MULHERES CIRCENSES E SEUS CORPOS LONA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12735341


Marina de Almeida Prado,
Orientadora: Prof.ª Dra. Rosemeri Rocha da Silva


RESUMO

Esse artigo surge de uma inquietude do e no corpo, de mulher, filha, mãe, professora, artista e pesquisadora. Considerando a importância de mulheres fazedoras de circo que representam e ocupam com seus corpos o cenário artístico e educacional, pretende-se nesse artigo, dar voz a um termo intitulado “Corpos Lona”, com o propósito de justificar um corpo como metáfora de uma lona em movimento, ligado às mulheres de circo. Para mediar essa reflexão, será convidada, a historiadora circense Ermínia Silva (2007), e sua pesquisa que reverbera memórias, histórias e saberes. A partir do olhar sobre “história” que tem o antropólogo britânico Tim Ingold (2012), com base na teoria do corpo sem órgãos do Filósofo Francês Gilles Deleuze e seu colaborador Félix Guattari (1997) e tateando os estudos sobre performatividade de gênero da autora Judith Butler (2018).  Reforçando que a memória é um dispositivo de resistência, e que a partir do momento em que revivemos e rememoramos, podemos transformar nosso entorno, construindo o presente atualizado, a partir das lembranças corporalizadas.

Palavras-chave: Circo. Corpo. Memórias. Autonomia. Mulheres artistas.

ABSTRACT

This article arises from a concern about and in the body, of a woman, daughter, mother, teacher, artist and researcher. Considering the importance of women circus performers who represent and occupy the artistic and educational scene with their bodies, this article intends to give voice to a term entitled “Lona Bodies”, with the purpose of justifying a body as a metaphor for a canvas in movement, linked to circus women. To mediate this reflection, circus historian Ermínia Silva (2007) and her research that reverberates memories, stories and knowledge will be invited. From the perspective on “history” taken by British anthropologist Tim Ingold (2012), based on the theory of the body without organs by French philosopher Gilles Deleuze and his collaborator Félix Guattari (1997) and groping the author’s studies on gender performativity Judith Butler (2018).  Reinforcing that memory is a resistance device, and that from the moment we relive and remember, we can transform our surroundings, building the updated present, based on embodied memories.

Keywords: Circus. Body. Memoirs. Autonomy. Women artists.

A mulher constrói uma visão de mundo, constrói uma sensibilidade e uma intuição, que a faz lidar com ideias e fatos que encontra, de modo inovador e singular, enquanto recortada pelo olhar feminino (LAMAS, 1993, p. 21).

Essa artigo reflete sobre memórias, mulheres e histórias.

Falar de mulheres, é também um ato de resistência. Uma mulher quando escolhe o oficio da arte, já está se desfazendo de preconceitos e ideias geracionais voltadas a elas. Aquela conhecida batalha contra o machismo, patriarcalismo e sexismo. 

Uma mulher artista, vivencia o impossível que se dá à luz do dia em cena, nesse local, ela pode ser autônoma sem licença e aprovação do outro.

A mulher artista ultrapassa a dimensão de cidadã do mundo, pois além de colocar os interesses da humanidade acima dos da pátria, alcança ser cidadã do universo (LAMAS, 1993, p.19).

São tantas histórias, as quais me contaram sobre os mulheres de circo, mas, percebia que não era sobre essas histórias que gostaria de falar, porque, sempre quem nos fala, são os homens, sempre ouvi pela boca e escrita deles, mesmo as histórias sobre as mulheres de circo.

Atualmente, já não ouço mais apenas por esse vies, porque não conheci um circo de mulheres, antes de ser uma delas.

Hoje sou uma mulher do circo, conheci e convivi com outras, minhas filhas me ensinam e sigo atravessada por mulheres que me contam cada vez mais as histórias de um circo de mil mulheres.

No entanto,  surge uma necessidade de compreender esse corpo circo como um criador de memórias, as quais, existem na possibilidade de resistência, num esforço de se reconhecer, reconstruir, reviver, ampliando entendimentos e dando novos sentidos ao que já foi proposto um dia. surge a vontade de entender melhor o lugar das mulheres nesse espetáculo grandioso.

