTO, Luciano. Conselho de Ética arquiva processo contra Bolsonaro por apologia à tortura. Agência Brasil, Brasília, 9 nov. 2016. Política, p. 1-3. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-11/conselho-de-etica-arquiva-processo-contra-bolsonaro-por-apologia-tortura. Acesso em: 8 nov. 2022.
8 JORDÃO, Fernando. Conselho de Ética aprova punição a Jean Wyllys por cuspida em Bolsonaro: Parlamentar receberá uma censura por escrito; relator havia pedido a suspensão do mandato de Wyllys. Correio Braziliense, Brasília, 5 abr. 2017. Política, p. 1-3. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2017/04/05/interna_politica,586377/conselho-de-etica-aprova-punicao-a-jean-wyllys-por-cuspir-em-bolsonaro.shtml. Acesso em: 8 nov. 2022.
9 Reconheço que minha implicância com o uso da palavra “golpe” eliminar do vocabulário político dos opositores do impeachment de Dilma um termo forte e mobilizador, que comunica de maneira sintética e inequívoca o sentimento de oposição política ao processo de deposição de que ela foi vítima. Ainda assim, e especialmente na arena do debate público, insisto que uma deposição presidencial pelo Parlamento, baseada em uma tese jurídica sem mérito, não deve ser confundida com a derrubada de um regime constitucional através de atos de força civil-militar, ao qual normalmente se seguem cassações de políticos adversários, aposentadoria compulsória de juízes independentes, prisões arbitrárias amparadas em provas colhidas sob tortura ou exílios autoimpostos para se escapar da perseguição e da morte. Se um dia os apoiadores remanescentes do processo contra Dilma aceitarem de uma vez por todas que seu impeachment foi mesmo um “golpe”, e consequentemente assimilarem a ideia de que golpes de vez em quando são um remédio amargo que temos de suportar para curarmos os graves males de nossa democracia, perderemos a capacidade de distinguir um levante orquestrado pelo Centrão para escapar da cadeia de um cerco de tanques e cavalaria ao Congresso ou ao Supremo Tribunal Federal. Se esse dia chegar, o bordão do passado que teremos de ressuscitar será outro: “Ditadura nunca mais!” (MAFEI, 2021, p. 243)
10 […] consiste no sequestro do poder constituinte do povo na declaração dos princípios do pacto de governo. A Constituição em vigor, resultado de Assembleia Constituinte anterior, passa a ser dogmaticamente reinterpretada pelo governo golpista, que se outorga papel de controlador de sentido, deliberando, com formidável apoio da coalizão, sobre o que é constitucional e o que é crime contra a Constituição. Não há violência assumida contra adversários, mas aplicações inovadoras dos capítulos da Constituição necessários à consolidação do golpe. Daí a necessidade de manter satisfeitos os interesses do Judiciário e da imprensa, responsáveis, a última, pela agitação e propaganda do caráter legal e legítimo do exercício golpista do poder usurpado, e, o primeiro, pela entronização das arbitrariedades do governo como justo direito. (SANTOS, 2017, p. 183)
11 AGÊNCIA SENADO. CMO aprova contas dos dois últimos anos do governo Dilma Fonte: Agência Senado. Senado Notícias, [S. l.], 22 dez. 2022. Comissões, p. 1-2. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/12/22/cmo-aprova-contas-dos-dois-ultimos-anos-do-governo-dilma. Acesso em: 27 dez. 2022.
