REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202409021134
Fernando Victor Chaves Nunes Madruga¹; Maria Isadora Fernandes Dias¹; Eduardo Augusto Quidute Arrais Rocha¹; Thaís Chaves Nunes Madruga¹; Camilo de Souza Bessa¹.
RESUMO
O politrauma, caracterizado por múltiplas lesões simultâneas resultantes de forças externas de alta energia, é uma das principais causas de mortalidade entre jovens e adultos jovens, além de acarretar altos custos para os sistemas de saúde. Entre as lesões associadas, destacam-se as fraturas ósseas e complicações graves como hemorragias arteriais, síndrome compartimental e síndrome do esmagamento, que podem levar a rabdomiólise e outras condições críticas.
O manejo inicial do politraumatizado é dividido em duas fases principais: avaliação primária e secundária. A avaliação primária, realizada no local do acidente e em ambiente hospitalar, segue o protocolo ABCDE (ou XABCDE para casos de hemorragia exsanguinante), focando na identificação e tratamento imediato das lesões com risco de vida. A avaliação secundária ocorre após a estabilização inicial e envolve uma análise detalhada do paciente, incluindo a história clínica e exame físico minucioso, além da realização de exames complementares para investigar lesões adicionais.
A avaliação primária prioriza a permeabilidade das vias aéreas, ventilação adequada, circulação e monitoramento neurológico, utilizando manobras e intervenções específicas para assegurar a estabilidade hemodinâmica e a função respiratória. A avaliação secundária, por sua vez, é realizada em pacientes hemodinamicamente estáveis e inclui exames complementares como tomografias e ecocardiogramas para uma avaliação completa das lesões.
Este artigo revisa os protocolos e práticas recomendadas para o atendimento ao politraumatizado, destacando a importância da aplicação adequada das etapas de avaliação e a necessidade de monitorização contínua para otimizar o tratamento e reduzir a mortalidade associada ao politrauma.
Palavras-chave: Avaliação Primária, Avaliação Secundária, Circulação, Exames Complementares, Estado Neurológico, Exposição ao Ambiente, Hemorragia Exsanguinante, Manuseio de Pacientes Politraumatizados, Mnemônica ABCDE, Politrauma, Reanimação, Trauma Musculoesquelético, Ventilação, Via Aérea, Atendimento Inicial.
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, abordaremos a definição de politrauma e o atendimento inicial ao politraumatizado, dentro do qual discutiremos a abordagem ortopédica ao politrauma (avaliação secundária do sistema musculoesquelético). Esses temas, principalmente o atendimento inicial ao politraumatizado, devem ser compreendidos e manejados com proficiência por todo médico, dado que é alta a prevalência, a mortalidade e as despesas do politrauma no Brasil e no mundo. Além disso, dentre os sistemas mais acometidos pelo politrauma estão o sistema musculoesquelético, mediante fratura óssea, hemorragia arterial grave, síndrome compartimental e síndrome do esmagamento (leva a rabdomiólise, que pode levar a insuficiência renal aguda e coagulação intravascular disseminada – CIVD).
A definição de politrauma engloba uma ação imprevista potencialmente fatal de forças externas de alta energia que alteram simultaneamente as funções de múltiplos órgãos e sistemas. Epidemiologicamente, é a segunda causa de morte entre jovens e adultos jovens (até os 40 anos de idade), e o tratamento gera por ano custos elevados ao sistema único de saúde. Com isso, o atendimento dos pacientes submetidos a essa condição deve ocorrer de forma rápida, objetiva e baseada em prioridades, visando direcionar o manejo em etapas essenciais que, quando não avaliadas sistematicamente, levam ao aumento da mortalidade. Esse aumento ocorre devido aos danos secundários causados por lesões não diagnosticadas e, consequentemente, não controladas.
Dessa forma, o atendimento inicial ao politraumatizado será dividido em avaliação primária e avaliação secundária. Devemos lembrar que essas intervenções podem ocorrer tanto no atendimento pré-hospitalar quanto no atendimento hospitalar.