O Circo que conheço hoje, pelo olhar de algumas, ainda poucas mulheres, é pura potência e corpo em movimento, é um circo que se molda, adaptando-se a espaços e realidades infinitas.

Já foi um dia, círculo de pedra e arena, em outro, círculo feito de pessoas, lona montada e desmontada, teatro, castelo, rua, academia, praça, televisão e, sempre corpo. “Corpos Lona” em movimento.

O termo  “Corpos Lona” que está no título da obra, surge da necessidade de compreender esses corpos de mulheres, que entendo como autônomos, em movimento constante, e, se relacionando vivamente com os espaços e os ambientes circundantes.

Corpos que trocam, compartilham e principalmente pulsam e reverberam memórias e histórias de outras mil mulheres.

Joël Candau, em Memória e Identidade, associa esses dois elementos na perspectiva de entrelaçamento mútuo, apresenta a ideia de necessidade de uma estar submetida à outra, complementando-se numa coordenação harmoniosa:

A memória, ao mesmo tempo que nos modela, é também por nós modelada. Isso resume perfeitamente a dialética da memória e da identidade que se conjugam, se nutrem mutuamente, se apoiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida, uma história, um mito, uma narrativa (CANDAU, 2011, p. 16).

De acordo com Bosi (1994, p. 17), “Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho”.             

Os corpos Lona portanto, são corpos que habitam o mundo em movimento, desdobrando os traços históricos, os símbolos, as lembranças e as trajetórias, rememorando enquanto move em arte.  

Muitas mulheres de circo, principalmente em circo tradicionais mais antigos, trabalhavam como ajudantes dos mágicos e dos malabaristas, faziam papéis que traziam a beleza à tona, e, raramente faziam performances que a colocassem em papeis de comicidade ou poder.

A tradição de repassar ensinamentos sobre à palhaçaria por exemplo, durante muito tempo foi de dominio e exclusividade masculina.

Como afirma Judith Butler (2004) em “Undoing Gender”: “O corpo da mulher artista é frequentemente objetificado e fetichizado pela cultura visual, mas também pode ser uma fonte de resistência e subversão.

No Brasil, a tradição circense também designava a função do palhaço somente aos homens: “Diziam os tradicionais que mulher não podia ser palhaço. Esta fala era reforçada. E falavam assim mesmo, no masculino, tão forte era a associação do personagem com o gênero” (CASTRO, 2005, p. 220).

Conforme nos diz os autores, Ermínia Silva e Luís Alberto de Abreu (2009) e Santos (2014), no circo, as mulheres participavam do espetáculo, porém não podiam ser palhaças, porque exigia uma corporalidade grotesca, maliciosa e por ter contato direto com o público, elas também não podiam ‘fazer a praça’, (fazer os contatos e as tratativas comerciais na cidade), porque os artistas, principalmente as mulheres, sofriam muitos preconceitos e “[…] procuravam proteger-se (e também às suas mulheres e filhas) dos olhares da cidade” (SANTOS, 2014, p. 21).

As primeiras mulheres que ocuparam o papel de palhaço, o fizeram vestidas de homem ou acompanhadas por seus maridos ou pais.

Butler (2018) defende a noção de gênero como uma criação cultural e social.     Para a autora, gênero não é e não pode ser entendido como algo natural, predeterminado, dado por um corpo biológico e anatomicamente constituído.

Entende-se, portanto, que a construção de gênero é o resultado de práticas sociais que significam os corpos e que criam a falsa ideia de algo natural. Ainda segundo Butler, gênero é um ato performativo, pois se inscreve na superfície dos corpos a partir de atos, gestos e atuações repetitivas, produzidas e sustentadas por “signos corpóreos e outros meios discursivos” (BUTLER, 2018, p. 235).

A artista circense Gena Leão, da cidade de Natal, passou 20 anos de sua carreira fingindo ser um palhaço homem para poder atuar com o que amava dentro do circo e, apenas nos casos de substituições urgentes, algumas artistas podiam atuar como palhaças, como relatou Castro (2005, p. 220).

Um outro caso, foi o da filha, de um dos donos do circo Guarani, Elisa Alves, que precisou substituir às pressas, seu irmão, o palhaço do circo, por motivos de saúde e assim permaneceu guardando segredo da cidade.