12 Seja como for, ao contrário de outros movimentos de extrema direita que fazem parte desse ecossistema político, o bolsonarismo pretende ser democrático, mesmo quando não o é. Isso nos leva a uma questão taxonômica essencial: a rigor, dentro do guarda-chuva conceitual da extrema direita (far-right), o movimento capitaneado por Jair Bolsonaro encontra-se na categoria de direita radical (radical right), uma vez que aceita os pressupostos essenciais da democracia. Adota, frente a eles, uma postura de insatisfação reformista: diante de mazelas do sistema político, como a corrupção e os privilégios, ou com o intuito de frear uma agenda progressista que supostamente contradiz o caráter conservador da população, o bolsonarismo aceita conceder poderes especiais ao líder político para subverter as instituições e redirecionar políticas públicas, sempre em nome da vontade popular. Distingue-se, pois, da ultradireita (extreme right), abertamente anti democrática e revolucionária no seu desejo de romper com o consenso político vigente, almejando forjar uma nova sociedade que reflita os valores do movimento no poder, como no caso no nazifascismo europeu (Mudde, 2019).(CASARÕES, 2022, p. 11)
13 “À medida que os partidos políticos foram crescentemente esvaziados e abandonados pela falta de substância ideológica, a política ‘tradicional’ passou a ser vista de forma negativa, como um campo em que prevalecem a vaidade e a corrupção, e sofreu, assim, um processo de dessacralização, ou seja, para boa parte da população, os partidos e os políticos perderam autoridade, respeito e admiração, e do mesmo modo a esperança e a mensagem utópica que os acompanharam durante o século XX” (SORJ, 2004, p. 64-65).
14 Na realidade, a democracia se constrói em torno das relações de poder social que a fundaram e vai se adaptando à evolução dessas relações, mas privilegiando o poder que já está cristalizado nas instituições. Por isso não se pode afirmar que ela é representativa, a menos que os cidadãos pensem que estão sendo representados. Porque a força e a estabilidade das instituições dependem de sua vigência na mente das pessoas. Se for rompido o vínculo subjetivo entre o que os cidadãos pensam e querem e as ações daqueles a quem elegemos e pagamos, produz-se o que denominamos crise de legitimidade política; a saber, o sentimento majoritário de que os atores do sistema político não nos representam. Em teoria, esse desajuste se autocorrige na democracia liberal com a pluralidade de opções e as eleições periódicas para escolher entre essas opções. Na prática, a escolha se limita àquelas opções que já estão enraizadas nas instituições e nos interesses criados na sociedade, com obstáculos de todo tipo aos que tentam acessar uma corriola bem delimitada (CASTELLS, 2018, p. 12-13)
15 MAZUI, Guilherme; RODRIGUES, Paloma. Bolsonaro anuncia saída do PSL e criação de novo partido: Presidente se filiou ao PSL em 2018 para disputar eleição. Crise no partido foi desencadeada após atrito entre ele e Bivar. G1 e TV Globo, Brasília, 12 nov. 2019. Política, p. 1-4. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/11/12/deputados-do-psl-dizem-que-bolsonaro-decidiu-deixar-partido-e-criar-nova-legenda.ghtml. Acesso em: 12 abr. 2022.
16 GOMES, Pedro Henrique; BORGES, Beatriz; OLIVEIRA, Paloma. Após dois anos sem partido, Bolsonaro se filia ao PL, nona legenda da carreira política: Filiação estava marcada para o último dia 22, mas foi adiada após exigências de Bolsonaro sobre alianças nos estados em 2022. PL também abrigará senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente. G1 e TV Globo, Brasília, 30 nov. 2021. Política, p. 1-4. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/11/30/apos-dois-anos-sem-partido-bolsonaro-se-filia-ao-pl-nona-legenda-da-carreira-politica.ghtml. Acesso em: 16 mar. 2022.
17 GARCIA, Gabryella. PT é o único partido que esteve em todos os turnos das eleições desde 1989. UOL, São Paulo, 28 out. 2022. Eleições 2022, p. 1-3. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2022/10/28/pt-e-o-unico-partido-que-esteve-em-todos-os-turnos-das-eleicoes-desde-1989.htm. Acesso em: 2 dez. 2022.
18 O antipetismo não surgiu por geração espontânea. Ele foi causado. E tem raízes profundas. Vem das viúvas da ditadura militar. Vem também do profundo preconceito de classes típico de países com enormes períodos sem mobilidade social, em que os estratos superiores perdem a noção de que são classes sociais e começam a pensar-se como castas. Vem do recalque e dos ressentimentos dos sucessivamente vencidos nas disputas eleitorais ou dos setores da esquerda, abandonados à beira do caminho porque seria impossível governar com eles. E vem dos péssimos costumes republicanos do PT, que de insuportável moralista no passado se entregou a todos seus apetites quando conquistou o poder político. GOMES, Wilson. Crônica de uma tragédia anunciada: como a extrema-direita chegou ao poder. p. 27 1. ed. Salvador: Sagga Editora e Comunicação, 2020.
