REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7960218
Ítalo Soares Tavares1
Janay Garcia2
Resumo: A presente pesquisa teórica fundamentada em levantamento teórico conceitual, propõe uma análise crítica a respeito do menor sob guarda, a sua exclusão e posterior reinserção como dependente no tocante à pensão por morte bem como suas consequências para o ordenamento jurídico. Para a realização desta pesquisa, foi feita também uma análise histórica e cultural da evolução dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil e no mundo. Da mesma maneira, observou-se a influência e importância desses movimentos integracionistas na criação do Estatuto da Criança e do Adolescente e em artigos específicos da Constituição Brasileira. Ao fim da pesquisa, constatou-se que a Medida Provisória n° 1.596/97, posteriormente transformada na Lei n° 9.528/97, que alterou o art. 16 da Lei nº 8.213/91 para excluir o menor sob guarda judicial do rol de dependentes previdenciários dos segurados do Regime Próprio é inconstitucional e não deve prevalecer.
Palavras-chave: Menor sob guarda. Inclusão. Pensão por Morte. Previdenciário.
Abstract: The present theoretical research based on conceptual theoretical survey, proposes a critical analysis regarding the minor under guardianship, its exclusion and subsequent reinsertion as a dependent regarding the pension for death as well as its consequences for the legal system. To carry out this research, a historical and cultural analysis of the evolution of the rights of children and adolescents in Brazil and in the world. In the same way, the influence and importance of these integrationist movements in the creation of the Statute of the Child and Adolescent and in specific articles of the Brazilian Constitution was observed. At the end of the research, it was found that Provisional Measure n. 1,596/97, later transformed into Law n. 9,528/97, which altered art. 16 of Law n. 8,213/91 to exclude the minor under legal custody from the list of social security dependents of the insured of the Special Regime is unconstitutional and should not prevail.
Keywords: Minor under guardianship. Inclusion. Death Benefit. Social Security
Introdução
A Seguridade Social no Brasil é um direito social previsto no artigo 6º da Constituição Federal e compreende a Saúde, a Previdência Social e a Assistência Social, conforme o Capítulo II da Carta Magna. No tocante à Previdência Social, os planos e benefícios estão dispostos na Lei nº 8.213/1991. Está, porém, na função de regulamentar e especificar a forma e tipos de benefícios, não podendo contrariar a Lei Maior ou restringir/limitar os direitos por ela estabelecidos.
Nesse sentido, tem-se que a Medida Provisória n° 1.596/97, posteriormente transformada na Lei n° 9.528/97, que alterou o art. 16 da Lei nº 8.213/91 para excluir o menor sob guarda judicial do rol de dependentes previdenciários dos segurados do Regime Próprio é inconstitucional e não deve prevalecer. De forma especial o benefício mais relevante para a criança e o adolescente é a pensão por morte, visto que o socorre no caso de perda do mantenedor da família.
A proteção à criança e ao adolescente está posta na Constituição Federal do Brasil e deve ser interpretada com prioridade e de forma integral no ordenamento jurídico. Esse tem sido o entendimento do Supremo Tribunal Federal nas ADIs nº 4.878 e nº 5.083, mantendo o direito do menor com guarda judicial aos benefícios do INSS, especialmente a pensão por morte.
Apresentando de forma sistêmica o histórico evolutivo precedente ao reconhecimento desse direito, fica demonstrado que o reconhecimento do menor sob guarda judicial, dependente economicamente, como beneficiário previdenciário é justo e necessário para o seu crescimento e desenvolvimento com dignidade. Traz, ainda, razões e argumentos para demonstrar que o bem-estar da pessoa humana – especialmente os mais fracos, como o menor – devem se sobrepor a questões econômicas e financeiras.
Sem conivência ou despreocupação com o futuro da Previdência Social no Brasil, afirma que a retirada do menor sob guarda judicial dos dependentes previdenciários é um retrocesso no zelo e guarda dos direitos fundamentais.
O histórico social dos direitos das crianças e adolescentes no brasil e no mundo até a criação do ECA
Muita coisa precisou acontecer para chegarmos ao ordenamento atual que dispõe sobre o Direito da Criança e do Adolescente. Apesar de ser considerado uma positivação tardia em relação à diversos outros direitos salvaguardados por leis e tratados, os padrões internacionais de direito da criança e do adolescente evoluíram rapidamente ao longo do século xx, todavia, ainda existem lacunas a serem preenchidas e ideais a serem alcançadas.