O atendimento pré-hospitalar é aquele realizado no local onde ocorreu o acidente, ou seja, provavelmente o primeiro contato do paciente com atendimento médico, devendo o mesmo ser realizado por uma equipe treinada e formada por um médico, um enfermeiro e um socorrista. Antes do início desse atendimento, é prioritária as medidas gerais de segurança para a equipe, como a verificação da segurança da cena e o uso de luvas, máscaras, óculos de proteção e aventais impermeáveis. Posteriormente, o paciente deve ser estabilizado, mediante avaliação primária e tratamento de lesões fatais, permitindo a transferência do paciente imobilizado para o centro de trauma mais próximo. Tudo isso deve ocorrer em até 10 minutos, pois quanto maior o tempo de atendimento pré-hospitalar, maior é a mortalidade.
AVALIAÇÃO PRIMÁRIA
Consiste na sistematização em etapas do atendimento inicial do politraumatizado, visando a rapidez, a objetividade e a priorização de pontos nesse atendimento. Com isso, é utilizada a mnemônica ABCDE, na qual cada letra indica uma etapa, que permite a sistematização desse exame. O objetivo dessas etapas é criar um atendimento sequencial, permitindo a identificação e o tratamento prioritário das lesões com risco de vida. A variação do mnemônico XABCDE (Quadro 01) poderá ser utilizada quando se suspeita de hemorragia exsanguinante.
Ademais, o tratamento de condições ameaçadoras à vida (lesões com risco de vida), denominada reanimação, consiste no controle de cada uma das etapas do exame primário, por meio, por exemplo, do acesso às vias aéreas (A – Airway), da ventilação adequada (B – Breathing) e da infusão de fluidos (C – Circulation).
X – Exsanguinação
A hemorragia exsanguinante é definida como uma hemorragia externa grave, a qual é ameaçadora à vida caso não controlada. Durante o atendimento pré-hospitalar, essa condição deve ser abordada de forma imediata, mediante o controle da perda sanguínea (utilizando compressão ou torniquetes). Entretanto, a priorização dessa etapa em relação ao A (airway) e o B (breathing) só deverá ocorrer se existir uma hemorragia externa grave, a qual é identificada com uma busca ativa de lesões. Além disso, a etapa X (exsanguinação) não substitui a realização da etapa C (circulation).
A – Airway (Via Aérea)
No exame inicial de um paciente politraumatizado, a prioridade deve ser a verificação da sua via aérea, checando sua permeabilidade e buscando sinais de obstrução. Em uma tentativa de comunicação com o paciente, se o mesmo estiver com a fala preservada, é bastante provável que não haja uma obstrução de vias aéreas. Entretanto, é necessário realizar essa verificação repetidas vezes para evitarmos danos por alguma obstrução súbita ou progressiva.
Além disso, é de extrema importância, durante todo o exame das vias aéreas, restringirmos o movimento da coluna cervical do paciente para evitarmos o desenvolvimento ou a progressão de alguma lesão. A coluna cervical é protegida com a utilização do colar cervical e prancha rígida para imobilizá-la.
Pacientes que foram vítimas de traumas cranioencefálicos (TCE) mais graves ou que apresentam rebaixamento do nível de consciência devem ter sua via aérea estabelecida de forma rápida, através de manobras de tração da mandíbula e de elevação do mento (denominadas jaw-thrust e chinlift respectivamente), com atenção à coluna cervical que deve ser estabilizada, como dito anteriormente. No entanto, dentre essas manobras, a mais indicada é a manobra de jaw-thrust, especialmente em casos de pacientes que possuam possíveis traumas raquimedulares (TRM), pois a manobra de chinlift pode levar a uma progressão de lesão preexistente nas vértebras, estendendo-se dessa maneira para medula, pois ocorre uma hiperextensão do pescoço do paciente.
B – Breathing (Respiração/Ventilação)
Nessa fase do atendimento, devemos garantir que, além de uma via aérea pérvia e livre de obstruções estabelecida na fase inicial, o paciente também possua uma ventilação adequada.