Maria Eliza Alves dos Reis é considerada a primeira palhaça negra brasileira, se apresentava com seu nome masculino palhaço Xamego. Nasceu no meio artístico, em 1909, filha do proprietário do Circo Guarany, João Alves.

Segundo Castro, as moças do público costumavam se apaixonar pelo palhaço do circo e, por isso, a necessidade de manter o segredo.

No Brasil, no final do século 19 e início do século 20, o modelo de organização dos circos família, ainda colocava a mulher em um lugar de “Chamariz” do circo, através de números sensuais e belos. Esse papel era apenas a repetição de toda a história da sociedade.

A pesquisadora Sarah Monteath Santos (2014, p. 14-15), diz que esse papel do “belo” representado pela mulher nas apresentações de circo era incompatível com a maneira que as pessoas vizualizavam o palhaço, sempre como uma representação bruta, rude e grotesca. Segundo Sarah, esse corpo cômico e desengonçado não era bem visto representado por mulheres.

Para a pesquisadora de gênero e palhaçaria, Maria Silva do Nascimento (2018) o que ocorre é: Diante dos valores da família tradicional burguesa nos quais as mulheres deveriam restringir-se ao espaço doméstico e privado, as mulheres circenses enquanto artistas que se expunham para o público, muitas vezes em trajes considerados sumários, representavam uma grande afronta.

Não é de se admirar que recaia sobre as mulheres circenses a discriminação e o adjetivo de “mal faladas” e, muitas vezes, como resposta, as famílias circenses procuravam proteger-se por meio de rigorosas regras na conduta das mulheres.

As mulheres começam a ter acesso a descoberta desse “corpo cômico” que a pesquisadora Sarah cita acima, à partir dos anos 1970, quando escolas e cursos formadores de circo começaram a surgir fora do circo tradicional.

Foi então, que a partir de 1990, as palhaças brasileiras começaram a surgir no mundo do circo. Para Alice Viveiros de Castro: “Era possível rir da mulher, mas não com a mulher. Afinal, rir junto, rir com, é coisa que só se permite aos iguais, o que homens e mulheres não eram e não podiam ser.” (CASTRO, 2005, p. 220).

O início do surgimento de mulheres palhaças no Brasil, aconteceu na década de 1990, com o surgimento do primeiro grupo do país.

O primeiro grupo de palhaças mulheres no Brasil chamava-se “As Marias da Graça”, que fundou em 2005, na cidade do Rio de Janeiro, um dos primeiros festivais de comicidade feminina. “Esse monte de mulher palhaça”.

Contudo, mais palhaças nasceram fora da lona, compuseram e compõem a contemporaneidade da teatralidade circense. Assim, possibilitam criação, pesquisa e protagonismo das mulheres, abrindo possibilidades de novas construções de sentidos no campo da produção do feminino cômico e também no ensino desta prática.

Entendo que além de artistas fazedoras de circo e questionadoras de nosso papel em meio a essa arte, representamos e ocupamos também um cenário educacional.

Proponho, a partir desses apontamentos, olhar para a noção de palhaçaria feminina tendo como princípio a ideia de feminino como um espaço de multiplicidade, de diversidade, de proliferação de formas de gênero, que, mesmo contendo os referenciais heteronormativos, também se configura como ruptura deles (FUCHS, 2022, p. 37).

A partir desse movimento que o circo fez saindo da lona e extrapolando sua estrutura arquitetônica montado de mastros, inicicou-se um processo de reverberação dessas memórias em corpos lona em movimento.

Podemos dizer que a sociedade começou a desmistificar e tirar o circo do lugar do exótico, e vê-lo também como uma forma de conhecimento. 

E, assim o circo se recria, readapta, incorpora, sempre em busca da continuidade. Nada além do que sempre fez, porque antes de tudo, ele é um corpo em movimento, que parece dotado de um poder de fuga que desafia qualquer ambição de definição ou limite. O circo, um grande Corpo Lona.