No início do século XX, não havia padrões de proteção para a criança nos países industrializados. Era comum elas trabalharem ao lado de adultos em condições insalubres e inseguras que gerou um crescente reconhecimento das injustiças de sua situação, impulsionado por uma maior compreensão das necessidades de desenvolvimento das crianças, gerando um movimento para melhor protegê-las.
Em 1924, A Liga das Nações, criada após o término da Primeira Guerra Mundial, adota a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, elaborada por Eglantyne Jebb, fundadora do fundo Save the Children. A Declaração argumenta que todas as pessoas devem promover às crianças meios para seu desenvolvimento, ajuda especial em momentos de necessidade, prioridade no socorro e assistência, liberdade econômica e proteção contra exploração, e uma educação que instiga consciência e dever social.
No Brasil, foi publicada a Lei de Assistência e Proteção aos Menores (Código de Menores), consolidada pelo Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, e representa avanços na proteção das crianças. Este decreto determina que a maioridade penal aos 18 anos vai vigorar em todo o País e ela prevalece até os dias de hoje.
No ano de 1946, a Assembleia Geral das Nações Unidas cria o United Nations International Children’s Emergency Fund (UNICEF), em português: Fundo
Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância, para atender, na Europa e na China, às necessidades das crianças durante o período pós-guerra que estão em emergência.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada em 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, estabelecendo em seu artigo 25 “cuidados e assistência especiais” e “proteção social” para mães e crianças.
Em 1950, o mandato do UNICEF é estendido com o intuito de atender, em projetos de longo prazo, crianças e mulheres nos países em desenvolvimento.
No mesmo ano, dia 9 de julho, o UNICEF assina seu primeiro programa de cooperação com o Governo do Brasil.
No ano de 1953, o UNICEF torna-se parte permanente da ONU, sendo rebatizado Fundo das Nações Unidas para a Infância; no entanto, a sigla original, UNICEF, é mantida. Anos depois, em 1959, a Assembleia Geral das Nações Unidas adota a Declaração dos Direitos da Criança, que reconhece, entre outros direitos, os direitos das crianças à educação, à brincadeira, a um ambiente favorável e a cuidados de saúde.
A Organização Internacional do Trabalho adota a Convenção 138, no ano de 1973, que define como 18 anos a idade mínima para realizar trabalhos que possam ser perigosos para a saúde, a segurança ou a moral de uma pessoa.
Para marcar o vigésimo aniversário da Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, a Assembleia Geral das Nações Unidas declara 1979 como o Ano Internacional da Criança, no qual o UNICEF tem um papel de liderança.
No Brasil, em 10 de outubro de 1979, é promulgado um novo Código de
Menores, instituindo a doutrina da proteção integral presente no atual Estatuto da Criança e do Adolescente. Em 1988 a nova Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro, trouxe no art. 227, versando especificamente sobre os direitos das crianças, in verbis:
Artigo 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Em 20 de novembro de 1989, a Convenção sobre os Direitos da Criança é adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, sendo considerada como uma conquista histórica dos direitos humanos, reconhecendo os papéis das crianças como atores sociais, econômicos, políticos, civis e culturais. A Convenção garante e estabelece padrões mínimos para proteger os direitos das crianças em todas as capacidades. O UNICEF, que ajudou a redigir a Convenção, é mencionado no documento como uma fonte de conhecimento e maestria.
Por fim, em 1990, mais especificamente em 13 de julho, o Brasil aprova o Estatuto da Criança e do Adolescente, que entra em vigor no dia 12 de outubro. No dia 24 de setembro, o Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança.
Portanto, verifica-se o cuidado crescente com as crianças e adolescentes no mundo. Grande parte desse movimento é de responsabilidade de órgãos vindos da ONU, como a Assembleia Geral das Nações Unidas e o UNICEF, e bem recepcionados pelos países membros, como o Brasil.
É cediço que há muito trabalho a ser feito e existem movimentos para isso. Porém, cabe ressaltar que antes de 1924 as crianças não haviam direito algum resguardado e “apenas” 66 anos depois foram criados, em todo o mundo, leis e tratados que possibilitam a proteção destas pessoas que vivem em períodos de intenso desenvolvimento psicológico, físico, moral e social.
Definição de “menor sob guarda”
Inicialmente, ressalta-se que existem dois conceitos no ordenamento que versam sobre a mesma finalidade, qual seja, garantir a convivência familiar e o cuidado adequado de crianças e adolescentes até os 18 anos de idade. São nominadas de guarda e tutela.