Para avaliarmos a condição de ventilação de uma vítima de trauma, devemos realizar um exame físico geral da região torácica e da traquéia (pescoço), sendo a inspeção, a palpação, a percussão e a ausculta fundamentais para a detecção de lesões que possam comprometer a ventilação. Além disso, é importante verificar adequadamente a distensão das veias jugulares no pescoço do paciente durante a inspeção visual.
C – Circulation (Circulação)
Essa etapa se baseia na avaliação hemodinâmica do paciente, a qual, quando realizada, pode indicar hemorragia interna, e consequentemente, choque hipovolêmico hemorrágico, condição que quando não identificada e tratada se torna uma condição ameaçadora à vida. Essa condição epidemiologicamente é bastante prevalente em pacientes politraumatizados e, dentre os sinais dela, um dos mais precoces é a taquicardia (FC ≥ 100 bpm).
A hemorragia externa também deverá ser considerada nessa etapa caso exista uma suspeita durante a avaliação. Para a realização dessa etapa, o médico deverá avaliar de forma rápida 5 parâmetros hemodinâmicos: nível de consciência, pulso/PA, enchimento capilar, cor da pele e frequência respiratória (Quadro 04). Após a avaliação hemodinâmica, os achados devem ser interpretados e relacionados com o possível estado hemodinâmico do paciente, ou seja, as classes da hemorragia (se presente) (Quadro 05). Com isso, podemos estimar a perda sanguínea do politraumatizado e, dessa forma, tratá-lo da melhor maneira.
Na presença de instabilidade hemodinâmica, a reposição volêmica com a infusão de 20 ml/kg de Ringer Lactato (algumas literaturas sugerem até 1000ml) deve ser feita, preferencialmente, através de dois acessos venosos periféricos (Quadro 06). Ademais, o médico deve ficar atento para evitar a reposição volêmica agressiva (devido a hipotensão permissiva), devendo evitar a infusão de quantidades excessivas de solução e reavaliar a resposta hemodinâmica do paciente a reposição. Na suspeita de hemorragias extensas e graves, o ácido tranexâmico deverá ser utilizado nas primeiras 3 horas (com posologia de 8 em 8 horas).
Além de podermos utilizar o protocolo de transfusão maciça (PTM) baseado nas classes da hemorragia, podemos indicar esse protocolo em casos de instabilidade hemodinâmica refratária a ressuscitação volêmica, de Assessment of Blood Consumption (ABC) pontuando 2 (Quadro 07) ou de sangramento ativo que requer cirurgia ou embolização.
Se descartada a perda hemorrágica continuada, a hipotensão refratária à infusão de volume tem como possíveis causas o choque obstrutivo e o choque cardiogênico. Dessa forma, patologias como pneumotórax hipertensivo, tamponamento cardíaco, contusão cardíaca, infarto agudo do miocárdio e embolia gasosa devem ser lembradas e afastadas. Geralmente cada uma dessas condições tem uma clínica bastante característica, podendo ser facilmente diagnosticadas.
Há um determinado grupo de fraturas que são mais propícias a gerar hemorragias graves, como a de pelve e a de fêmur, necessitando de reposição volêmica imediata e monitorização contínua. A tabela a seguir reforça a preocupação com a perda sanguínea correspondente ao osso fraturado.
D – Disability (Incapacidade, estado neurológico)
Essa etapa consiste em um exame neurológico rápido que é realizado aferindo a Escala de Coma de Glasgow (ECG) e observando a resposta pupilar (fotorreação) à luz. Ademais, a simples inspeção do crânio em busca de lesões (sangue, inchaço e deformidade) é essencial, pois pode revelar acometimento do sistema nervoso central. A ECG permite uma avaliação completa, pois analisa 3 parâmetros: abertura ocular, resposta verbal e resposta motora (Quadro 08). Além disso, possibilita uma avaliação e uma comparação da melhora ou piora do paciente (importante para checar resposta a ressuscitação volêmica). Quando alterada em um ou em ambos os olhos (midríase), a fotorreação pupilar diminui a pontuação da ECG e pode indicar herniação uncal.