19 Populistas são políticos anti-establishment – figuras que, afirmando representar a “voz do povo”, entram em guerra contra o que descrevem como uma elite corrupta e conspiradora. Populistas tendem a negar a legitimidade dos partidos estabelecidos, atacando-os como antidemocráticos e mesmo anti patrióticos. Eles dizem aos eleitores que o sistema não é uma democracia de verdade, mas algo que foi sequestrado, corrompido ou fraudulentamente manipulado pela elite. E prometem sepultar essa elite e devolver o poder “ao povo”. Esse discurso deve ser levado a sério. Quando populistas ganham eleições, é frequente investirem contra as instituições democráticas. (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p. 32)
20 Governantes incidentes são o que o próprio nome indica. Chegam ao poder por um conjunto imprevisto e irreprodutível de fatores e, até agora, nenhum deles demonstrou capacidade de sobreviver a um mandato, se tanto. Lideranças ou governantes incidentais, em circunstâncias normais, em eleições-padrão, jamais chegariam ao topo do poder. Nascem de rupturas eleitorais, da desorientação dos partidos e forças tradicionais, à esquerda e à direita. Porque são incidentais, passam, mas não sem causar danos significativos na institucionalidade democrática e na sociabilidade. O pior legado desses governos ocasionais é que contribuem para agravar o desencanto com a democracia e elevam os riscos de crises sérias de governabilidade (ABRANCHES, 2020, p. 96)
21 Impulsionado por uma febre antipolítica descontrolada diante da perda de confiança nas instituições políticas, ele tem o mesmo instinto polarizador de todos os autocratas que triunfaram até agora neste século. As correntes que permitiram sua ascensão ao poder já existiam muito antes, é claro, mas o que lhe garantiu o sucesso político foi seu dom de mobilizar os desencantados. E, apesar de um mandato caótico, cheio de conflitos e poucos resultados, consolidou uma massa de seguidores devotos entre os mais decepcionados com a política tradicional: as bases da antipolítica brasileira (NAÍM, 2022, e-book)
22 BRASIL. Lei nº 14.197, de 1 de setembro de 2021. Acrescenta o Título XII na Parte Especial do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), relativo aos crimes contra o Estado Democrático de Direito; e revoga a Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983 (Lei de Segurança Nacional), e dispositivo do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais). Brasília, 1 set. 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14197.htm. Acesso em: 15 dez. 2022.
23 PODER 360. PGR pede explicações a André Mendonça sobre inquéritos contra opositores do governo. Poder 360, [S. l.], p. 1-3, 2 abr. 2021. Disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/pgr-pede-explicacoes-a-andre-mendonca-sobre-inqueritos-contra-opositores-do-governo/. Acesso em: 10 nov. 2022.
24 BRASIL. Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983. Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências. Brasília, 14 dez. 1983. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7170impressao.htm. Acesso em: 9 jan. 2023.
25 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 722, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Atividade de Inteligência do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Produção e Disseminação de Dossiê Com Informações de Servidores Federais e Estaduais Integrantes de Movimento Antifascismo e de Professores Universitários. Desvio de Finalidade. Liberdades de Expressão, Privacidade, Reunião e Associação. Arguição de Descumprimento Fundamental Julgada Procedente. Argumente: Partido Rede Sustentabilidade. Arguido: Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Brasília, DF, 16 de maio de 2022. n. 112. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15351694176&ext=.pdf. Acesso em: 10 nov. 2022.
26O inimigo político não precisa ser moralmente mau, não precisa ser esteticamente feio; não tem que surgir como concorrente econômico, podendo talvez até mostrar-se proveitoso fazer negócios com ele. Pois ele é justamente o outro, o estrangeiro, bastando à sua essência que, num sentido particularmente intensivo, ele seja existencialmente algo outro e estrangeiro, de modo que, no caso extremo, há possibilidade de conflitos com ele, os quais não podem ser decididos mediante uma normatização geral previamente estipulada, nem pelo veredicto de um terceiro “desinteressado”, e, portanto, “imparcial”. (SCHMITT, 2008, p. 28)
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1Advogado e Mestrando do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal do Ceará. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: oton.junior@hotmail.com