A diferença fundamental entre os dois institutos diz respeito à pessoa que vai exercer o poder familiar sob o menor, que é uma série de obrigações e direitos que os pais têm sobre os filhos.
A tutela só pode ser determinada quando o poder familiar não for mais possível, seja pelo falecimento dos genitores do menor ou pela perda de autoridade destes. Portanto, o instituto da tutela não pode ser estabelecido enquanto ao menos um dos pais da criança ainda possuir direitos e obrigações para com a criança.
A legislação que regula a tutela indica a possibilidade de os pais indicarem quem deve ser o tutor do menor em caso de morte, porém, caso não tenha, a própria lei sinaliza uma ordem a ser seguida: em primeiro lugar os parentes consanguíneos e posteriormente os colaterais. Contudo, apesar dessa disposição, a decisão final é sempre do magistrado, que irá levar em consideração diversos fatores, inclusive o interesse da criança.
Já no regime de guarda, o poder familiar sobre o menor é reservado a um dos pais ou são repassadas para um terceiro que irá compartilhar esta autoridade com eles. Existem duas situações para a decretação da guarda, são elas:
- Quantos os genitores do menor decidem não residir mais juntos, sendo necessário que se estabeleça na justiça quem será o responsável pelos cuidados dele e com quem, de fato, ele residirá. Para tanto, existem a decretação de guarda unilateral (as responsabilidades são exercidas por apenas um dos genitores ou alguém que o substitua) ou a guarda compartilhada (quando os dois genitores desempenham as responsabilidades igualmente). Ressalta-se que a guarda unilateral só pode ser decretada quando a guarda compartilhada não for possível.
- Quando o menor não recebe os cuidados necessários de seus genitores, para tanto, é imprescindível que a situação seja regularizada para que o menor não fique desamparado. No caso em comento, os genitores não perdem o poder familiar frente a criança, porém, é escolhido um responsável capaz para ter autonomia de tomada de decisões para com o menor.
Em suma, pode-se afirmar que a guarda é a prática de cuidado e proteção, em geral, exercida pelos pais aos seus filhos. Porém, existem casos que essa função será exercida por um terceiro capaz, substituto dos genitores.
O possuidor da guarda é nomeado de guardião e será responsável pela guarda do menor até que este alcance a maioridade.
A exclusão do “menor sob guarda” do rol de dependentes da lei 8.213/91 pela alteração da lei nº 9.528/97
Em 24 de julho de 1991, entrou em vigor a Lei nº 8.213, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, deliberando critérios e condições para o entendimento dos benefícios previdenciários no âmbito do Regime Geral de Previdência Social (RGPS).
No que se refere à condição de dependentes, a lei supracitada previa em seu art. 16, § 2º a equiparação aos filhos dos menores sob guarda ou tutela do segurado constituídas por determinação judicial, com sua redação original da seguinte forma:
Artigo 16, § 2°, da Lei nº 8.213/91, em seu texto originário:
“Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
(…)
§2º Equiparam-se a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação.”
Assim sendo, conforme previsto na lei supracitada, a criança e o adolescente sob guarda judicial eram equiparados aos filhos dos segurados, portanto, estava resguardada a sua condição de beneficiário do RGPS, inclusive para pensão por morte do segurado. Acontece que com o advento da Medida Provisória n° 1.596/97, posteriormente transformada na Lei n° 9.528/97, foi alterado o art. 16 da Lei nº 8.213/91, o qual passou a ter os seguintes termos:
“Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
(…)
§ 2º. O enteado e o menor tutelado equiparam-se ao filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento. ”
Dessa forma, após a alteração do Art. 16, § 2º, o menor sob guarda deixou de constar no rol de beneficiários do segurado. Com isso o INSS passou a não reconhecer nenhum direito do menor sob guarda enquanto dependente de segurado, ainda que reconhecida judicialmente. A esse respeito traz a manifestação da Procuradoria Federal do INSS ao fundamentar o Recurso Especial nº 1009310/PB, protocolado como oposição ao acórdão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região:
“(…) não pode este Instituto-Recorrente se conformar com o r. acórdão, vez que o mesmo ofendeu severamente o direito federal pátrio, ensejando, com isso, o recurso a essa via especial, eis que a norma em comento ao dar nova redação ao S 20 do art. 16 da Lei n 8.213/91, que previa a figura do menor sob guarda, na condição de dependente equiparado ao filho, excluiu aquele do rol de beneficiários do Regime Geral de Previdência Social. ” (fl. 75)”
No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça – STJ – através do Recurso Especial nº 720.706 – SE interposto pelo INSS, estabeleceu o entendimento que a alteração feita pela MP nº1.596/97 impede a concessão de direitos previdenciários à criança e ao adolescente sob guarda e a equiparação ao filho do segurado, para fins de dependência.