Quando o circo começou a caminhar por outros lugares e convidar não somente filhos e filhas de circenses para conhecê-lo, algo parecido com a transmissão oral dos circos famílias aconteceu dentro de espaços alternativos. Como um ritual que segue esse ensinamento, memórias e histórias são também passadas de algum forma nessa troca e nesse compartilhar.

Ao habitar o mundo, somos envolvidos pelos múltiplos traços históricos e culturais que foram incorporados na paisagem. Estes traços, no entanto, não são uma prerrogativa dos humanos, mas de todos os seres e objetos que habitam o mundo (INGOLD, 2010, p. 17).

Entender os Corpos Lona à partir desse olhar antropológico de Tim Ingold sobre história e memória, é perceber este corpo em estado de potencialidade que representa um despojar de estruturas convencionais que refere-se a um modo de existir em arte.

Um estado que possui a capacidade de estar e ser, de forma independente, sem a necessidade de controles externos, capaz de buscar sua própria forma de existir e resistir.

Para explicar melhor esse lugar de potência, trago o conceito do corpo sem órgãos dos autores Deleuze e Guattari (1980). O conceito de corpo sem órgãos remete a outra concepção do corpo humano, não mais visto como uma estrutura hierárquica organizada em torno de órgãos específicos. Mas, um corpo que está em constante fluxo, sem fronteiras ou limites claros, um corpo múltiplo de possibilidades.

Segundo os autores, o corpo sem órgãos é uma abstração que pode ser usada para explicar tanto as situações psicológicas quanto as sociopolíticas da vida moderna caracterizada pela fragmentação e alienação do indivíduo.

Ao superar a lógica de poder e controle, os autores argumentam que o corpo sem órgãos pode se tornar uma plataforma para a criação de novas formas de subjetividade e novas formas de viver.

“O corpo sem órgãos é um corpo afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta polos, zonas, limiares e gradientes. Uma poderosa vitalidade não orgânica o atravessa” (DELEUZE, 1997, p. 148).

Os Corpos Lona portanto, pedem essa reflexão sobre as estruturas normativas e refletem as limitações impostas à corporalidade.

Sugere também uma desconstrução das normas tradicionais de gênero e de expectativas sociais relacionadas especialmente às mulheres e um corpo feminino circense, fugindo de estereótipos convencionais e indo em direção a um espaço de liberdade e resistência.

Por tudo isso citado acima, o corpos lona podem ser vistos desassociados de um corpo submisso e domesticado, voltando-se para a ideia de um corpo criador.

A experiência dessa autonomia dos corpos lona é potente porque cria novas possibilidades estéticas e um novo olhar e acesso ao corpo.

Os Corpo lona, portanto, representam a afirmação de uma potência que envolve um certo poder à medida que explora proezas físicas, expressividade e o domínio corporal para emergirem como mulheres e artistas independentes.

Para falar dos Corpos lona, importante entender sobre  a simbologia, arquitetura e a condição de nomadismo que nos trazem as tendas e as lonas.

Essas, podem ser vistas como símbolos de mobilidade e adaptabilidade, sendo espaços móveis que reúnem comunidades criativas e celebram expressões artísticas e de vida.

Além de utilizadas pelos circenses, foram e ainda são usadas em variadas culturas, são, moradias temporárias e realidades transitórias que nos trazem outros modos de ver os corpos que vivem nesses locais.

Estruturas que permanecem por um tempo em um determinado local, até que cumpram sua função, seguindo para ser novamente casa em outro local.

Portanto, lonas de circo, são casas com aspecto transitório e móvel, e, dentro delas corpos que também vivem em trânsito.

No livro “O Circo: memórias de uma arquitetura em movimento” Gilmar Rocha (2018), fala sobre como ao levantar a lona, mesmo que por pouco tempo, as paisagens se atravessam, é possível ver a lona como parte daquele lugar que foi escolhido para ser a casa temporária, como se sempre estivesse ali.

Na citação que segue, ele destaca como um espaço móvel tem o poder de se borrar, com as paisagens locais por onde passa. “O circo é um repositório de significados, imagens, representações, entre as quais se destaca a de sua arquitetura nômade; símbolo de uma cultura viajante cuja eficácia consiste em, temporariamente, se misturar à paisagem local”.