Após a avaliação neurológica rápida, os achados devem ser interpretados e relacionados com o possível estado neurológico do paciente, mediante a pontuação da ECG. A ECG na suspeita de um traumatismo cranioencefálico (TCE) é vital, pois pode auxiliar no diagnóstico e na classificação. Além disso, vale ressaltar que a avaliação do traumatismo raquimedular (TRM) também se encontra nessa etapa. Para avaliar o TRM, checamos a presença de nível sensitivo (limite circunferencial abaixo do qual há perda de sensação), sensibilidade nos membros e grau de força nos membros. Dentre os dermátomos essenciais (Imagem 01) que devem ser avaliados estão: C4 (ombro), T4 (linha do mamilo), T10 (cicatriz umbilical), T12 (ligamento inguinal), L1 (região inguinal – virilha/raiz da coxa), L2 (face anterior da coxa) e S2 (fossa poplítea). O nível sensitivo restringe o provável nível medular, no qual ocorreu a lesão medular.
E – Exposição ao ambiente (Exposure)
O paciente é despido e deve ser examinado com prontidão da cabeça aos pés. Diversos tipos de lesões que ainda estavam ocultas podem ser revelados nessa etapa, como acometimentos na região dorsal, afecção do períneo e alguns traumas penetrantes. Após esta avaliação, o paciente deve ser aquecido com cobertores térmicos e a temperatura da sala de reanimação deve estar adequada para a saúde do paciente (evitando a hipotermia), e para a posterior realização de procedimentos. Lembre que os fluidos infundidos nos pacientes devem estar aquecidos em torno de uma temperatura de 37 a 40 graus Celsius.
AVALIAÇÃO SECUNDÁRIA
O exame secundário (avaliação secundária) é realizado somente nos pacientes que, após as medidas de reanimação, apresentam uma tendência a voltarem à normalidade das suas funções vitais. Este tipo de avaliação baseia-se em uma história clínica detalhada (especialmente do mecanismo de trauma) e um exame físico minucioso que inclui os principais sistemas, destacando a função neurológica. Acresça-se a essa avaliação a possibilidade de solicitar exames complementares de imagem e radiologias necessárias para a investigação.
Ainda na avaliação secundária, podem ser solicitados alguns exames diagnósticos, como a TC de coluna vertebral (especialmente a cervical), crânio tórax e abdome; urografia excretora; ecocardiograma; broncoscopia e esofagoscopia. Cabe salientar que, como esses exames muitas vezes requerem um grande deslocamento pelo hospital, apenas os pacientes hemodinamicamente estáveis estão indicados para esses exames.
São importantíssimas a monitorização contínua dos parâmetros vitais e a reavaliação constante do paciente politraumatizado. Essas ações permitem que alterações que possam agravar o estado de saúde do paciente não passem despercebidas e tenham seu devido tratamento.
Após todas as etapas referentes ao exame secundário, o paciente recebe a indicação do tratamento definitivo, devendo ser avaliada a necessidade ou não de deslocamento para outro hospital a fim de realizar o tratamento específico.
Referências:
- COLÉGIO AMERICANO DE CIRURGIÕES – COMITÊ DE TRAUMA. ATLS Suporte avançado de vida no trauma para médicos: manual do curso para alunos. 10. ed. Chicago: Colégio Americano de Cirurgiões, 2017.
- FELICIANO, David V.; MATTOX, Kenneth L.; MOORE, Ernest E. Trauma. 9. ed. New York: McGraw-Hill Education, 2020.
- FILHO, E. A. J.; SILVA, G. A. R. D.; ELEUTÉRIO, R. S. SOS plantão. São Paulo: MedBook Editora, 2014.
- LEITE, J. A.; JUNIOR, M. B.; NETO, H. M. Atendimento inicial ao politraumatizado. In: LEITE, J. A.; JUNIOR, M. B.; NETO, H. M. Princípios de ortopedia e traumatologia. Fortaleza: [s. n.], 2011. cap. 19.
1Acadêmico de Medicina, Centro Universitário Christus, Endereço: R. João Adolfo Gurgel, 133, Cocó, – Fortaleza, Ceará, CEP: 60190-180.