RECURSO ESPECIAL. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. MEDIDA PROVISÓRIA NO 1.523,96, REEDITADA ATÉ SUA CONVERSÃO NA LEI 9.528/97. MENOR SOB GUARDA EXCLUÍDO DO ROL DE DEPENDENTES PARA FINS PREVIDENCIÁRIOS RECURSO
ESPECIAL PROVIDO
l. A questão sub examine diz respeito à possibilidade do menor sob guarda usufruir do benefício de pensão por morte, após as alterações promovidas no art. 16, S 20 da Lei no 8.213/91, pela Medida Provisória no 1.523/96, reeditada até sua conversão na Lei no 9.528 em 10 de dezembro de 1997 que, por sua vez, o teria excluído do rol de dependentes de segurados da Previdência Social.
II. No julgamento dos Embargos de Divergência no 727.716/CE, Rel Min. CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO), a Corte Especial, apreciando incidente de inconstitucionalidade do art. 16, S 20, da Lei no 8.213/91, na redação dada pela citada Medida Provisória, exarou entendimento de que, como a lei superveniente não teria negado o direito à equiparação, mas apenas se omitido em prevê-lo, não haveria inconstitucionalidade a ser declarada.
III. O entendimento já assentado no âmbito da Terceira Seção é no sentido de que a concessão da pensão por morte deve se pautar pela lei em vigor na data do óbito do segurado, instituidor do benefício.
IV. Após as alterações legislativas ora em análise, não é mais possível a concessão da pensão por morte ao menor sob guarda, sendo também inviável a sua equiparação ao filho do segurado, para fins de dependência.
V. Recurso especial provido.
(RESP 72076/SE, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 09/08/2011 DJe 31/08/2011)
PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. MENOR SOB GUARDA JUDICIAL. BENEFICIÁRIO ARTIGO 16, § 20, DA LEI 8.213/91. FATO GERADOR OCORRIDO APÓS ALTERAÇÃO LEGISLATIVA. MP Nº 1.523/96 E LEI 9.528/97.
-Em sede de benefícios previdenciários, sua concessão rege-se pelas normas vigentes ao tempo do fato gerador, que, no caso da pensão por morte, é o próprio óbito do segurado instituidor.
– O menor sob guarda judicial não faz jus aos benefícios da Previdência Social em face da alteração introduzida pela Medida Provisória no 1.523/96, posteriormente convertida na Lei 9.528/97, que alterou o artigo 16, § 20 da Lei 8.213/91.
– Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 354240/RS, Rel. Ministro Vicente Leal, Sexta Turma, julgado 01/10/2002, DJ 21.10/2002, p. 414)
DIREITO PREVIDENCIÁRIO, PENSÃO POR MORTE. MENOR SOB GUARDA.
PREVALÊNCIA DO ART. 16, S 20, DA LEI NO 8.213/91 SOBRE O ART. 33, S 30, DO ECA.
1. A jurisprudência da Terceira Seção desta Corte firmou entendimento de que o art. 33, §30, do ECA não prevalece sobre o art. 16, § 20, da Lei no 8.213,91.
2. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no RESP 1000481/RJ, Rel. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ/RJ), Quinta Turma, julgado em 2203,2011, DJe 03/05/2011)
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA RECURSO ESPECIAL. PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. MENOR SOB GUARDA. ECA. ROL DE DEPENDENTES EXCLUSÃO. PREVALÊNCIA DA NORMA PREVIDENCIÁRIA.
1. Em consonância com julgados prolatados pela Terceira Seção deste Tribunal, a alteração trazida pela Lei 9.528/97, norma previdenciária de natureza específica, deve prevalecer sobre o disposto no art. 33, § 30, do Estatuto da Criança e Adolescente.
2. Embargos de divergência acolhidos.
(EREsp 869635/RN, Rel. Ministra Jane Silva, Terceira Seção, julgado em 16,022009, DJe 0604/2009)
Como visto, desde então o Superior Tribunal de Justiça mantém o entendimento de não ser possível o reconhecimento de nenhum direito ao menor sob guarda por não ser mais um dependente, negando o direito à pensão por morte para a criança e o adolescente sob guarda.