Portanto são corpos que vivem e acontecem no deslocar-se. E, esse deslocamento garante a sobrevivência desses corpos que se organizam em meio a cada novo lugar. Raízes não criam, porque não há tempo e os afetos acontecem em movimento.

Gilles Deleuze (1925-1995) comenta acerca da afetividade em Bergson: Ela, (a afetividade), ganharia um volume no espaço, distinto de um ponto matemático; estes pontos, instantes ligados uns aos outros pelas lembranças da memória, intercalam o passado no presente. A afetividade seria ainda uma outra forma de memória, a da contração da matéria, que faz surgir a qualidade (2004, p. 17).

[…] a chegada do circo à cidade cria uma intervenção concreta na área que antes era um espaço vazio, onde antes nada existia. Durante algum tempo, sobre aquele terreno serão mostrados simulacros das emoções humanas que despertarão no público que se acomoda debaixo da lona emoções verdadeiras. Ao final da temporada, a caravana segue seu rumo e o espaço volta à sua condição de nada, conjugando tanto o simulacro quanto a realidade em uma única expressão do vazio (ANDRADE, 2006, p. 92).

Segundo a historiadora Elisângela Carvalho Ilkiu, Mestre em história e teoria da arte, nessa mesma época, os circos ainda não cobravam ingressos e não era cobertos por lonas. Muitos deles eram feitos de tábuas de madeira ou de chapas de metal e abrigados por tecidos feitos de algodão. Eram chamados de “Tapa-beco”, “Pau a pique” e “Pau fincado”.

Ainda segundo a autora, “O Circo “Tapa-beco” era feito em um terreno baldio, que possuía uma cortina na frente e outra ao fundo. As cortinas separavam a área que recebia o público daquela destinada à realização do espetáculo. No meio do terreno, um círculo feito de corda delimitava o espaço onde artistas e animais faziam suas apresentações”.

As tendas como “Chapiteu” por exemplo, mediam perto de 50m de diâmetro e eram confeccionadas de lonas de linho ou cânhamo. A principal evolução em relação a estes foi à introdução de quatro mastros principais, verticais (King Poles), situados ao redor do picadeiro. A lona era suspensa por estes mastros, apoiando-se no perímetro por uma série de mastros de menor altura.

Entre os mastros principais e os perimetrais existia ainda um grupo de mastros intermediários (Queen Poles), inclinados a cerca de 60 graus em relação ao solo, que eram usados para retesar a membrana. Mesmo sendo geometricamente simples, desenvolveu-se toda uma técnica em termos de padrões de corte, juntas e montagens, passada adiante por sucessivas gerações de artesões e artesãs.

A historiadora Ermínia Silva, no livro de Gilmar Rocha: O Circo: memórias de uma arquitetura em movimento (2018), nos conta que os pioneiros do circo no Brasil, desenvolveram o “circo de tapa-beco”, assim chamado porque, assentado em terreno ladeado por casas, consistia num mastro de eucalipto, jacarandá ou ipê, atravessado por um braço formando uma forca, na base era estendida uma corda em círculo para demarcar a área do picadeiro.

Além do estilo tapa-beco, o pau –fincado tinha apenas uma cobertura parcial, de pano de algodão, colocada principalmente em cima do público, que cobria todo o circo, protegendo do sereno e na hora da apresentação. Mas, para proteger da chuva, não aguentava. “Com chuva, não tinha espetáculo”. Diz Erminia.

Ainda, segundo a pesquisadora Ermínia Silvia em seu livro RESPEITÁVEL PÚBLICO… O CIRCO EM CENA. Todo o produto que inventaram para impermeabilização da cobertura era feito em latas grandes, usavam-se querosene, cera de carnaúba, parafina e para dar colorido usavam oca pigmento. Tudo isto era feito no interior do próprio circo e depois esparramado sobre a cobertura.

No livro Circo Nerino, os autores fazem uma descrição de como os circenses desse circo, no período das décadas de 1910 a 1950 no Nordeste brasileiro, realizavam a impermeabilização do pano, que para os mesmos era denominada de empanada: “Pronta, a empanada era armada e só depois de a primeira chuva tirar a goma do tecido é que era impermeabilizada.