Diante disso, foram interpostas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade como as ADI nº 4.878 e nº 5.083, com o intuito de demonstrar que a alteração feita pela Medida Provisória nº 1.596/97 na Lei de Benefícios da Previdência Social não está conforme a Constituição Federal. Cabe aqui trazer ipsis litteris parte do acórdão desses julgados:
ADI 4878 e ADI 5083 – PLENÁRIO (08/06/2021)
EMENTA: AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE. JULGAMENTO CONJUNTO. DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. ARTIGO 16, § 2º, DA LEI N.º 8.213/1991. REDAÇÃO CONFERIDA PELA LEI N.º 9.528/1997. MENOR SOB GUARDA. PROTEÇÃO PREVIDENCIÁRIA. DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL. PRINCÍPIO DA PRIORIDADE ABSOLUTA. ART. 227, CRFB. INTERPRETAÇÃO CONFORME, PARA RECONHECER O MENOR SOB GUARDA DEPENDENTE PARA FINS DE CONCESSÃO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO, DESDE QUE COMPROVADA A DEPENDÊNCIA ECONÔMICA.
(…)
2. A Constituição de 1988, no art. 227, estabeleceu novos paradigmas para a disciplina dos direitos de crianças e de adolescentes, no que foi em tudo complementada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. º 8.069/1990). Adotou-se a doutrina da proteção integral e o princípio da prioridade absoluta, que ressignificam o status protetivo, reconhecendo-se a especial condição de crianças e adolescentes enquanto pessoas em desenvolvimento.
3. Embora o “menor sob guarda” tenha sido excluído do rol de dependentes da legislação previdenciária pela alteração promovida pela Lei n° 9.528/1997, ele ainda figura no comando contido no art. 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/1990), que assegura que a guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e direitos, inclusive previdenciários. (grifamos)
Observa-se que a Corte Constitucional diverge dos demais Tribunais do país para dar ao Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/1990 – prevalência sobre a Lei previdenciária com base nos princípios da proteção integral e prioridade absoluta previsto no artigo 227 da Constituição Federal.
Tem-se assim dois entendimentos consolidados, com fundamentos e motivações baseados nas normas vigentes e métodos de interpretação adotados no direito brasileiro que merecem um estudo mais aprofundado e uma colaboração na formação de opiniões a respeito do tema.
As consequências da inclusão do menor sob guarda no artigo 16, §2°, da lei n° 8.213/1991 advindo das ADIS n°s 4.878 e 5.083
Antes de adentrar nas consequências da inclusão do menor sob guarda no rol de beneficiário do segurado previdenciário, cabe apresentar a importância dos julgados do Supremo Tribunal Federal – STF. Embora sejam decisões ordinárias da Corte, sem nenhum efeito vinculante, está dentro da sua função primordial que é dar efetividade às normas constitucionais. Portanto, prevalecendo esse entendimento – as ADIs foram por maioria de votos -, será necessário buscar uma acomodação nos demais Tribunais em vista de uma prática judiciária mais acessível e menos dispendiosa.
Trata-se de questão clara e objetiva, sem muitas variações possíveis, não sendo possível imaginar que haja mudança de entendimento conforme o caso em análise. De fato, qualquer situação que não seja de menor sob guarda constituída judicialmente tende a não prosperar. Contudo, os casos de similitude perfeita devem ser tratados conforme o entendimento do guardião constitucional, sob pena de gerar obstáculo a direito reconhecido e acúmulo de trabalho no judiciário.
Vale lembrar que na esfera administrativa haverá tão somente a aplicação literal do contido na Lei 8.213/1991 e todo pedido para menor sob guarda será indeferido, independente dos fundamentos invocados. Mesmo condenável é compreensível, uma vez que a edição de uma Medida Provisória excluindo o menor sob guarda do rol de dependentes dos segurados da Previdência Social já demonstra o interesse do Executivo Federal. Certamente que o autor da nova redação da Lei nº 8.213/1991 buscará dar-lhe eficácia usando-a nas suas atividades de reconhecimento de direitos e concessão de benefícios previdenciários.