Para isso misturávamos, num tonel, ocre, cera de abelha italiana ou estearina e querosene, e levávamos ao fogo. Fervendo, o preparado era colocado em latas içadas por cordas até o alto do circo, e espalhado no pano com escovões.”

Waldemar Seyssel – Arrelia –Circense que nasceu em 1906, descreve: Primeiro, tínhamos que encerar o fio para a costura.

Essa linha era chamada de fio de sapateiro e a enceragem (sic) era feita com um pedaço de cera, naturalmente. Segurávamos a cera na mão; o rolo de fio ficava no chão – eram muitos rolos! – enquanto a ponta era amarrada num prego (cuja cabeça era entortada para cima), pregado num canto da sala, onde as mulheres (artistas ou esposas de artistas) encarregavam-se da costura.

Nós (as crianças) corríamos a cera pelo fio, de uma ponta da sala até o outro extremo, onde estava o prego […]. Respeitável Público: O circo em cena (SILVA; ABREU, 2009, p. 65).

A tradição de criar casas feitas de lona e dar formas a variados mundos, era também, além de um modo de sobrevivência, um modo de pensar e ver o mundo. Mostra a capacidade do artista de circo de inventar e reinventar mundos.

Para Ingold (2015, p. 309), “improvisar é seguir os caminhos do mundo”, o que pode levar os circenses a serem vistos como “[…] caminhantes pela paisagem, produzindo seu trabalho à medida que prosseguem com suas próprias vidas.

Quando escolhi esse termo, Corpos Lona, busquei extrapolar a visão de um corpo estrutural e arquitetônico que é de fato um Circo de Lona.

Lonas libertas de chão e mastros, borradas em um corpo circo que também é movimento, e que de alguma forma mantém as memórias da estrutura nômade. Assim é proposto o termo Corpos Lona.  Esse termo surgiu como um novo acesso para compreender um corpo que se movimenta com autonomia para todo e qualquer lado, criando um repertório que motiva produção de conhecimento, bem como novas relações como o contexto onde se insere.

Trazendo ao mesmo tempo, o corpo das mulheres para a discussão, rejeitando seu papel histórico de repetição, desassociando o corpo da mulher como submisso, domesticado e voltando-se para a ideia de um corpo criador.

A experiência dessa autonomia dos corpos lona é potente porque cria novas possibilidades estéticas e um novo olhar e acesso ao corpo.

Convido para um diálogo numa busca por entender melhor esse termo que trago aqui, os pesquisadores Gilles Deleuze e seu colaborador Félix Guattari e seus estudos sobre o “corpo sem órgãos” no livro “O Anti-Édipo” (1972).

O conceito de corpo sem órgãos remete a outra concepção do corpo humano, não mais visto como uma estrutura hierárquica organizada em torno de órgãos específicos. Mas, um corpo que está em constante fluxo, sem fronteiras ou limites claros, um corpo múltiplo de possibilidades.

Segundo os autores, Deleuze e Guattari, o corpo sem órgãos é uma abstração que pode ser usada para explicar tanto as situações psicológicas quanto as sociopolíticas da vida moderna caracterizada pela fragmentação e alienação do indivíduo.

Ao superar a lógica de poder e controle, os autores, argumentam que o corpo sem órgãos pode se tornar uma plataforma para a criação de novas formas de subjetividade e novas formas de viver.

Um corpo sem órgãos tem órgão; o que ele não tem é organização.

O corpo sem órgãos é o não ao organismo, ao padrão e aos valores que o corpo deve seguir. Para Artaud (1972), não é a morte, e sim a vida.

Pensar na relação entre um corpo sem órgãos e o um corpo lona é refletir sobre histórias, memórias e ao mesmo tempo um contínuo existir, um contínuo tornar-se corpo, presente, contemporâneo e legitimando pelo processo que a arte como potência na invenção tem de reinvetar-se em si mesmo.

Os corpos lona são inacabados e se refazem a cada instante. Entendendo o corpo a partir desse olhar desafiador em busca de liberdade e autonomia, trago os Corpos lona que surgem aqui, carimbando esse estado de potencialidade criativa e liberdade, da concepção metafórica que representa um despojar de estrutura convencionais. “O Corpo sem Órgãos não é um corpo morto, mas é um corpo de intensidades e fluxos, um corpo que atravessa e é atravessado por processos de desindividualização e de multiplicação, de abertura a novas possibilidades de vida” (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 60).