Daí virá a primeira consequência das decisões do Supremo Tribunal Federal nas ADIs 4.878 e 5.083: a judicialização de todos os processos envolvendo menor sob guarda. Esse movimento tende a aumentar os processos nos Juizados Federais e Juízos de primeira instância de forma considerável. Essa demanda tende a abranger as instâncias superiores caso o INSS adote a postura de recorrer das decisões contrárias à Lei 8.213/1991. Dependendo da insistência da Advocacia Pública esses processos podem chegar às instâncias superiores, causando demora e atraso na implantação dos direitos pleiteados. Essa, aliás, é outra consequência esperada.
Além das consequências já apontadas, há também a possibilidade de aumentar os casos de requerimentos de guarda judicial para menores. Esse é um movimento natural, tendo em vista que a guarda que gera direitos previdenciários é somente a concedida judicialmente. Reconhecida ou não, uma das justificativas para a retirada do menor sob guarda do rol de dependentes dos segurados são as guardas fraudulentas, quando um familiar segurado pede a guarda do menor para “deixar a pensão” para ele.
Não obstante, a maior e mais importante consequência é o amparo ao menor realmente necessitado e desamparado, que tem o direito de proteção e cuidado garantido pela Constituição Federal. A esse é devido tanto o respaldo da guarda quanto a condição de dependente para fins previdenciários. Essa é a linha a ser seguida e a finalidade específica da Carta Magna, do Estatuto da Criança e Adolescente. Destoa desse sentido às normas previdenciárias quando buscam prioritariamente o equilíbrio atuarial em vez da proteção do menor. Sempre cabe lembrar que o Instituto que administra o Regime Geral – INSS – tem o dever constitucional de proteger o segurado e seus dependentes nos momentos de intempéries e imprevistos, não sendo aceitável qualquer meio ou artifício para se eximir dessa responsabilidade sem macular o fundamento constitucional de proteção ampla e irrestrita à família e, especialmente ao menor.
Nesse sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF – vem corrigir uma falha no sistema previdenciário quando tenta excluir da categoria de dependentes previdenciários o menor sob guarda. Firmando esse entendimento e tornando-se vinculante, estará restaurada a proteção prevista na Constituição e mantido o espírito completo da guarda judicial.
Obviamente que são necessárias medidas para evitar fraudes e até mesmo ordenar as contas do Regime Geral. No entanto, tudo isso deve acontecer sem a retirada de direitos fundamentais e constitucionalmente garantidos.
Conclusão
Após uma análise mais aprofundada acerca do tema menor sob guarda judicial e as consequências da sua manutenção como dependente previdenciário, pode-se afirmar que a exclusão feita por meio da Medida Provisória n° 1.596/97 – posteriormente convertida na Lei n° 9.528/97 – alterando o art. 16 da Lei nº 8.213/91, é inconstitucional e não observa os princípios da proteção integral e da prioridade absoluta, estatuídos no art. 227 da Constituição Federal do Brasil.
Verificou-se que embora a maioria dos Tribunais do país tenham reconhecido a validade da alteração do artigo 16 da Lei nº 8.213/91 – inclusive o STJ -, o guardião constitucional tem se mantido firme na sua jurisprudência no sentido de declarar o dispositivo não conforme a Constituição e reconhecido o direito do menor sob guarda a direitos previdenciários.
Prevê-se, que não havendo alteração legislativa ou reconhecimento do direito na esfera administrativa, um constante aumento de processos judiciais buscando o direito preterido. Essa judicialização seria inevitável e poderia causar uma demora no reconhecimento do direito, além dos custos processuais, econômicos e força de trabalho.
Por fim, constata-se que a retirada do menor sob guarda judicial do rol de dependentes do segurado da Previdência Social é um retrocesso no reconhecimento e implantação dos direitos da criança e adolescente. Além disso, negar a pensão por morte retira do infante a única oportunidade que tem de crescer com dignidade e provido do essencial. Esse é um benefício social tão importante que não pode ser ponderado ou negociado para ajustes ou vantagens econômicas.
Referências
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1Acadêmico de Direito pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS). Email: italo.ist@gmail.com
2Bacharela em Direito pela Universidade Luterana do Brasil (2006). Pós-graduada em Ciência Políticas pela Universidade Federal do Tocantins (2007). Pós-graduada em Direito Previdenciário pelo Instituto Nacional de Ensino Superior e Pesquisa (2014). Mestre em Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (2017). Lattes: http://lattes.cnpq.br/7892625381575101 ORCID: https://orcid.org/ 0000-0002-5025-7926. Email: Janaygarcia@hotmail.com.