Essa potencialidade criativa e liberdade, geram um certa autonomia.

Acredito que essa autonomia, foi aumentando no trajeto da história desses corpos. Me ancoro nas falas sobre o corpo da autora Judith Butler (2008). Filósofa feminista que desenvolveu uma teoria performativa de gênero.

Para ela, o corpo não é apenas um objeto físico, mas também uma construção social e cultural. A partir disso, a autora argumenta, que a autonomia individual está relacionada à capacidade de questionar e desafiar as normas de gênero impostas desde o nascimento. 

Em seu livro Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa da assembleia, Butler (2018) diz que o corpo é a arena da ação política e que uma autonomia não pode ser alcançada sem criticamente pensar às normas culturais e sociais que moldam nosso desenvolvimento, nossos corpos e nossas relações com gênero, sexualidade e identidade.

Nesse sentido, faço conexões bem próximas aos estudos do corpo sem órgãos de Deleuze e Guattari (1980), possibilitando borrar a construção da proposta do termo “Corpo Lona”.

Todas as teorias acima citadas, colocam como reflexão uma certa desconstrução de estruturas normativas, refletem sobre as estruturas e limitações impostas à corporalidade.

A proposta de construir o termo Corpos Lona, sugere também uma desconstrução das normas tradicionais de gênero e de expectativas sociais relacionadas especialmente às mulheres e um corpo feminino circense, fugindo de estereótipos convencionais e indo em direção a um espaço de liberdade e resistência.

Os Corpos lona, podem ser vistos como um corpo singular que transcende todas as limitações e se expressa de maneira única por meio de suas obras artísticas, abrindo-se às possibilidades de experimentação.

Esse corpo desafia normas sociais preestabelecidas e expectativas por meio da performance em si, e assim busca fugir das antigas normas tradicionais de feminilidade que desafiam os estereótipos de gênero.

Representa a afirmação de uma potência corporal que envolve um certo poder à medida que explora proezas físicas, expressividade e o domínio corporal para emergirem como mulheres e artistas independentes, e, também ao ocupar espaços tradicionalmente associados aos homens e assumir papéis tradicionalmente atribuídos aos homens.

Da mesma forma, o termo Corpos lona, pode ser entendido como um corpo que é flexível, capaz de se adaptar a diferentes contextos e situações, assim como as tendas e lonas tradicionais, e também pode evocar a ideia de estar intrinsecamente ligado à comunidade, capaz de interagir e se conectar com os outros de maneiras significativas.

Esse termo portanto,  articula a ideia de um corpo moldável e resiliente, ao mesmo tempo em que carrega as marcas das histórias pessoais e coletivas.

Os corpos lona são corpos que narram, guardam memórias e reivindicam autonomia dentro de um espaço tradicionalmente dominado por narrativas masculinas.

Corpos Lona, espaço de expressão artística em si mesmo. Assim como uma lona de circo pode ser transformada em um palco para a criatividade, o corpo das mulheres de circo se torna o local de uma performance que desafia as fronteiras do que é possível.

Concluo este artigo reconhecendo a força e a resiliência das mulheres de circo, que continuam a desafiar limites e a reescrever suas histórias em um espaço de constante movimento e transformação.

O conceito de corpo lona, desenvolvido ao longo deste artigo, aparece como uma contribuição original para a compreensão das dinâmicas corporais e narrativas no circo. 

Existem milhares de mulheres corpos lona por ai, lendo, pesquisando, maternando, dançando, rindo e criando, e criando, e criando!

 […] a chegada do circo à cidade cria uma intervenção concreta na área que antes era um espaço vazio, onde antes nada existia. Durante algum tempo, sobre aquele terreno serão mostrados simulacros das emoções humanas que despertarão no público que se acomoda debaixo da lona emoções verdadeiras. Ao final da temporada, a caravana segue seu rumo e o espaço volta à sua condição de nada, conjugando tanto o simulacro quanto a realidade em uma única expressão do vazio (ANDRADE, 2006, p.92).

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